Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ISSN 21774080 98 Investigação, 15(4):98-102, 2016 QUAL O SEU DIAGNÓSTICO? Ana Clara Castro Giraldi¹*; Larissa Tinarelli do Carmo¹; Victor José Vieira Rossetto²; Joana Zafalon Ferreira²; Juliana Giantomassi Machado²; Stephanie Fernandez²; Carla Daniela Dan De Nardo²; Rosana da Cruz Lino Salvador-Bernabé²; Talita Floering Breda Souza²; André Luiz Baptista Galvão² ¹Discentes do Curso de Medicina Veterinária do Centro Universitário de Rio Preto – UNIRP, São José do Rio Preto-SP ²Docentes do do Curso de Medicina Veterinária do Centro Universitário de Rio Preto – UNIRP, São José do Rio Preto-SP *autor para correspondência: ana.clara.giraldi@hotmail.com PRÉVIA Atendeu-se em São José do Rio Preto uma cadela de 4 anos de idade, sem raça definida e 19,3 kg de peso corpóreo com histórico de hematúria. CASO CLÍNICO Atendeu-se no Hospital Veterinário “Dr. Halim Atique” em São José do Rio Preto um cão, fêmea, de quatro anos de idade, sem raça definida e 19,3 kg. Na ocasião, foi relatado pelo proprietário a presença de hematúria com inicio há cerca de quatro meses antes do atendimento. O cão possuía como dieta ração comercial e, ocasionalmente, comida caseira, incluindo carnes e/ou produtos cárneos sempre cozidos. Além disso, segundo o proprietário, o animal não possuía livre acesso à rua, porém, eventualmente apresentava contato com sapos, lagartos e outros animais selvagens que, ocasionalmente, entravam na residência, devido à proximidade da mesma com um bosque anexo. A paciente foi submetida ao exame físico e coleta de material biológico para os exames laboratoriais. Ao exame físico geral não foram evidencidas anormalidades. Foi realizado hemograma e exames bioquímicos sanguíneos. A urinálise foi realizada a partir de cistocentese, constatando-se no sedimento urinário por microscopia de luz, ovos elípticos, castanhos e com casca espessa (Figura 01). Os exames laboratoriais da primeira avaliação da paciente estão listadas nas tabelas 1 e 2. Investigação, 15(4):98-102, 2016 ISSN 21774080 99 Investigação, 15(4):98-102, 2016 Figura 1. Sedimento urinário por microscopia de luz, observa-se ovos elípticos, castanhos e com casca espessa (Laboratório Clínico- Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique” UNIRP, 2016). Tabela 1. Perfil hematológico e bioquímico sérico da primeira avaliação da paciente (Laboratório Clínico- Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique” UNIRP, 2016). Parâmetro Resultado Valor de referência* Hemácias (/µL) 9.180.000 5.500.000 a 8.500.000 Hematócrito (%) 58 37 a 55 Hemoglobina (g/dL) 21,6 12 a 18 Volume Corpuscular Médio (µ³) 63,0 60 a 70 CHCM (%) 37,2 31 a 34 Leucócitos (/µL) 10.200 6.000 a 18.000 Basófilos (%) 0 0 a 1 Eosinófilos (%) 6 2 a 10 Neutrófilos segmentados (%) 76 60 a 77 Neutrófilos bastonetes (%) 0 0 a 3 Linfócitos (%) 15 12 a 30 Monócitos (%) 3 3 a 10 Plaquetas (/µL) 303.000 180.000 a 400.000 Proteína Plasmática Total (gL/dL) 8,0 5,8 a 7,9 Creatinina Sérica (mg/dL) 1,32 0,5 a 1,5 *Laboratório Clínico- Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique” UNIRP, 2016. Tabela 2. Urinálise da primeira avaliação da paciente (Laboratório Clínico- Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique” UNIRP, 2016). Parâmetro Coloração Amarelo Ouro Odor Característico Aspecto Turvo Densidade 1,026 pH 7,5 Proteína +++ Pigmentos Biliares Negativo Urobilinogênio Normal Cetona Negativo Glicose Negativo Sangue Oculto ++ Nitritos Negativo Sedimento Hemáceas +++; Bactérias +; Leucócitos +; Presença de ovos elípticos, castanhos e com casca espessa. A paciente foi encaminhada para a realização do exame ultrassonográfico abdominal, no qual foram visibilizadas estruturas hiperecóicas arredondadas (anelares) e cilíndricas no interior do rim direito, respectivamente, aos cortes transversais e longitudinais, além de perda de definição do parênquima renal e arquitetura distorcida (Figura 2). As estruturas arredondadas apresentavam uma fina camada externa hiperecóica e centro hipoecóico. Não foram verificadas outras alterações nos demais órgãos abdominais e/ou rim esquerdo. Figura 2. Estruturas arredondadas anelares (setas) ao corte transversal e perda de definição do parênquima e arquite- tura distorcida do rim direito (Setor de Diagnóstico por Imagem/Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique”, UNIRP, 2016). 1. Qual o seu diagnóstico? 2. Qual a patogênese do agente causal? 3. Quais são os achados clínicos mais comuns? 4. Quais os diagnósticos diferenciais? 5. Quais exames complementares poderiam ser solicitados? 6. Qual o tratamento indicado? 7. Quais as considerações com a saúde pública? ISSN 21774080 100 Investigação, 15(4):98-102, 2016 DISCUSSÃO 1. Qual o seu diagnóstico? Baseado nos sinais clínicos e exames complementares confirmou-se a infecção pelo helminto Dioctophyme renale (MILANELO et al. 2009), o qual pertence à superfamília Dioctophymoidea e classe Nematoda (BOWMAN, 2010). Os parasitas adultos vivem no rim e gradualmente consomem o parênquima renal, remanescendo somente a cápsula renal (MYERS, 1970). Também é conhecido como verme renal gigante e é amplamente distribuído pelo mundo, comprometendo mamíferos carnívoros que se alimentam de peixes crus e outros hospedeiros infectados (BOWMAN, 2010). . 2. Qual a patogênese do agente causal? O cão pode contrair esse parasita pela ingestão direta de anelídeos oligochaeta aquáticos ou indiretamente pela ingestão da carne crua dos hospedeiros paratênicos, como sapos ou peixes (TAYLOR et al. 2007). Seu ciclo é complexo, determinado pela eliminação de ovos pela urina do cão e outros hospedeiros infectados (TAYLOR et al. 2007). Anelídeos oligochaeta aquáticos consomem os ovos eliminados e são ingeridos por hospedeiros paratênicos, como peixes e sapos. O cão, o homem e outros mamíferos podem adquirir o parasita pela ingestão direta dos anelídeos ou indiretamente pela ingestão da carne crua dos hospedeiros paratênicos (ARANTES e SANTOS, 2012). O nematódeo adulto vive preferencialmente no rim e consome gradualmente o parênquima renal, restando somente a cápsula renal (TAYLOR et al. 2007). Acomete o rim direito com maior frequência que o esquerdo, pela proximidade com o duodeno, mas também podem apresentar ciclos erráticos, sendo localizados na cavidade peritoneal, no subcutâneo ou até no útero (MESQUITA et al. 2014). 3. Quais são os achados clínicos mais comuns? Segundo Taylor et al. (2007), na maioria dos casos, os animais são assintomáticos. Porém, outros autores relatam que, em alguns casos, os cães podem apresentar sintomas que indicam acometimento do sistema geniturinário, como apatia, emagrecimento e hematúria (MESQUITA et al. 2014). 4. Quais os diagnósticos diferenciais? Os diagnósticos diferenciais devem ser direcionados para alterações do sistema geniturinário que promovem hematúria, como cistite, pielonefrite, trauma, neoplasias renais ou intravesicais, tumor venéreo transmissível e intoxicações (MILANELO et al. 2009). 5. Quais exames complementares poderiam ser solicitados, além dos já realizados? No perfil hematológico, as principais alterações descritas na literatura incluem anemia por consequente diminuição da produção de eritropoietina e falência renal, neutrofilia com desvio a esquerda, aumento no valor das proteínas plasmáticas totais e baixa concentração de albumina (ZARDO et al. 2012; MESQUITA et al. 2014). Os aumentos das concentrações séricas de uréia e creatinina também são esperados em animais com dioctofimatose renal, em especial naqueles com lesões prévias do rim contralateral que tenham ocasionado perda de massa renal superior a 70% (TAYLOR et al. 2007). Nesse caso, existe uma policitemia leve, que provavelmente seja por relativa desidratação visto pelo aumento da proteina total. Outra possibilidade mais remota seria por estimulação da eritropoetia visto que a densidade urinária encontra-se levemente concentrada. É importante ressaltar, acerca dos achados laboratoriais, a importância da urinálise para o diagnóstico da dioctofimatose,pois a mesma permite a visualização de ovos elípticos, castanhos e com casca espessa e rugosa, característicos do D. renale (ARANTES e SANTOS, 2012). Adicionalmente, o diagnóstico da dioctofimatose se baseia em achados de métodos de diagnóstico por imagem, com destaque à ultrassonografia abdominal ou em modo Doppler, e ao exame radiográfico simples ou contrastado (RAHAL et al. 2014; PODESTÁ et al. 2014). Na ultrassonografia pode evidenciar o nematódeo no parênquima renal (PODESTÁ et al. 2014) ou na cavidade abdominal (RAHAL et al. 2014), bem como a possibilidade de avaliar a arquitetura renal e os demais órgãos abdominais, incluindo o rim contralateral, que pode apresentar aumento de volume devido à hipertrofia compensatória (ZARDO et al. 2012). São descritas ainda a tomografia computadorizada e a urografia excretora para avaliação do grau de destruição do parênquima renal (ARANTES e SANTOS, 2012; RAHAL et al. 2014). A urografia excretora, entretanto, é menos frequentemente realizada, visto que o contraste administrado pode resultar em insuficiência renal aguda (KEALY et al. 2012). 6. Qual o tratamento indicado? Uma vez confirmado o diagnóstico, a remoção cirúrgica do parasita é o tratamento recomendado (TAYLOR et al. 2007). Diante dos achados clínicos e de imagem, a paciente do caso relatado foi submetida à nefrectomia do rim direito. Para isso, foi realizada medicação pré-anestésica composta por morfina (Dimorf®, laboratório Cristália, 10mg/mL) na dose de 0,3 mg/kg, pela via intramuscular, seguida de indução anestésica com maleato de midazolam (Dormium®, laboratório União Química, 15mg/3mL) na dose de 0,2 mg/kg e propofol (Propovan®, laboratório Cristália, 10mg/mL) dose-resposta, ISSN 21774080 101 Investigação, 15(4):98-102, 2016 ambos administrados pela via intravenosa; e manutenção anestésica com isofluorano (Isoforine®, laboratório Cristália) diluído em oxigênio. Durante a inspeção da cavidade abdominal, não foram observados sinais de peritonite. No entanto, o rim direito estava disforme, de consistência flutuante e congesto. Ato contínuo, foi realizada nefrectomia do rim direito e, à inspeção interna do mesmo, foram observados quatro vermes, sendo que o maior apresentava aproximadamente 65 cm de comprimento (Figura 3). A celiorrafia foi realizada conforme rotina. Figura 3. Rim direito excisado do animal. Observar a lesão extensa no parênquima renal (A) e quatro parasitas em seu interior (B) (Serviço de Clínica Cirúrgica de Pequenos Animais/Hospital Veterinário “Dr. Halim Atique”, UNIRP, 2016). Foram prescritos no pós-operatório cefalotina sódica (30mg/kg, VO, TID), cloridrato de tramal (4mg/kg, VO, TID), cloridrato de ranitidina (2mg/kg, VO, BID), dipirona (25mg/kg, VO, TID), fluidoterapia com solução ringer com lactato, limpeza da ferida cirúrgica com solução de clorexidina tópica a 0,5%, duas vezes ao dia, e o uso do colar elizabetano. No hemograma e perfil bioquímico sérico renal, realizados no dia seguinte ao procedimento cirúrgico, não foram observadas alterações (Tabela 3). A paciente foi acompanhada durante 160 dias e apresentou plena recuperação, com resolução dos sinais clínicos e sem a ocorrência de complicações. Tabela 3 - Perfil hematológico e bioquímico da segunda avaliação da paciente relatada (UNIRP, 2016). Parâmetro Resultado Valor de referência* Hemácias (/µL) 6.840.000 5.500.000 a 8.500.000 Hematócrito (%) 42,6 37 a 55 Hemoglobina (g/dL) 15,9 12 a 18 Volume Corpuscular Médio (µ³) 62,3 60 a 70 CHCM (%) 37,3 31 a 34 Leucócitos (/µL) 11.000 6.000 a 18.000 Basófilos (%) 0 0 a 1 Eosinófilos (%) 2 2 a 10 Neutrófilos segmentados (%) 86 60 a 77 Neutrófilos bastonetes (%) 0 0 a 3 Linfócitos (%) 12 12 a 30 Monócitos (%) 0 3 a 10 Plaquetas (/µL) 278.000 180.000 a 400.000 Proteína Plasmática Total (gL/dL) 5,2 5,8 a 7,9 Creatinina Sérica (mg/dL) 1,08 0,5 a 1,5 *Laboratório de patologia clínica do Hospital Veterinário “Dr. HalimAtique” - UNIRP. 7. Quais as considerações com a saúde pública? Além do cão como hospedeiro principal, o D. renale também acomete animais silvestres e, menos comumente, o homem, sendo este acometido principalmente quando em áreas endêmicas e com ambiente propício ao desenvolvimento do ciclo biológico do parasita (MILANELO et al. 2009). Dioctofimatose renal em cão: Qual o seu diagnóstico? Dioctophymiasis in dog: What is your diagnosis? ISSN 21774080 102 Investigação, 15(4):98-102, 2016 RESUMO A dioctofimatose é uma doença causada pelo helminto Dioctophyme renale, cujos espécimes adultos vivem no rim e gradualmente consomem o parênquima renal. Na maioria dos casos, os animais são assintomáticos. Os cães, porém, podem apresentar sintomas que indicam acometimento do sistema geniturinário, como apatia, emagrecimento e hematúria. Foi atendida um cão, fêmea, de quatro anos de idade, sem raça definida e 19,3 kg de peso corpóreo, com histórico de hematúria intermitente há cerca de quatro meses. Ao exame físico geral não foram evidenciadas anormalidades, bem como ao hemograma e perfil bioquímico sérico renal. À urinálise, realizada a partir de cistocentese, foram observados ovos elípticos, castanhos e com casca espessa, característicos do parasita. Ao exame ultrassonográfico abdominal foram visibilizadas estruturas hiperecóicas arredondadas (anelares) e cilíndricas no interior do rim direito, e perda de definição do parênquima renal. Diante disso, a paciente foi submetida à nefrectomia do rim direito. Durante a inspeção do mesmo foram observados quatro vermes, sendo que o maior apresentava aproximadamente 65 cm de comprimento. Ao hemograma e perfil bioquímico sérico renal pós-operatórios não foram observadas alterações. A paciente foi acompanhada durante 160 dias e apresentou plena recuperação, com resolução dos sinais clínicos e sem a ocorrência de complicações. Palavras-chave: hematúria, urinálise, nefrectomia. ABSTRACT The dioctophymatosis is a disease caused by helminth Dioctophyme renale. Adult specimens lives in kidneys and gradually consume renal parenchyma. Animals usually are asymptomatic, however, when it is present it indicates urinary system, such as apathy, weight loss and hematuria. It was attempted a four years old mongrel female dog, 19.3 kg, with history of intermittent hematuria during four months. At physical examination, CBC and biochemistry profile did not identified abnormalities. At urinalysis, performed by cystocentesis, were observed brownish elliptical eggs with thick shell. Abdominal ultrasonography were visualized cylindrical hyperechoic structures inside of the right kidney, and loss of definition of renal parenchyma. Animal was submitted to nephrectomy of the right kidney, and during kidney inspection was verified four worms. The biggest measured 65 cm in length. At postoperative CBC and biochemistry profile did not verified abnormalities. During the follow-up period (160 days), the animal was recovered and no complications was observed. Key words: hematuria, urinalysis, nephrectomy. REFERÊNCIAS Myers BJ. 1970. Nematodes transmitted to man by fish and aquatic mammals. Journal of Wild life Diseases. 6:266-271. Podestá VS, Campos IO, Tavares ACG. et al.2014. Diagnóstico ultrassonográfico de Dioctophyma renale em lobo guará (Chrysocyon brachyurus). Archives of Veterinary Science. 19:88-89. Rahal SC, Mamprim MJ, Oliveira HS. et al. 2014. Ultrasonographic, computed tomographic, and operative findings in dogs infested with giant kidney worms (Dioctophyma renale). Journal of the American Veterinary Medical Association. 244(5)555-558. Taylor MA, Coop RL; Wall RL. 2007. Parasites of dogs and cats - Parasites of the reproductive/urogenital system. In: Taylor MA, Coop RL, Wall RL. Veterinary parasitology. 3rd ed. USA: Blackwell Publishing Ltd Iowa. pp. 1031-1036. Zardo KM, Santos DR, Babicsak VR, et al. 2102 Aspecto ultrassonográfico da Dioctofimose renal canina. Veterinária e zootecnia. 19:57-60. Arantes L, SantosRS. 2012. Dioctofimose canina no hospital escola de medicina veterinária do Centro Universitário de Itajubá – FEPI- Relato de dois casos. In. 3 Congresso Iniciação Científica da FEPI, Itajubá, Brasil. Disponível em: http://www.fepi. br/revista/index.php/revista/article/viewFile/58/57 [acessado em 05/2016]. Bowman, DD. 2010. Helmintos. In: Georgis - Parasitologia Veterinária. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, pp. 110-228. Kealy JK, Mcallister H, Graham JP. 2012. Radiografia e ultrassonografia do cão e do gato. 5. ed. Elsevier, Rio de Janeiro, p. 600. Mesquita LR, Rahal SC, Faria LG. et al. 2014. Pre and post-operative evaluations of eight dogs following right nephrectomy due to Dioctophyma renale - Case report. Veterinary Quarterly. 34(3):167-71. Milanelo L, Moreira MB, Fitorra LS. et al. 2009. Occurrence of parasitism by Dioctophyma renale in ring-tailed coatis (Nasua nasua) of the Tiete Ecological Park, São Paulo, Brazil. Pesquisa Veterinária Brasileira. 29(12):959-962.
Compartilhar