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A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NO CONTEXTO ESCOLAR 1. INTRODUÇÃO Definir o que é normal e o que é patológico, em geral, é uma difícil tarefa, que deve levar em consideração diferentes conceitos de patologia e o contexto social, histórico e cultural em que está inserido o sujeito. Na infância, somam-se a isso as idealizações das instituições (família e escola) de como uma criança deveria agir (MARCELLI; COHEN, 2011) ou, ainda, expectativas irrealistas de que crianças se comportem como mini-adultos. Conforme Beltrame, Gesser e Souza (2019, p. 3), nunca antes as escolas encaminharam tantos estudantes [...] para centros de atendimento psicológico [...] e médico”. Isso se deve à crescente tendência de homogeneizar padrões de comportamento e aprendizagem, classificando os “desviantes” em categorias psiquiátricas e medicando-os, a fim de adequar seu comportamento aos padrões exigidos pelos adultos e pela escola (BELTRAME; GESSER; SOUZA, 2019). Collares e Moysés (1996 apud MANFRÉ, 2018, p. 95) definem a medicalização como “o processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social, educacional, cultural e política, em questões médicas”. Manske (2018, p. 683) acrescenta que, além de estigmatizar as crianças com diagnósticos, a medicalização “desresponsabiliza questões políticas, históricas e sociais, transformando as dificuldades de escolarização em doença individual”. Tendo isso em mente, o presente trabalho tem como objetivo compreender, por meio de uma revisão bibliográfica narrativa, o processo de medicalização e seu provável impacto no desenvolvimento psíquico e pedagógico das crianças. 2. METODOLOGIA Para esta revisão bibliográfica narrativa, realizou-se uma busca na base de dados Portal de Periódicos CAPES. Foram utilizados os descritores “medicalização da infância” AND “educação”, filtrando apenas artigos publicados no último ano (2018 – 2019) em qualquer idioma. Além disso, foram consultados os livros referência em infância e psicopatologia. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO Por meio da combinação dos descritores e filtros no Portal de Periódicos CAPES, foram encontradas 18 publicações, das quais, 4 foram selecionadas para análise e discussão, por sua relevância e aproximação com o tema. DESCRITORES medicalização da infância; educação TÍTULO Os “inconvenientes” na escola: medicalização de crianças e jovens e suas estratégias de resistência Diálogos sobre medicalização da infância e educação: uma revisão de literatura Escola, medicalização e educação Medicalização na escola e a produção de sujeitos infantis AUTORES ANTONELI;GARCIA BELTRAME; GESSER; SOUZA MANFRÉ MANSKE;QUADROS ANO DE PUBLICAÇÃO 2018 2019 2018 2018 BASE DE DADOS Portal de Periódicos CAPES REVISTA Perspectiva Psicologiaem Estudo Espaço Acadêmico Reflexão e Ação Quadro: Resultados selecionados da pesquisa bibliográfica Da análise desses artigos, foi identificada uma questão preliminar: a influência do movimento higienista, no Brasil, sobre o aumento, na atualidade, de diagnósticos e prescrições psiquiátricos em crianças e adolescentes, em período escolar, que possuem um comportamento considerado desviante da norma e possuem dificuldades para se adaptar aos modelos hegemônicos reproduzidos por instituições que funcionam como um mecanismo de ordem social, regulando o comportamento dos indivíduos (MANSKE; QUADROS, 2018). Segundo o estudo de caso de Garcia e Antoneli (2018), é possível afirmar que a visão de uma normalidade sobre o processo de desenvolvimento da criança está onipresente em discursos sociais emanados por uma vasta concepção essencialista, advinda do ponto de vista da medicina, da educação e da família (se referindo à esses três pilares como instituições em sua essência). Ponto de vista esse que acaba sendo reproduzido pelos pais e direcionado à criança e ao adolescente em desenvolvimento, exercendo uma forma subjetiva de opressão, na qual é dificilmente identificada de forma clara pela criança, mas que, ao mesmo tempo, gera um intenso sofrimento e sentimentos de desvalor e inadequação a partir da mensagem concebida inconscientemente. No entanto, presume-se que estes conflitos escolares poderiam, ao menos em primeira instância, estar sendo resolvidos com intervenções pedagógicas, em vez de estarem sendo caracterizados e imediatamente direcionados como transtornos neurológicos, passíveis de intervenção médica e medicamentosa. Beltrame, Gesser e Souza (2019), em seu artigo, exercem uma crítica negativa referente à tendência em restringir a análise dos sintomas, que afetam o comportamento e o processo de aprendizagem das crianças, em questões neurológicas e fisiológicas. Da mesma forma, também criticam a tendência à adesão ao tratamento farmacológico, principalmente nesses casos em que se é elaborado um tipo de visão reducionista acerca dos sintomas, ignorando uma análise interdisciplinar que poderia constatar questões importantes da história de vida e contexto da criança, que também estão inerentemente relacionadas à queixa escolar e às dificuldades de desenvolvimento desta. Adicionalmente, questionam o quanto estes transtornos estariam sendo usados como justificativa para o fracasso escolar, sem levar em consideração a complexidade do processo de escolarização e a contribuição dos próprios agentes escolares com suas características pessoais; ao culparem o estudante pelo que lhe ocorre, ignoram as demais estruturas escolares e abrem espaço para a rotulagem do aluno, além das consequências nocivas implicadas no uso de medicamentos. Na prática, “ainda há muitas intervenções que geram sofrimento e individualização da queixa escolar, [...] reiterando tradicionais tendências de patologização dos impasses escolares.” (BELTRAME; GESSER; SOUZA, 2019, p. 6) Outro fator envolvido na crítica de Beltrame, Gesser e Souza (2019) diz respeito ao papel da indústria farmacêutica no crescente processo de medicalização de crianças e jovens. De acordo com os autores, “a psiquiatria tem adentrado nos espaços escolares e de saúde com intuito de identificar e diagnosticar precocemente populações em risco, acometidas por doença mental. [...] Toda essa maquinaria é financiada pela indústria farmacêutica, que percebe nas crianças e adolescentes potenciais consumidores de medicamentos.” (p. 9) Não por acaso, a título de ilustração e citado por Manfré (2018), o Brasil é o segundo maior consumidor mundial de metilfenidato, medicamento amplamente utilizado para controlar a atenção e o comportamento, em especial em crianças e jovens. Claramente, vislumbra-se um conflito de interesses entre pacientes e profissionais de saúde. A alternativa para tais conflitos seria a introdução de práticas não medicalizadas, as quais requerem um reflexão sobre questões relacionadas diretamente ao aluno: primeiro, resgatando os reais motivos que possam levar à medicalização, ou seja, a visão da criança como um consumidor potencial de medicamentos, expandindo seu escopo de usuários da indústria do adoecimento; processo de produção com a otimização da atenção, concentração, comportamento no mundo capitalista; instituições que propiciam condições de acesso e garantia de direito, mediante a patologização; controle e disciplina dos corpos para uma sociedade moderna, de ordem e progresso (BELTRAME; GESSER; SOUZA, 2019, p. 10). Em segundo lugar, questionando como enfrentar esses processos que transformam em doenças as diferentes maneiras de ser e de aprender e de que forma podemos promover “práticas que caminham na contracorrente da homogeneização de condutas e da disciplinarização dos corpos, discutindo, no território, ações possíveis frente aos conflitos e tensionamentos produzidos nesse mesmo espaço geográfico. Demandas complexas exigem ações intersetoriais, na interface com a saúde, assistência social, educação, entre outros dispositivos de proteção social.” (BELTRAME; GESSER; SOUZA, 2019, p. 10). De fato, a medicalização da infância e adolescência passa por umaação social, política e da área da saúde de forma integrada e responsável. A proteção do menor deve ser colocada em primeiro lugar e este deve ser tratado de forma humanizada, pois ao ser encaminhado como possível portador de transtorno ele já entrou em uma lista de exclusão da comunidade escolar. Para Antoneli e Garcia (2018, p. 14), o debate sobre a medicalização deve ser inserido na discussão sobre a educação que queremos. Isso significa ir contra o conjunto de ações de adaptação das singularidades à escola: as diferenças não devem ser homogeneizadas, mas sim respeitadas enquanto alteridade. Segundo Manfré (2018), restringir as dificuldades que ocorrem à criança, no processo de aprendizagem, a fatores que estão interiorizados nela, podem empobrecer o debate acerca de políticas públicas voltadas ao aprimoramento da educação, uma vez que se tenta isentar a consequência da conduta do Estado, de professores, de educadores especiais e da família como fatores exteriores à essa criança e que exercem um importante papel em seu desenvolvimento. Não se pode reduzir o tema medicalização a uma especialidade ou área de conhecimento. Trata-se de uma responsabilidade a ser compartilhada por todos os setores da sociedade, em um formato multi e interdisciplinar. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das publicações selecionadas evidenciou diferentes funções da medicalização na sociedade: desresponsabilização dos agentes de Estado e educação pelos problemas educacionais; desconexão desses problemas de atravessamentos de classe, gênero, raça, etnia e cultura; patologização das diferenças; normatização e controle social do comportamento. Os parâmetros atuais de normalidade e patologia afetam diretamente o processo de subjetivação de crianças e adolescentes, que acabam por internalizar um discurso que não lhes pertence. Assim, questionamos: que tipo de subjetividade está se produzindo – ou se tolhendo – a partir da medicalização compulsiva? 5. REFERÊNCIAS ANTONELI, P. P.; GARCIA, M. R. V. Os “inconvenientes” na escola: medicalização de crianças e jovens e suas estratégias de resistência. Perspectiva, Florianópolis, v. 36, n. 2, p. 664-686, jul. 2018. Disponível em: <bit.ly/2YybAGp>. Acesso em 9 dez. 2019. BELTRAME, R. L.; GESSER, M.; SOUZA, S. V. Diálogos sobre medicalização da infância e educação: uma revisão de literatura. Psicol. estud., Maringá, v. 24, 2019. Disponível em <bit.ly/2P3Qdtu>. Acesso em 9 dez. 2019. MANFRÉ, A. H. Escola, medicalização e educação. Revista Espaço Acadêmico, n. 211, dez. 2018, p. 93-105. Disponível em <bit.ly/2rlBG3x>. Acesso em 9 dez. 2019. MANSKE, G. S.; QUADROS, D. C. R. Medicalização na escola e a produção de sujeitos infantis. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 26, n. 2, p. 57-73, mai./ago. 2018. Disponível em <bit.ly/2sgi1Sn>. Acesso em 9 dez. 2019. MARCELLI, D.; COHEN, D. O normal e o patológico. In: Infância e psicopatologia. 8. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 14-29.
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