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DESCRIÇÃO A construção do saber jurídico penal, seus conceitos básicos e a prática do sistema de justiça criminal em meio ao constitucionalismo. PROPÓSITO Compreender as funções, o conceito e a fonte do Direito Penal, bem como o conceito de bem jurídico penal e os principais princípios que regem a área, à luz do constitucionalismo, é fundamental para a construção democrática das ciências criminais. PREPARAÇÃO Antes de iniciar este conteúdo, tenha em mãos a Constituição; o Código Penal e Leis Penais Extravagantes – Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/2019); o Estatuto do Desarmamento (n. 10.826/2013); a Lei n. 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro); a Lei n. 13.964/2019 (Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal); e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Políticas Públicas sobre Drogas). OBJETIVOS MÓDULO 1 Definir o conceito, as funções e as fontes do Direito Penal MÓDULO 2 Descrever o conceito de bem jurídico e o sentido do constitucionalismo para o saber jurídico- penal MÓDULO 3 Identificar os princípios em espécie no Direito Penal desde uma perspectiva garantista INTRODUÇÃO Estudaremos alguns conceitos de base da grande área de conhecimento Direito Penal. Os itens que seguem, na forma de tópicos, estruturam o campo como saber jurídico, daí sua enorme importância. Por isso, sugerimos que assumam este estudo como parte estruturante do percurso iniciado na grande área das Ciências Criminais. MÓDULO 1 Definir o conceito, as funções e as fontes do Direito Penal CONCEITO E CARACTERÍSTICAS Um bom conceito de disciplina é fundamental para que se pontue sua localização como saber jurídico. No caso do Direito Penal, trata-se de um conjunto de normas que incriminam condutas, descrevendo os comportamentos típicos e as penas a eles cominadas, incluindo-se aí a disciplina não só quanto ao tempo de sanção, para cada ilícito, como também espécie, valor, normas de execução, entre outros. Nas palavras de Nilo Batista: TRATA-SE DO CONJUNTO DAS NORMAS JURÍDICAS QUE, MEDIANTE A COMINAÇÃO DE PENAS, ESTATUEM OS CRIMES, BEM COMO DISPÕEM SOBRE SEU PRÓPRIO ÂMBITO DE VALIDADE, SOBRE A ESTRUTURA E ELEMENTOS DOS CRIMES E SOBRE A APLICAÇÃO E EXECUÇÃO DAS PENAS E OUTRAS MEDIDAS NELAS PREVISTAS. (BATISTA, 2007, p. 50.) Estamos diante de um ramo do Direito que nos convida a pensar sobre as infrações penais e as sanções aplicáveis a cada uma delas, tendo como método a revisão teórica dos temas, o que é próprio do saber dogmático. O Direito Penal tem por objeto fundamental as condutas humanas (ações ou omissões), que serão descritas nos tipos legais junto à sanção aplicável (SANTOS, 2014, p. 3). Veja dois exemplos: Furto Está definido no artigo 155 do Código Penal da seguinte forma: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (preceito primário). Trata-se de um crime que é cometido mediante uma ação, uma conduta positiva, e que logo tem a sanção definida pelo legislador como “reclusão, de um a quatro anos, e multa” (preceito secundário). Omissão de notificação de doença Está definido no artigo 269 da seguinte forma: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória” (preceito primário). Trata-se de um ilícito que javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) tem como objeto uma omissão, uma conduta negativa, e cuja realização poderá ensejar a aplicação de “detenção, de seis meses a dois anos, e multa” (preceito secundário). PRECEITO O preceito primário descreve detalhadamente a conduta que se procura proibir ou impor. Por outro lado, o preceito secundário é aquele que fica encarregado de individualizar a penas. Retomaremos esse conteúdo mais à frente, quando estudarmos o princípio da lesividade do Direito Penal. Por ora, o importante é que se saiba da centralidade desse objeto, as condutas humanas, até para que se entenda quais são suas características. Quanto às condutas humanas, trata-se de um ramo do Direito Público, porque lida com interesses da coletividade e porque é o Estado quem detém o “poder punitivo”, o poder de, em se comprovando ter havido um crime, impor a punição. Além disso, a sua interpretação constitucional, que será explorada ainda neste material, é outro fator indiciário desse atributo, sem o qual não pode o Direito Penal encontrar lugar em um Estado Democrático de Direito. Disso decorre outra marca dessa ciência: suas normas são indisponíveis, cogentes. Esse atributo é de fácil compreensão, pois ainda que, por exemplo, uma pessoa conteste a noção de “propriedade” na sociedade capitalista, discordando da legitimidade do tipo penal, se ficar provado que ela subtraiu coisa alheia móvel, ela incorrerá nas penas do crime de furto. ATENÇÃO O caráter repressivo também costuma ser apontado como característica, mas é preciso mencionar que se trata de ramo que justamente tende a limitar o poder repressor do Estado, que, sem essa ciência, mostra-se ilimitado. Por isso, não concordamos com a perspectiva de ser um direito, em essência, sancionador. Sem desconsiderar o fato de a sanção penal ter centralidade, inclusive sendo esse o motivo de essa área ser referida como “Direito Penal”, como ficará mais claro nos próximos tópicos, sob uma perspectiva constitucional, trata-se de um direito que deve ser contentor do poder estatal, mesmo que esteja a ele referido. A sanção acompanha os fatos ilícitos, mas o direito aqui estudado tem por finalidade precípua estabelecer balizas ao poder punitivo. O QUE É O DIREITO PENAL? Assista ao vídeo para saber mais sobre o conceito e as características do Direito Penal. FONTES Já estudamos o que chamamos de Direito Penal. Agora precisamos refletir quais serão nossos “materiais de estudo”. Quando estudamos o tema das “fontes”, no Direito, queremos descobrir de onde emana, quais as suas referências gerais. Nesse sentido, temos: FONTES FORMAIS Podem ser imediatas e mediatas, que dizem respeito à forma como o Direito Penal se exterioriza — por isso também conhecidas como fontes de conhecimento. FONTES MATERIAIS Tema que nos provoca a pensar sobre qual órgão estatal é responsável pela matéria. A primeira fonte formal imediata do Direito Penal, e certamente a mais lembrada, é lei penal, aí incluídas as normas que estão no Código Penal e na legislação extravagante. Essa é uma disciplina importante, pois, como informa o princípio da legalidade (art. 5º, incisos II e XXXIX), apenas a lei pode criar infrações penais. javascript:void(0) javascript:void(0) ATENÇÃO Não se esqueça disto, que vamos apresentar melhor no tópico “Princípios”: por mais que alguém ache extremamente reprovável uma conduta, ela só poderá ser chamada de criminosa se, quando da conduta, o legislador a previa como infração penal. Também por isso não dizemos que a “analogia” não é fonte do Direito Penal, embora, como se verá adiante, seja admitida em determinados casos —porque é apenas a lei que poderá definir crime. Veja-se o seguinte exemplo concreto: EXEMPLO A capoeiragem deixou de ser considerada infração penal, não havendo mais a sua previsão legal — como havia no Código Penal da República, em 1890. Por isso, nenhuma roda de capoeira, atualmente, deve ser entendida como criminosa. Também como espécie de fonte formal, temos a Constituição, sendo sua fonte fundamental: considerando que vivemos em um Estado Democrático de Direito, a Constituição impõe que tanto a redação das leis formais como a forma como seus conceitos são interpretados estejam em harmonia com a sistemática constitucional. Por isso, desenvolveremos a ideia de um “Direito Penal Constitucional” em que se possa dar destaque às interpretações constitucionais das normas penais e que trabalharemos em item posterior. Outros exemplos de fontes formais imediatas são os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, que impõem disciplinas e inspiram formas de interpretação das normas penais. Podemos mencionar, ilustrativamente,as Regras de Bangkok, que tornaram mandatórias as reformas no que se refere ao cumprimento de pena por mulheres gestantes e mães, a exemplo do art. 14 da Lei n. 7.210/1984. O compromisso internacional com o tema motivou o legislador nacional a manifestar-se, no exemplo apontado, quanto à necessidade de, mesmo em situação de privação de liberdade, a mulher gestante ter acompanhamento médico, especialmente no “pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido”. Até a ratificação desse tratado, não havia norma expressa nesse sentido. Outro exemplo são os complementos normativos, que apontam o sentido de um conceito trazido por uma norma penal — classificada como norma penal em branco em sentido estrito —, porém emanam de outra esfera de poder, funcionando muitas vezes como requisito fundamental para a implementação de um tipo. É o caso da Portaria n. 344 da Anvisa, que tem sido atualizada constantemente e cumpre o papel de informar o que são “drogas”, para fins de aplicação da Lei n. 11.346/2006 — conhecida como “Lei de Drogas”. Veja que, para interpretar a conduta praticada por uma pessoa como “tráfico de drogas” (art. 33), é preciso saber se a substância que a pessoa estava portando — imagine-se um “pó de coloração branca” — é classificada como substância ilícita em nosso país, sob pena de não termos um ilícito penal. Se, após os testes da perícia, for apurado tratar-se de “cocaína”, e sendo essa uma das substâncias constantes na referida portaria, então temos um forte indício de prática classificada como criminosa. Se, de outro lado, a perícia constatar ser “farinha de trigo”, não haverá ilícito penal algum. Outras espécies dessas fontes são: JURISPRUDÊNCIA Como conjunto de entendimentos dos tribunais, informando a forma como dispositivos são aplicados ao longo do tempo. PRINCÍPIOS Serão estudados à frente e que têm uma importância central nesta disciplina, sendo referidos também como verdadeiras regras. Alguns autores classificam estas últimas como fontes formais mediatas. Os textos teóricos do tema, isto é, o que se produz academicamente sobre essa disciplina, são referidos comumente como “doutrina”. Tanto são fontes importantes, que estão sendo lidas por você neste momento, visando à sua formação nessa área. Referida como fonte formal mediata, toda produção em nível teórico, isto é, escritos em livros, artigos científicos, relatórios de pesquisa, entre outros, pode e deve ser fonte. EXEMPLO Outro modelo são os costumes, como normas de comportamento culturalmente localizadas, que sempre aparecem nesse âmbito da discussão das fontes do Direito, e irão impactar diretamente o que se refere à consideração de determinadas práticas como criminosas. É o caso do “adultério”, por exemplo, que foi crime previsto até 2005 e, na prática, apenas atingia mulheres. Os debates sobre as estruturas patriarcais que informavam essa prática do sistema de justiça criminal levaram à reforma do nosso Código, que deixou de prevê-la como infração penal. Ao falarmos em fonte material, queremos refletir sobre o órgão produtor das normas penais — por isso também são conhecidas como fontes de produção ou substanciais. No caso do Direito Penal, segundo art. 22, I, da CRFB/1988, a fonte material é a União. javascript:void(0) javascript:void(0) O constituinte trouxe apenas uma hipótese excepcional, no parágrafo único desse dispositivo, permitindo que, mediante lei complementar que autorize, Estados-membros legislem sobre questões específicas. Rogério Sanches Cunha (2020, p. 61) informa que por “específicas” devemos considerar “questões locais” que versem sobre as condições particulares do território de onde provêm. Todavia, essa é uma disposição que jamais foi efetivada, desde a promulgação da CRFB/1988, sendo a União o ente federativo que tem sido responsável pela elaboração das leis penais em geral. Discute-se, inclusive, se essa possibilidade excepcional violaria o princípio da isonomia, já que se estaria diferenciando a forma como dispositivos penais recaem, a depender da localidade aplicada. MISSÕES E FUNÇÕES Já sabemos o que estudaremos e onde encontraremos nossas fontes. Porém, para que serve esse ramo do Direito? O Direito Penal tem como função basilar limitar o exercício do poder punitivo. Sem essa ciência, o poder de punir, de que é titular o Estado, pode se dar contra qualquer conduta e da forma que o próprio soberano decidir. Imagine então que, se não tivéssemos um Código Penal, estaríamos ainda mais sujeitos aos arbítrios estatais. Daí a importância fundamental dessa matéria e de sua permanente relação com os princípios democráticos. Essa é uma função também referida como função garantia, dado ser, portanto, esse conjunto de normas que oferece a todas as pessoas em uma sociedade uma atuação democrática do Estado na resposta que dará em retribuição ao ato criminoso. Não obstante ser essa a sua função mais essencial, há também outras as quais precisam ser trabalhadas. Primeiro, aquelas que estarão aqui divididas em função declarada e não declarada. Temos como objetivos declarados do Direito Penal a chamada proteção de bens jurídicos (ROXIN, 1997, p. 50) — sendo esse um conceito que ainda vamos trabalhar. De modo geral, como nos ensina Juarez Cirino dos Santos (2014, p. 5), essa função estaria “na proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob ameaça da pena”. ATENÇÃO Como veremos no estudo do princípio da “intervenção mínima”, não são todos os bens que devem demandar a atenção desse ramo, apenas os mais importantes (proteção fragmentária), e tão somente quando nenhuma outra área do Direito se mostrar suficiente para tutelar dado interesse (proteção subsidiária). Além dessa, outras funções “declaradas” nesse grande bloco são: preservação da paz pública; e educativa. Vemos esta última em alguns casos de forma mais explícita que em outros. Por exemplo, costumamos ouvir sobre a importância de crimes ambientais para que a sociedade deixe de praticar infrações contra o meio ambiente. Essas funções devem também ser situadas em conjunto com uma das conhecidas funções não declaradas no Direito Penal, que a perspectiva crítica nos ensina. Nesse sentido, podemos dizer que o Direito Penal protege os interesses e necessidades de grupos sociais hegemônicos. Trata-se de uma reflexão que decorre da constatação da forma como o sistema penal, que implementa o conjunto de normas do Direito Penal, atua seletivamente. Dessa maneira, tem sido referida como função real. Como estratégia de controle social das sociedades contemporâneas, voltando-se apenas contra as pessoas mais vulneráveis, acaba instituindo o domínio de uma classe por outra, sendo garantia da desigualdade social em nosso país. Disso decorre também outro efeito, às vezes referido como função do Direito Penal, que é a chamada função simbólica, bastante presente no contexto atual. Vive-se, em todo o Ocidente, uma mudança na forma como o Estado tem se apresentado. Como Estado neoliberal, percebemos que o aparelho estatal tem distribuído menos garantias sociais, mas, em contrapartida, intensificado os investimentos em segurança pública. Aí reside a função simbólica, que é essa de dar a aparência, para a população em geral, de que os governantes estão atuando. Então, não obstante se esteja vivendo um período de sucateamento da saúde e da educação públicas, por exemplo, os governos instituídos eximem- se dessas responsabilidades, alegando que estão atuando no controle social e assim garantindo a manutenção nos cargos que ocupam. Essa função pode ser verificada em seus efeitos correlatos: aumento do encarceramento massivo e inflação legislativa, que funcionam no campo simbólico aparentando atuação dos poderes estatais, ainda que estejam desfalcando outras áreas importantes para a fruição da cidadania. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 2 Descrever o conceito de bem jurídico e o sentido do constitucionalismo para o saber jurídico-penalO marco das Constituições, no Ocidente, viabilizou a discussão sobre como os poderes políticos deveriam estar conformados pela vontade popular e por um sistema de direitos que consagre a dignidade humana e os direitos fundamentais. Como veremos neste e no próximo módulo, o Estado de Direito surge com o escopo de conter e vincular de forma jurídico- normativa o poder político, de modo que direitos, e no caso das ciências criminais especialmente a tutela da liberdade, possam se tornar a baliza do exercício da cidadania democrática. Neste módulo, veremos como o constitucionalismo tem influenciado o Direito Penal, analisando um dos grandes institutos que revelam esse giro, o bem jurídico, assim como pensaremos sobre o movimento do constitucionalismo nessa área, que construiu o chamado garantismo penal. Terminaremos estudando o papel do STF para a construção do Direito Penal, que organiza os dois blocos de debates anteriores de forma pragmática. BEM JURÍDICO-PENAL O conceito de “bem jurídico” foi um dos primeiros a ser lapidado tendo em vista um direito penal, segundo a acepção garantista, que trabalharemos no próximo módulo. A relação entre esse conceito e o princípio da lesividade, que também será trabalhado no próximo módulo com maior densidade, é inexorável. A partir da constatação de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, a última medida, quando nenhuma outra área se mostrar suficiente para o amparo das questões e direitos em choque (subsidiariedade) e apenas para defender as mais graves lesões aos mais importantes interesses (fragmentariedade), reflete-se sobre os critérios que poderiam ser fixados para a escolha de fatos com potencial para se transformarem em penalmente relevantes. Um deles é, justamente, o do bem jurídico. COMENTÁRIO Por isso, um bom conceito de bem jurídico é estruturante do saber jurídico penal, devendo servir como uma das justificativas necessárias para a decisão em torno da criminalização de uma conduta. Porém, antes de expô-lo, vale a nota de que vem perdendo gradativamente o seu substrato, dado que o “expansionismo penal” tem se assentado na ideia de que praticamente qualquer violação a direitos pode demandar atenção criminal. Retomando a construção desse conceito, perguntamos àquele que esteja em contato com este material: qualquer lesão deve poder configurar-se como criminosa? Quais seriam os critérios para a escolha dos interesses ou bens que poderiam ensejar a resposta criminal? Uma das respostas que se tem dado a essa questão é que apenas as violações que causem um impacto a direitos constitucionais deveriam se configurar dessa maneira, dada a centralidade normativa da Lei Maior em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, quando se fala em Direito Constitucional, aqueles interesses a que se possa atribuir um valor axiológico-normativo de direito fundamental poderiam ser bens juridicamente tuteláveis pelo Direito Penal. Veja-se que esse recorte é estruturante a essa área, já que implica uma eminente estratégia de redução ao poder de punir. Em outras palavras, a delimitação da intervenção estatal que subjaz à construção de um conceito de bem jurídico impõe que pensemos neste como instrumento de legitimidade do exercício do poder punitivo (TAVARES, 2003). A lesão a bem jurídico é requisito, portanto, da prática criminosa, e esse instituto também tem uma função garantidora e teleológico-sistemática, mantendo o alinhamento das previsões normativas com o princípio republicano. A partir do dever de enunciação de qual o bem jurídico tutelado por cada crime posto em um Estado Democrático, torna-se possível algum controle democrático do processo de criminalização. É fundamental impor ao legislativo que declare quais os interesses envolvidos em uma norma criminalizante, devendo apenas recorrer à norma penal em se tratando de normas que digam respeito a garantias constitucionais (no sentido axiológico normativo de direito fundamental); bem como ao executivo e judiciário o seu controle, podendo analisar casuisticamente a relevância e proporcionalidade de determinada previsão. EXEMPLO O homicídio é um crime previsto no art. 121 do Código Penal e cuja previsão está justificada, tendo em vista que protege um bem cuja centralidade é, praticamente, indiscutível: a vida. Trata-se de um crime que a tem, portanto, como bem jurídico tutelado e que está em completa sintonia com a Constituição, que ampara o direito sob diferentes vértices. EXEMPLO A lesão corporal, tipificada no art. 129 do CP, tem como bem jurídico a “integridade física”, outro interesse que é amplamente tutelado pela Constituição e essencialmente relacionado com a dignidade da pessoa humana. Por isso, também sempre foi considerado como legítimo e condizente com a ordem constitucional. Por se tratar de uma disciplina que sempre estará localizada em determinado tempo e espaço, e em um contexto cultural específico, também é preciso pontuar que os bens jurídicos se transformam ao longo do tempo, sobretudo quando alguma acepção passa a ser vista como oposta à matriz constitucional. A título ilustrativo, veja o que aconteceu com o capítulo dos conhecidos “crimes sexuais”: até a vigência da Lei n. 12.015/2009, era referido como um bloco de infrações que tutelava os “costumes”. A problemática em torno dessa enunciação reside na limitação do espectro que a liberdade sexual, como um direito fundamental e com sede constitucional, sofre. Também por se considerar que o estupro (art. 213, CP) seria um tipo que resguardaria os “costumes” e que havia — e ainda há! — uma imensa dificuldade em se reconhecer a prática no bojo de relações sexuais não consentidas entre pessoas, por exemplo, casadas. Embora nunca tenha havido qualquer menção expressa nesse sentido, ao longo da descrição da figura típica, segundo os “costumes”, relações sexuais maritais não poderiam tipificar infrações penais. Antes, eram postas como um dever, sobretudo, para as mulheres. Isso coibia em muito a denúncia de mulheres que eram vítimas de abusos sexuais por seus parceiros, devendo-se aqui considerar o quanto a redação da lei se afinava a essa ordem. A transformação legislativa deixou claro que o interesse protegido é o da liberdade, da dignidade sexual, em afeição ao amplo significado que a Constituição atribui aos direitos sexuais e reprodutivos. Esse movimento teve também como espectro dificultar, em tese, interpretações que se reduzam a moralismos conservadores e incondizentes com a centralidade da dignidade em nosso ordenamento. Por fim, vale notar que é também um dos principais pontos para a verificação da constitucionalidade de um crime, dimensão que dá sentido ao controle limitador ao poder punitivo mencionado. Como exemplo, o debate quanto à inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n. 11.343/2006, que será trabalhada em módulo posterior e que é objeto do RE 635659, visa também a compreender se o bem jurídico “saúde coletiva”, que é o que se diz amparar esse tipo penal, deve ser um bem jurídico criminalmente relevante e se o consumo de drogas, em nível individual, efetivamente tem o condão de o ameaçar. CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO PENAL As Constituições cumprem a função prioritária de implementar um conjunto de normas protetivas de direitos fundamentais, dotadas de supremacia, e que estruturam toda a ordem jurídico-normativa. Assim, essas Cartas “conferem à ordem estadual e aos atos dos poderes públicos medida e forma” (CANOTILHO, 2003, p. 245), consolidando as bases mínimas para um sistema de direitos democraticamente implicado. A vinculação, assumindo esse viés legitimador, passa a ser a medida democrática de qualquer um dos ramos do saber jurídico, que devem, em respeito à ordem axiomática das Constituições, ser sempre orientados pela proteção da dignidade humana e garantia dos direitos fundamentais. Esta é a condição dos direitos e garantias com sede constitucional em meio ao neoconstitucionalismo: deve-se agir de modoa dar força normativa a essas disposições, ultrapassando-se a superada visão de terem apenas força programática. Com relação aos conflitos de natureza criminal, a régua do constitucionalismo implementa um sistema ao qual se refere como garantismo penal, que nada mais é que a imersão da construção político-teórica do Estado de Direito no âmbito do Direito Penal. Tendo como grande ícone Luigi Ferrajoli (2006), difunde a ideia de um programa positivo de proteção integral dos direitos e especialmente das liberdades (BARATTA, 2011, p. 57-58). GARANTISMO Está interessado na limitação da violência punitiva e o faz a partir da matriz que estudamos agora: a constitucionalização desse saber jurídico. Assim, visa a vincular a totalidade das instituições que realizam o controle penal, a totalidade das normas, dos saberes e das categorias cognitivas em função dos direitos e garantias fundamentais que assentam nosso ordenamento como um sistema ancorado pela dignidade da pessoa humana. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DIREITO PENAL RELEMBRANDO Como vimos no tópico anterior, vivemos um modelo de organização constitucional que, ao considerar a máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais, autoriza a aplicação direta da Constituição. Essa disciplina é interessante para se pensar no saber jurídico-criminal, que tem as suas bases essenciais ancoradas no art. 5º da CRFB/1988. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional, tem um papel central na interpretação de dispositivos à luz dos interesses de nossa Carta, podendo trazer para aqueles que trabalham na área os limites e possibilidades dos dispositivos legais à luz dos interesses constitucionais. Vale mencionar, porém, que vivemos em um período de grande ativismo judicial, com o judiciário como um todo ampliando seu espectro de atuação política e, assim, violando o pacto democrático, sobremaneira no que tange à separação de poderes. Deve-se, neste ponto, assentar a relevância do debate em nível programático, resgatando a importância do STF na interpretação de normas penais como um todo, desde que visando a dar efetividade às balizas da dignidade da pessoa humana. Porém, também é importante receber com desconfiança um ativismo que olvide o fato de que se trata de uma instância sem representatividade democrática, posta a conhecida dificuldade contramajoritária dos seus membros. Como é sabido, os ministros do STF não são eleitos e, por esse motivo, não podem ser encarados como agentes que representem a vontade popular, tal como o é a agência legislativa, responsável pela elaboração das nossas leis. Embora ambas as instâncias estejam suscetíveis às vicissitudes do contexto político-econômico em que atuam, o que se quer com estas palavras é despertar atenção do estudante para a aparência de neutralidade da Corte, que deve ser sempre questionada. Relembrar a dificuldade contramajoritária e assentar que a Corte deve estar referida aos comandos constitucionais, que são o que verdadeiramente sustenta a sua função, é um dos caminhos necessários para se pensar em um órgão compromissado com asa diretrizes democráticas. COMENTÁRIO No que se refere ao controle de constitucionalidade, o STF já se manifestou em julgados importantíssimos na área estudada, muitas vezes recortando de normas penais previsões dessintonizadas com direitos fundamentais. Era o caso, por exemplo, do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei n. 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos). Esse dispositivo previa que qualquer pessoa apenada por um dos crimes elencados como hediondos deveria responder por uma pena, independentemente do seu valor, no regime integralmente fechado. No entanto, a individualização da pena e a progressão de regime são direitos fundamentais, inclusive com status de direito humano, visto comporem importantes acordos internacionais sobre o tema, que estavam feridos de pleno com essa disposição. Foi assim que o STF realizou o controle da norma e, no bojo do julgamento do Habeas Corpus (HC) 111840, julgou inconstitucional essa disposição. São muitos também os casos levados ao Tribunal questionando a constitucionalidade de alguns fatos criminosos, grande parte colocando em prova a sintonia das infrações com garantias fundamentais com sede constitucional. A ADPF 442, que até o momento está pendente de julgamento, é outro exemplo. Nela, a Corte deverá decidir sobre a constitucionalidade da criminalização do aborto, sendo um dos principais debates, há décadas, no campo jurídico. Discute-se diferentes garantias fundamentais das mulheres que praticam o aborto ilícito, assim como a ponderação com a expectativa de vida do feto em gestação. A importância da matéria tem incentivado o debate mundo afora, e diversos países, privilegiando os contornos constitucionais dos direitos envolvidos, têm chegado, mediante a atuação das Cortes, no resultado da descriminalização condicionada da prática. Por todo o exposto, é possível registrar a importância do STF em matéria de Direito Criminal, de modo a controlar as demais agências do sistema de justiça criminal a equalizarem os dispositivos legais com os mandados constitucionais, em respeito ao pacto democrático inaugurado desde 1988. Não obstante, deve-se reposicionar esse debate reconhecendo-se também os limites da Corte, composta por ministros não dotados de legitimidade democrática e que, portanto, devem sempre referenciar os contornos de sua atuação ao compromisso de dar efetividade aos direitos fundamentais. NEOCONSTITUCIONALISMO E A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO PENAL PELO STF Assista ao vídeo sobre a análise do neoconstitucionalismo e da interpretação do Direito Penal pelo STF à luz da Constituição. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 3 Identificar os princípios em espécie no Direito Penal desde uma perspectiva garantista FUNDAMENTOS A disciplina dos princípios, em qualquer ramo do Direito, emplaca-nos a necessidade de contribuir para a caracterização e a delimitação de uma área, a fim de entender a “lógica” e o sistema de coerências que aquele saber jurídico demanda. No campo do Direito Penal, alguns dos princípios, tais como o da intervenção mínima e da legalidade (entre vários outros), têm um significado político, remontando à própria história de surgimento da área e ao conteúdo dos temas “conceito” e “funções” do Direito Penal — vistos no módulo anterior. Como princípios, seguindo as lições próprias de Direito Constitucional, na clássica distinção com as “regras”, não têm um valor absoluto e, por isso, não estão sujeitos à regra do “tudo ou nada”. Antes, são mandados de otimização (ALEXY, 2005, p. 51-52) dotados de carga axiomática, estando sujeitos a ponderação. ATENÇÃO Vale notar que nossa Constituição atribuiu absoluta centralidade à matéria, reconhecendo sua força normativa e valorizando a sua importância no processo de aplicação do direito (PEREIRA, 2005), abrindo um campo próprio a partir do qual alguns princípios têm importância ainda mais essencial, quando comparados com (algumas) regras, dada a sua máxima efetividade. É em meio a esse (neo)constitucionalismo que a chamada “principiorragia” (STRECK, 2012) tem se espraiado, com nossos tribunais, cada vez mais, decidindo com base em moralismos, supostamente ancorados nos preceitos genéricos dos princípios, ultrapassando, em muitos casos, o conteúdo de normas de status variado. Embora seja essa a condição geral da matéria, não percebermos ser a racionalidade que impera no campo do Direito Penal, no qual, infelizmente, alguns dos mais básicos princípios que ancoram a dogmática aos preceitos democráticos vêm sendo esquecidos. Por isso, deixamos esta nota para que você reflita sobre a carga democrática que a centralidade dos princípios atribuiria à justiça criminal, tomando-a como uma lição prospectiva. Se o Direito Penal serve para limitar o poder de punir, então há um viés programático na disciplina dos princípios. Isso porque implementa um sistema de garantias emtorno da dignidade e da cidadania, por isso a maioria está prevista ao longo dos incisos do artigo 5º da CRFB/1988, que é núcleo da nossa Carta, revestindo-se de caráter de garantia fundamental. Isso é reflexo do compromisso internacional que nosso país assumiu, em diferentes acordos e tratados internacionais, de que a resposta criminal por um fato será sempre pautada pelo respeito aos direitos humanos. Esse é o caso, por exemplo, do Pacto de San José da Costa Rica, que define o conteúdo de diversos deles. Assim, é importante que o estudo dos princípios em espécie seja considerado conforme o panorama constitucional em que se inscreve, devendo ser notado o papel de vários incisos do artigo 5º da CRFB/1988, e como se relaciona especificamente com a agenda de um Direito Penal garantidor de direitos, harmonizado, portanto, com nosso Estado democrático e com a disciplina internacional dos direitos humanos. PRINCÍPIOS EM ESPÉCIE Entendidas as balizas a partir das quais esta matéria se estrutura, partimos para a exploração de alguns princípios em espécie, devendo-se anotar que esses são os princípios gerais do Direito Penal, sem que excluam princípios específicos de algumas matérias do campo, que serão retomados em material próprio. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Enunciado desde o século passado e colocado como uma das principais garantias para a limitação dos arbítrios do soberano por ícones do iluminismo clássico-jurídico, este é um princípio cujo conteúdo surge na Europa Central, ao longo da revolução burguesa. Trata-se de um mandado que é resposta pendular aos abusos do absolutismo e afirmação de uma nova ordem, o que já situa o seu caráter eminentemente limitador dos poderes soberanos. No Brasil, esse princípio vem sendo previsto desde a Constituição Política do Império (1824) e no Código Penal desde 1890. Atualmente, além de previsto no Código Penal e na Constituição, também consta na Declaração Universal dos Direitos do Homem e Convenção Americana sobre Direitos Humanos. É também por isso que é possível argumentar que o princípio da legalidade deve ser encarado, em vista da sua constitucionalização e relação com o conteúdo dos direitos humanos, como verdadeiro direito público subjetivo. A previsão legal está no artigo 1º do Código Penal e no artigo 5º, inciso XXXIX, da CRFB/1888: ART. 1º DO CP – NÃO HÁ CRIME SEM LEI ANTERIOR QUE O DEFINA. NÃO HÁ PENA SEM PRÉVIA COMINAÇÃO LEGAL. ART. 5º, INCISO XXXIX, DA CRFB/1988 – NÃO HÁ CRIME SEM LEI ANTERIOR QUE O DEFINA NEM PENA SEM PRÉVIA COMINAÇÃO LEGAL. Trata-se de um princípio relacionado ao interesse da segurança jurídica, porque nos fala sobre a necessidade de todos conhecermos previamente o que se considera crime e qual a sanção prevista para esses ilícitos. Isto é, garantir a previsibilidade da ação estatal, que passa a estar limitada aos termos enunciados pelas próprias leis que são resguardadas pela legitimidade democrática. Veja que isso demanda do nosso legislativo uma atuação precisa, ao redigir as normas penais, e do executivo e judiciário, uma atuação que não extrapole os próprios termos definidos, comprometendo todas as esferas de poder na realização desse direito. São, assim, violações frequentes a esse mandado as leis penais com redação aberta, exemplificativa, e o emprego de expressões ambíguas, entre outras que fragilizam a própria dimensão a partir da qual ele surge. Há quatro importantes decorrências do princípio da legalidade para caracterização das leis penais, que muitas vezes são tratadas como subespécies desse princípio e são descritas a seguir. A lei penal deve ser prévia (Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) Se a função do princípio da legalidade é garantir a previsibilidade do poder estatal, então alguém só pode responder por um ilícito penal (novatio legis incriminadora) ou então a qualquer medida restritiva de direitos (lex gravior) se a previsão da matéria existia antes da prática criminosa. Isso implica dizer que a lei penal é irretroativa quando prejudicar a pessoa acusada, exato teor de outro inciso do art. 5º da Constituição, o XL, segundo o qual “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. EXEMPLO O recente Pacote Anticrime (13.964/2019), que entrou em vigor em 2020, trouxe o crime do §2º do art. 17 ao Estatuto do Desarmamento (10.826/2013). A figura não tinha qualquer previsão anteriormente, e a matéria dos “agentes policiais disfarçados” há décadas era bastante controvertida, sendo até então encarada como “crime impossível”. Independentemente do debate, certo é que, por ter sido um novo crime (novatio legis incriminadora), só poderá incidir aos fatos praticados após a vigência da lei. Ainda referente à Lei n. 13.964/2019: houve diversas alterações promovidas em relação ao direito à “progressão de regime” que, regulado pelo art. 112 da Lei n. 7.210/1984, é o direito que toda pessoa encarcerada tem, havendo cumprido um tempo de pena e satisfeito os demais requisitos previstos em lei, de ser beneficiada por um regime de cumprimento de pena mais “brando”, isso é, menos restritivo à liberdade individual. De modo geral, com uma única exceção — que será trabalhada mais à frente —, a nova lei dificultou a obtenção do direito, aumentando o tempo necessário. Trata-se, assim, de uma alteração que não cria um ilícito, mas torna mais gravoso (lex gravior) o cumprimento de pena em geral. Por isso, como não existia quando da prática do crime, não tem incidência retroativa. Perceba como a irretroatividade da lei penal mais gravosa é uma decorrência do princípio da legalidade. Afinal, como a lei precisa ser prévia, como uma garantia limitadora do poder de punir, ela define os termos em que a resposta penal poderá se dar. Veja que, por se tratar de uma garantia da pessoa acusada, não deve voltar-se contra ela, sob pena de desvirtuar-se o seu conteúdo básico. Então, imagine que uma legislação tenha alterado determinada matéria, mas de forma a beneficiar o acusado, seja abolindo um crime (abolitio criminis), seja tornando menos gravosa a resposta penal (lex mitior). Nesses casos, a lei tem aplicação imediata, independentemente da data do fato criminoso. Por isso, não se esqueça: a lei penal é irretroativa em regra, aplicando-se apenas aos fatos posteriores a sua vigência, já que deve ser prévia à conduta criminosa. No entanto, quando for benéfica à pessoa acusada, poderá retroagir, atingindo os casos em que o fato tenha sido praticado antes da vigência legal. Recorde-se, então, do caso da descriminalização do “adultério”, em 2005 (abolitio criminis), que foi comentada no módulo anterior. Por ser uma alteração que beneficia a pessoa acusada, sendo essa a própria função do Direito Penal — implementar um sistema de garantias que limita o poder de punir —, todas as ações penais que versaram sobre esse fato foram extintas, inclusive aquelas que versavam sobre práticas anteriores àquele ano da mudança. Como mencionado há alguns parágrafos, o Pacote Anticrime trouxe um único afrouxamento para a obtenção da progressão de regime, apenas na hipótese específica de crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça (art. 112, I, LEP), reduzindo de 1/6 para 16% o tempo mínimo necessário de cumprimento de pena para a fruição do direito. Sendo esse o caso, há também aplicabilidade imediata da nova lei, já que a alteração beneficia o agente. A lei penal deve ser escrita (Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta) A segunda decorrência do princípio nos diz que apenas as normas escritas, públicas e gerais podem provocar efeitos penais. O QUE ISSO QUER DIZER? Isso quer dizer que os costumes não podem ser fonte de criminalização de condutas, dado que apenas as leis penais o são. Assim, embora desempenhem função integrativa, não se pode imputar uma pessoa criminalmente por ter cometido um ato não previsto em norma penal mas que contrarie os costumes. Não esqueça: é a lei que delimita a resposta penal. A lei penal deve ser certaComo função garantia, o princípio da legalidade demanda que as leis sejam determinadas e necessárias, isto é, que não sejam eivadas de termos imprecisos, vagos, expressões abertas a ponto de gerar insegurança jurídica. Afinal de contas, trata-se do ramo de direito mais oneroso à dignidade humana, já que implica violações mais graves, pela ameaça do cárcere, aos direitos humanos. Esse efeito também é chamado de taxatividade da lei penal. EXEMPLO Vejamos o caso de um crime trabalhado neste tópico, o recém-criado §2º do art. 17 do Estatuto do Desarmamento (10.826/2013). Como requisito para a configuração típica, o artigo fala em “elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente”. Critica-se esse artigo, justamente, por deixar a cargo da discricionariedade do julgador a interpretação do que seria “razoável”, expressão que em si carrega uma imensa indeterminação. Esse tipo de expressão, por afeto ao princípio da legalidade, que é mandado fundamental da ordem democrática, deve a todo custo ser evitada. A decorrência do princípio da taxatividade é justamente a de que a lei possa ser o mais precisa possível. A lei penal deve ser estrita O último efeito, muito relacionado ao anterior, torna mandatórios, para efeitos de responsabilização criminal, termos expressos na lei. Sabemos que, havendo uma lacuna legislativa, em qualquer outra área do Direito, uma das possíveis técnicas é a aplicação analógica a leis e fatos semelhantes. No entanto, no Direito Penal, é impossível que haja uma inovação na interpretação da lei, quando isso implicar um prejuízo para o réu. É o brocado bastante conhecido da “vedação da analogia in malam partem”. Se a resposta do Estado, por meio do poder punitivo, só cabe quando houver uma lei prévia, escrita, certa e estrita, qualquer lacuna deve fazer presumir que o legislativo não deu relevância penal à questão. Porém, não se esqueça: trata-se de uma garantia, por isso, o contrário não é admitido. Aceita-se a analogia em uma hipótese específica: quando beneficiar o réu. É referida como analogia in bonan partem. Um bom exemplo é o caso das escusas absolutórias do Código Penal para os crimes contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça, nos termos do art. 181 do Código Penal. Então, imagine que uma pessoa subtraia um bem (furto) do próprio cônjuge. Nesse caso, poderá haver a incidência dessa isenção de pena, o que, em termos práticos, fará com que a pessoa não receba a punição (excludente de punibilidade). Porém, veja que o artigo menciona “cônjuge”, não “companheiro”, isto é, pessoa casada, mas não em união estável, nos termos delimitados pelo Código Civil. Podemos depreender que está um absorvido pelo outro, inclusive considerando a equiparação feita pelo STF entre cônjuges e companheiros (RE 878.694)? Se esse raciocínio estivesse sendo empregado para o caso de “criar” uma hipótese criminosa não expressamente prevista, isto é, se o ilícito penal demandasse, para ser caracterizado, da qualidade “cônjuge”, não seria possível aplicar a analogia para criminalizar um “companheiro”. Isso porque, para a finalidade incriminadora, a analogia está vedada, decorrência do princípio da legalidade. No entanto, para o fim em debate, é possível o emprego da analogia, já que se trata de uma causa que eximirá da responsabilidade penal aquele que a pratique, isto é, que beneficie a pessoa acusada. ATENÇÃO Uma última ressalva, porém, deve ser feita. Embora tenha sido acatada a tese da possibilidade da analogia in bonan partem, os tribunais têm exigido, para fins de reconhecimento da analogia in bonan partem, ampla fundamentação, demandando da parte que a alega a prova da relação das hipóteses aproximadas. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO DIREITO PENAL Veja este vídeo sobre a análise dos diversos aspectos da legalidade do Direito Penal. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA (ÚLTIMA RATIO) Trata-se de outro princípio criado pela burguesia para conter os abusos criados no absolutismo, muito trabalhado também pelo iluminismo clássico-jurídico e que vem sendo bastante debatido na atualidade, em reação ao chamado “expansionismo penal”. Para a sua construção teórica, temos que compreender a seguinte premissa: o Direito Penal conduz à intervenção mais radical na liberdade do indivíduo, já que trabalha com a ameaça de uma pena no sentido aflitivo. Os danos provocados pelo encarceramento de um sujeito, em nível individual e coletivo são, muitas vezes, irrecuperáveis, por isso todo cuidado deve ser tomado para que essa ameaça seja absolutamente excepcional (ultima ratio). Propõe-se, com a intervenção mínima, que o Estado não recorra ao Direito Penal se houver a possibilidade de garantir uma proteção suficiente ao bem tutelado por meio de outros instrumentos jurídicos, isto é, não penais. ATENÇÃO Apenas quando houver uma urgente necessidade, quando nenhum outro meio puder amparar aquela violação (subsidiariedade), e sendo aquele um bem jurídico de suma relevância (fragmentariedade), é que aquele fato terá relevância criminal. Veja o seguinte exemplo: o descumprimento de um contrato. Será que o mero inadimplemento poderia constituir crime? Seria razoável ameaçar alguém com uma pena caso não cumprisse com um acordo privado? Por assim não entender o legislador, é que o mero descumprimento contratual enseja a responsabilização civil em regra, mas não criminal. Esse é um princípio que não tem previsão expressa na Constituição, embora seja reconhecido de forma uníssona, tanto pela doutrina como pela jurisprudência. E vale ressaltar: é um dos que estão em diálogo mais direto com nosso Estado Democrático de Direito. Como apontado nos parágrafos anteriores, desse princípio subtraem-se outros dois. SUBSIDIARIEDADE FRAGMENTARIEDADE SUBSIDIARIEDADE Entender o Direito Penal como remédio sancionador extremo implica dizer que a sua atuação deve estar restrita às hipóteses em que outro remédio não se mostrar eficiente, isto é, as respostas que o Direito Civil e o Administrativo, por exemplo, podem oferecer. FRAGMENTARIEDADE Impõe uma visão onicompreensiva do Direito Penal. De acordo com esse princípio, deve haver uma seleção dos bens jurídicos ofendidos a serem protegidos e das formas de ofensa possíveis, devendo apenas as ofensas mais gravosas receberem o status de infração penal. Esse é um princípio em constante discussão, já que vivemos em um período de expansão penal, com a edição recorrente de leis penais que têm tornado quase qualquer lesão criminosa. O Brasil é um dos países com maior número de condutas criminosas reconhecidas pelas leis penais. Só no Código Penal, são mais de trezentos crimes e, certamente, com o conjunto de legislações extravagantes, esse total deve superar o número de mil infrações penais. Será que todas essas condutas reconhecidas como infrações penais mereciam a tutela desse ramo do Direito ou será que algumas delas poderiam ser, inclusive de forma mais harmônica, solucionadas exclusivamente em outras áreas? Um breve passeio pela Lei de Contravenções Penais é suficiente para que se constate que há violações de conteúdo irrisório reconhecidas como criminalmente relevantes, que violariam o postulado da intervenção mínima nas suas duplas dimensões, fragmentariedade e subsidiariedade. Por isso, é fundamental debater a que responde e a que interesses atende essa expansão penal. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE (OU OFENSIVIDADE) Afeto ao princípio anterior, o princípio da lesividade tem previsão constitucional no art. 5º, inciso XXXV, da CRFB/1988. Na área criminal, esse princípio nos diz que apenas uma ofensa ou ameaça de ofensa pode constituir crime, sendo, portanto, a ofensividade exigência constitucional de legitimidade do ilícito. Trata-se de um princípio dirigido, especialmente, a duas partes: Ao legislador Que não pode tornar típicas condutas que nem sequer ameacem de ofensa algum bem jurídico — lembrando, apenas os mais relevantes e quando a intervenção criminal for a ultimaratio; Ao intérprete Que é quem deverá verificar se o caso concreto apresenta essa lesão ou ameaça de lesão ao bem protegido por certo crime. Esse princípio dá ensejo a algumas importantes proibições, que deveriam balizar a área: i) Proibição da criminalização de atitudes internas, tais como ideias, convicções, desejos, aspirações, sentimentos. ii) Proibição da criminalização de condutas que não excedam o âmbito do próprio autor (por exemplo: autolesão; tentativa de suicídio). iii) Proibição da criminalização de estados ou condições existenciais. iv) Proibição da criminalização de condutas que não lesionem bem jurídico. Veja como seria absolutamente arbitrário sujeitar uma pessoa às sanções penais por um ato nem sequer iniciado, já que qualquer pessoa tem o direito de arrepender-se. EXEMPLO Um dos mais clássicos é o art. 306 da Lei n. 9.503/1997 (CTB). Veja que o crime antecipa a ofensividade, visto que, se o condutor, vamos supor, atropelar alguém, incorrerá em outra prática (uma lesão corporal por exemplo); aqui, o que se está definindo como crime é o mero ato de dirigir tendo feito uso de substância entorpecente, independentemente da ocorrência de qualquer efetiva ofensa. Aqueles que advogam pela constitucionalidade desse dispositivo o fazem dizendo que não se atenta ao princípio da lesividade, visto implicar clara “ameaça a ofensa” de bem jurídico. A danosidade das condutas decorrentes desse ato seria de tamanha gravidade que justificaria a antecipação da ameaça penal. Não obstante, há aqueles que discutem a constitucionalidade do dispositivo e/ou propõem uma interpretação constitucional desse crime, exigindo que, para a resposta criminal acontecer, deve a acusação comprovar ao menos essa ameaça. EXEMPLO Imagine se a pessoa for flagrada na condução em uma estrada deserta, sem que nenhum ser (humano ou não humano) estivesse próximo e sem que houvesse alguma propriedade privada contígua. Havendo algum acidente, provavelmente aquela ameaça se esgotaria ao campo da ofensa a direito próprio, que não tem relevância criminal segundo as balizas desse princípio. Essa também é uma discussão bastante afeta ao tipo do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas). Veja que o legislador justifica o crime de “posse para consumo pessoal”, que está insculpido no dispositivo citado, afirmando tutelar a “saúde coletiva”, não a saúde individual. O discurso legitimador desse ilícito afirma que o consumo próprio causaria danos que extrapolariam o indivíduo, impactando, por exemplo, o sistema de saúde coletiva e a dinâmica de repressão ao varejo ilícito de drogas. Não obstante, trata-se de lesões indemonstráveis em nível prático, e cuja presunção pode ser indicada como inconstitucional, sendo esse um dos motivos pelos quais o crime vem tendo a sua constitucionalidade debatida pelo STF, no bojo do RE 635659, que ainda pende de julgamento. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (BAGATELA) Decorrência do princípio da lesividade e intimamente relacionado com o princípio da intervenção mínima, o critério da insignificância inaugura uma técnica de interpretação da lei aos casos concretos, com vistas a afastar a incidência da norma penal nas hipóteses em que a conduta não afete o bem jurídico protegido de forma suficientemente relevante. O princípio surge para corrigir a discrepância entre o “abstrato” (norma penal) e o concreto (caso analisado) e para dirimir a divergência entre o direito formal e o material. Instrumento de interpretação restritiva do Direito Penal, implica verdadeira política criminal, podendo afastar a responsabilização criminal quando demonstrado que aquilo que justifica a própria ameaça penal, isto é, a importância do bem protegido, não foi violado de forma significante. EXEMPLO Imagine, então, o seguinte exemplo: um jovem subtrai, de uma grande loja de departamento, uma bala cujo valor foi calculado em R$1,00 (um real). Veja, essa seria uma conduta criminosa em tese, visto satisfazer os requisitos do art. 155 do Código Penal, que viemos estudando neste conteúdo. Essa pessoa, dolosamente, subtraiu coisa alheia móvel (a bala). No entanto, seria economicamente razoável mobilizar-se todo aparato do sistema de justiça criminal para amparar essa lesão, ínfima para a vítima (a loja de departamento)? O pagamento de servidores do Tribunal e até, havendo prisão, da instituição penitenciária, entre outros ônus, que superariam em muito o valor do bem furtado e a relevância prática dessa lesão não justificaria a mobilização de toda a burocracia estatal naquele caso concreto. Sem falar em todos os danos provocados ao agente e seus familiares, que são inestimáveis. Considerando essas hipóteses é que o princípio da bagatela vem há muito sendo debatido pelos tribunais, que têm considerado o seu reconhecimento como “causa supralegal de exclusão da tipicidade”, e enfrentado bastante dificuldade na fixação de critérios para a determinação da “razoabilidade” da lesão. Considerando esse fim, o STJ tem proposto quatro pressupostos para o reconhecimento do princípio da insignificância, quais sejam: I) Mínima ofensividade da conduta do agente. II) Nenhuma periculosidade social da ação. III) Reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. IV) Inexpressividade da lesão jurídica provocada. Vale notar que se trata de critérios fixados jurisprudencialmente, que em si não comportam conceitos rígidos e demandam uma análise bastante casuísta e precária, já que carecem da legitimidade democrática que apenas as leis apresentam. Porém, um dos principais fatores de afastamento da causa, em âmbito nacional, tem sido o reconhecimento de que a prática criminosa foi cometida com violência e grave ameaça, caso em que, têm dito os tribunais, a expressão dos danos à saúde (amplamente reconhecida) impossibilita a análise da própria insignificância. ATENÇÃO Salienta-se que, quanto ao tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao examinar conjuntamente os HC n. 123.108/MG, 123.533/SP e 123.734/MG, todos de relatoria do ministro Roberto Barroso, definiu que a incidência do princípio da bagatela deve ser feita caso a caso. PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL (INTRANSCENDÊNCIA DA PENA) Muito estudado no campo da “teoria da pena”, esse é um princípio com sede constitucional, especificamente no art. 5º, XLV da CRFB/1988. Também conectado ao pressuposto que constrói o princípio da intervenção mínima, temos aqui um mandado que parte da premissa de que a responsabilização criminal deve ser a ultima ratio. Por isso, apenas os responsáveis diretos pelas lesões ou ameaças a lesões, isto é, autores (e partícipes) dos crimes, devem ser criminalmente responsabilizados pelas infrações penais que cometam, sem que isso exclua a possibilidade de ascendentes e descendentes arcarem com a responsabilização civil dos danos. NENHUMA PENA PASSARÁ DA PESSOA DO CONDENADO, PODENDO A OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO E A DECRETAÇÃO DO PERDIMENTO DE BENS SER, NOS TERMOS DA LEI, ESTENDIDAS AOS SUCESSORES E CONTRA ELES EXECUTADAS, ATÉ O LIMITE DO VALOR DO PATRIMÔNIO TRANSFERIDO. Art. 5º, XLV da CRFB/1988. Com base nesse princípio, o Código Penal, em seu artigo 107, I, prevê que a morte do autor do fato criminoso implica a extinção da punibilidade da conduta. Não obstante, sabemos que alguns dos efeitos da pena acabam espraiando-se para além da pessoa autora do crime. Podemos questionar a efetividade desse princípio em um país como o nosso, onde a manutenção de uma pessoa presa é feita em grande parte pelos seus familiares, que acabam recebendo via reflexa os efeitos de uma pena privativa de liberdade, já que, além de passarem também pelos processos de estigma, comumente arcam com o fornecimento de alimentos e itens básicos de higiene pessoal não supridos pelas penitenciárias nacionais, sendo recorrentes as denúncias de revista vexatória, condições indignas de espera, entre outras. Isso sem contar os danos para família, filhos e dependentes em geral, que noscolocam a necessidade de pautar de forma mais responsável a incidência do princípio da ultima ratio, para que se evite, por ricochete, a lesão a esse princípio reitor. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE Também referido ao marco do iluminismo clássico, o princípio da humanidade foi um dos motivadores dos reflexos da revolução burguesa no campo da dogmática penal. A cena das torturas, dos trabalhos forçados, dos suplícios, entre outras violações em praça pública, próprias do absolutismo, incentivaram a construção de um programa de cumprimento de pena balizado pela sistemática dos direitos e garantias fundamentais, mais uma vez importando na limitação do poder soberano. Esse princípio ganha especial projeção após a vigência da CRFB/1988, que torna central a proteção da dignidade da pessoa humana, desde o seu art. 1º, e prevê expressamente a humanidade no art. 5º, incisos III, XLVII e XLIX. Assim, estão impedidas a pena de morte — com a ressalva específica da hipótese da guerra (art. 84, XIX, CRFB/1988) —, as de caráter perpétuo, bem como de trabalho forçado, banimento e as cruéis. Também está vedada a tortura, assim como o tratamento degradante, e está garantido o direito à integridade física e moral da pessoa em condição de cárcere. Trata-se aqui da importação de direitos que já estavam consagrados pela comunidade internacional, previstos, por exemplo, na Convenção Americana de Direitos Humanos. Uma discussão que precisa ser feita é se a autoevidência das condições dos cárceres em todo o país faz valer o compromisso com esse princípio. O sistema prisional, em todo o mundo, é talvez o principal problema de direitos humanos que enfrentamos. Considerando isso, o STF, no bojo do julgamento do RE 592.591/RS e da ADPF 347, referiu-se ao sistema penitenciário como “Estado de Coisas Inconstitucional”. Nessa importante sessão, a Corte atestou a crise do sistema prisional, considerando a naturalização da violação de direitos fundamentais da população aprisionada. Deixamos para você a nota desse julgado para que reflita se a perpetuação do cárcere, nos modelos que conhecemos em nosso país, está em alguma medida sintonizada com o mandado do princípio da humanidade, condição precípua de qualquer Estado Democrático de Direito. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE No campo do Direito Penal, o conhecido princípio da proporcionalidade se expressa em um juízo de ponderação acerca da relação existente entre o bem lesionado ou posto em perigo e o bem de que alguém pode ter sido privado, para assim debater se a responsabilidade criminal deve efetivamente ser acionada e, em caso positivo, como deve ser apresentada. Também é um princípio subdividido em outros três, quais sejam: NECESSIDADE Que verifica se outros ramos tutelam aquela violação (comunica com a intervenção mínima); ADEQUAÇÃO Em que se indaga se realiza o fim de proteção do bem jurídico, se é meio útil, eficaz e idôneo para enfrentar aquele problema social; PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO Quando se perquire se a pena e o tipo são proporcionais em relação à natureza e extensão da lesão abstrata e/ou concreta do bem jurídico. Com base nesses critérios, podemos verificar a sua incidência tanto para a elaboração de normas penais – dado que o legislador precisará pautar-se por essa análise quando da decisão acerca da proporcionalidade (ou não) da existência de um dado crime – como também se dirige aos aplicadores do Direito, já que também cabe ao judiciário fazer uma avaliação casuística desse mandado. Embora não se esgote nesse campo, é muito comum que se debata o princípio a partir da análise das sanções previstas para determinados fatos criminosos, assim como das causas de extinção da punibilidade, o que, no geral, faz despertar a costumaz incongruência nessa área. A título ilustrativo, veja-se o art. 34 da Lei n. 9.249/1995, que prevê a extinção da punibilidade em crimes contra o sistema tributário caso o valor seja devolvido antes do recebimento da denúncia. Não há um dispositivo próximo para os outros crimes, cometidos pelas pessoas de grupos não hegemônicos. Pelo contrário: o grande indexador do encarceramento masculino no Brasil são os delitos patrimoniais sem violência ou grave ameaça e que atingem bens de valores ínfimos. Isto é, a imensa maioria de homens presos reponde por fatos que, se fossem albergados por causa semelhante, nem sequer dariam ensejo à sanção penal. Deixa-se, portanto, a seguinte reflexão: agiu o legislador com proporcionalidade ao prever a causa para os crimes contra o sistema financeiro sem que haja equivalente para crimes de natureza similar no Código Penal? Dessa forma, esse poder estaria perpetuando as estruturas de vantagens sistêmicas em nossa sociedade, dado serem os primeiros crimes de colarinho- branco e os segundos, cometidos pelas classes mais subalternizadas? Fica a nota, nesse princípio, então, para que se revisite a temática das funções não declaradas da pena. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITO PENAL Os conceitos que estudamos neste conteúdo nos conduzem para a construção de uma dogmática jurídico-penal estabelecida em razão dos postulados de um Estado Democrático de Direito. Torna-se, nesse sentido, mandatório que categorias, institutos, preceitos, enfim, que todo o Direito Penal, que passa a ser estudado por você, seja desenvolvido em harmonia com o regime democrático, que tem na primazia do princípio da dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º III, da CRFB/1988, âncora fundamental. Nesse sentido, o giro promovido pelo regime democrático, que em tese superou o autoritarismo vigente no regime de ditadura civil militar anterior, mudou o paradigma de relação entre Estado e sociedade. O marco da CRFB/1988 é também o da tutela intransigente dos direitos fundamentais e, assim, o Direito Penal no Estado Democrático de Direito é fundamentalmente limitado, restrito pelas garantias fundamentais, consideradas pressupostos irrenunciáveis e essenciais (TAVARES, 2012). Portanto, em um Estado de Direito, o poder estatal está limitado e vinculado a esse conjunto de direitos, por meio de uma agenda axiológica, teleológica, normativa (formal e material), que assume a supremacia constitucional. Assim também deve ser estruturado o Direito Penal que, em um Estado Constitucional de Direito, deve ser mínimo e voltado para a máxima efetividade dos direitos. VOCÊ SABIA O estudo de diversos temas que se seguirão a este, sobretudo aqueles abordados pelo nosso Código Penal — que data de 1940 e que, por isso, está localizado politicamente em outro paradigma —, levará à reflexão quanto à adesão dos preceitos democráticos à construção teórica e prática do Direito Penal. Para muito além de responder a essa indagação de forma pronta e acabada, incentivamos a construção de um Direito Penal fincado na teoria dos direitos fundamentais e que, por isso, esteja referido à função de limitação do poder de punir. Um dos possíveis caminhos pode ser, dentro daquilo que já estudamos, um compromisso de realização dos princípios limitadores. Nesse sentido, o parâmetro básico para o estudo e implementação do Direito Penal deve ser a defesa inegociável das garantias fundamentais dos indivíduos em conflito com a lei penal. A agenda da implementação de um país onde o Direito Penal possa ser informado pela legalidade, intervenção mínima, lesividade, intranscendência, proporcionalidade e humanidade deve ser, urgentemente, entendida como parte do compromisso de implementação de um Estado Democrático de Direito no Brasil. VERIFICANDO O APRENDIZADO CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Debatemos as funções e o conceito de Direito Penal, assim como suas fontes, desde um paradigma garantista, isto é, comprometido com a garantia dos direitos fundamentais e, por isso, em alinhamento com o (neo)constitucionalismo. Ponto que se espraiou pelos três módulos, a máxima efetividade das normas constitucionais deve ser baliza fundamental da teoria e da prática nas ciências criminais.Duas são as disciplinas que dão destaque a essa reflexão e que foram exploradas neste material: o conceito de bem jurídico e o campo dos princípios em matéria criminal. Com esse arcabouço, vale pensar na construção do saber e da prática jurídico-penais privilegiando-se os mecanismos de limitação do poder punitivo e tendo em vista a dignidade da pessoa humana, compromisso perene que devemos assumir com o pacto democrático. PODCAST O professor encerra o assunto fazendo um resumo sobre o que você viu até aqui. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS ALEXY, R. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. BATISTA, N. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BARATTA, A. La politica cíiminal y el derecho penal de la constitución. In: FRANCO, A. 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Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. TAVARES, J. A racionalidade, o Direito Penal e o poder de punir: os limites da intervenção penal no estado democrático. In: ZILIO, J. L.; BOZZA, F. S. (org.). Estudos críticos sobre o sistema penal. Curitiba: LedZe, 2012. ZAFFARONI, E. R. et al. Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, p. 131, 2003. v. 1. ZAFFARONI, E. R. Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2002. EXPLORE+ Procure na internet a Entrevista com Luigi Ferrajoli, com Luigi Ferrajoli, José Antonio Siqueira Pontes e Pasquale Bronzo. Para conhecer um pouco mais o debate sobre seletividade e sistema penal, assista à Aula aberta | Seletividade racial e sistema de justiça criminal, no canal do IBCCRIM, no YouTube. Veja como o professor Davi Tangerino constrói a disciplina do “bem jurídico” no livro que é fruto de sua tese: Culpabilidade, 2017. Atente para a forma como Vera Andrade reflete sobre o garantismo neste artigo: Construção e identidade da dogmática penal: do garantismo prometido ao garantismo prisioneiro, publicado em Estudos Jurídicos e Políticos, v. 29, n. 57, p. 237-260, 2008. Assista ao documentário Sem Pena, disponível no canal do IDDD, no YouTube. Veja como o ativismo judicial é um tema para se debater democraticamente em: Poder Judiciário, ativismo judicial e democracia, de Gisele Cittadino, publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos, v. 2, n. 3, p. 135-144, 2002. Veja como democracia e Direito Penal são construídos no evento gravado: A judicialização da política (e vice-versa) | Alysson Mascaro, Thula Pires e Luiz Eduardo Soares, disponível no Canal TV Boitempo, no YouTube. Assista ao documentário Tortura e encarceramento em massa no Brasil, disponível no canal Pastoral Carcerária no YouTube CONTEUDISTA Luciana Costa Fernandes CURRÍCULO LATTES javascript:void(0); javascript:void(0);
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