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A Abadia de Northanger Jane Austen Disponibilização: Toca da Coruja Formatação: Gisa 2 CAPÍTULO I Quem tivesse visto Catarina Morland em criança, nunca poderia supor que nascera para heroína. A sua situação na vida, o caráter do pai e da mãe, a sua própria pessoa e temperamento, tudo parecia contra ela. O pai era padre; mas como nunca se mostrara desmazelado ou pobre, todos o respeitavam, embora se chamasse Ricardo e nunca tivesse sido bonito. Possuía considerável independência que lhe vinha de duas boas freguesias. Nunca tivera por costume cercear a liberdade das filhas. A mãe era uma mulher de senso prático, de bom gênio, e, o mais importante, de boa constituição física. Quando Catarina nasceu já ela tinha três filhos; em vez de morrer ao dar à luz o último, como qualquer pessoa esperaria, continuou a viver. Viveu para ter mais seis filhos, para os ver crescer à sua volta e gozar de excelente saúde. Uma família de dez filhos será sempre considerada uma bela família, porque há cabeças, braços e pernas em número suficiente para a distinguir. Porém com os Morlands não se dava isso, porque, em geral, eram muito feios e Catarina durante muito tempo da sua vida fora tão feia como todos eles. Era magra e malfeita, tinha a pele macilenta e pálida, o cabelo escuro e liso e as feições acentuadas de mais para a idade. O seu espírito não se inclinava para o heroísmo. Gostava de todos os jogos de rapazes e preferia o cricket, não só às bonecas, mas a todos os divertimentos próprios da infância - tratar de um arganaz, dar de comer a um canário ou regar uma roseira. Na verdade não tinha gosto pelo jardim e se colhia algumas flores era apenas pelo prazer de as estragar - pelo menos assim se deduzia do fato de preferir sempre as que lhe proibiam mexer. Estas eram as suas inclinações; as suas habilidades igualmente extraordinárias. Nunca fora capaz de aprender ou compreender qualquer coisa a não ser ao fim de muito tempo; e por vezes nem assim, porque frequentemente estava distraída e às vezes estúpida. A mãe levou três meses a ensinar-lhe a ”Súplica do pobre” e, no fim de contas, a irmã a seguir, Sally, dizia-a melhor do que ela. Não que Catarina fosse sempre estúpida; de maneira alguma. Aprendeu a fábula “A lebre e muitos amigos”, tão depressa como qualquer menina em Inglaterra. A mãe queria que ela aprendesse música e Catarina tinha a certeza de que havia de gostar, porque sentia muito prazer em tocar nas teclas do velho piano abandonado; por isso começou a aprender aos oito anos. Estudou durante um ano, mas contrariada; e a senhora Morland, como não insistia com as filhas para serem prendadas desde que não tivessem jeito nem gosto, deu licença a Catarina para pôr de parte a música. O dia em que despediram o professor foi dos mais felizes para Catarina. O gosto pelo desenho não era maior, mas, apesar disso, sempre que podia apanhar um sobrescrito da mãe ou outro qualquer bocado de papel, esforçava-se por desenhar casas e árvores, galinhas e pintinhos, saindo todos iguais uns aos outros. O pai ensinava-lhe a escrever e contar e a mãe o francês, mas o seu aproveitamento não era notável em qualquer deles e fugia às lições sempre que podia. Que caráter tão estranho e inexplicável! Com todos estes sintomas de desregramento aos dez anos, não tinha, todavia, nem mau coração nem mau gênio; raras vezes se mostrava teimosa, quase nunca desordeira, era muito boa para os mais pequenos e só raras vezes despótica com eles; era essencialmente barulhenta e impulsiva, odiava a prisão e a limpeza, e de nada gostava mais do que rebolar-se pela verde encosta que havia atrás da casa. Assim era Catarina naquela idade. Aos quinze, o aspeto começou a melhorar, frisava o cabelo e suspirava por bailes. Desenvolvera-se, as feições tinham-se suavizado e tomado cor, os olhos ganharam vida, e a sua figura produzia melhor impressão. A falta de asseio deu lugar à inclinação para o luxo e assim se tornou asseada à medida que se tornava elegante. Muitas vezes era com alvoroço que ouvia falar ao pai e à mãe da sua transformação: Catarina 3 está a fazer-se uma menina engraçada, quase bonita, eram palavras que ouvia de vez em quando (e que alegria lhe davam!). Ser quase bonita dá mais prazer a uma menina que foi feia durante os primeiros quinze anos da sua vida, do que a outra que já o seja desde o berço. A senhora Morland era uma excelente senhora e queria que os seus filhos obtivessem os maiores êxitos, mas tinha o tempo tão ocupado com os partos e com o ensino dos mais pequenos, que as filhas mais velhas ficaram inevitavelmente abandonadas a si próprias. Por isso não era para admirar que Catarina, que, por natureza, nada tinha de heróica, preferisse, aos catorze anos, o cricket e baseball, montar a cavalo e correr pelos campos, aos livros, pelo menos aos livros de estudo, porquanto, desde que deles se não tirasse nenhum conhecimento útil e que fossem de histórias e não de erudição, não lhes opunha objeções. Mas dos quinze aos dezessete anos preparava-se para ser uma heroína. Lia todas as obras que as heroínas devem ler para enriquecer os seus conhecimentos com aqueles assuntos que tanto auxílio e alívio prestam nas vicissitudes das suas vidas tão cheias de acontecimentos. De Pope aprendeu a censurar aqueles que: ostentam o fingimento da dor1. De Gray, que muitas flores nascem para florir na sombra e espalhar o seu odor no ar deserto2. De Thomson, que é uma tarefa deliciosa saber disparar a idéia nova3. E em Shakespeare adquiriu um grande manancial de conhecimentos, entre os quais que ninharias leves como o vento são para os ciumentos confirmações absolutas como as provas da Sagrada Escritura4, que o pobre escaravelho que pisamos sofre uma dor corpórea tão grande como quando um gigante morre5 e que uma donzela apaixonada se parece sempre com a Paciência a sorrir à Dor, num monumento fúnebre6. Até então a sua cultura era suficiente, e desempenhava extremamente bem muitos trabalhos. Embora não soubesse escrever sonetos, começou a lê-los; ainda que não conseguisse entusiasmar os ouvintes com um prelúdio de piano da sua autoria, era capaz de ouvir sem grande enfado as outras pessoas tocarem. A sua maior deficiência estava no desenho: não tinha dele a menor noção, nem sequer para fazer o esboço do perfil do namorado, de forma que tivesse algumas semelhanças. Neste capítulo sentia-se absolutamente incompetente, mas, não lhe fazia diferença porque ainda não tinha namorado para desenhar. Chegara aos dezessete anos sem ter visto nenhum rapaz simpático, sem inspirar uma verdadeira paixão, nem mesmo ter provocado qualquer admiração, por muito moderada ou passageira que fosse. Isto era sem dúvida estranho! Mas as coisas estranhas podem geralmente explicar-se, se a sua causa for bem averiguada. Não havia nenhum lorde ou barão na vizinhança. Entre as famílias conhecidas nenhuma tinha adotado e educado qualquer órfão ou rapaz de origem desconhecida. O pai não tinha nenhum pupilo e o fidalgo da freguesia não tinha filhos. Mas quando a menina quer ser heroína, nem a maldade de quarenta famílias a pode impedir. Algo fará e alguma coisa há de acontecer que lhe depare um herói. O senhor Allen, que possuía a maior parte das propriedades de Fullerton, a aldeia de Wiltshire onde viviam os Morlands; foi aconselhado a ir para Bath a fim de tratar da gota. A esposa, uma senhora alegre e amiga de Catarina Morland, sabendo que quando a uma menina, na sua terra, não acontecem aventuras as tem de procurar fora, convidou-a a ir com eles. O casal Morland concordou de boa vontade e Catarina sentiu-se felicíssima. 1 “Elegy written in a country churchyard”, 14. 2 “Elegy to an unfortunate Lady”, 57. 3 “The Seasons – Spring”. 4 “Othelo”, III, 3. 5 “Measure for Measure”, III, 1. 6 “Twelfth Night”, II, 4. 4 CAPÍTULO II Além do que se disse acerca dos predicadospessoais e morais de Catarina, antes de entrar propriamente em contato com as dificuldades e perigos que lhe poderia trazer uma estada de seis semanas em Bath, acrescente-se, para melhor informação do leitor - se as páginas seguintes lhe não derem uma idéia mais clara do seu caráter do que se pretende -, que era efetuosa, alegre e franca, sem a mais leve vaidade ou afetação, e que se tornara sociável, ela que fora uma menina tão acanhada e tão tímida. O seu aspeto era agradável e, quando bem arranjada, chegava a ser bonita. O seu espírito, porém, mostrava-se tacanho e ignorante, o que geralmente sucede com qualquer menina aos dezessete anos. Era de supor que, à medida que se aproximava a hora da partida, aumentassem as preocupações da senhora Morland, e que mil pressentimentos alarmantes, motivados pela separação da sua querida Catarina, lhe enchessem o coração de tristeza, e a fizessem chorar nos últimos dois dias que estiveram juntas; e que na hora da separação, quando estivessem no seu quarto, ela prudentemente lhe desse os melhores conselhos, para a precaver dos fidalgos e barões que se divertem a forçar as meninas a ir para alguma quinta afastada. Era assim que, nesse momento, deveria aliviar o coração. Quem é que não pensaria deste modo? Mas a senhora Morland sabia tão pouco de lordes e barões que não tinha a mínima idéia da sua maldade, nem suspeitava do perigo que daí pudesse advir para a sua filha. As suas advertências limitaram-se a isto: - Catarina, vê lá se agasalhas bem a garganta quando vieres à noite dos salões. Gostava que apontasses todas as tuas despesas. Para isso toma lá este livrito. Sally, ou antes Sara (pois qual é a menina de família chique, que chega aos dezesseis anos sem mudar o nome o mais que pode?), deveria ser nesta altura a amiga íntima e a confidente da irmã. No entanto, não pediu que lhe escrevesse todas as vezes que houvesse correio, nem a obrigou a prometer que lhe descreveria todos os seus novos conhecimentos, nem a contar-lhe pormenorizadamente todas as conversas interessantes que tivesse em Bath. Tudo o que dizia respeito a esta importante viagem fez-se por parte dos Morlands com certa moderação e compostura, mais compatíveis com os sentimentos normais da vida humana do que com as susceptibilidades apuradas, as emoções ternas, que a primeira separação duma heroína sempre devem provocar: O pai, em vez de lhe dar ordem para levantar dinheiro no banco quando quisesse, ou mesmo lhe dar uma nota de cem libras, entregou-lhe apenas dez guinéus, prometendo-lhe mais, logo que precisasse. Realizada a separação com tão pouco favoráveis auspícios, começou a viagem, que decorreu com sossego e segurança. Nem ladrões, nem tempestades, nem qualquer acidente feliz aconteceu, de modo que se lhe deparasse um herói. Nada ocorreu de alarmante, a não ser um susto que a senhora Allen teve ao julgar que deixara os sapatos numa estalagem, o que afinal se verificou não ter fundamento. Chegaram a Bath. Catarina estava satisfeitíssima; olhava para todos os lados, à medida que se aproximavam dos belos arredores e atravessavam as ruas para o hotel. Viera para ser feliz e começava já a sê-lo. Em breve se instalaram em Pulteney Street, em aposentos confortáveis. É conveniente dizer agora alguma coisa da senhora Allen, para que o leitor possa avaliar de que maneira a sua interferência vai contribuir para o ambiente triste da obra, e como ela talvez vá fazer sofrer Catarina (o que encheria mais um volume), quer pela imprudência, grosseria, ou ciúme, quer por lhe interceptar as cartas, dizer mal dela ou expulsá-la. A senhora Allen era daquelas muitas mulheres cuja convivência consegue surpreender, se pensarmos que houve um 5 homem que pudesse gostar dela, a ponto de a desposar. Não era uma beleza nem uma inteligência; não tinha talento nem maneiras finas. Foi o seu porte senhoril, uma bondade pacífica e inativa e certa propensão para a frivolidade que fizeram dela a escolhida de um homem inteligente e sensato, como o senhor Allen. De certa maneira, estava realmente talhada para introduzir uma menina na sociedade, porque gostava de ir a toda a parte e de ver tudo como se ainda fosse jovem. Os vestidos eram a sua paixão. Tinha grande prazer em andar sempre bem posta; por isso a apresentação da nossa heroína na sociedade não se pôde fazer antes de ter comprado um vestido da última moda para a sua protegida, depois de ambas passarem três ou quatro dias a saber o que mais se usava. Catarina fez também algumas compras para si, e quando tudo estava pronto, chegou a importante noite que a havia de levar aos Upper Rooms. O melhor cabeleireiro arranjou-lhe o cabelo, e vestiu-se com tanto esmero que a criada e a senhora Allen afirmaram que estava muito bem. Com estas apreciações, Catarina esperava que, ao menos, ninguém a criticasse. Se a admirassem, sentiria satisfação mas enfim, isso não lhe importava muito. A senhora Allen demorou tanto tempo a vestir-se, que só muito tarde entraram na sala de baile. A época estava concorrida a sala cheia, e as duas senhoras lá foram entrando como puderam. O senhor Allen dirigiu-se logo à sala de jogo e deixou-as sozinhas a contas com o aperto. Com mais cuidados no seu vestido de noite do que no bem-estar da protegida á senhora Allen lá foi abrindo caminho, tão depressa quanto lho permitiam as suas precauções; contudo, Catarina ia sempre a seu lado segurando-lhe bem o braço, para não se separar da amiga no meio dos embates da multidão agitada. Mas, com grande espanto seu, a senhora Allen descobriu que a melhor maneira de se desenvencilharem não era continuarem a andar pela sala, porque, ao contrário do que tinha imaginado, cada vez o aperto aumentava mais e, uma vez lá dentro, esperava encontrar, com facilidade, bons lugares donde pudessem ver o baile. Isto, porém, estava muito longe de acontecer, porquanto, ainda que com porfiados esforços tivessem chegado ao topo da sala, a sua situação continuava na mesma. Dos pares que dançavam, viam apenas as altas plumas de algumas senhoras. Continuaram a andar, na esperança de encontrar melhor lugar, e, lutando sempre, alcançaram, por fim, um espaço menos ocupado por trás dos bancos mais altos. Aqui havia menos gente do que em baixo, e Catarina Morland pôde apreciar a multidão que estava na sala e avaliar os perigos por que tinham passado para a atravessar. Era um aspeto magnífico; sentia-se pela primeira vez, naquela noite, num baile; queria dançar, mas não havia ali ninguém conhecido. A senhora Allen fez tudo o que se pode fazer em tais casos, dizendo-lhe, muito calma, de vez em quando: - Quem me dera que fosses dançar, minha filha; oxalá arranjasses um par! Durante algum tempo Catarina agradeceu-lhe estas atenções, mas, ouvindo repeti-las tantas vezes, sempre sem resultado, acabou por se aborrecer e não lhe agradecer mais. Não poderem gozar mais tempo o lugar privilegiado que tanto Ihes custara a arranjar! Toda a gente ia para o salão de chá, e elas tiveram de fazer o mesmo. Catarina começou a sentir-se desapontada; estava aborrecida por ser continuadamente empurrada por pessoas que geralmente tinham umas caras sem interesse e com as quais não tinha as mínimas relações. Não podia, portanto, de modo algum, falar sequer com qualquer dos seus companheiros de suplício para assim aliviar um pouco aquele tédio de prisão. Por fim chegaram à sala de chá, mas lá sentiu ainda mais o inconveniente de não pertencer a nenhum grupo, de não ter alguém conhecido, nem cavalheiro que as auxiliasse. Não viram o senhor Allen e, depois de tentarem arranjar, em vão, lugar mais adequado, foram obrigadas a sentar-se na extremidade de uma mesa, onde se encontrava já um grande grupo, sem ali terem que fazer, nem com quem falar. A senhora Allen, logo que se sentaram, ficou satisfeita ao ver que não tinha estragado o vestido. 6 Seria muito aborrecido se o tivesse rasgado - disse ela -, não te parece? É de musselina tão fina; aindanão vi em toda a sala nada de que gostasse tanto. - Que aborrecido não conhecermos aqui ninguém! – disse Catarina, em seguida. - Lá isso é - respondeu a senhora Allen. - Na verdade é muito aborrecido. - Que havemos de fazer? Estes cavalheiros e senhoras olham para nós como se quisessem perguntar-nos porque viemos para aqui, dá a impressão que nos metemos à força no seu grupo. - E verdade. Isto é muito desagradável. Quem me dera ter aqui bastante gente conhecida! - Eu queria ter alguma; alguém com quem se pudesse falar. - Com certeza, minha querida; se conhecêssemos alguém, iríamos ter com ele imediatamente. Os Skinners estiveram cá o ano passado. Quanto desejava que eles estivessem agora aqui! - Não seria melhor irmo-nos embora? Veja, não há chá para nós. - Pois não; mas que irritante! No entanto será melhor ficarmos sentadas, porque, se nos metemos numa multidão destas, amarrotamos os vestidos. Que tal está o meu penteado, querida? Deram-me um tal encontrão que receio que se tenha desarranjado. - Oh, não; está muito bem! Mas, minha querida senhora Allen, tem a certeza de que não conhece ninguém no meio de toda esta gente? Julgo que há-de conhecer alguém. - Palavra de honra que não conheço, embora muito o desejasse. Como gostava de ter aqui muita gente conhecida para te poder arranjar um par! Ficaria tão satisfeita se fosses dançar! Ali vai uma senhora bastante esquisita. Que vestido tão excêntrico ela tem! Tão fora de moda! Olha para as costas! Passado algum tempo um dos vizinhos ofereceu-lhes chá; aceitaram, agradecendo muito, o que deu lugar a uma ligeira conversa com o cavalheiro. Foi esta a única vez que alguém lhes falou durante a noite, até que apareceu o senhor Allen que se lhes veio juntar no fim do baile. - Então divertiste-te muito, Catarina? - perguntou ele, logo que chegou. - Muito, mesmo - respondeu ela, tentando em vão esconder o bocejo. - Gostava que ela tivesse dançado - disse a esposa. - Gostava muito de lhe termos podido arranjar um par. Já lhe disse que preferia que os Skinners tivessem vindo este ano em vez do ano passado; se os Parrys ao menos tivessem vindo, como diziam; ela podia ter dançado com Jorge Parry. Tenho tanta pena de que ela não tivesse arranjado par! - Para a outra vez teremos mais sorte - disse o senhor Allen, querendo confortá-la. A multidão começou a dispersar-se logo que acabou o baile, deixando assim algum espaço livre para os retardatários poderem andar à vontade. Era agora a ocasião duma heroína, que até então não desempenhara papel importante nos acontecimentos da noite, ser notada e admirada. Cada cinco minutos em que se afastava uma pessoa aumentavam as probabilidades de se revelarem os seus encantos. Podia agora ser vista por muitos rapazes que até aí tinham estado longe dela. Contudo, nem um só mostrou qualquer admiração ao contemplá-la, nenhum sussurro de curiosidade percorreu a sala, nem lhe chamaram beldade uma única vez. No entanto, Catarina estava muito bonita, e, se aquelas pessoas a tivessem visto há três anos, julgá-la-iam agora extremamente bela. Apesar de tudo, ouvira dizer a dois rapazes que era uma menina bonita. Estas palavras produziram o seu efeito, pois julgava já a noite mais agradável do que fora até ali. A sua ingênua vaidade sentiu-se lisonjeada, e, intimamente, estava mais reconhecida aos dois rapazes, por terem dito este simples galanteio, do que aconteceria a uma heroína verdadeira a quem tivessem dedicado quinze sonetos, louvando os seus encantos. Subiu para o carro, pensando bem de todos e muito satisfeita pelo quinhão de atenção que lhe tinham dispensado. 7 CAPÍTULO III Passavam todas as manhãs nas mesmas ocupações: faziam compras, percorriam alguns pontos da cidade, iam até à Fonte onde passeavam durante uma hora, olhando para toda a gente e não falando com ninguém. A idéia fixa da senhora Allen continuava a ser a de desejar ter muitas pessoas conhecidas em Bath; e repetia-a todas as manhãs e todas as manhãs uma nova prova a vinha convencer de que afinal não conhecia ninguém. Apareceram nos Lower Rooms. Aqui a nossa heroína teve mais sorte. O mestre-de- cerimónias apresentou-lhe para par, um rapaz muito distinto chamado Tilney. Devia ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos, tinha olhos vivos e inteligentes, e bastante bem parecido, embora não fosse muito bonito. Sabia conversar, e Catarina em breve se sentiu bem disposta. Enquanto dançavam, pouco falaram, mas ao chá ela verificou que era na verdade muito simpático. Falava com muito à-vontade e graça e na sua maneira de expor adivinhava-se certa finura de espírito que encantava embora Catarina não o compreendesse muito bem. Depois de falarem algum tempo sobre coisas vulgares, ele disse-lhe de repente: - Peço-lhe desculpa de ainda não ter tido para com V. Exa. as atenções próprias dum par; ainda nem lhe perguntei há quanto tempo está em Bath; se já cá esteve alguma vez; se já foi aos Upper Rooms, ou ao teatro; se assistiu a algum concerto e se gosta de cá estar. Fui bastante descuidado, mas quer agora satisfazer a minha curiosidade? Se quer. - Não vale a pena incomodar-se. - Não é incómodo nenhum. E, com um sorriso muito amável, e a voz afetadamente doce, perguntou: - Já está há muito tempo em Bath? - Há uma semana aproximadamente - respondeu Catarina, esforçando-se por não rir. - Ah! sim! - disse ele com um espanto fingido. - Então porque se admira? - Ora porquê?! - disse no seu tom de voz natural. – porque pela sua resposta transparece que é mais fácil fingir-se surpresa do que qualquer outra emoção. Mas continuemos. Nunca tinha cá estado? - Não. Mas já honrou os Upper Rooms com a sua presença? - Já; estive lá na segunda-feira passada. - Já foi ao teatro? - Fui, sim; fui à sessão de terça-feira. - E ao concerto? - Fui na quarta-feira. - Gosta de Bath? - Muito. - Agora posso rir-me, para depois tornarmos a falar a sério. Catarina virou a cabeça, não sabendo se deveria rir também. - Eu bem sei o que pensa de mim - disse ele, sério; - farei uma triste figura no seu diário. - No meu diário!? - Sim; eu bem sei que vai escrever: Sexta-feira fui aos Lower Rooms; trazia o meu vestido de musselina estampada, guarnecido de azul, e sapatos pretos. Fazia boa figura, mas um sujeito excêntrico e com pretensões a espirituoso fez-me dançar com ele e aborreceu-me com os seus disparates. - Mas eu não escreverei tal coisa! 8 - Quer então que lhe diga o que havia de escrever? - Pois diga. - Dancei com um rapaz muito simpático que o senhor King apresentou; falámos muito; ele parece ter grande talento; gostava de o conhecer melhor. Era isto minha senhora, que eu desejava que escrevesse. - Mas talvez eu não tenha um diário. - Sim; talvez não esteja aqui sentada, nem eu ao seu lado; a dúvida é igualmente admissível. Não ter um diário! Como é que as suas primas ausentes haviam de saber o que se passa em Bath? Como poderia contar as amabilidades e galanteios que todos os dias lhe dirigem, se não os escrevesse todas as noites no seu diário? Como havia de se lembrar dos seus vários vestidos, descrever as diferentes maneiras de frisar o cabelo, sem recorrer ao diário? Minha querida senhora, eu não percebo assim tão pouco, como julga, dos hábitos das meninas. É esse esplêndido costume de escrever tudo em diários que muito contribui para a felicidade de expressão que torna as senhoras tão célebres. Toda a gente concorda que cartas agradáveis só as escrevem as senhoras. Não é apenas um dom natural que as ajuda. Estou convencido de que o hábito de terem um diário, é sobretudo, o que faz com que escrevam bem. - Já tenho pensado - disse Catarina duvidando - se é certo que as senhoras escrevem melhor do que os cavalheiros. Quer dizer, julgo que nem sempre a superioridade está do nosso lado. - Até onde me é possível verificar, penso que o estilo usual das cartas entre as senhoras é perfeito, excepto em três pontos. - Então quais são? - Uma falta completade assunto, desinteresse absoluto pela pontuação e erros ortográficos muito freqüentes. - Palavra de honra! Não valia a pena recear que se recusasse lisonjear-nos. Pensando assim, não nos julga muito bem. Não quero com isto estabelecer, como regra geral, que as mulheres escrevam melhores cartas que os homens, nem, tão pouco, que cantem melhor os duetos ou que desenhem mais belas imagens. Em qualquer assunto, desde que exista gosto, o talento está igualmente distribuído pelos dois sexos. Foram interrompidos pela senhora Allen: - Minha querida Catarina, tira-me este alfinete da manga; oxalá não esteja já rota. Se assim for, lamento, pois é o meu vestido favorito, embora o metro custasse só nove xelins. - Era isso mesmo que me estava a parecer, minha senhora - disse o senhor Tilney, observando o tecido. - O senhor percebe alguma coisa de musselinas? - Muito até; compro sempre as minhas gravatas, e dizem-me que tenho bom gosto. Minha irmã manda-me às vezes escolher-lhe os vestidos; outro dia comprei-lhe um, e todas as senhoras que o viram disseram que tinha sido uma compra esplêndida, uma pechincha. Imagine que dei só cinco xelins por metro, e era verdadeiro organdi da Índia! A senhora Allen estava admirada com o seu talento. - Os homens, geralmente, ligam muito pouca importância a estas coisas - disse ela. - O meu marido nunca repara se trago um vestido novo. O senhor deve ser um grande auxiliar da sua irmã. - Creio que sim, minha senhora. - Então diga-me, que tal lhe parece o vestido da menina Morland? - Muito bonito, minha senhora - respondeu ele, examinando-o com cuidado -, mas parece-me que não deve ser bom de lavar. - Como pode - disse Catarina a rir-se - ser tão... Esteve quase a dizer-lhe singular. 9 - Sou da sua opinião! - exclamou a senhora Allen – Isso mesmo disse à Catarina quando o comprou. - Mas, minha senhora, a musselina serve sempre para qualquer coisa. A menina Morland pode aproveitá-la para um lenço, uma écharpe; ou um vestido curto. A musselina nunca se desperdiça. Muitas vezes o ouvi dizer a minha irmã, quando comprava mais do que precisava ou se a cortava à toa. - Bath é uma terra encantadora; há aqui muito bons estabelecimentos. Na província estamos pessimamente servidas. Em Salisbury há já boas lojas, mas fica muito distante: oito milhas ainda é uma grande distância; o meu marido diz que são nove, e bem medidas, mas eu tenho a certeza de que não devem ser mais do que oito. A maçada é tanta, que venho de lá cansadíssima. Aqui pode sair-se de casa e comprar qualquer coisa em cinco minutos. O senhor Tilney era suficientemente educado para se mostrar interessado com o que ela dizia. A senhora Allen continuou sempre a falar de musselinas até que o baile recomeçou. Catarina pensava, ao ouvir aquela conversa, que ele tinha paciência demais para os pontos fracos dos outros. - Em que está a pensar, assim tão séria? - perguntou ele, quando voltaram à sala de baile - Oxalá não seja no seu par, porque, pela maneira de abanar a cabeça, deduzo que os seus pensamentos não são agradáveis. Catarina corou e disse: - Não estava a pensar em nada. - É uma resposta hábil e profunda, mas eu preferia que dissesse logo que não está disposta a dizer-mo. - Pois bem, não quero. - Muito obrigado; assim já nos conheceremos melhor, visto que posso aborrecê-la com este assunto todas as vezes que a encontre, que há de melhor para aumentar a nossa intimidade. Dançaram outra vez, e, quando acabou o baile, despediram-se com uma grande vontade de continuarem o conhecimento, pelo menos por parte da menina. Se ela pensou no rapaz ao beber o vinho quente com água, quando se preparava para deitar e se sonhou com ele, isso não se sabe; mas creio que não pensou pela manhãzinha mais do que quando dormitava, a ser certo o que um escritor célebre afirma - que nenhuma menina se deve apaixonar por um rapaz antes de este lhe declarar o seu amor - não é próprio que uma menina sonhe com um rapaz, antes de saber que primeiro sonhou ele com ela. Se o senhor Tilney era um bom sonhador, ou um namorado apaixonado, não sabia ainda o senhor Allen, mas não se opunha a que ele conversasse com a sua protegida. Já se tinha dado ao trabalho de tirar informações acerca dele e tinham-lhe dito que o senhor Tilney era sacerdote e pertencia a uma família muito respeitável de Gloucestershire. CAPÍTULO IV No dia seguinte dirigiu-se Catarina, com mais ansiedade do que nunca, à Fonte, com a certeza de que não passaria a manhã sem ver o senhor Tilney a quem receberia com um sorriso; mas não foi preciso nenhum sorriso, porque o senhor Tilney não apareceu. Todas as pessoas que estavam em Bath apareciam sempre na sala, excepto ele; constantemente entravam e saiam, subiam e desciam as escadas pessoas que lhe eram indiferentes, que não tinha interesse em ver; só ele não aparecia. - Bath são umas termas maravilhosas - disse a senhora Allen ao sentar-se ao pé do grande relógio depois de se terem cansado a andar pela sala. - Seria tão agradável que tivéssemos aqui 10 alguém conhecido! Dissera isto tantas vezes sem sorte, que a senhora Allen já não esperava ser melhor sucedida desta vez. Mas lá diz o ditado que nunca devemos desesperar de alcançar o fim que desejamos porque quem porfia mata caça e a perseverança com que ela todos os dias repetia a mesma coisa foi por fim recompensada. Mal tinham passado dez minutos depois de se sentarem, quando uma senhora de meia-idade, que estava ao seu lado, se lhe dirigiu: - Se não estou enganada, minha senhora, pois há já muito tempo que não tenho o prazer de a ver, penso que é a senhora Allen, não? Depois da resposta afirmativa a outra senhora disse que se chamava Thorpe. A senhora Allen reconheceu logo pelas feições a amiga íntima do colégio, que só tinha visto uma vez depois de casada, e já há muitos anos. A alegria de tal encontro foi grande, como se pode imaginar, visto que já se não viam há quinze anos. Referiram-se mutuamente à sua boa aparência e, depois de recordarem como o tempo passara da última vez que se tinham encontrado, quão inesperado era agora aquele encontro, em Bath, e que prazer era voltarem a estar juntas como velhas amigas, começaram a falar das respetivas famílias, irmãs e primas, falando as duas ao mesmo tempo, preferindo contar a ouvir, sem se perceberem uma à outra. A senhora Thorpe tinha mais assunto do que a senhora Allen, pois era mãe de muitos filhos; e quando começou a referir-se ao talento dos filhos e à beleza das filhas a dizer as suas situações e projetos: que o João estava em Oxford, Eduardo no Merchant- Taylors e Guilherme na marinha, e que todos eram mais estimados e respeitados nas respetivas posições do que quaisquer outros, a senhora Allen não teve remédio senão calar-se e ouvir todas estas efusões maternas visto que não podia falar à amiga no mesmo assunto. Consolou-se no entanto, ao reparar (o que a sua vista perspicaz notou imediatamente) que a renda do casaco da senhora Thorpe não era tão bonita como a do seu. - Ali vêm as minhas filhas - exclamou a senhora Thorpe, indicando três bonitas meninas que se aproximavam de braço dado. - Minha querida senhora Allen, dá-me licença que Ihas apresente? Vão ter muito prazer em conhecê-la. A mais alta é Isabel, a mais velha; não é uma linda menina? As outras duas são também muito interessantes, mas, para mim, Isabel é a mais bonita. As meninas Thorpe foram-lhe apresentadas e Catarina Morland esquecida durante algum tempo, foi também apresentada. O seu nome pareceu chamar-lhes a atenção e, depois de se lhe dirigirem com muita delicadeza, a mais velha das irmãs disse em voz alta para as outras: - A menina Morland parece-se tanto com o irmão! - Mesmo o retrato dele - exclamou a mãe - e reconhecê-la-ia em toda a parte como irmã dele, repetiram todas, três ou quatro vezes. Catarina ficou surpreendida durante algum tempo; mas, mal a senhora Thorpe e as filhas começaram a contar a históriado seu conhecimento com Jaime Morland, logo ela se lembrou de que o seu irmão mais velho conhecera ultimamente no mesmo colégio, um rapaz chamado Thorpe, e que tinha ido passar a última semana das férias do Natal com a família, que vivia perto de Londres. Depois de tudo se esclarecer, as meninas Thorpe disseram que teriam muito prazer em entrar em melhores relações com ela, podendo até considerar-se desde já amigas, devido à amizade que unia os irmãos. Catarina ouviu tudo isto com prazer e respondeu-lhes com as palavras mais amáveis que lhe acudiram. E, em sinal de amizade, logo a mais velha das meninas Thorpe a convidou a ir dar uma volta com ela. Catarina estava alegre por aumentar os seus conhecimentos em Bath e a conversar com Isabel Thorpe quase esquecera o senhor Tilney. A amizade é o melhor bálsamo para o sofrimento dum amor não correspondido. A conversa versou acerca daquilo que tornava mais íntima a convivência das duas meninas: vestidos, bailes, namoros e futilIdades. 11 Isabel Thorpe discutia melhor estes assuntos, porque tinha mais prática, pois era mais velha quatro anos do que Catarina. Estava em condições de poder comparar os bailes de Bath com os de Tunbridge; os costumes dali com os de Londres; de retificar a opinião da sua nova amiga acerca dos artigos de adorno; de descobrir o namoro dum cavalheiro com uma senhora, por uma simples troca de sorrisos; e de apontar uma ninharia no meio de grande multidão. Catarina, que desconhecia inteiramente estas habilidades, estava muito espantada e a admiração que elas lhe inspiravam não contribuiria para fazer nascer entre elas uma grande familiaridade, se os modos alegres de Isabel Thorpe, não viessem atenuar um pouco a sua atitude de respeito, dando lugar a uma grande afeição. Esta amizade que aumentava cada vez mais, não se limitou a meia dúzia de voltas pela Fonte, mas, ao despedirem-se - obrigou Isabel Thorpe a ir acompanhar Catarina mesmo até à porta da casa do senhor Allen, e a separar-se dela com troca de cumprimentos muito demorados e afetuosos, depois de combinarem ver-se à noite no teatro e na manhã seguinte na igreja. Catarina subiu as escadas a correr e, da janela da sala de visitas, viu Isabel Thorpe e admirou a graça do seu andar, o seu ar distinto e a sua toilette, e abençoava o acaso que lhe deparara tal amiga. A senhora Thorpe enviuvara e possuía poucos meios; era uma senhora boa e alegre, mas uma mãe muito condescendente. A filha mais velha era muito bonita, e as mais novas, pretendendo ser tão bonitas como ela, imitavam os seus modos e a sua maneira de vestir, e assim conseguiam não lhe ficar muito atrás. Esta breve descrição da família Thorpe pretende evitar uma descrição minuciosa da senhora Thorpe, das suas aventuras doutros tempos e dos seus sofrimentos, o que ocuparia três ou quatro capítulos, em que sobressairia a falta de dignidade de lordes e procuradores, e seriam repetidas minuciosamente, as conversas passadas há vinte anos. CAPÍTULO V Naquela noite, no teatro, Catarina não ligava tanta importância aos sorrisos e acenos de Isabel Thorpe, embora neles perdesse bastante tempo, de forma a poder esquecer-se de procurar o senhor Tilney em todos os camarotes que conseguia lobrigar; no entanto tudo em vão. O senhor Tilney gostava tão pouco de ir ao teatro como de passear na Fonte. Não desanimou e esperou ter mais sorte no dia seguinte. Precisava de um dia bom. Sabia que um domingo de sol em Bath fazia sair todas as pessoas de casa para virem passear e dizerem umas às outras que o dia estava bonito. Logo que acabou a missa, as famílias Thorpe e Allen juntaram-se. E depois de estarem na Fonte o tempo suficiente para verem que a multidão era tanta que mal se podia respirar - o que, toda a gente sabe acontece aos domingos em Bath - tomaram o caminho da Meia-Lua, para respirarem mais à vontade. Catarina e Isabel, de braço dado, começaram a conversar, saboreando as delícias da sua grande amizade; falaram muito e sempre bem dispostas. Porém, Catarina sentia fugir-lhe a esperança de tornar a ver o seu par. Não se encontrava em parte alguma; onde quer que procurasse, não o via, tanto nos passeios da manhã, como nas reuniões da noite; não ia aos bailes, nem aos Upper Rooms nem aos Lower Rooms, nem a bailes a rigor nem àqueles que não obrigavam a trajo de cerimónia, não passeava, não andava a cavalo, nem de carruagem; o seu nome não estava no livro da Fonte. A curiosidade não podia ir mais longe. Já não estaria em Bath. Contudo, ele não tinha dito que demoraria tão pouco tempo! Esta espécie de mistério que diz tão bem com o herói, fez que a imaginação de Catarina visse atrativos na sua pessoa e maneiras, e que aumentasse o desejo de o conhecer melhor. Pelos Thorpe não podia informar-se, visto só terem chegado a Bath dois dias antes de se encontrarem com a senhora Allen. No entanto, era um assunto em que muito falava com a sua 12 amiga, que a animava a continuar a pensar nele; o que não permitia portanto, que na sua fantasia se apagasse a sua imagem; Isabel tinha a certeza de que devia ser um rapaz muito simpático e que igualmente devia ter ficado tão fascinado com a sua querida Catarina, que voltaria depressa. Ela até gostava mais do rapaz por ser pastor, porque, confessava, tinha o seu fraco pela profissão, e, ao dizer isto, um suspiro lhe saía dos lábios. Talvez que Catarina tivesse feito mal em não lhe perguntar a causa daquela emoção, mas era pouco conhecedora de assuntos de amor e de deveres de amizade, para saber quanto é oportuna a ironia fina ou quando tem de se arrancar uma confidência. A senhora Allen sentia-se agora felicíssima em Bath. Tinha encontrado uma pessoa conhecida. E mais: uma velha amiga muito querida; e, para maior sorte, ainda, viu que estas amigas não vestiam tão bem como ela. As suas palavras de todos os momentos já não eram: Quem me dera ter alguém conhecido em Bath! mas, simplesmente: Que satisfação ter encontrado a senhora Thorpe! e esforçava-se o mais que podia por estreitar as relações das duas famílias, como o faziam a sua jovem protegida e Isabel. Nunca se sentia satisfeita se não passasse a maior parte do dia a conversar com a senhora Thorpe, sem mudar no entanto, de assunto, porque esta senhora quase só falava dos filhos e a senhora Allen dos seus vestidos. A amizade de Catarina e Isabel progrediu e tão rápida quanto afetuosamente tinha começado. Em breve haviam passado por todas as fases da ternura, até já não terem nada de novo com que se mimosearem a si e aos outros. Tratavam-se pelo nome do baptismo, passeavam sempre de braço dado e prendiam uma à outra a cauda do vestido para dançarem e nunca se separavam; e, se uma manhã de chuva as privava de outros divertimentos, desafiavam o mau tempo e juntavam-se a ler romances. Sim, romances. Não quero adoptar o costume mesquinho e imprudente, tão geral nos romancistas, de rebaixar, com uma crítica insolente, as obras literárias para que eles mesmos estão a contribuir, chamando-lhes os piores nomes com o apoio dos seus maldizentes inimigos, mal permitindo até que as próprias heroínas os leiam, porque, se por acaso fossem a pegar num dos seus romances, aborrecer-se-iam ao voltarem aquelas insípidas páginas. Se a heroína de um romance não for protegida pela heroína de outro, de quem poderá ela esperar protecção e estima? Deixemos que alguns críticos abusem à vontade dessas efusões de fantasia, e se critiquem naquele estilo tão estafado de banalidades com que os prelos agora gemem. Não nos abandonemos uns aos outros: somos um corpo doente. Embora as nossas obras tenham agradado muito mais e duma forma mais sincera do que as de qualquer agremiação literária do mundo, nenhuma foi tão censurada. Deram-nos quase tantos inimigos como leitores, devido ao orgulho, à ignorância, enquanto milhares de penas elogiam o talento daquele que pela milionésima vez resume a história de Inglaterra ou daquele que colige e publica algumas dúzias de versosde Milton, Pope e Prior juntamente com uma folha do Spetator e um capítulo de Sterne, há um propósito declarado e geral de apoucar o talento e o trabalho de um romancista, de desdenhar as obras que têm talento, graça e gosto que as recomenda. “Eu não leio romances. É raro olhar romances”. “Não julgue que está a ler menina”, costumam dizer, hipocritamente. “O que estás a ler?”, perguntam. “Oh, é um romance” - responde a menina, ao mesmo tempo com vergonha ou com fingida indiferença. “É apenas a Camila ou a Belinda”; ou, em suma, uma obra em que se revelam as maiores possibilidades de espírito, um conhecimento mais perfeito da natureza humana, os mais felizes esboços das suas variações, as mais vivas efusões de espírito e de graça, transmitidas ao mundo no mais belo estilo. Ora, se a mesma menina lesse um volume do Spetador em vez de uma obra dessas, que orgulho não teria ela em mostrar o livro, dizer o seu nome, embora seja duvidoso que uma menina de gosto se entretivesse com o assunto e estilo de qualquer passo duma obra tão volumosa, porque a maior parte dos artigos dos seus números constam de descrições de acontecimentos inverossímeis, de personagens fitícias, de conversas que já não dizem respeito aos 13 vivos, numa linguagem por vezes tão rude que nos dá uma idéia nada lisonjeira da época que a conseguiu suportar. CAPÍTULO VI A conversa seguinte, que teve lugar uma manhã, na Fonte, entre as duas amigas, que se conheciam há oito ou nove dias, servirá para pôr em evidência a sua afeição e ser um exemplo da finura, discrição, originalidade de pensamento e gosto literário que caraterizavam aquela amizade. Combinaram encontrar-se. Isabel, que chegara cinco minutos antes logo se dirigiu à amiga nestes termos: “Minha querida, porque demoraste tanto? Há já um século que estou a tua espera.” - Verdade? Que pena! Mas eu julgava que vinha muito a tempo. Deu mesmo agora uma hora. Ainda não estás aqui há muito, pois não? - Oh, há já séculos! Parece-me que já estou aqui há meia hora. Mas deixemos isso e vamo-nos sentar ao fundo da sala e conversar. Tenho tanto que te contar! Primeiro tive muito receio de que chovesse esta manhã, pois, quando ia para sair, estava um céu tão carregado que parecia que ia chover. Oh que tristeza, que agonia se assim fosse. Sabes vi mesmo agora numa montra em Milsom Street um chapéu lindíssimo. Era mesmo parecido com o teu só com a diferença que tinha fitas vermelhas em vez de verdes. Quem me dera comprá-lo! Então, minha querida Catarina; o que fizeste esta manhã? Continuaste a ler o Udolfo? - Assim que acordei comecei logo a lê-lo; cheguei ao véu negro. - Já? Maravilhoso! Nem por tudo o que há no mundo te diria o que está por detrás do véu negro. Não estás mortinha por saber? - Ora se estou! O que será? Mas não me digas. Por nada quero que mo digas. Eu sei, deve ser um esqueleto – o esqueleto de Laurentina. Oh, como gosto do livro! Passaria toda a minha vida a lê-lo. Podes acreditar; se não tivesse combinado vir ter contigo, não o largaria por nada deste mundo. - Minha querida, quão agradecida te estou! Quando tiveres lido o Udolfo, havemos de ler as duas o italiano. Até já fiz uma lista de dez ou doze do mesmo género, para tu leres. - Já? Que satisfação me dás! Quais são? - Já te vou ler os títulos. Tenho-os escritos no meu caderno: O Castelo de Wolfenbach, Clermont, Avisos Misteriosos, Necromante da Floresta Negra, O Sino da Meia-Noite, O órfão do Reno e Os Mistérios Terríveis. - Muito bem; mas todos são de meter medo, tens a certeza? - Ora se tenho! Uma grande amiga minha, a menina Andrews, uma excelente menina, uma das melhores criaturas que conheço, já os leu todos. Muito gostava que a conhecesses. Havias de simpatizar com ela. Está a fazer um vestido lindíssimo não imaginas. Eu acho-a linda como um anjo; irrita-me tanto que os rapazes não olhem para ela! Farto-me de Ihes ralhar. - Pois tu fazes isso? Tu repreende-los por não olharem para ela? - Pois então! Não há nada que não faça por uma verdadeira amiga. Eu não costumo ficar a meio nas minhas amizades, não está no meu modo de ser. As minhas amizades são sempre muitíssimo firmes. No Inverno passado disse ao capitão Hunt, numa das nossas reuniões, que, se ele estivesse toda a noite a arreliar-me, não dançaria com ele, a não ser que fizesse com que a menina Andrews fosse a rainha da noite. Os homens pensam que é impossível existir entre nós uma amizade verdadeira. Por essa razão quero fazer-lhes ver a diferença. Por exemplo: se ouvisse alguém falar de ti com menos consideração, iria aos arames. Este não é o caso, porque tu és o género de menina que eles adoram. - Oh, Isabel! - exclamou Catarina, corando - Como podes dizer isso? 14 - Sei-o muito bem. Tu tens viveza, que é precisamente o que falta à menina Andrews; isto é, ela tem um aspeto insípido. Oh, quero dizer-te, vi um rapaz olhar tão insistentemente para ti. Quer-me parecer que está apaixonado. Catarina corou e disse mais uma vez que não. Isabel riu. - Palavra de honra que é verdade, mas eu bem te percebo. Não te importas com a admiração de ninguém, excepto dum certo rapaz cujo nome não vem agora para aqui. Sim, não te censuro. - Pondo-se séria: - Os teus sentimentos são compreensíveis. Quando um coração está bem preso, sei que pouco ou nada ligamos à admiração dos outros. Tudo o que se não relacione com o objeto amado é tão insípido, tão sem interesse! Eu percebo bem a tua maneira de pensar. - Mas não me queiras convencer de que penso a todo o momento no senhor Tilney. Talvez nunca mais o torne a ver. - Não o tornas a ver? Oh, minha querida, não digas isso! Eu bem sei que te penalizaria pensar tal coisa. - Não, não me importava. Não quero dizer que não goste dele, mas enquanto estiver a ler o Udolfo, parece que nada me fará sofrer. Oh, o terrível véu negro! Minha querida Isabel, tenho quase a certeza de que é o esqueleto de Laurentina que está por detrás. - Tenho tanta pena de que não tivesses já lido o Udolfo! Mas parece-me que a senhora Morland é contra os romances. - Não, não é muitas vezes lê Sir Charles Grandison, mas não lhe agradam livros modernos. - Sir Charles Grandisonl Que livro tão horrível, não achas? Lembro-me de que a menina Andrews não chegou a ler o primeiro volume. - Não é nada que se pareça com o Udolfo; mas acho-o muito interessante. - Achas? Muito me admiro. Julguei que fosse insuportável. Mas, minha querida Catarina, já pensaste bem como te havias de pentear esta noite? Estou resolvida a ir arranjada exatamente como tu. Sabes, os homens às vezes reparam para essas coisas. - Mas, não quer dizer nada, se eles repararem – disse Catarina, muito inocentemente. - Não quer dizer nada? Por amor de Deus! É minha norma não ligar a menor importância ao que eles dizem. Muitas vezes são impertinentes ao máximo, se não lidarmos com eles com um certo espírito, e se não os conservarmos sempre a uma certa distância. - Pois isso é verdade? Nunca observei tal coisa! Sempre me trataram com delicadeza. - São muito fingidos! Julgam-se sempre as pessoas mais espirituosas do mundo, e as mais importantes! A propósito: já milhares de vezes tenho querido perguntar-te qual é o género de rapaz que preferes. Moreno ou louro? - Nem sei bem. Nunca pensei a sério nisso. Talvez entre um e outro; moreno, mas não muito. - Óptimo, Catarina. Precisamente ele. Não me esqueci da descrição que fizeste do senhor Tilney: tez morena olhos negros e cabelo bastante escuro. Os meus gostos são diferentes. Prefiro o contrário: olhos claros, e, quanto à tez, gosto mais da branca, da pálida. Não me traias, se um dia encontrares alguém das tuas relações que corresponda a esta descrição. - Trair-te! Que queres dizer com isso? - Nada não me atrapalhes. Parece-me que já disse mais do que devia. Ponhamos ponto final no assunto. Catarina com certo espanto, condescendeu. Esteve algum tempo calada e ia para voltar a falar no assunto que maislhe interessava, ou seja no esqueleto de Laurentina, quando a amiga, interrompendo-a, lhe disse: - Por amor de Deus, saiamos daqui. Estão ali dois rapazes embirrentos que não têm feito outra coisa senão olhar para mim há mais de meia hora. Estão a fazer-me perder a linha. Vamos ver a lista dos banhistas que chegaram. Será difícil que nos sigam. 15 Lá se foram até ao livro. Enquanto Isabel examinava os nomes, Catarina ocupou-se a seguir a direcção que tomavam os rapazes que tanto cuidado lhe davam. - Não vêm por aqui, pois não? Espero que não sejam tão impertinentes a ponto de nos seguirem. Diz-me, faz favor, se eles vêm. Estou resolvida a não olhar para lá. Passados alguns momentos, Catarina, com alegria sincera, anunciou-lhe que já podia estar à vontade, porque os cavalheiros tinham acabado de sair. - E que direcção tomaram? - perguntou Isabel, voltando-se repentinamente. - Um deles era muito simpático. - Foram para os lados do cemitério. - Estou satisfeitíssima por me ver livre deles. O que dizes, se formos até aos Armazéns Edgar para ver o meu chapéu novo? Disseste que querias vê-lo. Catarina concordou imediatamente, mas disse: - O pior é que podemos encontrar-nos com os dois rapazes. - Oh, não penses nisso! Se formos depressa, em breve lhes passaremos à frente. Estou ansiosa por te mostrar o meu chapéu novo. - Mas, se esperássemos alguns minutos, não haveria perigo de os encontrarmos. - Não estou para ligar-lhes essa importância. Não tenho a menor preocupação com os homens. Isso que os estraga. Catarina nada tinha a objetar, perante réplicas tão categóricas; por isso, e para se mostrar à altura da independência de Isabel Thorpe e da sua resolução de humilhar o outro sexo, começou a andar depressa, acompanhando a amiga, atrás dos dois rapazes. CAPÍTULO VII Em meio minuto atravessaram o Jardim das Termas até chegarem em frente do Arco da União; aqui tiveram de parar. Toda a gente que conheça Bath deve recordar-se da dificuldade em atravessar Cheap Street, nesse lugar. É uma rua que embaraça, porque está infelizmente em comunicação com as estradas de Londres e Oxford; é a artéria dos principais hotéis da cidade, o que faz com que nunca passe um dia sem que as senhoras, mesmo que os seus afazeres sejam absorventes, como, por exemplo, ir a pastelarias ou a casas de modas, ou mesmo, como no caso presente, ir atrás de rapazes, não sejam detidas dum lado ou doutro, por carro, por homens a cavalo, por carroças. Desde a sua chegada a Bath, já Isabel sentira e lamentara, pelo menos três vezes por dia, este inconveniente; e agora mais uma vez tinha a confirmação da razão dos seus queixumes. Precisamente no momento em que chegavam em frente do Arco da União, viram os dois rapazes atravessarem a multidão, seguindo pelas valetas daquela interessante rua estreita. Mas elas foram obrigadas a parar, para deixar passar uma caleche guiada por um cocheiro tão perito que podia pôr em risco a sua própria vida e a do companheiro. Que caleches detestáveis! - disse Isabel, olhando para cima. - Como me irritam! Mas este grito de cólera, ainda que justificado, foi de curta duração, porque, ao voltar a olhar, exclamou: - Esplêndido! Olha o senhor Morland e o meu irmão! - Oh o Jaime! - exclamou Catarina, ao mesmo tempo. Quando os dois jovens as viram, travaram com tal ímpeto que o cavalo empinou-se e quase caiu. O cocheiro mal teve a tempo de se pôr a salvo; os cavalheiros saíram e mandaram-no cuidar do carro. Catarina, para quem esse encontro fora inesperado; recebeu o irmão com o mais sincero contentamento. Ele, que era bom rapaz e gostava muito da irmã, mostrou-se igualmente satisfeito 16 tanto quanto lho permitiam os olhos vivos de Isabel Thorpe, que o desafiavam com insistência. Cumprimentou-a rapidamente, com um misto de alegria e de acanhamento, o que podia ter alertado Catarina e, se ela não estivesse muito absorvida pelos seus sentimentos, levá-la a notar que ele considerava a sua amiga tão bonita como ela própria. João Thorpe que, entretanto, estivera a dar ordens acerca do cavalo, foi ter com elas. Catarina recebeu dele a compensação das cortesias que lhe eram devidas, porque, enquanto mal tocou na mão de Isabel, a ela fez-lhe as maiores reverências. Era um rapaz corpulento, estatura média, feio e desajeitado, que tinha receio de ser ultra-elegante, a não ser que usasse um fato de criado, ou de ser muito cavalheiresco, salvo se estivesse um pouco à vontade de mais, e insolente quando devia estar à vontade. Tirou o relógio do bolso e perguntou: - Quanto tempo julga, menina Morland, que levámos de Tetbury aqui? - Não conheço o caminho. O irmão disse-lhe que eram vinte e três milhas. - Vinte e três milhas! - exclamou Thorpe. - Vinte e cinco, e bem medidas. Morland protestou, alegando a autoridade de guias de estaipadeiros e de marcos. Mas o amigo não transigia; tinha um sentido natural das distâncias. - Sei bem que devem ser vinte e cinco milhas - disse -, pelo tempo que demorámos. É meio- dia e meia hora; saímos de Tetbury quando batiam as onze; aposto com quem quiser que o meu cavalo não faz menos do que dez milhas por hora, o que prefaz precisamente vinte e cinco milhas. - Não contaste uma hora - disse Morland -, eram dez horas quando saímos de Tetbury. - Dez horas! Eram onze, palavra de honra! Contei-as bem. Este seu irmão, menina Morland; até me desconcerta; ora olhe para o meu cavalo: já alguma vez viu um animal tão bom corredor? (O criado tinha acabado de subir para a carruagem e pusera-a em andamento). Que bela estampa! Em três horas e meia percorreu vinte e três milhas! Olhe bem para ele e veja se é ou não verdade uma coisa dessas. - Sim, está bem suado. - Suado! Mas nem um bocadinho, pelo menos até chegarmos à igreja de Walcot; mas olhe para o focinho, olhe para a garupa! Veja como anda! Este cavalo não anda menos do que dez milhas por hora. Atem-lhe as patas e verão como continua a andar. O que me diz à minha caleche, menina Morland? É bonita, não acha? Parece feita na cidade. Ainda não a tenho há um mês. Foi feita para um sacerdote, um amigo meu e bom rapaz; usou-a algumas semanas, até que, creio eu, se aborreceu dela. Deu-se a coincidência de eu andar à procura de carros deste género, embora pensasse num cabriolé, mas encontrando-o, por acaso, na ponte da Madalena, quando o ano passado ia para Oxford, disse-me: Oh, Thorpe, não eras tu que querias uma coisa assim? Esta é esplêndida, mas já me aborreci dela. Oh, com mil diabos!, disse eu. Quando queres por ela? Quanto pensa que ele me pediu, menina Morland? - Talvez não adivinhe. - Parecida com um cabriolé; assentos, malas, estojo de espadas, guarda-lamas; lampiões com incrustações de prata, tudo completo; as ferramentas são tão boas como se fossem novas, ou melhores ainda. Pediu-me cinqüenta guinéus; fechei logo o negócio, entreguei-lhe o dinheiro e a carruagem ficou sendo desde logo minha. - Sei tão pouco dessas coisas - disse Catarina -, que nem sei avaliar se foi barata se foi cara. - Nem uma coisa nem outra; podia tê-la comprado por menos, mas eu não gosto de regatear, e o pobre Freeman precisava do dinheiro na ocasião. - Isso é simpático da sua parte – disse Catarina, quase satisfeita. - Com os diabos! Quando se pode ser útil a um amigo, detesto lamúrias. 17 Seguiu-se a combinação acerca do caminho a seguir pelas meninas. Ficou assente que os rapazes as acompanhariam aos Armazéns Edgar e depois iriam cumprimentar a senhora Thorpe. Jaime e Isabel iam à frente. Isabel, tão satisfeita ia com a sua sorte, tão ansiosamente desejava proporcionar um passeio agradável àquele que trazia a dupla recomendação de ser amigo do seu irmão e irmão da sua amiga, tão puros e sinceros eram os seus sentimentos que ao passar em Milsom Street, à frente dos dois rapazes enfadonhos, estava tão longe de procurar despertar-lhes a atenção que olhou para eles três vezes. João Thorpe vinha com Catarina e, depois de algunsminutos de silêncio, voltou a falar-lhe na caleche. - Para algumas pessoas, menina Morland, foi uma pechincha, pois logo no dia seguinte a podia ter vendido por mais dez guinéus; Jackson, de Oriel, ofereceu-me logo sessenta; o seu irmão estava comigo. - Sim, estava - disse Morland, que ouvira - mas não dizes que o cavalo era também incluído. - O meu cavalo! Oh, com os diabos! Não, nem por cem o venderia! Gosta duma carruagem aberta, menina Morland? - Sim, gosto imenso, embora poucas vezes tenha andado nelas. Gosto mesmo muito. - Muito prazer me dá qualquer dia hei-de levá-la na minha. - Obrigada - disse Catarina, confusa, receando ser inconveniente ao aceitar tal convite. Amanhã levá-la-ei à Penha de Lansdow. - Obrigada, mas o seu cavalo não precisará de descansar? - Descansar! Se só fez hoje vinte e três milhas; era um contra-senso. Não há nada que mais estrague um cavalo do que o descanso; nada que os inutilize tão depressa. Não, não. Dar-lhe-ei exercício, pelo menos numa média de quatro horas por dia, enquanto cá estiver. - Quê? - disse Catarina, muito séria. - Quarenta milhas por dia! - Quarenta não, cinqüenta é o que tenciono. Pois, amanhã, levo-a até Lansdow; fica assente. - Oh, isso seria esplêndido! - gritou Isabel, voltando-se - Minha querida Catarina, invejo tua sorte. É pena que não tenhas lugar para um terceiro. - Para um terceiro! Está bem de ver que não. Não vim para Bath para andar a passear as minhas irmãs. Teria graça, não há dúvida! O Norland que ande convosco. Isto deu lugar a uma troca de amabilidades entre Jaime e Isabel, mas Catarina não ouviu os pormenores nem as conclusões a que chegaram. A conversa do seu companheiro tinha esfriado; o entusiasmo vivo que até ali tivera resumia-se agora as observações curtas, de louvor ou desagrado, acerca das mulheres que passavam. Catarina, depois de ouvir e concordar tanto quanto a boa educação e delicadeza duma menina o permitem e receando formular uma opinião sua, contrária à daquele homem tão obstinadamente agarrado às suas, especialmente no que dizia respeito à beleza do sexo feminino, ousou, por fim, mudar de assunto, perguntando pelo que há tanto tempo lhe não saía do pensamento. - Já leu o Udolfo, senhor Thorpe? - O Udolfo Por amor de Deus! Eu não, nunca leio romances; tenho mais que fazer. Catarina, vencida, envergonhada, ia para defender a sua pergunta, mas ele impediu-a, dizendo: - Os romances são, todos eles, compêndios de disparates e asneiras; desde o Tom Jones que ainda não apareceu nenhum decente; os outros são a coisa mais estúpida do mundo. - Penso que havia de gostar do Udolfo, se o lesse; é muito curioso. - Não hei-de ser eu! Se ler algum, há-de ser da Mrs. Radcliffe; os seus romances são bastante divertidos. Têm graça e vida. 18 - Mas o Udolfo foi escrito por Mrs. Radcliffe – disse Catarina, hesitando, com receio de o magoar. - Foi? Ah! Sim, já me lembro; é verdade que foi. Estava a pensar em outro livro muito estúpido, escrito por aquela mulher de quem se fala tanto e que casou com um emigrante francês. - Se não estou em erro, é a Camila. - Sim, sim, é esse mesmo; que disparate! Tão inverossímil! Um velho a andar de balancé! Uma vez peguei no primeiro volume, passei-o pelos olhos, mas logo vi que não o era capaz de o ler; quer dizer, também logo vi do que havia de tratar, ainda antes de o ler. Assim que me disseram que ela tinha casado com um emigrante, disse logo que não conseguiria chegar ao fim. - Nunca o li. - Não perdeu nada, afianço-lhe; é a inverosimilhança mais absurda que pode imaginar-se; não tem mais nada do que um velho a andar de balancé e a aprender latim; palavra de honra, é este o seu único interesse. Esta crítica, de cuja verdade Catarina não podia avaliar, serviu-lhes de assunto até casa da senhora Thorpe. Os sentimentos do leitor criterioso e sem preconceitos de Camila mudaram em sentimentos de filho obediente e carinhoso logo que se encontraram com a senhora Thorpe, que os vira da janela. - Então como tem passado? - disse-lhe ele dando-lhe um aperto de mão, com todo o afeto. - Onde foi desencantar esse chapéu tão esquisito que a torna parecida com uma bruxa. O Morland também veio comigo; passamos cá uns dias e já lá se nos arranja duas boas camas aí em qualquer parte. Parece que estas palavras tinham satisfeito os desejos do coração materno, pois foram recebidas com um vivo e carinhoso afeto. Às duas irmãs mostrou igual dose de amor fraternal, perguntando-lhe como tinham passado, e observando que estavam horrivelmente feias. Estas maneiras não agradaram a Catarina; mas ele era amigo de Jaime e irmão de Isabel. A sua apreciação foi logo posta de parte, quando Isabel lhe afirmou, ao retirarem-se da sala, que João a julgava a menina mais encantadora do mundo e que, antes de se ir embora, a convidara para dançar com ele nessa noite. Fosse mais velha ou mais vaidosa, estes galanteios podiam ter pouco resultado; mas onde a inexperiência e a timidez se aliaram, é preciso uma firmeza de caráter excepcional para resistir à atracção de se ser considerada a menina mais encantadora do mundo e de se ser imediatamente convidada para dançar. Quando os dois irmãos, depois de terem estado duas horas com os Thorpes, foram para casa do senhor Allen, Jaime, logo que a porta se fechou atrás de si, perguntou: - Então Catarina como achaste o meu amigo Thorpe? Em vez de responder, como deveria, se não houvesse amizade ou lisonja no caso, dizendo não gostei nada dele, confessou imediatamente: - Gostei muito dele; parece ser muito simpático. - Um excelente camarada. Um pouco falador, mas julgo até ser uma qualidade que o recomenda ao sexo feminino. E a restante família, agrada-te? - Muitíssimo, em especial Isabel. - Muito prazer me dás com isso. Ela precisamente a menina com quem gostava de te ver acompanhar. Muitíssimo sensata, extremamente simples e amável sempre desejei que a conhecesses; parece gostar muito de ti. Referiu-se a ti nos termos mais lisonjeiros que podes imaginar. Ser apreciada por Isabel Thorpe, mesmo para ti, Catarina, é uma coisa de que muito te podes orgulhar - disse o rapaz, pegando-lhe com afeto na mão. 19 - E posso. Gosto a valer dela, e muita satisfação sinto por tu também gostares. Mal me falavas dela quando me escrevias, antes de vires. - Porque pensava ver-te brevemente. Espero que estejam muitas vezes juntas, enquanto estiverem em Bath. Isabel é uma menina muito agradável, com uma inteligência superior. Toda a família a adora; é sem dúvida a favorita de todos; deve ser aqui muito admirada, não? - Sim, creio que sim; o senhor Allen acha-a a menina mais bonita de Bath. - Acredito que assim seja. Não conheço ninguém tão competente para a apreciar como o senhor Allen. Escusado perguntar se te sentes bem em Bath, minha querida Catarina; com uma companheira e amiga como Isabel Thorpe, será impossível o contrário. O casal Allen também deve ser todo atenções para ti. - Sim, nunca me senti tão bem, e agora, que estás cá, ainda mais feliz me sentirei. Que bondade a tua, teres vindo de tão longe para me veres! Jaime aceitou este tributo de gratidão e deixou que a sua consciência o aceitasse também, respondendo com verdadeira sinceridade. - É verdade que te estimo muito, Catarina. Chegaram a Pulteney Street, entre perguntas e informações acerca dos irmãos e irmãs, da presente situação de alguns, do desenvolvimento dos restantes e de outros assuntos de família, interrompidos por uma pequena divagação de Jaime, louvando Isabel Thorpe. Foi recebido com grande deferência pelo casal Allen: o marido convidou-o para jantar, e a senhora Allen perguntou- lhe se adivinhava o preço e computava o valor dum regalo novo e duma capa de peles. Como tinha combinado encontrar-se nos Armazéns Edgar, e não aceitou o convite; e, mal pôde satisfazer as perguntas da senhora Allen, saiu. Depois de aprazarem o encontro das duas famílias no Salão exagonal, Catarina ficouentregue ao fluir duma imaginação enlevada, inquieta e ansiosa sobre as páginas do Udolfo, esquecida de tudo o que fosse vestir e comer incapaz de minorar os receios da senhora Allen, por causa da demora da costura, e de dedicar um só minuto que fosse, numa hora, a pensar na sua própria felicidade, ou seja, em ter já par assegurado para aquela noite. CAPÍTULO VIII Apesar do Udolfo e da costureira, a família de Pulteney Street chegou a horas aos Upper Rooms. Os Thorpes e Jaime Morland tinham chegado havia já dois minutos. Isabel, sorridente e amável, veio ao encontro da amiga; como era seu costume, admirou-lhe o corte do vestido, e invejou-lhe o penteado. De braço dado, dirigiram-se para a sala de baile, cochichando uma com a outra, sempre que um pensamento lhes ocorria, e trocando apertões nos braços e sorrisos ternos. O baile começou poucos minutos depois de se terem sentado. Jaime, comprometido há tanto tempo com a irmã, estava impaciente porque Isabel se levantasse. Porém, João tinha ido para a sala de jogo falar com um amigo, e Isabel por nada iria dançar, se a amiga não fosse também. - Palavra de honra - disse ela -, não me levantarei sem a sua querida irmã ir também, pois, se assim não fosse, certamente não nos voltaríamos a encontrar em toda a noite. Catarina aceitou esta delicadeza com gratidão e assim estiveram durante alguns minutos, até que Isabel, que estava voltada a falar com o Jaime, se virou para ela e lhe disse ao ouvido: - Minha querida, estou a ver que tenho de te deixar. O teu irmão está ansioso por começar. Sei que não te importarás, se eu for dançar; creio que o João deve estar a vir e então depressa me encontrarás. Catarina, embora ficasse um pouco surpreendida, teve a boa educação de não se opor. Jaime e Isabel levantaram-se e esta apenas teve tempo de apertar a mão a Catarina e de lhe dizer: “até à 20 vista, meu amorzinho”, antes de desaparecer com o seu par. As meninas Thorpe mais novas foram também dançar e Catarina ficou a mercê das senhoras Thorpe e Allen, sentada no meio das duas. Estava vexada por João Thorpe não aparecer, não só porque desejava dançar, mas também porque sabia bem que, não podendo ser conhecida a dignidade da sua situação, tinha de compartilhar da sorte de muitas outras meninas que ainda estavam sentadas, sofrendo por isso a mofa de não terem par. Ser humilhada aos olhos do mundo, ter aparência de infâmia quando o seu coração é todo pureza, as suas acções inocência, e a má conduta de outro a causa verdadeira da sua humilhação, é uma das caraterísticas próprias de uma heroína e a maneira resignada de a suportar, o que particularmente lhe dignifica o caráter. Catarina tinha também fortaleza de alma; sofria e calava. Foi despertada deste estado de humilhação, ao fim de dez minutos, para uma sensação mais agradável, ao ver, não o senhor Thorpe, mas o senhor Tilney, a três metros de distância. Parecia dirigir-se-lhe, contudo não a viu; por isso o sorriso e o rubor que o seu aparecimento inesperado provocaram em Catarina passaram sem macular-lhe o valor heróico. Tilney estava na mesma, simpático e espirituoso, como sempre; falava entusiasmado com uma menina bem vestida e interessante que levava pelo braço e que Catarina logo supôs ser sua irmã. Assim, impensadamente, punha de lado, uma ocasião azada de o considerar perdido para sempre, julgando-o já casado. Guiada, porém, por um raciocínio simples e provável, nunca lhe tinha passado pela mente que o senhor Tilney fosse casado. Ele não se comportava nem falara como os outros homens casados com quem estava habituada a conviver; nunca se referia à esposa, apenas tinha falado de uma irmã. Por estes acontecimentos deduziu que era a irmã que ia a seu lado; por isso, em vez de se pôr amarela como a cera, a desmaiar no peito da senhora Allen, Catarina ficou perfeitamente bem disposta, só com as faces um pouco mais vermelhas do que era costume. O senhor Tilney e a companheira que continuavam a aproximar-se pouco a pouco, eram precedidos de uma senhora, amiga da senhora Thorpe. Esta senhora parou a falar com ela, e eles como que pertencendo-lhe, igualmente pararam. Catarina olhou para o senhor Tilney, encontrou os seus olhos e imediatamente viu neles a prova de que a reconhecera. Retribuiu-a com satisfação. Henrique Tilney, aproximando-se mais, falou- lhe e à senhora Allen, por quem foi muito carinhosamente cumprimentado: - Muito prazer em vê-lo outra vez; desconfiava que tivesse deixado Bath. Tilney agradeceu-lhe os cuidados e explicou que tinha deixado Bath há uma semana, naquela manhã em que tivera o prazer de a ver. - Ora muito bem. Suponho que não se arrependeu de ter vindo. Bath é a terra adequada à gente nova e até mesmo para quem o não seja. Quando o meu marido diz que está aborrecido, respondo-lhe sempre que não tem razão de se queixar, porque não há terra mais agradável; que é melhor estar aqui do que em casa, especialmente nesta época tão sensaborona do ano. Ainda lhe digo mais, que tem muita sorte, porque aproveita tratar da sua saúde. - Oxalá, minha senhora, o senhor Allen goste da terra, uma vez que é um bem para a sua saúde. - Muito obrigada. Não tenho dúvidas de que seja. O nosso vizinho, o Dr. Skinner, esteve aqui o Inverno passado e voltou muitíssimo melhor. - Esse fato deve incutir-lhe muita confiança. - Sim, não há dúvida. O Dr. Skinner e a família estiveram aqui três meses por isso sempre digo ao meu marido que não deve ter pressa de partir. A senhora Thorpe interrompeu-os, pedindo que se apertassem um pouco mais, para a senhora Hughes e a menina Tilney se sentarem, pois tinham resolvido juntarem-se-lhes. Feito isto, de comum acordo, ficou o senhor Tilney ainda de pé à frente delas. 21 Depois de passarem alguns minutos, exigidos pela delicadeza, o jovem convidou Catarina para dançar. Este cumprimento, agradável como era, mortificou muito a menina. Recusando-o, exprimiu a sua tristeza de tal forma que Thorpe, que chegara um minuto antes, julgou, razoavelmente, excessiva a sua tristeza. A maneira simples como ele lhe explicou a razão por que se demorara não a reconciliou com a sua sorte. As particularidades em que entrou, ainda de pé, acerca de cavalos e trens de um amigo com quem acabara de estar, da combinação duma troca de terriers, interessava tanto Catarina que não obstava a que ela olhasse muitas vezes para o lado onde deixara o senhor Tilney. Da sua querida Isabel a quem tinha todo o empenho de indicar aquele cavalheiro, nada sabia. Estavam em quadrilhas diferentes: Separara-se do seu grupo e estava longe de todas as pessoas conhecidas. Mortificação após mortificação, tirou a lição de que ir para um baile já comprometida não aumenta necessariamente a dignidade e o prazer duma menina. Foi despertada destes raciocínios morais por alguém que lhe tocava no ombro. Voltando-se, viu a senhora Hughes, atrás dela, com a menina Tilney e um cavalheiro. - Desculpe, menina Morland, esta liberdade - disse ela -, mas não consigo ver Isabel Thorpe, e a mãe afirmou-me que não se importaria de fazer companhia a esta menina. A senhora Hughes não teria encontrado pessoa que se sentisse mais feliz por lhe ser agradável do que Catarina. As meninas foram apresentadas; Leonor Tilney exprimiu grande bondade, e Catarina Morland, com a delicadeza sincera de um caráter bondoso, declinou os cumprimentos; a senhora Hughes, satisfeita por ter assim entregado tão bem a sua jovem amiga, voltou para junto dos do seu grupo. Leonor Tilney tinha boa figura, uma cara bonita e aspeto agradável e o seu porte, embora não tivesse a pretensa decisão e a agilidade resoluta de Isabel Thorpe, tinha mais elegância natural. As suas maneiras mostravam sensatez e bons princípios - não eram nem tímidas nem fingidamente livres. Parecia viva e atraente sem contudo pretender chamar a atenção dos rapazes que estivessem perto dela, ou alardear sentimentos exagerados de prazer estático ou de vergonha inacreditávela propósito do mais insignificante assunto. Catarina logo ficou interessada, não só por conhecê-la como também pelo parentesco que a ligava a Henrique Tilney. Desejava ardentemente familiarizar-se com ela e por isso dirigia-se-lhe sempre que pensava nalguma coisa e tinha a coragem e oportunidade para a formular em voz alta. Mas a falta constante de um ou mais destes motivos era obstáculo no caminho duma intimidade rápida, pois, impossibilitava-a de ir além das perguntas banais dum conhecimento recente isto é, informar-se se gostava de Bath, se admirava os seus edifícios e subúrbios, se desenhava, tocava ou cantava e se gostava de andar a cavalo. Tinham acabado duas quadrilhas, quando Catarina sentiu o braço levemente apertado pela sua fiel Isabel, que muito satisfeita exclamou: - Até que enfim que te encontrei! Minha querida já há uma hora que ando à tua procura. Que idéia foi essa de vires para este lado, se sabias que eu estava no outro? Tenho estado tão aborrecida sem ti! - Minha querida Isabel, como é que eu podia ir contigo? Pois se nem sabia onde estavas! - Isso mesmo disse eu ao teu irmão, mas ele não queria acreditar. Vá ver se a vê, senhor Morland - dizia-lhe eu; - mas tudo era inútil, nem se mexia. Não foi assim, senhor Morland? Os homens são todos uns preguiçosos! Fartei-me de lhe ralhar, minha querida Catarina. Se ouvisses, até te admiravas. Sabes, não estou com cerimônias com esta gente. - Vês aquela menina com pérolas na cabeça? – segredou Catarina a amiga, afastando-se de Jaime. - a irmã do senhor Tilney. - O quê?! Que dizes? Deixa-me olhar para ela. Que menina adorável! Nunca vi outra tão 22 encantadora! Mas onde está o irmão, o conquistador incorrigível? Está aqui? Dize-me onde. Estou morta por vê-lo. O senhor Morland não tem licença de ouvir. Não estamos a falar de si. - Mas a que propósito estão com tantos segredos? Que aconteceu? - Ora aí está. Já sabia que havia de perguntar. Os homens têm uma curiosidade tão aguçada! E falam das mulheres! Não há dúvida! Contentem-se em nada saber. - Então pensa que isso me satisfaz? - Nunca conheci ninguém como o senhor. Que lhe importa o que estamos a dizer? Talvez estejamos a falar de si, por isso aviso-o de que não ouça. Às vezes pode não gostar. Com esta conversa banal, que durou algum tempo, parecia que a causa principal fora completamente esquecida. Catarina, embora estivesse satisfeita por se ter posto de lado, não deixou de suspeitar o desejo impaciente de Isabel em ver o senhor Tilney. Quando a orquestra de novo começou a tocar, Jaime gostaria de voltar a dançar com o seu belo par, mas ela opôs-se-lhe. - Já lhe disse senhor Morland, que por nada deste mundo farei tal coisa. Como pode ser tão arreliador? Imagina lá, querida Catarina, o que o teu irmão quer que eu faça! Quer que vá dançar outra vez com ele, se bem que já lhe tenha dito que é uma coisa imprópria e completamente contra as regras. Daríamos que falar, se não mudássemos de par. - Pode estar convencida - disse Jaime - de que nestas reuniões públicas muitas vezes não se olha a isso. - Ora, ora como pode dizer uma coisa dessas? Vocês, os homens, quando pensam fazer alguma coisa, não hesitam. Minha querida Catarina, ajuda-me a convencer o teu irmão de que é impossível. Diz-lhe que te incomodaria se me visses fazer isso; diz-lhe, sim? Ora vejam! - continuou Isabel. - Ouve o que a irmã lhe diz, e faz ouvidos de mercador. Bem, lembre-se de que a culpa não será minha, se pusermos todas as velhotas de Bath a cochichar. Por amor de Deus, querida Catarina, vem comigo e auxilia-me. Dirigiram-se para o lugar onde antes tinham estado. João Thorpe, entretanto, desaparecera. Catarina, continuando a desejar dar ao senhor Tilney uma nova oportunidade para repetir o pedido agradável com que a tinha já lisonjeado dirigiu-se o mais depressa que pôde para onde estavam as senhoras Allen e Thorpe, esperando ainda encontrá-lo com elas. Esperança, cujo malogro considerou extremamente indesejável. - Então, minha querida - disse a senhora Thorpe impaciente por gabar o filho - espero que o seu par a tenha divertido muito. - Oh, muitíssimo, minha senhora! - Muito prazer me dá. O João é encantador, não é? - Não encontraste o senhor Tilney, minha querida? - perguntou a senhora Allen. - Não, onde está? - Esteve mesmo agora connosco, e disse que já se sentia tão aborrecido por nada fazer, que resolvia ir dançar. Pensei que te convidava se te encontrasse. - Onde está ele? inquiriu Catarina, olhando à sua volta. Ainda não tinha acabado de percorrer a sala com a vista, quando o viu convidar uma menina. - Ah! Já arranjou par; gostava que dançasse contigo – disse a senhora Allen. Após um curto silêncio, ajuntou: - É um rapaz muito simpático. - Lá isso é verdade, senhora Allen - respondeu a senhora Thorpe, rindo complacentemente. - Apesar de ser mãe dele, confesso que não conheço rapaz mais simpático. Esta resposta descabida podia ser um enigma para a compreensão de muitas pessoas, mas não atrapalhou a senhora Allen, que depois de raciocinar uns segundos, disse baixinho a Catarina - Quer parecer-me que ela julgava que eu estava a falar do filho. 23 Catarina sentia-se desconsolada e vexada. Parecia-lhe que, em pouco tempo, tinha perdido o objeto dos seus pensamentos; e com esta convicção não pôde dar uma resposta graciosa a João Thorpe, quando ele, pouco depois, se lhe dirigiu: - Menina Morland, se não se importa, podemos dar ainda umas voltas. - Oh, não; agradeço-lhe muito, mas o nosso pato já acabou; além disso estou cansada e não tenciono dançar mais. - Não? Então vamos passear e cortar na casaca dos outros. Venha comigo. Catarina voltou a desculpar-se. Por fim foi ele sozinho criticar as irmãs. Catarina achou o resto da noite muito enfadonho. Ao chá, o senhor Tilney deixou a sua mesa para ir para a do seu par. Leonor Tilney, que pertencia também ao grupo, não se sentou a seu lado, e Jaime e Isabel andavam tão entusiasmados com a conversa, que esta só teve tempo de lhes sorrir uma vez, de lhe apertar o braço e dizer: minha querida Catarina. CAPÍTULO IX A partir dos acontecimentos desta noite, a pouca sorte de Catarina aumentará, como veremos. Enquanto esteve na sala de baile, a primeira sensação que experimentou foi desagrado por todas as pessoas que estavam junto dela; depois este desagrado transformou-se em considerável mal-estar e num desejo ardente de voltar para casa. Tal desejo, ao chegarem a Pulteney Street, transformou-se numa fome devoradora, e, depois de ter comido bem, sentiu um anseio desesperado de ir para a cama; este foi o fim do seu mal. Deitou-se e logo caiu num sono profundo, que durou nove horas, do qual despertou perfeitamente restabelecida, de bom humor, com novas esperanças e novos projetos. O primeiro desejo do seu coração foi estreitar relações com Leonor Tilney, e, para isso, a sua primeira resolução foi a de procurá-la, ao meio-dia na Fonte, que se encontra qualquer pessoa recém-chegada; ela já tivera a experiência de que aquele edifício era óptimo para descobrir a excelência feminina, estreitar relações, e especialmente adequado para conversas íntimas e confidências ilimitadas. Por isso se sentia muito satisfeita por ir encontrar outra amiga dentro daquelas paredes. Assim traçado o plano da manhã, decidiu ler o livro depois do almoço, resolvida a ficar no mesmo local e na mesma tarefa até à uma hora. Já por hábito, Catarina pouco se incomodava com as observações e exclamações da senhora Allen, cuja futilidade de espírito e incapacidade de raciocínio eram tais que, mesmo que não falasse muito, nunca podia estar calada: se estava sentada a trabalhar, se perdia a agulha ou partia a linha, se ouvia uma carruagem na rua, se via uma nódoa no vestido tudo comentava em voz alta, mesmo que não houvesse ninguém para responder. Ao meio-dia e meia hora, uma pancada forte fez a senhora Allen correr à janela; e quando ia para informar Catarina
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