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Língua Portuguesa - Noções de literatura IM PR IM IR Voltar GA BA RI TO Avançar 26 A questão 62 reporta-se ao romance Lucíola, de José Alencar. “Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente: Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu, já não existe. À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar. Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não disse no delírio uma só palavra que não se referisse a mim e alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos. Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila: — Tu me prometes, Paulo, casar com Ana! — Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade. — Mas essa promessa me daria tanto alívio agora! — Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, à tua irmã, e a mim, que não poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela! — Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai. — Juro-te! Beijou-me as mãos: — Ela vai ter tanta necessidade de um pai! Os acessos da febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves. Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio: — Para que é isso? perguntou ela com brandura. — Para aliviá-la do seu incômodo. Logo que lançar o aborto, ficará inteiramente boa. — Lançar!... Expelir meu filho de mim? E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro à parede. — Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servi- rá de túmulo. De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio que a devia salvar. — Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim! — Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge! A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu. A febre lavrava com intensidade: eu já não tinha esperanças. — O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero confessar-me, Paulo. Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe: — Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por mim. O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que, ajoelhados à borda de um leito, viram finar-se gradualmente uma vida querida.” 62. UEGO Assinale V, para as afirmações verdadeiras, e F, para as falsas: ( ) Em “– Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai.” Neste período, evidencia-se um desrespeito às convenções gramaticais quanto ao uso do pronome oblíquo “lhe”, exemplificando assim um caso de próclise, que também ilustra a oralidade ou a espontaneidade da fala. ( ) É artifício da produção de textos o uso das reticências. Nesse texto em foco, elas foram usadas por duas vezes indicando então que o narrador imprime ao enredo a hesitação, a surpresa e estupefação da personagem ante a situação nova com que se defronta. ( ) Estas frases: “E o copo que Lúcia sustentava ..., voou pelo aposento...”, “A febre lavrava com intensidade...” e em “Sua mãe lhe servirá de túmulo”, os termos gri- fados exemplificam metáforas. ( ) O texto apresentado enquadra-se como narrativo-descritivo. ( ) Nos trechos: “– Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!” e em: “O dia se passou, na cruel agonia que só compreen- dem aqueles...”, a palavra “só” tem equivalente função morfológica em ambas as situações. Língua Portuguesa - Noções de literatura IM PR IM IR Voltar GA BA RI TO Avançar 27 63. UnB-DF “O Horácio prepara o cafezinho. Desde que o governo suspendeu a verba pra o cafezinho, que este é custeado pelos funcionários. Custa um tostão. Naziazeno não quer café. Já tomou um há pouco. Ele se dirige para a sua carteira. Na sala, pequena, trabalham mais dois: o primeiro escriturário e o datilógrafo. Ambos muito quietos. O primeiro escriturário confere contas. É um serviço que faz há muito tempo. Dispõe de grande prática. Faz cálculos, usa tinta encarnada, bate muitos carimbos. De- pois, quando tem já um grupo de contas respeitável, ergue-se e repassa-as uma a uma (com todas as suas ‘primeiras’, ‘segundas’ e ‘terceiras vias’ nos dedos – que ele a cada passo molha nos lábios com um certo ruído. O datilógrafo, quando não está ‘batendo’, lê um livro, aberto dentro da gavetinha ao lado. Naziazeno interroga o datilógrafo: — O diretor saiu? O funcionário levanta os olhos do livro, relanceia-os lentamente pela janela, pousa-os no escri- turário: — Está na Secretaria – responde este, sem interromper a conferência das contas. ‘— O Cipriano certamente foi buscá-lo. Não tarda, estará aí ’ – conjetura mentalmente Naziazeno. O trabalho de Naziazeno é monótono: consiste em copiar num grande livro cheio de ‘grades’ certos papéis, em forma de faturas. É preciso antes submetê-los a uma conferência, ver se as operações de cálculo estão certas. São ‘notas’ de consumo de materiais, há sempre multiplicações e adições a fazer. O serviço, porém, não exige pressa, não necessita ‘estar em dia’. –Naziazeno ‘leva um atraso’ de uns bons dez meses. Ele hoje não tem ‘assento’ pra um serviço desses. É preciso classificar as notas, dispô-las por ordem cronológica e pelas várias ‘verbas’, calcular; depois então ‘lançá-las’ com capricho, ‘puxar’ cuidadosamente as somas... Ele já se ‘refugiou’ nesse trabalho em outras ocasiões. Era então uma simples contrariedade a esquecer... uma preterição... injustiça ou grosseria dos homens... Mesmo assim, quando, nesses momentos, se surpreendia ‘entusiasmado’ nesse trabalho, ordenado e sistemático como ‘um jogo de armar’, não era raro vir-lhe um remorso, uma acusação contra si mesmo, contra esse espírito inferior de esquecer prontamente, de ‘achar’ no ambiente aspectos compensadores, quadros risonhos... Todos aqueles indivíduos que lhe pareciam realizar o tipo médio normal eram obstinados, emperrados, não tinham, não, essa compreensão inteligente e leviana das coisas...” MACHADO, Dyonelio. Os ratos. 12ª ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 26-7. De acordo com o texto acima, julgue os seguintes itens. ( ) Pelo texto apresentado, infere-se que a obra da qual ele foi retirado é um romance rural. ( ) A narrativa focaliza uma personagem que se opõe ao herói tradicional, pois, embo- ra seja o protagonista, não se destaca pelas características elevadas de homem ex- traordinário por seus feitos, seu valor ou sua magnanimidade, mas por sua medio- cridade, seu anonimato e sua alienação. ( ) Muitas das aspas utilizadas no texto revelam a intenção do narrador de ironizar a atividade pelo uso do jargão burocrático ou de destacar um segundo sentido para as expressões utilizadas. ( ) O último parágrafo do texto revela um conceito de trabalho como momento de evasão dos problemas individuais. ( ) O texto é construído pelo foco de um narrador onisciente, que penetra na mente da personagem, decifrando-lhe pensamentos, lembranças, sentimentos e sensações.