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169 OBSERVADORES NO TERCEIRO PLANETA Salvador Nogueira Durante a maior parte de sua existência, a prática da astrono- mia dependeu basicamente de visão aguçada e alta capacidade de abstração matemática – e só. No entanto, o fato de que as ob- servações astronômicas feitas até o século 17 foram produzidas todas com a vista desarmada não significa que a “mãe” de todas as ciências não tenha sido uma fonte de inspiração tecnológica. Na verdade, mesmo na pré-história a astronomia contou com o uso de instrumentos. O primeiro e mais rudimentar deles parece ter sido a carta es- telar. Trata-se basicamente de um mapa do céu, repositório de conhecimentos que os antigos conseguiram apreender a partir das observações a olho nu. Os registros mais confiáveis das primeiras cartas celestes vêm de depois da invenção da escrita, mas alguns pesquisadores suspeitam que elas possam ter sido criadas bem antes disso. Não há dúvida de que, quanto mais voltamos no tem- po, mais nebuloso fica o cenário. Por exemplo: há quem diga que uma possível carta estelar pré- histórica vem da famosa caverna de Lascaux, na França. O local abriga algumas das pinturas rupestres mais antigas conhecidas. Lá, em meio a muitos desenhos de animais de caça, existem re- presentações feitas cerca de 17 mil anos atrás que os estudiosos julgam ser do conjunto de estrelas hoje conhecido como Plêiades. Claro, em comparação com a existência do ser humano (que, em sua forma atual, como Homo sapiens, existe há uns 170 mil anos), isso ainda é muito recente. É difícil acreditar que os homens Rupestre: inscri- to ou desenhado na rocha. 169 170170 tenham passado 90% de sua existência sem notar o céu. Supõe- se então que existam registros astronômicos que antecedam os achados de Lascaux. É nesse tipo de suposição que se baseiam as investigações de Michael Rappenglück, arqueoastrônomo do Instituto para Estudos Interdisciplinares, localizado na Baviera, Alemanha. Embora mui- tos pesquisadores da área ainda achem cedo para dizer que o pes- quisador está na trilha certa, é fato que ele conseguiu evidências de que uma lasca de presa de mamute trabalhada por humanos pré-históricos e encontrada numa caverna alemã em 1979 pode ser a mais antiga carta estelar já vista, 15 mil anos mais antiga que a descoberta de Lascaux, ou seja, com 32 mil anos de idade. As conclusões do pesquisador, apresentadas pela primeira vez em 2003 e debatidas fortemente nos círculos da arqueoastronomia desde então, são um bom exemplo de, por um lado, como é difícil interpretar artefatos antigos e, por outro, como os conhecimen- tos astronômicos dos antigos poderiam ter atingido um alto grau de sofisticação, do qual quase nada sabemos. Ainda assim, vale a pena prestar atenção a esse tipo de pesquisa, que já recebeu divulgação até mesmo da mais prestigiosa revista científica do planeta, a britânica Nature. A tábua apresenta, de um lado, uma estranha figura de um homem. No verso, 87 marcações. Para Rappenglück, o homem na verdade é uma representação do que seria uma versão antiga da constelação de Órion, consagrada pela mitologia grega séculos depois. Mas, para chegar a essa conclusão, o alemão teve de recorrer à computação. Com o auxílio de um software especial, o arqueoastrônomo con- seguiu visualizar como as estrelas da constelação estavam cerca de 32 mil anos atrás. (Como as estrelas estão orbitando ao redor do centro da Via Láctea em velocidades e órbitas diferentes, ao longo de muito tempo suas posições relativas no céu, vistas da Terra, se modi- ficam; isso é imperceptível na escala de vida humana, mas passa a ser representativo quando falamos de períodos de milhares de anos.) Depois dessa pequena “cirurgia celeste”, as coisas começaram a se encaixar. Mas o pesquisador foi ainda mais longe e propôs Arqueoastro- nomia: ciência que estuda os métodos e conhecimentos as- tronômicos de cul- turas agrárias de um passado remoto. 171171171 que a tábua, mais do que meramente um trabalho de cartografi a celeste, servia a um princípio prático: instruir mulheres sobre períodos mais adequados para uma gravidez. O alemão parte do princípio de que os antigos já sabiam fazer uma conta parecida com a usa- da hoje por muitos médicos para calcular quando uma gestação chegará a termo, a chamada “regra de Nägele”. Ocorre que da caverna de Geissenklösterle, onde foi encontrada a tábua, a estrela mais brilhante de Órion, Betelgeuse, é visível por cerca de três meses durante o ano, número aproximadamente igual a 87 dias – para 87 marcações no verso do artefato. Rappenglück acredita que a barra servia como guia para que se evitasse uma gravidez que fosse ser terminada durante períodos de migração entre o abrigo de verão e o abrigo de inverno da- quele agrupamento humano. Uma “tabelinha” das mais sofi sti- cadas, por assim dizer. Há muitas suposições na proposição do arqueoastrônomo ale- mão, o que deixa muitas dúvidas na cabeça de seus colegas aca- dêmicos. Mas o mais interessante de tudo é que a descoberta é uma excelente representação do que o céu signifi cava de mais importante na pré-história: a única referência realmente confi á- vel para a marcação do tempo. Desse ponto em diante, não tardou para que os humanos come- çassem a erigir grandes obras que servissem, possivelmente, como observatórios astronômicos. O exemplo mais famoso é o conjunto de pedras conhecido como Stonehenge, na Inglaterra. Trata-se de um monumento construído entre 5.000 e 4.000 anos atrás, composto por vários arranjos de grandes pedras. Por muito tempo, um mistério pairou sobre aquelas rochas. Ninguém sabia a que propósito elas serviriam – se é que tinham algum, além de se prestar como um local para rituais religiosos –, embora desde A regra de Nägele determina que um nascimento pode ser estimado ao se subtrair três meses desde o primeiro dia da última menstruação e então se somar um ano e uma semana. 172172 sempre houvesse a desconfi ança de que os arranjos megalíticos (ou seja, de grandes pedras) estivessem ligados às posições dos astros. Na verdade, o estudo dessas grandes construções de pedra (há outras, além de Stonehenge, menos famosas e sofi sticadas) foi o impulso que deu início à ciência da arqueoastronomia que no princípio foi denominada “astronomia megalítica”. A arqueoastronomia desenvolveu-se graças às pesquisas iniciadas em 1890 pelo astrônomo inglês Sir [Joseph] Norman Lockyer [1836-1920], que pode ser considerado como o moderno fundador desta ciência em virtude dos seus estudos dos monumentos egípcios e dos megalíticos ingleses. (MOURÃO, 2000, p. 14). A partir dos anos 1960, com a expansão dos estudos para além das construções megalíticas in- glesas e francesas, o termo “as- tronomia megalítica” caiu em desuso, substituído por “arqueo- astronomia”. E, desde a época de Lockyer, o campo tem se desen- volvido notavelmente, com novas descobertas e interpretações mais sólidas aparecendo ano após ano. E não houve civilização avança- da em tempos antigos que não orientou grandes construções arquitetônicas em razão da posição dos astros (como a pirâmide de Gizé, no Egito) ou erigiu impressionantes construções com o objetivo de melhor observar o céu (como é o caso dos maias, na América pré-colombiana). Ao longo do tempo, vários instrumentos foram desenvolvidos para a observação do céu, atingindo seu ponto culminante por volta dos séculos 15 e 16, época das Grandes Navegações. Mui- tos desses instrumentos tiveram forte desenvolvimento entre os árabes, numa época em que a astronomia não era muito popular O mistério de Stonehenge, foi aparentemente soluciona- do pelos astrônomos Gerald Hawkins (1928–2003) e Fred Hoyle (1915-2001). Após detalhados estudos das formações circulares de ro- chas, os pesquisadores con- cluíram que a obra na verdade se destinava a ajudar na pre- visão de eclipses. Hoje, esta é a teoria mais aceita, embora ainda existam arqueoastrô- nomos que defendem explica-ções alternativas para aquela formação megalítica. 173173173 no mundo cristão. Ao final de seu desenvolvimento, três deles ganharam maior destaque e presença no arsenal do astrônomo. Esfera armilar Sua aparência lembra a de um globo terrestre, mas, com grau muito maior de sofisticação. No centro do aparelho, um pequeno modelo da Terra. Ao seu redor, vários anéis representavam os grandes círculos de referência da esfera celeste – o equador celeste, a eclíptica, o meridiano, o ho- rizonte etc. Trata-se basicamente de uma forma geocêntrica de organizar o céu, e não é à toa que tenha se tornado tão popular entre os astrônomos ainda antes da publicação dos trabalhos de Copérnico – a realidade observacional, ou seja, a sensação que temos ao observar o céu, é geocêntrica. Astrolábio Trata-se de um objeto que permite medir a posição dos astros e sua altura acima da li- nha do horizonte. É composto de dois ou mais círculos, que podem ser girados uns em re- lação aos outros. Sextante Era o mais prático dos três. Com a forma de um sexto de círculo (daí o seu nome), ele era utilizado principalmente para a navegação. Usando-o em observações astronômicas, era possível determinar a latitude de um dado lugar, ou seja, a coordenada vertical num globo ou mapa terrestre. Com esses instrumentos, a astronomia ganhava a sua principal utilidade da época (tirando o uso desses co- nhecimentos na elaboração de supersticiosas previsões Figura 3.1. Imagem de esfera armilar. R ep ro d u çã o d e im ag em p u b li ca d a em o b ra d e T yc h o B ra h e, A st ro n om ia e In st a u ra ta e M ec h a n ic a , d e 1 5 9 8 . D is p o n ív el e m w w w .h p s. ca m .a c. u k /s ta rr y/ ar m il lo b se r. h tm l/ Figura 3.2. Ilustração mostra astrolábio persa do ano 1208. W ik p éd ia . w w w .w ik ip ed ia .o rg / Figura 3.3. Sextante de Johannes hevelius (1611-1687), astrôno- mo do século 17. Os sextantes também existiam em modelos menores, mais práticos para medições em alto mar. R ep ro d u çã o d e im ag em p u b li ca d a n o s ít io w w w .w ik ip ed ia .o rg / 174174 astrológicas, que eram parte do fazer astronômico de então): prestar auxílio aos navegantes para determinar sua posição no mar, uma vez que outros pontos de referência desapareciam numa viagem transoceânica. Além de permitir uma navegação mais segura, esse tipo de informação ajudava a impressionar e dominar povos menos instruídos. É clássica a história em que Cristóvão Colombo, para conse- guir a colaboração de silvícolas das Antilhas, ameaça apagar a luz da Lua, já sabendo que um eclipse lunar estava previsto para aquela noite. Os eclipses, como se sabe, muitas vezes evocam temores supersticiosos (astrólogos que o digam!), mesmo a quem já os viu com freqüência. E ver al- guém que podia “comandá-los” (ou, na melhor das hipóteses, pre- vê-los) foi demais para os índios. Conforme o disco lunar começou a ser encoberto pela sombra projetada pela Terra, os nativos trata- ram de atender rapidamente a todas as demandas do explorador genovês. A história é relatada pelo astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, em sua obra “O Livro de Ouro do Universo”. Vale lembrar que, a despeito da ajuda celeste às navegações, esses empreendimentos guardavam uma enorme dose de risco – a partir dos astros, só se podia dizer com alguma precisão a latitude. Nin- guém conseguia determinar a longitude – a coordenada horizontal, igualmente importante, porque informa, por exemplo, a distância entre um navio e a Europa na travessia do oceano Atlântico. Descobertas que permitiram determinar a longitude A tecnologia de determinação da longitude permaneceu como o maior desafi o para os astrônomos durante séculos. Ao fi nal, a so- lução não emergiu da astronomia, mas da construção de relógios. A longitude podia ser determinada com facilidade se um navega- dor pudesse confrontar a hora local em seu navio (medida por Os capitães de embarcações no passado costumavam ter razoáveis conhecimentos de as- tronomia e, muitas vezes, leva- vam a bordo um astrônomo para ajudá-los a mapear o curso. Latitude: num mapa, é designada pela po- sição num eixo vertical. Dada a esfericidade da Terra, ela é medida em graus, a partir da Linha do Equador (0°). A esca- la vai até 90° Norte ou 90° Sul. Longitude: num mapa, é designada pela posição num eixo horizontal. Dada a esfericidade da Terra, ela é medida em graus, a partir do me- ridiano de Greenwich (0°). A escala vai até 180° Leste ou 180° Oeste (que se encontram no mesmo lugar e marcam a linha internacional de mudança de data). 175175175 um relógio de Sol ou outro instrumento equivalente) no momento exato em que fosse meio-dia num ponto de referência cuja longitu- de fosse conhecida. Calcular a diferença de horário permitiria de- terminar quantos graus separavam o navio do ponto de referência. O problema era como levar ao navio um relógio sincronizado com o horário no ponto de referência com longitude conhecida – o balanço produzido pelas ondas e as dilatações de materiais ocasionadas pelas diferenças de temperatura inevitavelmen- te desregulavam o relógio, impedindo a obtenção de medidas precisas. O resultado era rotineiramente catastrófico – navios topa- vam sem aviso com terras que julgavam estar muito mais distantes, muitas vezes resultando na perda da embarcação e sua tripulação. Enquanto os astrônomos trabalhavam em soluções que en- volveriam observações detalhadas da Lua ou mesmo dos satélites naturais de Júpiter (medições possivelmente refi- nadas demais para serem realizadas a bordo de um navio), a resposta partiu de um modesto construtor de relógios inglês, John Harrison (1693-1776), que conseguiu produzir modelos capazes de manter o sincronismo, mesmo depois de submetidos a grandes turbulências oceânicas a bordo de um navio. A despeito dessa grande vitória dos relógios terrestres sobre os relógios celestes, mesmo antes que Harrison tivesse su- cesso, uma nova tecnologia entraria em cena na astronomia, proporcionando uma revolução no conhecimento que até hoje segue em andamento. MENSAGENS SIDERAIS Cerca de dez meses atrás um relato chegou a mim de que um holandês havia construído um óculo, com o qual objetos visíveis, embora a uma grande distância do olho do observador, eram vistos distintamente como se estivessem perto; e algumas provas de seu desempenho maravilhoso foram relatadas, a que alguns deram crédito e outros contradisseram. Uns poucos dias depois, eu recebi confirmação do relato em uma carta escrita de Paris por um nobre francês, Jaques Badovere, o que finalmente 176176 me motivou primeiro a investigar o princípio do óculo e então considerar os meios pelos quais poderia eu inventar um instru- mento similar, o que pouco depois eu consegui fazer, pelo estudo profundo da teoria da Refração; e eu preparei um tubo, primeiro de chumbo, e nas pontas coloquei duas lentes de vidro, ambas planas de um lado, mas uma com o outro lado esfericamente convexo, a outra, côncavo. Então, ao levar meu olho à lente côncava, eu vi objetos satisfatoriamente grandes e próximos, que pareciam estar a um terço da distância e nove vezes maio- res do que quando vistos com o olho natural apenas. Eu logo em seguida construí outro óculo com mais competência, que ampliou objetos em mais de sessenta vezes. No fim, sem evitar trabalho ou custo, consegui construir para mim um instrumento tão superior que objetos vistos através dele pareciam ampliados em quase mil vezes, e mais do que trinta vezes mais próximos do que se vistos somente com o poder natural da vista. Seria uma grande perda de tempo enumerar a importância e os benefícios que esse instrumento deve conferir, quando usado em terra ou mar. Mas, sem prestar atenção a seu uso para objetos terrestres, eu me dediquei a observações dos corpos celestes. (GALILEU GALILEI, 1880, p.p.10-11).Foi assim que o cientista italiano Galileu Galilei começou a des- crever as primeiras observações consistentes dos céus feitas por um ser humano com um telescópio refrator (ou luneta, como também é chamado esse instrumento). A publicação de seu primeiro livro, Sidereus Nuncius [Mensageiro das Estrelas], em 1610, marcou uma nova era na história da astronomia – uma em que os instrumentos re- velariam muito mais do que estava ao alcance do homem usando apenas a vista desarmada e refor- çariam as idéias copernicanas. Quase instantaneamente inúme- ras descobertas incríveis começaram a se revelar ao italiano. E, como se pode notar pelo texto, Galileu nem tenta tomar para si o crédito pela invenção da tecnologia em si – cria- da originalmente, segundo a maioria dos historiadores, pelo O cientista italia- no Galileu Galilei (1564-1642) foi o grande precursor do empirismo – atitude de realizar experi- mentos calculados e deliberados para decifrar os segredos da natureza. Ao estabele- cer este que é um dos pilares fundamentais da ciência moderna, Galileu pôde iniciar a decifração de alguns dos maiores mistérios da física, desbancan- do Aristóteles. Ele decifrou a equação que descreve o movimento de projéteis (inicia- tiva que mais tarde levaria à descrição da gravitação universal) e esboçou a lei da inércia. No campo da astronomia, foi forte defensor do heliocen- trismo de Copérnico e iniciou a exploração telescópica dos céus, em 1609 e 1610. Descobriu quatro luas em Júpiter, hoje denominadas “satélites galileanos”. Por sua de- fesa do heliocentrismo, foi julgado e condenado pela Santa Inquisição, em 1633, e terminou seus dias em prisão domiciliar. Figura 3.4. Retrato de Galileu Galilei. R ep ro d u çã o d o q u ad ro p in ta d o p el o p in to r it al ia n o O tt av io L eo n i (1 5 7 8 -1 6 3 0 ). A o b ra e n co n tr a- se n o M u se u d o L o u vr e, e m P ar is . 177177177 holandês Hans Lippershey (1570-1619), em 1608. O italiano se coloca apenas como um aperfeiçoador do invento, e sua grande inovação consiste em sua aplica- ção – pela primeira vez uma luneta era empregado na observação de objetos no céu. Galileu começou suas primeiras observações, realizadas entre janeiro e março de 1610, pela Lua. Embora fosse o objeto de maior visibilidade para os astrônomos an- tigos, pois, mesmo a olho nu revelava alguns traços de sua superfície, ainda havia muito para se descobrir. E o astrônomo italiano começa a demolir a noção aristotélica do mundo pela observação lunar. Essas manchas [as crateras] nunca foram observadas por ninguém antes de mim; e pelas minhas obser- vações, repetidas muitas vezes, fui levado à opinião que eu expressei, qual seja, de que estou certo de que a superfície da Lua não é perfeitamente lisa, livre de variações e exatamente esférica, como uma grande escola de filósofos toma a Lua e os outros corpos celestes, mas que, ao contrário, ela é cheia de desigualdades, variações, cheia de vazios e protuberâncias, exatamente como a superfície da própria Terra, que varia em toda parte por grandes montanhas e vales profundos. (GALILEU GALILEI, 1880, p.15). Galileu tirou essa conclusão com base nas sombras projeta- das no interior das crateras na região da Lua que divide o hemisfério que está sendo iluminado pelo Sol do que está nas sombras. Se a superfície lunar fosse completamente lisa, essa linha que separa luz e escuridão seria regular. O que o astrôno- mo notou foi uma série de irregularidades. Em desenhos, ele demonstrou o que queria dizer. O astrônomo italiano também fez outras considerações rele- vantes a respeito da Lua, ao defender a tese (correta) de que o brilho pálido da região da superfície lunar não-iluminada pelo Sol é produzido pela luz refletida pela própria Terra. (Assim como o luar ilumina fracamente a noite terrestre, o “brilho terrestre” ilumina fracamente a noite lunar.) Figura 3.5. Capa do livro Sidereus Nuncius, de Galileu Galilei, publicado em 1610. R ep ro d u çã o d e im ag em p u b li ca d a n o s ít io w w w .m at h. yo rk u. ca /S C S/ G al le ry /i m ag es /g al ile o1 6 1 0 -c ov er .jp g/ 178178 Depois das observações lunares, o italiano se voltou para as cha- madas “estrelas fixas”. E a revelação aí foi que existem muito mais estrelas do que antes se imaginava. Para onde quer que apontasse sua luneta, Galileu via objetos nunca antes cataloga- dos. Ele também reparou que o poder de aumento proporcionado por seu instrumento não era muito efetivo para ampliar a imagem das estrelas, que se mantinham apenas como pontos, em vez de discos, como era o caso de todos os planetas. E, ao mirar seu telescópio na Via Láctea, Galileu constatou que o que parecia uma faixa gasosa, na verdade, era uma vasta coleção de estrelas, todas muito compactadas e, individualmente, pouco brilhantes para serem vistas a olho nu. Mas a revelação mais chocante feita pelo italiano acerca dos céus nessa primeira bateria de observações, foi a descoberta de quatro pontos luminosos que pareciam estar girando ao redor de Júpiter, movendo-se em grande velocidade – quatro satélites, que ele ba- tizou de “estrelas mediceanas”, em homenagem a seu “padrinho” na nobreza, o grão-duque Cosimo de Médici, da Toscana. As maiores luas de Júpiter hoje são conhecidas como Ganimedes, Calisto, Europa e Io (na ordem, da órbita mais externa para a mais interna), e, ao serem mencionadas em conjunto, costumam ser chamadas de “satélites galileanos”. A partir de suas observações, Galileu também apoiou (erradamente) a tese de que a Lua possui uma atmosfera. Ele postulou a existência desse invólucro gasoso para explicar por que as irregularidades da superfície não aparecem nas bordas do disco lunar; uma proposta engenhosa, ainda que equivocada. O astrônomo italiano também imaginou que as regiões escuras da Lua pudessem ser mares. Até hoje o termo em latim para mar, mare, é usado para descrever essas regiões, muito embora saibamos que não há água em estado líquido na Lua – embora haja suspeitas da existência de gelo em crateras de seu pólo sul. Essas conclusões de Galileu explicam em parte o porquê de Kepler, em seu Somnium, ter descrito o satélite natural terrestre como possuidor de atmosfera, água e, como conseqüência, habitantes. Via Láctea: é a nossa galáxia, ou seja, o grande con- junto de estrelas do qual o Sol e seus pla- netas fazem parte. Em sua forma espi- ral, estima-se que ela abrigue cerca de 200 bilhões de estrelas, sendo o Sol apenas uma delas. No Universo inteiro, os astrônomos estimam que existem bilhões de galáxias como a Via Láctea. 179179179 Galileu logo percebeu que a descoberta das luas de Júpiter era o maior argumento já levantado em favor do heliocentrismo de Copérnico. Em Sidereus Nuncius, ele escreveu: [...] Temos um notável e esplêndido argumento para remover os escrúpulos daqueles que podem tolerar a revolução dos planetas ao redor do Sol no sistema copernicano, mas fi cam tão pertur- bados pelo movimento de uma Lua ao redor da Terra, enquanto ambos realizam uma órbita de um ano de duração em torno do Sol, que consideram que essa teoria da constituição do universo deve ser vista como impossível; pois agora temos não só um planeta que gira ao redor de outro, enquanto ambos atravessam uma vasta órbita em torno do Sol, mas nosso sentido da visão nos apresenta quatro estrelas circulando Júpiter, como a Lua em torno da Terra, enquanto o sistema inteiro viaja por uma enorme órbita em torno do Sol no espaço de doze anos. (GALILEU GALILEI, 1610, p.p. 69-70). E essas seriam apenas as pri- meiras descobertas do italiano que apoiavam Copérnico. Mais tarde, ele descobriria que Vênus possui fases, como as da Lua, o que só pode signifi car que aque- le planeta gira ao redor do Sol. Mesmo com evidências quase conclusivas (o modelo de Tycho Brahe aindasobrevivia como al- ternativa ao copernicano), Galileu acabou levado ao tribunal da Santa Inquisição após a publi- cação de outro livro, “Diálogos sobre os dois máximos sistemas de mundo, ptolomaico e coper- nicano”, em 1632, e condenado por heresia (muito embora acre- ditasse fervorosamente em Deus). Após abjurar seus ensinamentos “profanos”, Galileu escapou da fo- gueira e teve a pena abrandada para prisão domiciliar, que cumpriu até o fi m de sua vida, em 1642, numa vila de Arcetri, na Itália. A despeito do ataque às idéias do italiano, seu novo méto- do de trabalho com a luneta estava fadado a mudar com- pletamente a visão que temos do céu. Vale lembrar também que foi Galileu quem primeiro documentou a existência de manchas solares. Ele obvia- mente não olhou diretamente para o Sol por uma luneta – o que o cegaria de imediato –, mas usou um anteparo para observar uma projeção da imagem do Sol obtida através da luneta. Mais um exemplo da engenhosidade experimen- tal do cientista italiano. 180180 Com as descobertas sucessivas de Galileu, assim como de outros observadores mu- nidos desse novo instrumento óptico, o telescópio refrator rapidamente se tor- nou a peça mais importante da astrono- mia. Com ele, um novo céu literalmente se abria aos pesquisadores. No entanto, essa tecnologia ainda era severamente li- mitada por duas dificuldades. Uma delas era que o esforço para produ- zir um poder de ampliação cada vez maior tornava o aparelho imenso, devido à ne- cessidade de construir uma lente objetiva enorme (para recolher a luz do objeto dis- tante), o que por sua vez exigia um grande afastamento entre as duas lentes do instru- mento, a objetiva e a ocular (que concen- tra a luz no olho do observador). Além de permitir instrumentos com maior poder de ampliação, esse grande aumento da distância entre as lentes também ajudava a resolver outra grave deficiên- cia dos telescópios refratores: a chamada aberração cromática. O resultado foi a construção de instrumentos monstruosos, com distâncias focais que chegavam a atingir os 70 metros! O astrô- nomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (1935-) descreve em sua obra “O Livro de Ouro do Universo”: Como era muito difícil fabricar tubos com tais comprimentos, dispunham-se as lentes sobre suportes (torres, mastros etc.), e os astrônomos no chão, com lupas, fazendo acrobacias, procuravam examinar as imagens fornecidas pelas objetivas. (MOURÃO, 2000, p. 116). O problema perdurou até o fim do século 17, e só obteve uma solução mais razoável quando o óptico inglês John Dollond (1706-1761), em 1758, inventou as primeiras lentes objetivas “acromáticas”, que não possuíam a terrível distorção de cores. Elas eram compostas Telescópio refra- tor: assim chamado por usar lentes para coletar luz (objetivas) e ampliar as imagens (ocu- lares), segundo os prin- cípios da refração. Aberração cromá- tica: é a distorção das cores dos obje- tos observados pela luneta, pelo fato de o vidro das lentes não ter o mesmo índice de refração para todas as cores do espectro. Figura 3.6. Ilustração do Observatório Lick, na Califórnia, publicada em 1889. A l A u m u ll er /B ib li o te ca d o C o n g re ss o d o s EU A . 181181181 por duas lentes de vidro, coladas uma na outra, cada uma com um índice de refração diferente. Com essa inovação, as objeti- vas passaram a se acomodar em focos mais curtos e voltar a ser instaladas em tubos. “Surgem então algumas famosas lunetas”, prossegue Mourão. Em 1824, a [luneta] do Observatório de Dorpat, na Rússia, com objetiva de 42 cm e 4,30 m de foco; em 1835, a do Observatório de Cambrigde, com 32 cm; logo depois as dos Observatórios de Estrasburgo, Washington, Viena, Paris e Lick (Califórnia), respectivamente, com 50, 66, 68, 85 e 91 cm de diâmetro. Em 1892, foi construída a maior até hoje, no Observatório de Yerkes, em Chicago, com 1,02 m de diâmetro e 19 m de distância focal. (MOURÃO, 2000, p. 117). Mas havia uma outra estratégia de ampliar imagens que contor- nava os principais problemas dos telescópios refratores; bastava, para isso, usar um espelho, em vez de uma lente objetiva, para fazer a coleta da luz. O primeiro a construir um telescópio refrator foi o grande físico inglês Isaac Newton. Em 1672, ele construiu um instrumento com um espelho metálico de concavidade esférica com 25 cm de abertura e 15 cm de foco. Foi a construção desse chamado telescópio refletor (por basear-se no princípio de refle- xão da luz, ampliando a imagem por meio de espelho) que, aliás, lhe garantiu uma vaga como membro da Royal Society, importante instituição científica britânica que ele presidiria tempos depois. A despeito de todas as qualidades do instrumento de Newton, ele possuía um grave defeito: deformava as imagens por aber- ração esférica (distorção da imagem causada pela curvatura do espelho usado para ampliar os objetos). A solução só foi encon- trada em 1720, pelo inglês John Hadley (1682-1744), que trocou a forma da concavidade do espelho; em vez de esférica, parabo- lóide. Isso tinha o potencial para tornar os telescópios refletores mais eficientes que os gigantes refratores, mas ainda esbarrava num sério problema: a incipiência da técnica para a fabricação e o polimento de espelhos metálicos. Somente quando a constru- ção de espelhos se tornou mais simples, os refletores assumiram uma posição de liderança na observação astronômica. Reflexão: ocorre quando a luz, ao en- contrar um meio dife- rente daquele em que está se propagando, é rebatida. É o caso da luz que, ao se propa- gar pelo ar, encontra um espelho. Refração: ocorre quando a luz, ao en- contrar um meio dife- rente daquele em que está se propagando, é desviada. É o caso da luz que, ao se propagar pelo ar, encontra uma lente e tem seu curso levemente modificado. O fenômeno explica a diferença de ângulo que observamos em objetos dentro de uma piscina ou uma ba- nheira, com relação à sua posição real. 182182 O primeiro grande telescópio, com espelho de 1,20 m de diâme- tro e foco de 12 m, foi construído em 1789, pelo astrônomo in- glês William Herschel. Um segundo foi construído pelo irlandês William Parsons (1800-1867), conde de Rosse, em 1845, com um espelho de 1,83 m de diâmetro e 17 m de foco. Mas esses esforços só seriam batidos quando o francês Leon Foucault (1819-1868) e o alemão Carl A. von Steinheil (1801-1870), em 1856, demonstraram a possibilidade de fabricar os espelhos com vidro, apenas recober- tos por uma leve camada refletora de prata. Mourão completa: Logo que surgiram os espelhos de vidro, não houve astrônomo que não preferisse os telescópios, em virtude da grande lumino- sidade garantida por seus diâmetros e pelo fato de os telescópios serem mais adequados que as lunetas [ou telescópios refratores] para registrar as imagens de astros fracos, bem como para for- necer espectros mais fiéis, pois a luz dos astros não era obrigada a atravessar o vidro. (MOURÃO, 2000, p. 120). O século 19 marcou não só o momento de transição en- tre os telescópios refratores e refletores, mas também uma grande descoberta – era pos- sível, a distância, descobrir a composição dos astros. Entra- va em cena a espectroscopia. O espectro, como sabemos, é o efeito de decomposição da luz em suas componentes básicas. Os primeiros estudos profundos desse efeito tam- bém tiveram sua origem com Isaac Newton, que demons- trou a decomposição da luz branca nas cores do arco-íris, após a passagem por um prisma de vidro. A despeito de suas notáveis investigações, Newton naquele momento ainda estava longe de desvendar o poder dos espectros em portar informações sobre os objetos a partir dos quais eles emanavam. Espectroscopia: estudo de obje- tos a partir do seu espectro, ou seja, da decomposição da luz que emitem ou re- fletem em suas cores componentes. A de- composição pode se dar por meio de um prisma, como identi- ficou Isaac Newton. Prisma:sólido geo- métrico de arestas paralelas podendo ter um triângulo com base. Figura 3.7. Isaac Newton realiza experi- mento com prisma. R ep ro d u çã o d o q u ad ro d e Is aa c N ew to n , p in ta d o p el o i ta li an o , b ar ro co , A n to n io V er ri o p o r vo lt a d e 1 6 9 0 e q u e es tá e m B u rg h le y h o u se , St am fo rd , Li n co ln sh ir e, I n g la te rr a. 183183183 O grande salto ocorreu de fato quando se fez um exame cuida- doso do espectro da luz solar: descobriu-se então que o padrão de arco-íris era atravessado por numerosas faixas negras de vá- rias espessuras. Conforme esse espectro era ampliado, usando uma seqüência de prismas, chegavam a ser observadas cerca de 3.000 dessas raias (as faixas negras). Mas o que elas in- dicavam? Ninguém tinha a menor idéia, até o físico alemão Gustav R. Kirchoff (1824-1887) matar a charada. Em 1860, ele descobriu o que aquilo queria dizer. Ocorre que os elementos químicos, quando aquecidos até se tor- narem incandescentes, possuem cada um seu próprio padrão de espectro característico. Cada um dos elementos tem sua própria distribuição de raias, situadas em posições bem determinadas, e nenhum elemento tem uma faixa igual à do outro. Então, a pre- sença de uma determinada raia, em detrimento de outra, indica a presença de um elemento, em vez de outro. Os espectros de cada elemento são muito variados. “O ferro, por exemplo, tem mais de duas mil faixas, ao passo que o chumbo e o potássio têm apenas uma”, afirma Mourão em “O Livro de Ouro do Universo”. Como todos os elementos químicos já foram estudados, suas raias características são bem conhecidas, de modo que se torna possível explorar as estrelas, os planetas, as galá- xias e nebulosas e descobrir suas composições químicas. (MOURÃO, 2000, p. 122). Pela primeira vez, era possível identificar do que eram compos- tos os corpos celestes, ou seja, pelos mesmos elementos que vía- mos aqui na Terra: hidrogênio, hélio, oxigênio, carbono, ferro, e assim por diante. LUz INVISíVEL Enquanto alguns cientistas duelavam para entender o que pode- ria ser aprendido a partir do espectro, outros se perguntavam se havia algo além dele a ser investigado. A iniciativa daria origem a uma outra revolução na observação astronômica. 184184 O primeiro grande inovador nessa escalada possivelmente foi o inglês William Herschel. Em 1800, o astrônomo estudava a temperatura das diferentes regiões do espectro solar. Quando co- locou o termômetro aquém da faixa vermelha, ele não esperava resultado algum, mas acabou encontrando ali uma estranha fonte de calor. Claramente havia algo naquela região que, embora fos- se invisível, influenciava o termômetro. Com isso, ele se tornava o descobridor da chamada radiação infravermelha. Um processo similar levou à descoberta da radiação ultraviole- ta – localizada, naturalmente, na outra ponta do espectro visível, além do violeta. Ao observar os diferentes efeitos produzidos pelo espectro solar na decomposição de uma substância chamada clo- reto de prata, o físico alemão Johan Wilhelm Ritter (1776-1810) constatou que a região além do violeta era ainda mais poderosa na destruição do composto do que as partes visíveis do espectro. Em 1803, o físico inglês Thomas Young (1773-1829) começa a sustentar a idéia de que a luz pode ser interpretada como uma onda, e não como uma partícula, como imaginava Isaac Newton. Era o início de um processo que levaria a uma compreensão mais profunda da natureza da luz, que atingiria um ponto alto com o escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), ao demonstrar que eletricidade e magnetismo eram apenas faces da mesma moeda e estavam fortemente atrelados à luz – que passaria então a ser vista como radiação eletromagnética. O quadro começava a fazer um pouco mais de sentido. A descoberta seguinte viria do alemão Heinrich Rudolph Hertz (1857-1894), que detectou radiação eletromagnética com com- primento de onda mais longo que o do infravermelho – primei- ramente elas foram chamadas de “ondas hertzianas”, mas logo acabaram popularizadas como “ondas de rádio”. Menos de dez anos depois, em 1895, mais um achado impressionante: o alemão Conrad Röntgen (1845-1923) descobre os raios X, que depois se- riam confirmados como uma forma de radiação eletromagnética mais energética que o ultravioleta. Heinrich Rudolph Hertz (1857-1894) físico alemão que, em 1888, foi o primei- ro a demonstrar a existência da radiação eletromagnética ao construir aparelhos geradores de ondas de rádio UHF. Emprestou seu nome, hertz, para a designação da uni- dade de freqüência no Sistema Internacional de Unidades. Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923) foi o físico alemão que, em 1895, produziu e detectou os primeiros raios X, na época também chamados de raios Röntgen. O feito deu a ele o Prêmio Nobel em Física de 1901. Seu nome é co- mumente apresentado com a grafia inglesa, “Roentgen”, sem o trema e com um “e” a mais. 185185185 Um ano depois da primeira observação dos raios X, o francês Antoine Henri Becquerel (1852-1908) descobriria a radioativida- de, mesmo sem identificar sua fonte (no caso específico em questão, o urânio). O físico neozelandês Ernest Rutherford (1871-1930) bati- zou essa faixa, posicionada além dos raios X, de radiação gama. Com isso, o século 20 começaria com dois poderosos instrumen- tais novos: o primeiro, e pronto para uso, consistia na decodifi- cação das informações que vinham dos astros distantes na forma de seu espectro de luz visível. O segundo, e mais assustador, Figura 3.8. Espectro eletromagnético total com identificação da porção visível. Su el i Pr at es ( A EB /P ro g ra m a A EB E sc o la ). A d ap at aç ão d e il u st ra çã o p u b li ca d a n o s ít io h tt p :/ /l as p .c o lo ra d o .e d u /c as si n i/ ed u ca ti o n /E le ct ro m ag n et ic % 2 0 Sp ec tr u m .h tm /. 186186 era o de que o espectro ia muito além daquilo que podíamos en- xergar, e com isso vinha a noção de que seria possível garimpar ainda mais informações nessas regiões invisíveis do espectro. Com a enorme ampliação das perspectivas e o crescimento na- tural dos telescópios, começaram a fi car evidentes algumas das defi ciências (quase) incontornáveis da astronomia. Como, por exemplo, evitar a signifi cativa infl uência da atmosfera terrestre na observação dos astros? ADAPTAÇÃO À ATMOSFERA Uma noite sem ventos pode ser enganadora. Enquanto a paz reina no solo, na alta atmosfera a temperatura varia bastante de acordo com a altitude e intensos fl uxos de ar se locomovem a grandes velocidades. Esses fatores, naturalmente, infl uenciam a luz, enquanto ela atravessa as camadas atmosféricas em direção às lentes e aos espelhos de nossos telescópios refratores e refl etores. Nos instrumentos menores, a distorção gerada pela atmosfera é quase imperceptível. Nos maiores, ela cresce em proporção. Resultado: as imagens obtidas são inevitavelmente menos nítidas do que os astrônomos gostariam que fossem. Como solucionar a questão? Uma idéia, que por muito tempo pululou nas mentes dos pesquisadores, foi atacar fogo com fogo. Explicando: se a atmosfera distorce os raios luminosos, a solução seria distorcer também o espelho que recebe a luz, de forma a “endireitar” no- vamente a radiação. A esse conceito os cientistas deram o nome de “óptica adaptativa”. A lógica é impecável, mas, a realização é complexa. Como en- tortar o espelho de modo a compensar a distorção atmosférica? Atualmente, é impossível falar no estudo dos astros sem levar em conta todas essas vastas possibilidades. Afinal de con- tas, ficou demonstrado que a porção visível do espectro é apenas uma pequena parte de tudo que pode ser estudado. 187187187 Em primeiro lugar, é preciso identifi car exatamente de que modo a atmosfera está distorcendo a luz vinda do espaço. Feitoisso – que já não é tarefa tão simples –, é preciso distorcer o espelho, na velocidade exigida para produzir a compensação – ação que durante muito tempo foi simplesmente impossível. Por essa ra- zão, o conceito acabou deixado de lado. A coisa só começou a mudar de fi gura durante os anos 1990, quando a tecnologia dos computadores já estava sufi cientemente avançada para processar todas essas informações e produzir auto- maticamente a deformação exigida no espelho. Começaram então a surgir os primeiros telescópios equipados com óptica adaptativa, que produziram as melhores ima- gens já obtidas de objetos astronô- micos com equipamentos em ter- ra, ou seja, sujeitos aos caprichos da atmosfera terrestre. Embora fosse um enorme avanço, a óptica adaptativa não re- solvia todos os problemas. Em primeiro lugar, ela não pode ser usada indiscriminadamente para estudar qualquer região do céu. Para que ela funcione, é preciso que a área observada possua um astro sufi cientemente brilhante para permitir a “calibragem” do sistema, ou seja, a detecção dos efeitos atmosféricos para sua efetiva compensação por meio da distorção do espelho. Essa defi ciência tem sido resolvida nos observatórios mais mo- dernos com a instalação de “estrelas artifi ciais”, que são produzi- das por feixes de laser disparados para o alto. Com a detecção da reação da atmosfera ao laser, é possível confi gurar corretamente o espelho e observar a região do céu desejada. Existe, entretanto, uma difi culdade que nem mesmo a “milagrosa” óptica adaptativa pode resolver. Algumas faixas mais energé- ticas da radiação eletromagnética não conseguem ultrapassar a alta atmosfera. (Aliás, ainda bem que não conseguem, pois O surgimento de telescópios equipados com óptica adap- tativa foi destacado pela prestigiosa revista científica norte-americana Science como um dos dez maiores feitos da ciência em 2002. 188188 raios ultravioleta, X e gama são extremamente nocivos à vida, desestabilizando as grandes moléculas de carbono que fazem os principais componentes dos organismos). Ou seja, por melhor que seja o instrumento utilizado em terra, para efeito do estudo dessas radiações, o astrônomo está efetivamente no escuro. A resposta a esse dilema é óbvia, ainda que tortuosa: é preciso sair da atmosfera. A busca pelo conhecimento, cedo ou tarde, ne- cessariamente, nos põe a caminho do espaço.
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