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Diálogos sobre História Antiga e Medieval Coletââneâ Diâálogos sobre Histoáriâ Volume 02 Nâthâny A. W. Belmâiâ; Câssio H. S. Amâdor; Mâtheus K. Frizzo; Guilherme N. Mirândâ; Heitor E. Henrique; Renân B. Archer; Otâávio Luiz Vieirâ Pinto (Orgânizâdores) Diálogos sobre História Antiga e Medieval 1â. Edicçâão Coletââneâ Diâálogos sobre Histoáriâ Volume 02 Universidâde Federâl do Pârânâá Setor de Cieânciâs Humânâs, Curitibâ, 2022. Diálogos sobre História Antiga e Medieval (Coletânea Diálogos sobre História, volume 02) 1a. Edição Arte da Capa: Matheus K. Frizzo; Nathany A. W. Belmaia Diagramação e editoração: Nathany A. W. Belmaia; Cassio H. S. Amador Organizadores: Nathany A. W. Belmaia; Cassio H. S. Amador; Matheus K. Frizzo; Guilherme N. Miranda; Heitor E. Henrique; Renan B. Archer; Otávio L. V. Pinto Comissão Editorial e Científica: Cassio H. S. Amador (UTFPR, Campus Cornélio Procópio); Daniel N. F. Jr. (UEM); Guilherme N. Miranda (UFPR); Heitor E. Henrique (UFPR); Matheus K. Frizzo; (UFPR) Natália de M. Costa (UFPR); Nathany A. W. Belmaia (UFPR); Otávio Luiz Vieira Pinto (UFPR); Renan Archer (UFPR) Todos os conteúdos textuais e imagéticos contidos nessa coletânea são de responsabilidade exclusiva dos(as) autores(as) de cada artigo. Catalogação na publicação Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9ª/1607 Biblioteca de Ciências Humanas – UFPR D537 Diálogos sobre História Antiga e Medieval. [recurso eletrônico]. / organizadores: Nathany A. W. Belmaia [et. al.] ; arte da capa: Matheus K. Frizzo ; Nathany A. W. Belmaia ; Diagramação e editoração: Nathany A. W. Belmaia ; Cássio H. dos S. Amador. – Curitiba : Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas, 2022. (Coletânea Diálogos sobre História ; v.2). Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1KzmgwMQ5ZSehpjMyzRlY1Z77JLt2xiFl ISBN 978-65-84565-49-4 1. História antiga. 2. Idade Média - História. I. Belmaia, Nathany A. W. II. Frizzo, Matheus K. III.Amador, Cássio H. dos S. IV. Título. CDD – 930 Reitor Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca Vice-Reitora Profª. Drª. Graciela Inês Bolzón de Muniz Pró-Reitor de Extensão e Cultura Prof. Dr. Rodrigo Arantes Reis Pró-Reitora de Graduação e Educação Profissional Profª. Drª. Maria Josele Bucco Coelho Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Francisco de Assis Mendonça Diretor do Setor de Ciências Humanas Prof. Dr. João Frederico Rickli Coordenadora do curso de História Profª. Drª. Karina Kosicki Bellotti Vice-coordenadora do curso de História Profª. Drª. Priscila Piazentini Vieira Secretária Luiza Rubini Soffiatti Coordenadora do curso de História e Imagem Profª. Drª. Rosane Kaminski Vice-Coordenador do curso de História e Imagem Prof. Dr. Pedro Plaza Pinto Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Profª. Dra. Ana Paula Vosne Martins Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Prof. Dr. Luiz Geraldo Santos da Silva Secretária Administrativa do Programa de Pós-Graduação em História Maria Cristina Parzwski Sumário ___________________________________________________ Prefácio ......................................................................................................9 Parte 1: Diálogos sobre História Antiga Humanidades Digitais: uma introdução à escrita egípcia através do aplicativo Fabricius ..................................................................................13 Jéssica Kotrik Reis Franco As Representações das Personagens Femininas nas Heroides de Ovídio: o caso de Penélope e Helena de Troia....................................46 Letícia Schneider Ferreira Cartago e a (re)construção simbólica dos espaços de espetáculo entre o paganismo e o cristianismo (séc. II-III d.C.) .......................................71 Edjalma Nepomoceno Pina, Igor Pereira da Silva A construção da Páscoa Cristã: de Pessach à Pascha .........................100 Nathany Andrea Wagenheimer Belmaia Monges e Ascetas: O Monasticismo na Antiguidade .........................135 Nathany Andrea Wagenheimer Belmaia Introdução ao Pensamento de Agostinho de Hipona .......................168 João Pedro da Luz Neto, Clodoaldo da Luz, Khae Lhucas Ferreira Pereira Parte 2: Diálogos sobre História Medieval Todas as estradas levam a Meca: a literatura de viagem árabe- muçulmana medieval ...............................................................................204 Matheus Kochani Frizzo As viagens medievais em perspectiva: debate sobre fontes de pesquisa ......................................................................................................................229 Lucas Vieira dos Santos, Sofia Alves Cândido da Silva O Neomedievalismo e o discurso historiográfico conservador da Reconquista Ibérica defendido pelo canal do Youtube “Brasil Paralelo” ......................................................................................................................266 Éderson José de Vasconcelos, Guilherme Rodrigues Otoni Alcântara Identidades Infernais: compreendendo a bruxa e o diabo na Idade Média ..........................................................................................................304 Rhayana Antunes Pimentel O Uso da Ideia de "Idade Média" ao Longo da História Contemporânea ........................................................................................330 Lucas Silva de Oliveira, Giovanni Bruno Alves, Vinicius Tivo Soares Uma história da arte escandinava medieval: dos estilos vikings ao gótico ......................................................................................................................371 Leandro Vilar Oliveira, Lorenzo Sterza Diálogos sobre História Antiga e Medieval 9 Prefácio ________________________________________________ Os artigos que compõem os capítulos do presente livro são resultantes da segunda edição do evento Diálogos sobre História, Ciclo de Minicursos Online da Universidade Federal do Paraná, realizado no ano de 2021, sob a organização dos discentes e docentes da Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Paraná, com o auxílio de membros da Universidade Tecnológica do Paraná (Campus Cornélio Procópio e Ponta Grossa) e outras instituições. Nesse prefácio, gostaríamos, sobretudo, de destacar alguns elementos acerca do surgimento do evento que originou esses textos, e também do próprio contexto no qual ele foi produzido, que também é parte intrínseca dessa produção. O nascimento da primeira edição do evento Diálogos sobre História ocorreu em 2020, no contexto crescente do famigerado Covid-19, que ceifou milhares de vidas, virou o mundo de ponta-cabeça e mexeu com a rotina de todos nós. Nesse período, a OMS (Organização Mundial de Saúde), passou a ser órgão de autoridade máxima nos ditames da vida diária. Todavia, mesmo com as exaustivas tentativas de demonstração da racionalidade do saber científico na área médica e biológica (como um conhecimento demonstrável e reprodutível), a Ciência ganhou atributos religiosos, passando a ser questão de crença ou fé, de acreditar, ou não. Enquanto parte das pessoas morreram negando a existência do vírus (ou, apostando nos milagres da Cloroquina ou da Ivermectina), outra parte das pessoas torcia e aguardava ansiosamente que os cientistas conseguissem desenvolver vacinas em tempo recorde. Para além das querelas ideológicas, fato é que todos nós, direta ou indiretamente, fomos afetados. Sofremos com as perdas de vidas e também com todas as restrições de distanciamento impostas pelas instâncias de poder locais. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 10 Mesmo que a população tivesse opiniões divididas, no fundo, o que unia a todos nós era uma palavra só: esperança.Na Antiguidade, Tales de Mileto já dizia que “A esperança é o único bem comum a todos os homens; aqueles que nada mais têm, ainda a possuem”. Seguindo o lema do filme o “O Carteiro e o poeta”, de que a poesia não pertence a quem a escreve mais do que àqueles que dela precisam, tomamos a liberdade de surrupiar algumas palavras do poema Esperança, de Augusto dos Anjos: A Esperança não murcha, ela não cansa, Também como ela não sucumbe a Crença, Vão-se sonhos nas asas da Descrença, Voltam sonhos nas asas da Esperança Diferentemente da primeira edição do evento Diálogos sobre História, a segunda, realizada em 2021, aconteceu em um contexto de esperanças renovadas devido às vacinas Coronavac, Astrazeneca, Pfizer e Janssen, distribuídas em grande parte pelos esforços do Instituto Fiocruz, no Rio de Janeiro, do Instituto Butantã, em São Paulo, e da vasta rede de Unidades de Saúde do SUS, o Sistema Único de Saúde brasileiro. Embora nesse ínfimo espaço de quase dois anos já tenhamos notícias de variantes do SARS-CoV-2 que quase esgotam o alfabeto grego (como a variante Alfa, Beta, Gama, Delta, Epsilon, Zeta, Kappa ou Ômicron), as estatísticas demostram que a vacinação teve um impacto extremamente positivo na diminuição de mortes e internações, fazendo com que muitos levantassem as bandeiras “Viva a Ciência” e “Viva o SUS”. Ou seja, foi preciso que o Estado interviesse, estabelecesse medidas, adquirisse vacinas e organizasse a distribuição delas para que vidas fossem poupadas, vidas fossem salvas. Isso remete aos conceitos de biopolítica de Michel Foucault. Se, para esse autor, o poder disciplinar conseguiu criar um conjunto homogêneo de viventes, como organizá- los, cuidar de seu bem-estar e saúde? A ação do Estado diretamente Diálogos sobre História Antiga e Medieval 11 nos corpos dos seus cidadãos se tornou fundamental para a preservação do bem mais precioso do seres humanos: a vida. Para vencer a “batalha” contra o vírus que causa a doença do Covid-19, é preciso agir e intervir diretamente no corpo de cada um de nós, aplicando vacinas, que são os imunizantes que preparam o nosso organismo para a recepção do vírus sem que o encontro nos seja fatal. Em grande parte devido à ação das vacinas, as mortes e internações devido ao Covid-19 foram quase a zero em alguns locais, voltando a subir devido ao surto de gripe e da variante ômicron no Brasil. Ainda que tantos percalços tenham assolado o nosso pequeno planeta azul, esperamos que essa coletânea possa ser a testemunha de que, malgrado todos os pesares, existiram ideias e iniciativas de contribuir, ainda que de forma milesimal e ínfima, para a manutenção dos pilares da difusão e troca de conhecimentos de uma forma que acompanhasse as mudanças decorrentes do distanciamento social. Tivemos por intuito organizar um ciclo de minicursos versados na área de História, que pudesse ser realizado de forma inteiramente online, por meio de uma plataforma que a maior parte das pessoas pudessem acessar: o Youtube. Devido ao número de temáticas contempladas e ao sucesso da primeira edição, o evento foi novamente realizado em 2021. Atravessando grandes distâncias, a última edição do evento somou quase oito mil participantes (incluindo discentes do Ensino Médio) que assistiram e enviaram atividades para os cursos, cobrindo todos os estados brasileiros. Agradecemos a todas e todos que fizeram parte dessa jornada, e se dispuseram a compartilhar seus conhecimentos, seja em forma de vídeo ou de texto. Os ministrantes dos minicursos foram convidados para escrever sobre os temas abordados no evento, resultando nos capítulos reunidos nesta coletânea. Devido à diversidade dos trabalhos submetidos, a obra foi dividida em três volumes temáticos, intitulados “Diálogos sobre História no Brasil: arte, política e cultura”, “Diálogos sobre História Antiga e Diálogos sobre História Antiga e Medieval 12 Medieval” e “Diálogos sobre historiografia, teoria, metodologia e ensino”. Neste segundo volume, concentramos pesquisas que procuram compreender elementos e personagens simbólicos da História Antiga e da História Medieval. Os trabalhos se debruçam com afinco em eventos de um passado longínquo, tarefa que exige, muitas vezes, um olhar dotado de criatividade para despertar o interesse do presente. Sob o tema “Diálogos sobre História Antiga” reúnem-se artigos que exploram o passado do mundo começando pelo aprendizado atual da escrita egípcia, os hieróglifos, chegando até as religiosidades, sobretudo a cristã, bem como a mitologia grega e as representações de suas personagens, reflexões que são importantes visões acerca de elementos constitutivos da compreensão que o presente possui sobre um passado distante. Tal enfoque não é feito sem o uso de um olhar analítico, e os autores e autoras ricamente abordam a conexão de seus objetos de estudo com outros, também pertinentes, dentro de seu contexto específico. Já o tema “Diálogos sobre História Medieval” é explorado sob a ótica do imenso imaginário que permeia o nosso conhecimento sobre a Idade Média na Europa e no Oriente Médio, bem como a sua conexão com a compreensão do presente. As fantasias desse passado, a história dos personagens e as expressões das imaginações artísticas e mágicas encontram um chão firme sob olhares rigorosos em um lastro histórico que lança esses elementos para longe do senso-comum. Enfim, são trabalhos que, dedicadamente, se debruçam sobre histórias permeadas de esquecimentos, para as quais a luz do olhar atual sempre terá no que se deter e descobrir. Desejamos uma boa leitura! Nathany Andrea Wagenheimer Belmaia Renan Battisti Archer Diálogos sobre História Antiga e Medieval 13 Humanidades Digitais: uma introdução à escrita egípcia através do aplicativo Fabricius Digital Humanities: an introduction to Egyptian writing through the Fabricius app Jéssica Kotrik Reis Franco1 ________________________________________________ Resumo Este trabalho deriva do minicurso “Humanidades Digitais: uma introdução à escrita egípcia através do aplicativo Fabricius”, ministrado no II Diálogos sobre História: ciclo de minicursos online da Universidade Federal do Paraná, no ano de 2021. Neste minicurso tratou-se de aspectos gerais da escrita egípcia antiga com o uso do aplicativo Fabricius desenvolvido a partir do projeto The Hieroglyphics Initiative pelo British Museum em parceria com a Ubisoft, Google, Macquarie University e a empresa de software inglesa Psycle Interactive. O minicurso é uma introdução ao egípcio clássico, que visa demonstrar a utilização de uma ferramenta digital gratuita e disponível na internet, a fim de abordar o campo das Humanidades Digitais e demonstrar possibilidades de aprendizagem, ensino e pesquisa na área junto à disciplina de Egiptologia. Palavras-chave: Humanidades Digitais. Hieróglifos. Fabricius. 1 Mestranda pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, bolsista CAPES, e-mail: jekotrik@gmail.com. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 14 Abstract This paper derives from the mini-course “Digital Humanities: an introduction to Egyptian writing through the Fabricius application”, given at the II Dialogues on History: online mini- course cycle at the Federal University of Paraná, in the year 2021. This mini-course was about general aspects of ancient Egyptian writing using the Fabricius application developed from the project The Hieroglyphics Initiative by the British Museum in partnership withUbisoft, Google, Macquaire University and the English software company Psycle Interactive. The short course is an introductionto classical Egyptian, which aims to demonstrate the use of a free digital tool available on the internet, in order to approach the field of Digital Humanities and demonstrate possibilities for learning, teaching and research in the area along with the discipline of Egyptology. Keywords: Digital Humanities. Hieroglyphics, Fabricius. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 15 Humanidades Digitais: uma introdução à escrita egípcia através do aplicativo Fabricius Jéssica Kotrik Reis Franco ________________________________________________ Introdução O conteúdo programático deste minicurso foi dividido em quatro aulas com duração de uma hora em média cada. Assim, foram quatro aulas gravadas em formato de vídeo sendo também utilizado slides explicativos durante as gravações, além do próprio aplicativo Fabricius que pôde ser baixado e acessado gratuitamente através da plataforma Google Arts e Culture pelos alunos (as). Na primeira aula, foi realizada uma introdução às Humanidades Digitais, abordou-se no que consiste o campo, o que propõe a disciplina, quais são seus principais teóricos e obras de referência, além de algumas discussões a respeito do impacto das tecnologias digitais na sociedade hoje. Na segunda aula, partiu-se para uma breve contextualização da História da escrita egípcia, desde seu surgimento até o uso dos hieróglifos egípcios durante o Egito antigo. Já na terceira aula, deu-se continuidade ao tema da escrita egípcia, mas com uma introdução à conceitos básicos da escrita egípcia clássica, desenvolvida e utilizada pelos antigos egípcios entre 2100 AEC a 1300 AEC. Nessa aula, abordou- se suas principais características e estruturas gramaticais. Portanto, apenas após tal aporte teórico e contextualização histórica junto à instrumentalização necessária para o entendimento de noções básicas da escrita Diálogos sobre História Antiga e Medieval 16 hieroglífica, partimos para a apresentação e exemplos de utilizações do aplicativo Fabricius. Por fim, realizou-se a explicação da atividade final para que os participantes pudessem colocar em prática seus conhecimentos e recebessem a certificação do minicurso. As Humanidades Digitais Diante do contexto da chamada “virada digital” após os processos de globalização, o que alguns autores da cibercultura também denominam como sendo a “globalização digital”, ocorrem fenômenos como o surgimento da internet 2.0 e a popularização, principalmente a partir dos anos oitenta e noventa, de tecnologias digitais desenvolvidas durante a Segunda Guerra e Guerra Fria2. Nesse sentido, a disciplina de Humanidades Digitais corrobora-se uma vez que, “a opção da sociedade pelo digital altera e questiona as condições de produção e divulgação dos conhecimentos” (NOIRET, 2015, p.30). Durante o The Humanites and Technology Camp (THATCamp), ocorrido em Paris no ano de 2010, e em Florença no ano de 2011, humanistas digitais discutiram a internacionalização da disciplina e refletiram sobre sua transdisciplinaridade com as tradições epistemológicas e filológicas próprias da história, tendo como base que a “cultura histórica digital” é parte de uma “cultura digital” que se manifesta através de diversas formas comunicativas: Para nós, as humanidades digitais refe- rem-se ao conjunto das ciências humanas e sociais, às artes e às letras […] não ne- 2 Ler mais em JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Aleph, São Paulo, 2009. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 17 gam o passado, apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas discipli- nas, mobilizando simultaneamente os ins- trumentos e as perspectivas singulares do mundo digital. As humanidades digitais designam uma transdisciplina, portadora dos métodos, dos dispositivos e das pers- pectivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das ciências humanas e sociais (DACOS apud NOIRET, 2015, pp. 30- 31). Dessa forma, a disciplina das Humanidades Digitais dialoga diretamente com a História Digital, definida como “todo o complexo universo de produções e trocas sociais tendo por objeto o conhecimento histórico, transferido e/ou diretamente gerado e experimentado em ambientação digital (pesquisa, organização, relações, difusão, uso público e privado, fontes, livros, didática, desempenho e assim por diante)” (MONINA apud NOIRET, 2015, p. 33). Portanto, a História Digital não está atrelada somente à História que circula na internet, mas é aquela que, sobretudo, se preocupa em tratar da História produzida e veiculada sob meio digital: Quase todas as problemáticas tradicionais do ofício de historiador, da delimitação de uma hipótese de pesquisa à descoberta, ao acesso e à gestão dos documentos e das fontes, até conseguir os fundamentos nar- rativos e, sobretudo, até a comunicação da história e dos resultados de pesquisa, e, fi- nalmente, o ensino da história, passam agora em parte ou no todo, pela tela do computador (...) (NOIRET, 2015, p. 32). Portanto, a História Digital, estabelecida através das Diálogos sobre História Antiga e Medieval 18 Humanidades Digitais, vem crescendo como meio de análise e abordagem historiográfica na Academia, principalmente diante dos fenômenos da globalização e de um mundo cada vez mais digital. Além disso, ela se torna cada vez mais necessária diante das próprias demandas do presente – por exemplo, com o atual cenário em que vivemos. Devido a pandemia da Covid-19, as áreas de ensino e pesquisa, precisaram aprender a lidar mais de perto, e a usar a seu favor, inúmeras ferramentas digitais. Contudo, essa não é uma tendência atual, pois tais fenômenos vem ocorrendo de forma significativa desde meados dos anos noventa, com o surgimento da web 2.0. Alguns exemplos para corroborar a relevância e fortalecer a área da História Digital são fontes e acervos digitalizados, a internet como campo de produzir e compartilhar História, museus colocam à disposição visitas virtuais de suas exposições, jogos de videogame sendo produzidos com narrativas históricas, bancos de dados etc3. Ainda, tendo em vista o amplo acesso que a cultura digital permite à História produzida e veiculada, como por exemplo, diante de narrativas virtuais e aplicativos digitais, a historiografia digital atrela-se ao campo da História Pública Digital, uma vez que: O conhecimento de humanidades digitais, da história digital, e de suas potencialida- des, é parte integrante das novas forma- 3 Com o surgimento da web 2.0, a história e a memória não se mantiveram mais prerrogativas apenas da comunidade científica acadêmica. Por intermédio das práticas de escrita participativa ou mesmo diretamente, qualquer pessoa pode se dedicar ao passado em rede. O recurso a uma espécie de saber comunitário, à participação pública na rede, que vem sendo comumente chamada crowdsourcing, sob várias formas e com diversos tipos de conteúdos, trabalho colaborativo e saberes, permitiu a gestão integrada dos conteúdos digitais por parte de quem tenha a possibilidade e o conhecimento para assim proceder (Cf. NOIRET, op. cit. p. 35). Diálogos sobre História Antiga e Medieval 19 ções necessárias dos programas de histó- ria pública (...). Essas são formas naturais e complementares de outras formações para a gestão das fontes ou a interpretação dos objetos nos museus – setor em pleno desenvolvimento, o das mostras e dos per- cursos em museus por meio da rede, que requer a autoridade profissional dos histo- riadores públicos digitais. Mais do que em outrasdisciplinas, a web e o digital refor- çaram, no campo da história pública, práticas profissionais já consolidadas, ex- pandindo-as ou abrindo-as para outros pú- blicos, com novos instrumentos de difu- são e de comunicação de conteúdos na era digital. A virada digital e a rede foram as primeiras a abrir, e logo a responder, às necessidades prementes da sociedade de proteger as identidades, a cultura e as me- mórias coletivas locais e promovê-las glo- balmente. Desse modo, a história digital com frequência se tornou também vetor de conhecimento “glocal”. Os fenômenos de globalização atingem assim as identi- dades locais para as quais as formas tradi- cionais de narração da história não alcan- çam um público global. Graças à história digital, com a versatilidade da rede e das tecnologias digitais que permitem promo- ver globalmente um passado comunitário local, a história pública nacional alcança diversos tipos de públicos internacional- mente (NOIRET, 2015, p. 42). Sendo assim, grande parte das discussões sobre a historiografia digital, são norteadas pelos estudos do historiador, especialista em História Pública Digital, Serge Noiret, que trata a respeito de fontes, métodos e do papel do historiador diante das problemáticas da História Diálogos sobre História Antiga e Medieval 20 Digital, e aponta caminhos importantes a se refletir a partir de alguns autores: A história digital remodelou a documenta- ção do historiador e os instrumentos usa- dos para seu acesso, para armazená-la e tratá-la, sem que, todavia, o uso crítico desses instrumentos – que não são assépti- cos na relação entre o historiador e as fon- tes digitais (...) A história digital requer reescrever e reinterpretar os métodos pro- fissionais e dominar as novas práticas di- gitalizadas (CLAVERT; NOIRET, 2013). As mudanças quanto às práticas profissio- nais dos historiadores são de tal ordem – falou-se até de um novo historicismo – (FICKERS, 2012) que devemos nos inter- rogar sobre qual o impacto da história di- gital sobre as formas tradicionais de nar- ração do passado e sobre os tempos his- tóricos (HARTOG, 2012; NORA, 2011).1 Podemos nos perguntar, à luz da difusão pública das tecnologias, se não é o caso de rever em profundidade até mesmo a re- lação que temos com o passado, a memó- ria e a história no presente (JOUTARD, 2013). (NOIRET, 2015, p. 29). Por fim, trazer a discussão sobre as Humanidades Digitais e a História Pública Digital neste minicurso através da apresentação e exploração de um aplicativo como o Fabricius, foi uma maneira de expandir o debate acerca do uso e desenvolvimento de ferramentas digitais no âmbito da pesquisa, ensino e divulgação do conhecimento histórico. Além disso, tendo em vista a abertura do leque de novas fontes para se produzir e pesquisar História, sobretudo a partir das Escola dos Annale (1929-1989), este minicurso visou reforçar que o digital deve ser objeto e Diálogos sobre História Antiga e Medieval 21 campo de interesse da História. Principalmente diante da realidade em que vivemos, onde o digital existe e impõe-se em diferentes níveis e de diferentes formas, seja em nossa vida cotidiana ou nas esferas e estruturas de poder de nossa sociedade. O conceito de Virtualidade que o intelectual francês especialista em cibercultura, Pierre Lévy, elabora a partir do conceito filosófico do virtual, nos mostra como o “mundo virtual” termo emprestado para o “mundo digital” não é por acaso, pois a virtualidade não se opõe à realidade material, mas é uma extensão dela: Já o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, es- tático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendên- cias ou de forças que acompanha uma si- tuação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização (LÉVY, 2011, p. 48). Portanto, devemos reconhecer que o desenvolvimento tecnológico é produto e parte do processo da ação dos humanos no tempo, como alertará Marc Bloch. Para além disso, percebemos que o ofício do historiador também é atrelado aos diferentes paradigmas da comunicação presentes por toda a História da Humanidade. Pois pesquisar, ensinar, divulgar e produzir conhecimento histórico, é em si, um ato de nos comunicarmos. Introdução à História da escrita egípcia Nas duas seguintes aulas, parte dois e três deste texto, utilizou-se como base a obra “Gramática Fundamental de Egípcio Hieroglífico para o estudo do estágio inicial da língua egípcia (de ca. 3000 – 1300 ac.)” Diálogos sobre História Antiga e Medieval 22 do egiptólogo Drº Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira (CHAM), publicada em 2016 pela Editora Chiado, e o “Curso de Gramática Egípcia Clássica” ministrado também pelo professor Ronaldo em conjunto com a egiptóloga Drª Thaís Rocha da Silva (USP - University of Oxford). Tal curso foi promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina e pelo GTHA (Grupo de Trabalhos em História Antiga), a partir da Gramática Fundamental de Egípcio Hieroglífico, escrita por Ronaldo Gurgel Pereira aqui já citada. Primeiramente, pudemos perceber que a língua egípcia trabalhada neste minicurso desenvolveu-se no Delta do Nilo no Alto Egito e a partir de então, espalhou-se por todo o território do Vale. Tal escrita tinha estreita ligação com a religiosidade e visão cosmogônica egípcia, sendo considerada uma escrita sagrada, no caso dos Hieróglifos, que fora ensinada pelos deuses. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 23 FIGURA 1: M APA DO EGITO ANTIGO FONTE: Wikipédia, autor André Koehne- Domínio Público. A escrita e língua egípcia antiga nem sempre se manteve a mesma, tendo ao longo de milhares de anos na História, sofrido alterações significativas. Assim, temos abaixo uma relação de seus estágios estabelecida a partir de convenções pelos egiptólogos e filólogos: Diálogos sobre História Antiga e Medieval 24 FIGURA 2: ESTÁGIOS DA ESCRITA EGÍPCIA FONTE: Autoria Jéssica Franco O estágio em destaque se refere ao Egípcio Médio ou Egípcio Clássico, do qual tratamos neste minicurso. Pois apesar das mudanças, ela se manteve até o fim da História egípcia como cânone, principalmente nos textos religiosos, e exerceu influência sobre todos os outros estágios da escrita. Tal escrita tinha estreita ligação com a religiosidade e visão cosmogônica egípcia, sendo considerada uma escrita sagrada em sua própria etimologia do grego hieros (sagrada) glyphos (escrita). Como vemos na figura 2, além dos hieróglifos, foram desenvolvidos outros tipos de escrita. O hieróglifo cursivo que surgiu no Reino Antigo e se manteve até o período romano; o hierático, desenvolvimento mais cursivo da escrita que surgiu também no Reino Antigo e se manteve até a Época Baixa; o demótico sendo ainda mais cursivo e surgindo a partir do Período Saíta até o Egito greco-romano; e o copta, considerado último estágio da língua que surgiu a partir do século I e se manteve até o século XV, e que hoje é uma escrita litúrgica dos egípcios cristãos. No caso dos hieróglifos, a mitologia egípcia narrava que essa escrita fora ensinada pelos deuses, por isso sua conotação sagrada. A divindade associada à escrita egípcia Diálogos sobre História Antiga e Medieval 25 antiga era o deus Toth, este que também era considerado o deus patrono dos escribas, aqueles que exerciam a função da escrita. Mulheres não se tornavam escribas, contudo, isso não significou que não houveram mulheres no Egito antigo que aprenderam a ler e a escrever, sobretudo, nas classes privilegiadas. A profissão de escriba era passada praticamente de pai para filho e as crianças frequentavam as “Escolas da Vida” nos templos egípcios para aprender este árduo ofício desde a infância. Apesar das diferentes estratificaçõesentre os próprios escribas, pois haviam aqueles que trabalhavam nos templos, outros nos palácios, e ainda havia aqueles que eram escribas do faraó, todos, de certo modo, gozavam de prestígio e status social na antiga sociedade egípcia, pois a grande maioria da sua população era composta por camponeses analfabetos, assim, saber ler e escrever era um privilégio para poucos. FIGURA 3: DEUS TOTH, DEUS DA ESCRITA FONTE: Wikipédia, autor Jeff Dahl- Domínio Público. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 26 Além disso, o princípio de Maat, deusa da ordem, reverberava sobre à escrita e arte egípcia. Por enquanto, tais procedimentos seguiam cânones rigorosos e a Lei da Frontalidade era aplicada para que o máximo de informação fosse passada através das cenas. Espaços em branco nunca eram deixados, e muitas vezes o escriba utilizava o complemento fonético no texto, do qual falaremos na terceira parte deste trabalho, apenas para atingir a harmonia estética. A ferramenta utilizada para a escrita eram palhetas feitas de junco, que funcionavam como um pincel ou lápis, e as tintas eram produzidas a partir de minerais e elementos encontrados na natureza como o cobre e o carvão mineral, dissolvidos com bases feitas a partir da clara de ovos, por exemplo. As cores eram diversas, cada uma com um significado a ser seguido a partir do cânone, entre elas, o verde, azul, amarelo, dourado, preto, e vermelho davam vida à iconografia e aos textos. Os hieróglifos, portanto, podiam ser escritos, pintados, esculpidos e entalhados em alto e baixo relevo. Os suportes de escrita eram diversos, pois os hieróglifos estavam presente em paredes de tumbas, templos e palácios, em sarcófagos e ataúdes de madeira, pedra, ouro ou cartonagem4 em estátuas de diversos tamanhos, estelas, amuletos e até mesmo joias, mas principalmente, em papiros e óstraco. Este último, se tratava de fragmentos de cerâmicas reutilizadas e eram muito mais comuns que os próprios papiros, pelo custo e praticidade. Por isso, jovens escribas quando faziam suas lições ao aprender as técnicas da escrita utilizavam óstracon, além disso, em anotações do dia-a-dia, no comércio também utilizava-se este material. Já o papiro, foi o ancestral do papel e era confeccionado a partir da planta de mesmo nome. De nome científico Cyperus Papyrus, é uma espécie endêmica da 4 Camadas de papiro, gesso e resina. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 27 região do Oriente Médio. Já no Egito, era presente principalmente nas regiões pantanosas do Delta. A planta se transformava em papiro a partir de seu caule descascado, cortado em lâminas, umedecido, entrelaçado e prensado. Alguns textos ficaram muito populares no estudo da literatura egípcia e foram fundamentais para entender além da escrita, a vida e cosmovisão dos egípcios antigos. Entre eles5, o “Texto das Pirâmides de Unas” descoberto por Gaston Maspero em 1881 e datado do Reino Antigo, por isso um dos mais antigos e importantes para a compreensão do mito osiriano6, a “Sátira das Profissões” ou “As instruções de Amenemate” datado do Reino Novo e que traz ensinamentos para a profissão de escriba, seus fragmentos encontram-se no Museu Britânico e no Museu do Louvre, e o “Conto do Náufrago” ou “A Ilha da Serpente” também datado do Reino Novo, e que narra a história de um marinheiro egípcio que sobrevive à um naufrágio numa ilha com uma serpente gigante que lhe ajuda à retornar para casa cheio de riquezas, pesquisadores apontam que este texto faz referência às viagens dos egípcios ao Sinai em busca de ouro, mirra, madeira etc. Além disso, ele é muito utilizado no aprendizado da escrita pelos estudiosos contemporâneos. O papiro original encontra-se no Museu de São Pushkin em Moscou. A História da decifração dos hieróglifos, por conseguinte, dos outros estágios desta escrita, iniciou-se já no século IV com a obra Hieroglyphica de autoria do sacerdote greco-egípcio Horapolo. Foi a primeira tentativa que se têm registro da formação de um dicionário egípcio escrito a partir do copta. Com o interesse pela Antiguidade durante o período do Renascimento, esta obra começa a circular durante o século XVI na Europa. Contudo, em 5 Ver datações na Figura 2. 6 Do deus Osíris. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 28 1798, Napoleão Bonaparte invade o Egito e leva consigo uma equipe de estudiosos para fazer o registro dos artefatos e do local. Desta expedição, surge a obra “A Descrição do Egito” publicada em 1809, o que aguçou ainda mais o interesse de leigos e especialistas pela língua morta. Com a descoberta da Pedra de Roseta pelos franceses nesta mesma época, esta que fora transferida como espólio de guerra para os ingleses que expulsaram Napoleão e suas tropas do Egito, uma nova fase do estudo da escrita iniciou-se. Com cópias do texto do artefato, o qual se trata de um decreto em formato de estela do faraó Ptolomeu V, através de seu conteúdo trilíngue: em hieróglifo, demótico e grego, estudiosos obtiveram a chave para entender a lógica da escrita egípcia através do texto em grego, compreendido por muitos deles na época. Entre eles, o inglês Thomas Young e o francês François Champollion. Assim, após diversas cartas trocadas entre os dois, e da tradução do cartucho com o nome de origem grega, de Cleópatra, inscrito no Obelisco de Filas na Inglaterra, listas gramaticais permitiram que Champollion concluísse a decifração dos hieróglifos em 1822. Introdução à Gramática básica do Egípcio Clássico (2055 AEC- 1550 AEC) O conhecimento de algumas convenções egiptológicas são essenciais para iniciar o estudo da escrita egípcia, elas também foram elaboradas para que a comunidade científica possa partir de pontos comuns para debater e ampliar a compreensão sobre a tradução dos textos em hieróglifos egípcios. Tratam-se, portanto, de algumas regras das quais falaremos adiante. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 29 Lista de Gardiner Elaborado por Sir Alan Gardiner, se trata de uma classificação dos símbolos hieroglíficos em grupos temáticos. Cada grupo temático corresponde à uma letra do alfabeto latino. Por exemplo, abaixo vemos o grupo temáticos das aves que corresponde à letra G. FIGURA 4: LISTA DE GARDINER – GRUPO G - AVES FONTE: App Dictonary Diálogos sobre História Antiga e Medieval 30 Transliteração A transliteração consiste em letras do alfabeto latino equivalendo-se aos símbolos hieróglifos. Exemplo: Hieróglifo Transliteração: Jmn Tradução: Amon Muitas vezes os egiptólogos só publicam os textos transliterados em seus trabalhos. A transliteração é feita apenas com consoantes, mas as vogais são utilizadas para que o texto transliterado possa ser pronunciado. Contudo, não há como afirmar como era a pronuncia correta das palavras e da língua egípcia antiga, já que se trata de uma língua morta há milênios. Estudos fonéticos apontam caminhos através da pronuncia do copta, último estágio da língua, porém não há como chegar à pronuncia verdadeira. Alfabeto Apesar da escrita egípcia clássica possuir uma estrutura gramatical muito diferente da nossa língua, e os egípcios antigos não terem desenvolvido um alfabeto, é possível fazer alguma relação com o nosso alfabeto latino. Para fins didáticos e de familiarização com a escrita, existem diversas versões e elas podem ser encontradas facilmente na internet como a da imagem abaixo: Diálogos sobre História Antiga e Medieval 31 FIGURA 5- ALFABETO LATINO E HIEROGLÍFICO FONTE: Disponível em <http://solangembona.blogspot.com/2009/10/traduza-seu-nome-para- hieroglifo.html Acesso em: 01/12/21.> Cartuchos Os cartuchos, nomeados dessa forma por lembrarem cartuchos de bala, são umacaracterística da escrita hieroglífica e eram utilizados apenas para carregar o nome de faraós e rainhas do Egito antigo. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 32 FIGURA 6- CARTUCHO CONTENDO O NOME DO FARAÓ TUTANKHAMON, À ESQUERDA DE NASCIMENTO À DIREITA DE COROAÇÃO FONTE: Wikipédia- Domínio Público. Antecipação Honorífica Ocorre quando o nome de uma divindade, ou do faraó, considerada uma também, antecede-se na frase mesmo que não faça completo sentido estar à frente. Para os antigos egípcios este era um sinal de respeito e evidenciava sua hierarquia social. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 33 Leitura A leitura dos textos em hieróglifos pode ser feita em colunas ou linhas, pois assim eram escritos. Já a direção de leitura destas linhas e colunas, vai depender dos símbolos, ou seja, em que direção eles estão dispostos. Uma dica, é sempre observar as figuras de animais e pessoas no texto, se elas olham em direção à esquerda do texto, então a leitura começa da esquerda para a direita, e vice-versa. Contudo, os textos em hieróglifos sempre devem ser lidos de cima para baixo, nunca de baixo para cima. FIGURA 7- EXEMPLOS DE HIERÓGLIFOS FONTE: Wikipédia- Domínio Público. Transcrição Outras convenções egiptológicas dizem respeito ao processo de transcrição do texto em hieróglifo para o texto transliterado. Assim, os egiptólogos utilizam alguns sinais para realizar este trabalho, pois nem sempre o texto original está legível ou presente. São eles: //////// - TEXTO DESTRUÍDO (não há como ler) [...] – TEXTO DESTRUÍDO (mas egiptólogo propõe complemento) (...) – TEXTO ORIGINAL OMITE ALGUMA PALAVRA (mas aparece na transliteração) <...> - TEXTO ORIGINAL É CORRIGIDO (escriba errou) {...} – PROPOSTA DE RESTAURAÇÃO DO TEXTO DANIFICADO (não é definitiva, é uma proposta) Diálogos sobre História Antiga e Medieval 34 <---> - TEXTO ORIGINAL INCOMPLETO (deixado em branco pelo escriba, razões diversas) Pictograma, Fonograma e Ideograma Quando o hieróglifo representa o próprio objeto ou ser no texto ele é um pictograma. Exemplo: Leão Hieróglifo E23 Quando o hieróglifo representa um son no texto ele é um fonograma. Exemplo: Sons: /r/ /rw/ / l /* Quando o hieróglifo representa uma ideia presente no texto ele é um fonograma. Exemplo: Significado: perigo, algo perigoso, arriscado etc. Fonogramas Uniliterais, Biliterais e Triliterais Fonogramas uniliterais possuem apenas uma consoante. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 35 FIGURA 7- PRINCIPAIS FONOGRAMAS UNILITERAIS FONTE: Disponível em <https://aegyptologus.com/gramatica- egipcia-classica/ > Acesso em: 01/12/21. Fonogramas biliterais apresentam duas consoantes. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 36 FIGURA 8- PRINCIPAIS FONOGRAMAS TRILITERAIS FONTE: Disponível em <https://aegyptologus.com/gramatica-egipcia- classica/ > Acesso em: 01/12/21. Fonogramas triliterais apresentam três consoantes. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 37 FIGURA 9- PRINCIPAIS FONOGRAMAS TRILITERAIS FONTE: Disponível em <https://aegyptologus.com/gramatica-egipcia- classica/> Acesso em: 01/12/21. Determinativos Os hieróglifos determinativos reforçam no texto uma ideia ou ação, e determinam gênero e número. FIGURA 10- ALGUNS EXEMPLOS DE DETERMINATIVOS FONTE: https://aegyptologus.com/gramatica-egipcia-classica/ , Acesso em: 01/12/21. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 38 Vogais A língua egípcia pertence à família afro-asiática (antiga família camito-semítica). Entre as línguas afro- asiáticas estão, por exemplo: berbere, semítico, chádico, omótico, cuchítico. Como já mencionado, utilizamos algumas vogais para conseguir pronunciar e dar certa sonoridade à transliteração. Exemplos: Aleph- A longo Ayin- a breve Yod- I (Y – E) “a” no início de nomes próprios Waw- W (O – U) e – entre consoantes muito difíceis de serem pronunciadas Exemplo: dp.t / de-pet Alguns estudos fonológicos utilizam as gramáticas das línguas afro-asiáticas, línguas vernaculares, o copta, e a escrita cuneiforme, que possuí vogais, como por exemplo as cartas de Amarna, como forma de estudar a pronúncia dos antigos egípcios. Mas como já reforçamos, são apenas hipóteses. Nomes Gregos Muitos nomes e palavras que ouvimos falar sobre o Egito antigo são, na realidade, de origem grega. Contudo, no estudo dos textos egípcios eles também são mantidos. Por exemplo: Diálogos sobre História Antiga e Medieval 39 FIGURA 11- NOME DO FARAÓ TUTEMÓSIS III FONTE: Wikipédia- Domínio Público. Hieróglifos e Tecnologia O uso de tecnologias e ferramentas digitais para o estudo e publicação dos hieróglifos egípcios pode ser elencado a partir da elaboração do Manuel de Codage (MdC) em 1988. Se trata de mais uma convenção egiptológica para a digitação das transliterações e traduções no computador. Assim, os egiptólogos podem enviar seus trabalhos via e-mail, publicarem seus trabalhos eletronicamente e trabalharem em seus computadores: Diálogos sobre História Antiga e Medieval 40 FIGURA 12- MANUEL DE CODAGE (MdC) FONTE: https://aegyptologus.com/gramatica-egipcia-classica/ Acesso em: 01/12/21. Já o aplicativo Fabricius teve origem a partir do projeto The Hieroglyphics Initiative7. Em português “A Iniciativa Hieróglifos”, é uma parceria entre a Ubisoft, o British Museum, o Google, a Macquarie University e a desenvolvedora inglesa de software Psycle Interactive. Também houve a participação de filólogos e estudiosos em línguas antigas de diversas nacionalidades. Este é um exemplo de projeto em Humanidades Digitais e iniciou-se em conjunto com o desenvolvimento do jogo Assassin’s Creed Origins (2017) que se passa no Egito antigo, também produzido pela Ubisoft. Sua proposta contempla os três verbos: aprender, jogar e trabalhar. Portanto, o Fabricius foi pensando para estudantes de diferentes níveis, pesquisadores e o público geral. 7 Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=TfdWNY7priQ Acesso em 01/12/21. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 41 Proposta de atividade com o Fabricius A proposta de atividade abaixo foi explicada para os alunos (as) deste minicurso no vídeo 4. Uma retificação com algumas pequenas correções, foram feitas em um vídeo na sequência. De qualquer forma, o arquivo abaixo com as instruções da atividade a ser realizada, também foi disponibilizado em um documento escrito com acesso via link de nuvem postado na descrição do vídeo 4. É importante ressaltar que, tal atividade só pode ser realizada com o uso do aplicativo Fabricius em notebook ou computador, pois o smartphone não suporta a função “bancada de trabalho”, onde a proposta de atividade a seguir deve ser executada. ATIVIDADE: 1. Escolha uma das três imagens disponibilizadas e faça o download dela em seu computador. 2. Crie um Fac-símile na bancada de trabalho do aplicativo Fabricius com a imagem escolhida. 3. Faça o download do Fac-símile, salve a imagem com seu nome completo e o número do cartucho no seu computador. 4. Exemplo: jéssica_franco_cartucho1 5. Crie um link de acesso para a imagem. 6. Copie e cole o link no formulário do Google para envio da atividade à comissão organizadora do evento. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 42 7. No campo definido no mesmo formulário do Google, escreva com suas palavras, e até atingir o número de caracteres necessários, um feedback do minicurso, com sugestões, críticas, elogios, além de compartilhar conosco sua experiência de aprendizado e com a ferramenta Fabricius. ATENÇÃO! • Não esqueça de colocar SEU NOME COMPLETO no arquivo (imagem do Fac- símile) quando fizer o download dele no seu computador. Pois é através dele, que sua atividade será computada como feita para o recebimento do certificado. • A TRADUÇÃOdo cartucho não é obrigatória. Mas a realização do Fac-símile sim. • Dica: os cartuchos contêm nomes de faraós. Lembra-se? • Utilize o TUTORIAL do Fabricius para fazer o Fac-símile. Além dele, a AULA 4 e o vídeo ATIVIDADE deste minicurso também mostraram como montar um Fac-símile. • Não esqueça: é mexendo no aplicativo que se aprende. Então, mãos à obra! Observação: Foram disponibilizadas três imagens contendo três cartuchos com nomes de faraós para os alunos (as) realizarem a atividade final. O exemplo a seguir é uma delas: Diálogos sobre História Antiga e Medieval 43 FIGURA 13- IMAGEM DE CARTUCHO DO FARAÓ RAMSSÉS FONTE: Acervo pessoal da autora. FIGURA 14- FAC-SÍMILE DE CARTUCHO DO FARAÓ RAMSSÉS FEITO NO APLICATIVO FABRICIUS FONTE: Acervo pessoal da autora. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 44 Referências ALLEN, James P. Middle Egyptian: an introduction to the language and culture of Hieroglyphs. Cambridge University Press, United Kingdom, 2014. BERRY, David M. Understanding Digital Humanities. Palgrave MacMillan, London, 2012. FAULKNER, Raymond O. A Concise Dictonary of Midlle Egyptian. Modernized By Boris Jegorovic. Griffith Institute Ashmolean Museum, Oxford, London, 2017. GARDINER, Alan. Gramatica Egipcia: una introduccion al studio de los jeroglifos. Griffith Institute, Oxford, 1993. GOLD, Matthew K. 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Vídeo algoritmos e racismo: https://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/como-os- algoritmos-espalham-racismo/#page1 Acesso em 01/12/21. Entrevistas Pierre Lévy: https://www.youtube.com/watch?v=DzfKr2nUj8k&t=8s Acesso em 01/12/21 https://www.youtube.com/watch?v=zovtnO7da4I&t=0s Acesso em 01/12/21 https://www.youtube.com/watch?v=3PoGmCuG_kc&t=0s Acesso em 01/12/21 https://www.youtube.com/watch?v=ZYg70y6p3v8&t=20s Acesso em 01/12/21 https://brasil.elpais.com/eps/2021-07-01/pierre-levy-muitos- nao-acreditam-mas-ja-eramos-muito-maus-antes-da- internet.html Acesso em 01/12/21 Minicurso Humanidades Digitais: uma introdução à escrita egípcia através do aplicativo Fabricus: https://www.youtube.com/watch? v=1Yy3Uj5kVRY&list=PL3XrNGdi9kDcHt4YdBmJCCol QQB-BWHsC&index=1 Acesso em 01/12/21 Curso Egípcio Clássico Introdução: https://www.youtube.com/playlist? list=PLI8rGh6UbR_vOBaIrALDQwiSHSgQ2TleQ Acesso em 01/12/21. Curso Egípcio Clássico Avançado: https://www.youtube.com/playlist? list=PLI8rGh6UbR_v6eR72IJklSXgOP4bbxnNM Acesso em 01/12/21. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 46 As Representações das Personagens Femininas nas Heroides de Ovídio: o caso de Penélope e Helena de Troia The Representations of the Female Characters in the Heroids of Ovid: the case of Penelope and Helen of Troy Letícia Schneider Ferreira1 ________________________________________________ Resumo O presente artigo tem por finalidade refletir sobre a temática de gênero por meio da análise de duas personagens presentes na obra Heroides de Públio Ovídio Naso: Helena de Troia e Penélope. Ovídio foi um importante poeta elegíaco romano, que viveu entre 43 a.C. e 17 d.C e deixou uma farta obra que teve como ponto central a temática do amor e dos jogos de sedução. As Heroides são um conjunto de poemas em forma de epístolas e que tem como eu lírico personagens femininas da mitologia ou literatura greco-romana: heroínas como Dido, Medeia e Ariadne, narram suas desventuras amorosas, apresentando sua versão sobre os acontecimentos. As cartas se endereçam, em sua maioria, para aqueles que as abandonaram e traduzem o sofrimento destas personagens em sua solidão. Entretanto, há algumas exceções, como a primeira missiva, de Penélope para Ulisses, em que esta acusa sua ausência, mas apresenta-se em estado de espera e expectativa do retorno do herói; também a carta XVII, dirigida por Helena a Paris, é uma epístola que não condiz com o sentimento de tristeza, ao contrário, a rainha espartana reflete sobre as vantagens em seguir seu hóspede troiano para Ìlion, ou 1 Doutora em História pela UFRGS. Docente de História do IFRS Campus Bento Gonçalves. Email: leticia.ferreira@bento.ifrs.edu.br Diálogos sobre História Antiga e Medieval 47 manter-se fiel ao esposo. Assim, a análise destas personagens icônicas na composição do ideário sobre o feminino, permite que seja possível compreender as relações de gênero presentes na narrativa, mas que estão estabelecidas no contexto em que o autor viveu e escreveu. Palavras-chave: Ovídio. Helena de Troia. Penélope. Abstract This article aims to reflect on the theme of gender through the analysis of two characters present in the work Heroides by Publio Ovídio Naso: Helena de Troia and Penelope. Ovid was an important Roman elegiac poet, who lived between 43 BC and 17 AD and left a rich work whose central point was the theme of love and games of seduction. The Heroides are a set of poems in the form of epistles and which have female characters from Greek-Roman mythology or literature as a lyric: heroines such as Dido, Medea and Ariadne, narrate their love misadventures, presenting their version of the events. The letters are mostly addressed to those who abandoned them and reflect the suffering of these characters in their loneliness. However, there are some exceptions, such as the first missive, from Penelope to Ulysses, in which she acknowledges his absence, but presents himself in a state of expectation and expectation of the hero's return; also letter XVII, addressed by Helena to Paris, is an epistle that does not match the feeling of sadness, on the contrary, the Spartan queen reflects on the advantages of following her Trojan guest to Ìlion, or remaining faithful to her husband. Thus, the analysis of these iconic characters in the composition of the ideals about the feminine allows it to be possible to understand the gender relations present in the narrative, but which are established in the context in which the author lived and wrote. Keywords: Ovid. Helen of Troy. Penelope. Diálogos sobre História Antiga e Medieval 48 As Representações das Personagens Femininas nas Heroides de Ovídio: o caso de Penélope e Helena de Troia. Letícia Schneider Ferreira _________________________________________ Introdução: reflexões sobre gênero, história e literatura A abordagem das temáticas referentes de gênero é não apenas desafiadora como necessária: a demonização das questões relativas as relações entre papéis sociais masculinos e feminino, à misoginia impregnada na sociedade e o preconceito contra grupos de identidades sexuais divergentes à heteronormatividade enraizado nas práticas da coletividade requerem um constante debate em prol da transformação deste cenário. O estudo da construção dessas perspectivas por meio da observação das diferentes narrativas e discursos relativos ao âmbito do sentir e das práticas performativas de homens e mulheres podem auxiliar na desnaturalização do feminino e masculinoenquanto elementos vinculados a um caráter inato e influenciado por elementos biológicos, salientando os processos de disputas de poder que estão envolvidos na delimitação do que seria próprio a homens e mulheres. Assim, gênero, enquanto categoria analítica que propicia que as relações entre homens e mulheres sejam desveladas enquanto espaço conflituoso de disputas de poder, pode ser mobilizado para compreender questões do passado a partir de um olhar que parte do presente. O termo, Diálogos sobre História Antiga e Medieval 49 debatido em um texto canônico e ainda válido para as reflexões sobre o feminino, é apresentado por Joan Scott, a qual expõe que Minha definição de gênero tem duas par- tes e diversas subconjuntos, que estão in- terrelacionados, mas devem ser analitica- mente diferenciados. O núcleo da defini- ção repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um ele- mento constitutivo de relações sociais ba- seadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações do poder, mas a mu- dança não é unidirecional. (SCOTT, 1995, p.86) Os estudos de gênero podem contribuir para a compreensão de uma série de questões socioeconômicas, políticas e culturais de diferentes populações, uma vez que o ideário de gênero, mesmo que não seja necessariamente o centro de organização de determinados grupos sociais, pode conformar formas de ser, de se expressar e agir no mundo. Deste modo, apesar de ganhar fôlego a partir das décadas de 1980/90, os estudos de gênero se mantêm como um recurso interessante e profícuo para a área do conhecimento histórico. Segundo Andrade Questão de gênero: masculino, feminino. Isto envolve apropriação do corpo, formas de interação social, formas de exercício de poder, em uma palavra, tensões, nego- ciações. Mas envolve também, como aliás não poderia deixar de envolver, uma ex- periência social do gênero, e um imaginá- Diálogos sobre História Antiga e Medieval 50 rio. A problematização de masculino e fe- minino a partir da compreensão do gênero - conceito relacional e socialmente produ- zido – constitui um dos campos historio- gráficos mais frutíferos nos últimos anos. (ANDRADE, 1998, p.390-391) O presente artigo tem por finalidade, a partir do aparato teórico-metodológico propiciado pelas reflexões de gênero, analisar a obra Heroides de Públio Ovídio Naso, enfatizando o conteúdo das Epístolas I e XVII, procurando observar de que modo o feminino é mobilizado a partir das personagens Penélope e Helena de Troia. As personagens selecionadas comportam uma série de elementos comumente atribuídos ao feminino, tornando-se exemplares de diferentes formas de acordo com as mensagens que se deseja disseminar na sociedade: Penélope, fiel esposa que por 20 anos aguarda seu esposo, a face da prudência e da sensatez, e Helena, controversa, as vezes exaltada em sua beleza física, em outras condenada por sua suposta futilidade, ganância e imoralidade. Estas figuras femininas serão exploradas mais adequadamente nas próximas subseções, mas é necessário ressaltar que os elementos associados ao feminino extrapolam a caracterização das personagens, mas também revelam prescrições existentes sobre as ações de mulheres e homens em uma determinada temporalidade e local. O estudo do feminino na Antiguidade é, sem dúvida, um desafio dado ao fato de que as fontes que chegaram até os dias atuais são produzidas por homens, havendo, portanto, a necessidade de atentar para o desafio da filtragem desse olhar que parte de uma visão masculina sobre as mulheres. Deste modo, mais que descobrir a “verdade” sobre as experiências do feminino durante a Antiguidade, é possível identificar os discursos e as prescrições que se elaboravam sobre os modelos de Diálogos sobre História Antiga e Medieval 51 comportamento desejados para as mulheres e as impressões destes escritores sobre o sentir e agir feminino. De fato, as investigações sobre o feminino impõem dificuldades a pesquisadores/as de diferentes períodos, uma vez que a invisibilidade sobre o feminino não é algo exclusivo da Antiguidade Clássica. Barbosa afirma que O estudo das mulheres na Antiguidade não difere muito dos estudos contemporâ- neos. O registro primário do que elas fa- zem ou dizem é mediatizado pelos crité- rios de seleção dos escribas do poder. In- diferentes à vida privada, eles dedicam-se à vida pública, da qual elas não partici- pam. Se elas a invadem, eles alarmam-se, como se fora uma desordem [...]. (BAR- BOSA, 2007, p. 354). A escassez de fontes exige que haja a utilização de diferentes vestígios materiais, iconográficos e escritos, no intuito de constituir um olhar sobre o feminino, e a literatura pode ser uma ferramenta essencial para observar os discursos produzidos sobre as mulheres. A literatura, enquanto construção narrativa, permite um diálogo interessante com a História, uma vez que carrega uma série de elementos que possibilitam referir seu contexto de produção, os interesses envolvidos na construção de uma obra ficcional e pensar sobre os valores presentes e divulgados para o público que acessa seu conteúdo. A história e a literatura aproximam-se em uma série de características, uma vez que ambas buscam comunicar por meio da escrita e associam-se a uma série de interpretações da realidade. Contudo, estas afastam-se em outros pontos, como a expectativa que ambas geram: enquanto a literatura é observada muitas vezes como fonte de entretenimento e, portanto, não necessariamente precisa pautar-se pela veracidade dos eventos que narra, a narrativa histórica Diálogos sobre História Antiga e Medieval 52 deveria apresentar uma postura de fidelidade às fontes utilizadas para sua elaboração. Pesavento reflete sobre esta questão, explicitando que (...) leitores de História, em princípio, buscam saber como foi, ou mais ainda, a verdade do que foi, mesmo porque, consa- gradamente, pesa sobre o historiador o pa- pel de desempenhar a fala autorizada so- bre o passado. Mas, mesmo detendo esta autoridade da fala, o historiador se vale dos recursos da linguagem, do esforço re- tórico do convencimento, das evidências de pesquisa. Estas evidências são a exibi- ção de referências bibliográficas, citações, indicações de fontes e notas de rodapé para mesmo provocar o leitor, como já foi antes assinalado: se não acreditar ou não estiver convencido, refaça meu caminho e comprove por si mesmo (PESAVENTO, 2003, p. 38) A literatura é um instrumento pedagógico de considerável importância no período da Antiguidade, apresentando saberes e valores que influenciavam o pensamento e as atos dos integrantes das civilizações deste período histórico. Tais histórias eram acessadas por meio da oralidade, uma vez que estas obras contêm traços de uma possível declamação dos versos, como repetições e vocativos, o que permite inferir que mesmo aqueles e aquelas que não eram alfabetizados entravam em contato com os textos e seus personagens. O ideal heróico, simbolizado na imagem do guerreiro, é propagado entre os indivíduos, integrando o processo educativo na Antiguidade. Souza e Pirateli observam que Diálogos sobre História Antiga e Medieval 53 A sociedade grega, na antiguidade, man- teve uma ligação muito estrita com a arte literária, fosse ela na poesia épica, lírica ou coral. A literatura grega, independente do gênero, acabou por influenciar o povo em seus vários momentos históricos, ser- vindo ao entretenimento, à religião, à edu- cação e aos interesses dos setores domi- nantes, sendo usada de diversas maneiras, paraentreter, doutrinar, educar ou formar o homem grego. Isso pode ser visto, num primeiro momento, quando essa literatura procurava manter viva a tradição familiar gentílica e sua religião mítica com seus deuses. Em um segundo momento, quan- do buscava despertar as emoções e rea- ções do público, do ouvinte, da plateia. Ou ainda também quando exaltava a cul- tura guerreira de um povo que tinha na fi- gura do herói um ideal a ser seguido. (SOUZA, PIRATELI, 2010, p.1-2) Assim como Aquiles, Agamemnon, Menelau e Heitor apresentavam modelos de comportamento e valores sociais vinculados à esfera do masculino, as personagens Penélope, Helena, entre outras, se relacionam com o imaginário sobre o feminino. Deste modo, estas personagens podem auxiliar na prática de descortinar elementos relativos às expectativas referentes ao comportamento feminino e o ideal sobre questões relativas ao âmbito doméstico, ao casamento e maternidade2. Penélope e Helena serão, assim 2 Nogueira reflete sobre a apresentação das figuras femininas na literatura escrita por autores homens, salientando que estes apresentam seu olhar sobre o feminino e referindo que podemos sentirmo-nos próximas as experiências narradas por meio de tais figuras. A autora afirma que: “próximas de nós, as mulheres da literatura grega antiga, seja ela arcaica, clássica ou helenística, são fruto da liberdade poética de seus autores. Podemos tentar descortinar informações sobre o mundo Diálogos sobre História Antiga e Medieval 54 analisadas por meio inicialmente das obras em que são citadas originalmente, ou seja, os poemas homéricos Ilíada e Odisseia, para então serem contextualizadas na obra Heroides de Ovídio. Públio Ovídio Naso, poeta elegíaco nascido em 43 a.C. e falecido em 17 d.C. deixou como legado uma farta obra poética e destacou-se no início do Império Romano, durante o principado de Augusto. As Heroides são poesias em forma epistolar, compostas no início de sua carreira e que tem como elemento de destaque a opção por um eu lírico feminino, na maioria das missivas. Assim, entre as 21 cartas, 18 tem como protagonistas personagens de destaque da literatura e mitologia greco romana, as quais narram as dores do abandono por seus amantes. Ovídio opta, desta forma, por apresentar a visão destas mulheres que lastimam sua situação e acusam os heróis pelos sofrimentos vividos. As cartas que serão analisadas neste estudo, a epístola I, relativa a Penélope e a missiva XVII, referente à Helena rompem com essa lógica, pois a esposa de Ulisses não parece se apresentar como uma mulher abandonada, mas sim como alguém que reclama da ausência do esposo, conjecturando os motivos que levam este a não ter retornado após longos anos, enquanto Helena será aquela que abandona e não a que sofre a rejeição de seu esposo. Deste modo, a compreensão sobre a recepção de Penélope e Helena requer um olhar mais detalhado sobre estas personagens em seus contextos anteriores, para só então ser possível identificar quais elementos relativos a estas figuras e ao feminino são mobilizados por Ovídio nas Heroides. real que o olhar masculino vai deixando transparecer nos seus escritos e esse mundo idealizado está mais próximo dos nossos sentimentos e vivências mais comuns. (NOGUEIRA, 2006, p.100) Diálogos sobre História Antiga e Medieval 55 Penélope: aquela que tece prudentes artimanhas. Penélope é a personagem feminina de maior destaque na obra Odisseia, atribuída ao aedo Homero, o qual teria vivido em torno do século VIII a.C e compilado esta epopeia que versa sobre o retorno do herói Odisseu após o final da Guerra de Troia. Autor do estratagema do cavalo de madeira, Odisseu é amaldiçoado e demora dez anos para conseguir de fato retornar à Ítaca, precisando enfrentar uma série e percalços e perigos que acarretam na morte de todos os seus companheiros. Odisseu, entretanto, procura manter sua memória e seu nome, o qual muitas vezes precisa ocultar para sua própria sobrevivência, e reencontrar sua esposa, da qual se mostra saudoso. A filha de Icário encontra-se em uma situação bastante desafiadora oriunda da longa ausência de seu marido: como uma mulher nobre, cuja mão é desejada por diversos aristocratas, espera-se que ela se case novamente; entretanto, Penélope retarda qualquer decisão, na expectativa de que Odisseu, cujo corpo não foi encontrado, reencontre o caminho de casa. Penélope tem seu palácio tomado por seus pretendentes, que invadem o espaço, realizam banquetes, a assediam e dilapidam a herança de seu filho, Telêmaco, já um jovem adulto, o qual precisou educar sozinha e que agora busca sua afirmação pessoal em um certo confronto com a figura materna. Assim, a relação de Penélope com seu filho e suas ações as quais constantemente performam sua angústia perante a incógnita do paradeiro de Odisseu auxiliam a conformar a perspectiva sobre o feminino presente nesta obra. A compreensão sobre a Penélope homérica se faz necessária uma vez que a epístola ovidiana, conforme será observado posteriormente com maior ênfase, não promove uma descrição da personagem ou permite uma análise de Diálogos sobre História Antiga e Medieval 56 maior fôlego por si só, talvez devido ao conhecimento que seu público já possuísse previamente sobre a personagem e os acontecimentos nos quais ela está envolvida. Portanto, é fundamental observar a Penélope presente na Odisseia, uma vez que a epístola I das Heroides retomará alguns eventos ali descritos. Penélope é introduzida no início da Odisseia, nos cantos denominados “Telemaquia”, uma vez que os acontecimentos centram-se na figura do filho de Odisseu, o qual, desejoso de saber notícias do pai e querendo evitar o confronto com os pretendentes e visando manter o que restava de sua herança, parte em busca de informações sobre seu pai. Penélope é apresentada como uma esposa inconsolável, que mantém sua privacidade, mantendo-se no espaço de seu quarto, onde chora por seu esposo ausente, sempre acompanhada de suas aias. Deste modo, Penélope é apresentada como o modelo de comportamento para a esposa nobre, a qual demonstra sua honra ao se manter reclusa na maior parte do tempo e sempre que possível acompanhada por criadas cuja reputação também deve ser objeto de atenção. Entretanto, Penélope se coloca no espaço público quando assim percebe como algo necessário: exemplo de tal afirmação é o momento em que esta, em seu quarto, ouve um trovador que narra as aventuras de Odisseu no salão em que se encontram Telêmaco e os pretendentes. Afetada pela narrativa, Penélope irrompe no salão com suas acompanhantes no intuito de solicitar que o cantor interrompa a história, pois trazia lembranças que a deixavam entristecida. Assim, Penélope dirige-se ao cantor Fêmio, canções diferentes tu sabes, que os homens encantam gestas de heróis e de deuses, que os vates gloriosos propagam. Dessas, lhe canta qualquer, e que todos te escutem silentes, vinho a beber. Não pros- Diálogos sobre História Antiga e Medieval 57 sigas, porém, nessa história tão triste, que o coração se me aperta no peito ao ouvir- te a cantiga, o que acontece des que a in- comportável saudade me aflige, pela que- rida cabeça, que sempre à memória me ocorre, pelo varão cuja fama em toda a Hélade e em Argos se estende. (HOME- RO, 2003, p.37) A cena é bastante instrutiva e paradoxal em relação ao feminino: a atitude de Penélope revela que as mulheres sentiam-se capazes de apresentarem-se no espaço público, no qual estavam presentes majoritariamente homens e a um deles se dirigir, tendo como motivação a afirmação de sua condição de esposa fiel e saudosa, a qual sequer suporta ouvir referências ao amado sem sofrer com as lembranças. Assim, há a sustentação de um determinadopapel na fala de Penélope, que expõe aos pretendentes espalhados no salão a sua contrariedade em estar exposta a seu assédio e o desejo de se manter intacta enquanto aguarda pelo retorno do esposo, quiçá até a morte. Todavia, a sequência do episódio mostra a interferência de Telêmaco que, ríspido, incita a mãe a retornar ao seus aposentos, ressaltando que aquele não é um local apropriado para uma mulher. Para teu quarto recolhe-te e cuida dos pró- prios lavores, roca e tear, e às criadas so- lícitas ordens transmite para que tudo exe- cutem, que aos homens importa a palavra, mormente a mim, a quem cumpre assumir o comando da casa. Cheia de espanto, Pe- nélope aos seus aposentos retorna pois lhe calaram no peito as sensatas palavras do filho. Acompanhada das servas, subiu para os seus aposentos, para chorar pelo caro marido, Odisseu, té que sono muito tranquilo nos olhos lhe Palas Atena ver- tesse. (HOMERO, 2003, p.38) Diálogos sobre História Antiga e Medieval 58 Essa interdição ao espaço público mostra-se pedagógico, uma vez que o filho descreve inclusive quais as funções da mulher nobre no espaço do lar, ou seja, dedicar- se à tecelagem e a gestão das criadas em suas funções, postura que parece surpreender Penélope não pela grosseria de Telêmaco, mas pela observação de que este já seria um homem adulto, do qual poderia se esperar não apenas que lhe desse ordens, mas que expusesse a ordenação dos papeis sociais de homens e mulheres e impedisse qualquer ruptura neste sentido. A historiadora Mary Beard refere este trecho como um exemplo do silenciamento ao qual as mulheres estavam submetidas, em especial em um período histórico no qual a oralidade é um elemento de destaque, em especial o exercício da fala no âmbito público. Há algo um tanto ridículo nesse menino recém-saído das fraldas calando a experi- ente Penélope, de meia-idade. Mas é uma demonstração de que, no ponto em que começam as provas escritas da cultura ocidental as vozes femininas não eram ou- vidas em âmbito público. Mais que isso, na visão de Homero, parte do amadureci- mento, no caso do homem, é aprender a assumir o controle do pronunciamento pú- blico e silenciar a fêmea da espécie. (BE- ARD, 2018, p.16) Deste modo, a situação abordada pode ser interpretada como a expressão de um rito de passagem, pois a expressão da maioridade de Telêmaco, na ausência da figura paterna, é o enfrentamento junto a esta figura feminina, que deve ser domada e reinserida em seu local por excelência: o espaço privado. Penélope parece aceitar as instruções do filho e se dirige para o quarto, onde chorará por saudades de Odisseu; no entanto, ao longo da obra, é possível identificar passagens em que a personagem rompe Diálogos sobre História Antiga e Medieval 59 com os papéis atribuídos ao feminino, de modo sutil, condizente com a associação de sua figura à sensatez. Penélope carrega em si o contraditório do feminino, e é especialmente difícil definir a personagem, pois a narrativa destaca a ambiguidade de suas ações: mãe zelosa, que se preocupa com a segurança de Telêmaco ameaçada pela presença dos pretendentes, Penélope chora constantemente pela falta de Odisseu. Contudo, a mesma personagem é capaz de elaborar artimanhas que enganam os homens e os submete àquilo que por ela fora planejado. André Malta salienta as contradições presentes na personagem, observando que Penélope parece alternar entre uma e ou- tra posição, ora débil, ora senhora de si, ora vítima, ora condutora do destino, de tal forma que não conseguimos apreen- der, em definitivo, quem ela de fato é. Essa indecisão é um dos mais brilhan- tes efeitos criados pelo poema: por si só, se bem manejada, ela pode contri- buir para adensar qualquer personagem literário, conferindo-lhe mais verdade; atrelada, porém, a uma figura feminina, com toda a sua carga de sexualidade e poder de atração, essa indecisão parece ser potencializada, porque recato e sedu- ção simultaneamente se atraem e repelem. O segredo de Penélope reside no modo hesitante pelo qual a vemos, em certos momentos, como refém dos acontecimen- tos, e, em outros, como aquela que os do- mina por completo. (MALTA, 2012, p.8) Assim, é possível avaliar que Penélope é uma personagem com um elevado grau de complexidade desenhado pelo autor, o qual, ressaltando sua fragilidade em alguns momentos, demonstra também sua astúcia, talvez Diálogos sobre História Antiga e Medieval 60 comparável à métis do esposo, em se valer, inclusive, de aparatos oferecidos pela feminilidade, como o uso do tear, para cumprir com seus desejos. Penélope, interessada em evitar as novas bodas que sua condição social lhe impõe, planeja uma tática para ludibriar os pretendentes: afirmando ser necessário que termine de tecer a mortalha de seu sogro antes de tomar a decisão sobre um novo casamento, a filha de Icário produz o artefato durante o dia e à noite desmancha o trabalho realizado, conseguindo ao longo de três anos afastar-se da escolha de um novo consorte3. Tal passagem, ponto de destaque no poema homérico. É um dos pretendentes, Atínoo, que apresenta ao leitor esta questão, explicitando que Penélope só é descoberta pela traição de uma serva, o que pode revelar também a complexidade das relações entre mulheres no âmbito do espaço doméstico. Passa ela, então, a tecer uma tela mui grande, de dia: à luz dos fachos, porém, pela noite destece o trabalho. Três anos isso; com dolo consegue embair os Aqui- vos. Mas quando o quarto chegou, das sa- zões no decurso do estilo, fez-nos saber a artimanha uma serva de tudo inteirada. Dessa maneira a apanharmos, que o belo tecido esfazia, tendo-se visto obrigada a acabar o trabalho, por força. (HOMERO, 2003, p.44) 3 Em relação a esta questão, Lessa afirma que “não importando as razões que a move, a personagem de Homero consegue o controle por mais de três anos sobre o tempo. Poder esse assegurado pela sua métis e pela sua sophía acerca de uma atividade, conforme já mencionamos, essencialmente do universo das mulheres. Pela tecelagem as mulheres podiam se realizar e angariar o reconhecimento coletivo de uma de suas competências. A arte de tecer se constituía em uma das formas de garantia de acesso das mulheres à cultura, pois tecer é próprio da vida civilizada. A habilidade nas atividades manuais é tida como uma das principais virtudes que se esperam das mulheres.” (LESSA, 2011, p.153) Diálogos sobre História Antiga e Medieval 61 O personagem reconhece a inteligência de Penélope, a qual se refere como agraciada pela deusa Atena, demonstrando que era plausível avaliar o feminino por meio de outras perspectivas que não somente a beleza física e a fragilidade: Penélope era uma personagem dotada de perspicácia, de tal modo que conseguia analisar a conjuntura que se lhe apresentava e quais os meios de que dispunha para solucionar os problemas a contento. Entretanto, o personagem procura mais uma vez, junto a Telêmaco, para quem narra o ardil de Penélope, retomar a “normalidade” das relações entre homens e mulheres: este solicita ao filho de Odisseu que use sua autoridade masculina para ordenar que Penélope escolha o futuro esposo. Manda tua mãe do palácio sair e lhe dizer que case com quem o pai ordenar e a quem ela afeição não recuse. Se persistir, desse modo, a enganar por mais tempo, os Aquivos, muito orgulhosa dos dons com que Atena abrindou a mancheias, não só de méritos de alma, senão de perícia em trabalhos, como de astúcia, por modo qual nunca soubemos das outras que em pris- cos tempos viveram (...) que não supor- tam confronto com o senso da nobre Pe- nélope. (HOMERO, 2003, p.45) A partir da leitura das passagens selecionadas, é possível verificar que Homero produziu uma personagem que contém uma série de aspectos
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