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O estrangeiro - 1 GQ

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Universidade Católica de Pernambuco
Escola de Saúde e Ciências da Vida
Curso de Psicologia
Clínica Fenomenológica
Professora: Gilclécia Oliveira Lourenço
Atividade 1ºGQ – Livro “O estrangeiro” de Albert Camus
Albert Camus foi um escritor da década de 1940, cuja filosofia, chamada de absurdista, é uma interpretação do existencialismo, tendo o objetivo principal de explorar a falta de sentido da vida. O seu livro mais conhecido chamado de “O estrangeiro”, foi escolhido para fazer possíveis conexões acerca dos pressupostos da Abordagem Fenomenológica Hermenêutica, retrata inicialmente a morte da mãe do protagonista, Meursault. Mesmo participando do funeral de sua mãe, ele não lamenta sua morte e se mostra insensível, uma vez que espera-se que um filho chore perante o velório da mãe. 
Outrossim, ele não chora e tampouco quer que o caixão já parafusado, possa ser aberto para ver o corpo. Meursault relata os acontecimentos que se deram após o falecimento de sua mãe, que morava em um asilo. Comenta sobre o velório, o enterro, ter visto o namorado da mãe - o qual não sabia da existência -, a viagem para acompanhar esses eventos e os dias posteriores. Depois passa a falar sobre Marie - com quem começa a se relacionar - e os seus vizinhos, incluindo Raymond - que havia espancado uma mulher e estava brigando com o irmão dela.
Diante disso, é pertinente destacar a concepção da fenomenologia para o conceito de problema, pois, ela reconfigura por completo os termos deste, no sentido de que "conhecer o homem torna-se necessário por que é o sujeito a fonte constitutiva não só de todo conhecimento como de todo objeto possível de experiência e reflexão" (FIGUEIREDO, 2008, p. 174). Posto isso, dentro da perspectiva da fenomenologia hermenêutica, o sujeito só existe no mundo, por essa razão, compreendemos que as possibilidades que serão apresentadas se concretizam na cotidianidade. A exemplo, podemos citar a compreensão do mar enquanto uma realidade concreta, contudo, ao experienciar o mar é que essa vivência se estabelece enquanto possibilidade, por isso, a importância dos símbolos dentro dessa perspectiva, posto que, toda compreensão é antes de tudo uma abertura.
Ademais, acreditamos que seja pertinente elucidar um pouco sobre a angústia na compreensão fenomenológica. Para Heidegger (1989), o ser-aberto constitui-se através do encontro estabelecido com a angústia, que abre para o dasein a possibilidade de assumir seu ser. Nessa perspectiva, trazemos a morte que se apresenta para dasein como angústia, como uma possibilidade inevitável, que não há experiência, mas, que, no entanto, está sempre presente como algo que toca nossa consciência. É essa angústia que nos movimenta para a autenticidade que é bem ilustrada por Meursault.
O personagem principal nos provoca algumas inquietações frente aos acontecimentos e as demandas que são pré-estabelecidas diante de cada situação. Meursault não tomava as rédeas da sua vida, não ia de encontro às alternativas para mudá-la, vivia apenas de forma objetiva, concreta, cuja neutralidade regia seus pensamentos e atitudes. Contudo, comumente aprendemos que nessa disciplina, é preciso compreender o mundo como um existencial, logo, de acordo com Heidegger, "o primeiro passo da analítica existencial consiste, pois, em definir a essência do homem como existência, isto é, como poder-ser" (VATTIMO, 1996, p. 26).
A incapacidade de escolher é um dos problemas centrais do personagem, no pensamento fenomenológico existencial de Heidegger, não escolher também é uma escolha – perspectiva que também concebemos em aula – porém, uma escolha inautêntica. Quando dizemos sim para tudo e todos, nos anulamos, deixamos o ser-no-mundo à mercê dos outros, esvaziando nossa subjetividade e também nossa potência de vida, é dessa anulação de nós mesmos que devemos nos distanciar.
Para além do que acima foi dito, percebe-se também que a vida inteira de Meursault, foi uma vida sem grandes expectativas sobre si. Para ele, tudo o que ocorria, iria de encontro aos acasos da vida, sem que ele refletisse sua parcela de responsabilidade. Os eventos da sua vida são apenas meros acontecimentos, não importando o desfecho das histórias “De algum modo, tinham todo o ar de tratar deste caso à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. (CAMUS, 1957, p. 68).
Este comportamento parece ser um resumo de sua história, vivendo a própria sorte e sem interferência dele próprio. Fica evidente no decorrer do livro, que o protagonista não se importa com diversas situações que lhe envolvem. A falta de posicionamento do mesmo pode ser observada também em momentos dos quais ele não apresenta afeto pela namorada Marie e se mostra indiferente, por exemplo, quando a mesma o pediu em casamento. Além disso, para Meursault, tanto faz se ele vai ou não fazer uma mudança para outra cidade a trabalho, algo que interferiria positivamente tanto no seu profissional quanto na sua vida pessoal.
Na condenação de Mersault, os argumentos e narrativas de julgamento utilizados foram a convocação social na qual ele tinha se recusado a assumir. É válido salientar que o promotor se concentrou mais na incapacidade, ou falta de vontade de Mersault de chorar no funeral de sua mãe, do que nos detalhes do assassinato. Ele retrata a quietude e passividade do personagem como uma demonstração de sua criminalidade e falta de remorso, e denuncia Meursault como um monstro sem alma que merece morrer por seu crime.
 	Seguindo a linha de raciocínio, após o julgamento, Meursault vive em uma cela sem saber exatamente como sua sentença de morte irá acontecer, mas ciente de que em algum momento ele irá morrer. Desde que ele entende que sua morte se aproxima, começa a refletir sobre seu relacionamento com a mãe, sobre seu relacionamento com Marie e pensar sobre toda sua vida. 
Quando o padre chega na cela para que Meursault confesse seus pecados, ele demonstra e verbaliza de várias maneiras que não está arrependido de absolutamente nada, muito pelo contrário, “Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio” (CAMUS, 1957, p. 85). A responsabilização pelos nossos atos, independente deles, nos posiciona no mundo, impulsiona para um devir transformador e modifica nossa realidade, nos torna autênticos.
Em um trecho do livro, referente ao seu julgamento, Meursault relata: “Gostaria de tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeição, que nunca conseguira arrepender-me verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã.” (CAMUS, p. 85). Esse depoimento de Meursault vai de encontro ao conceito de Heidegger sobre o tempo.
 	Heidegger afirma que nós não estamos no tempo, nós somos o próprio tempo e que o agora está sempre em movimento. Defende, ainda, que o tempo só existe porque nós somos mortais, então temos que pensar nas possibilidades.
 	Heidegger entende que tudo são possibilidades, inclusive a própria morte, pois apesar de sabermos que todos vamos morrer um dia, pode ser hoje, amanhã daqui a dez anos, por doença, acidente… são diversas as possibilidades. Além disso, por sabermos que podemos morrer a qualquer momento, damos mais valor ao que estamos fazendo.
No caso do livro “O estrangeiro”, percebe-se que Meursault vivia em movimentos de inautenticidade, sempre respondia que “tanto faz” para os mais diversos tipos de questionamentos. A partir do momento em que ele foi condenado à morte e decidiu que não iria recorrer da sentença, seu comportamento mudou:
 
“Então, não sei por que, qualquer coisa se partiu dentro de mim. Comecei a gritar em altos berros, insultei-o e disse-lhe para não rezar. Agarrara-o pela gola da batina. Despejava nele todo o âmago do meu coração com repentes de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? No entanto, nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher.Nem sequer tinha certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, só tinha isto. Mas ao menos agarrava esta verdade tanto quanto esta verdade se agarrava a mim. Tinha tido razão, ainda tinha razão, teria sempre razão. Vivera de uma certa maneira e poderia ter vivido de outra. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera determinada coisa, ao passo que fizera esta outra. E depois? Era como se durante todo o tempo tivesse esperado por este minuto e por essa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância, e eu sabia bem por quê. Também ele sabia por quê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia.” (CAMUS, p. 98 – 99).
Heidegger (1989), aponta dois modos de ser dos quais se apresentam como existenciais que são: a autenticidade e a inautenticidade. Meursault apresenta uma completa inautenticidade por se anular de todas as lacunas de sua vida, das mais simples às mais complexas. Ele continua tendo sonhos, desejos e reagindo às situações, mas ele se anula das responsabilidades que se apresentam em sua vida, resumindo-se sempre em um “tanto faz”, o lugar da inautenticidade. O nosso dia a dia nos convoca o tempo inteiro a assumir e habitar no lugar da inautenticidade, no entanto, podemos nos posicionar e assumir nossa autenticidade. Nos estabelecer no lugar de diferente e nos tornar responsáveis por nossas escolhas têm um peso, por isso, Mersault vai assumindo lugares e esquecendo de si mesmo, e transita o livro inteiro neste campo de inautenticidade. 
Podemos refletir que no momento do qual o protagonista se dá conta da morte e passa a pensar sobre sua própria existência, ele se mostra autêntico e esse movimento de autenticidade se dá justamente quando ele se recusa a seguir as convenções e normas sociais. Meursault assume a responsabilidade de reconhecer a morte como a possibilidade mais pertinente e autêntica para si:
 
“Este reconhecer a morte como possibilidade autêntica é a antecipação da morte [...] equivalente antes à aceitação de todas as outras possibilidades na sua natureza de pura possibilidades. A libertação antecipatória pela morte liberta da dispersão nas possibilidades que se entrecruzam fortuitamente, de modo que as possibilidades efetivas, isto é, situadas aquém daquela possibilidade insuperável, possam ser compreendidas e escolhidas autenticamente" (VATTIMO, 1996, p. 53).
Nessa perspectiva, a morte para Heidegger possui um caráter insuperável, pois, ela "(...) diferentemente das outras possibilidades da existência, não só é uma possibilidade a que o Dasein não pode escapar como também, perante toda possibilidade, se caracteriza pelo facto de, para além dela, nada mais ser possível ao estar-aí como ser no mundo" (VATTIMO, 1996, p. 52).
Mas é no momento da morte que Meursault sai da anulação para o protagonismo, para autenticidade, ele quer assumir, mostrar quem é e na sua morte, ser reconhecido pelo que foi, pelo o que é.
 
"como se essa grande cólera tivesse levado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Ao percebê-la tão parecida a mim mesmo, tão fraternal, enfim, eu senti que havia sido feliz e que eu era feliz, mais uma vez." (CAMUS, 1957, p. 85).
Ou seja, após a sentença Meursault mergulha em profundas reflexões, avalia os rumos que sua vida tomou, ao confrontar a certeza da proximidade de sua morte, ele diz que, embora o que dizemos, fazemos ou sentimos possa fazer com que nossa morte aconteça em momentos ou em circunstâncias diferentes. Por isso, nenhuma dessas coisas pode mudar o fato de que estamos todos condenados a morrer um dia, então, nada importa em última instância. Nesse sentido, segue exemplo que evidencia uma de suas profundas reflexões: 
 	“Assaltaram-me as recordações de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: odores do verão, do bairro que eu amava, um certo céu ao anoitecer, o riso e os vestidos de Maria. Tudo quanto neste lugar eu fazia de inútil subiu-me então à garganta e só tive uma pressa: acabar depressa com isto e voltar à minha cela, onde ia poder dormir.” (CAMUS, 1957, p. 72)
Observamos outros momentos de autenticidade do protagonista quando esse se destaca ao fazer o contrário do esperado pela sociedade, como chorar no enterro da mãe, e no momento em que apesar da insistência do juiz em pedi-lo que se arrependesse e se convertesse ao cristianismo. Meursault afirma que não se arrepende de ter cometido o assassinato, e não se converterá, manifestando assim outra singularidade existencial, visto que o padre se impressiona pela atitude que é um tanto diferente do que ele enfrenta de costume. 
Importa observar que nesta narrativa a morte está sempre presente. A primeira aproximação à morte é a da mãe, o que não foi suficiente para convencer Meursault da efetividade da morte. Ele sente, no máximo, uma sensação de perda que, aliás, nem se manifesta no momento. Logo após, a morte do árabe, concretizada por um gesto seu, o que também não o comoveu, nem causou arrependimento, a sensação de ser culpado significa para ele apenas que deve pagar por isso. Somente a perspectiva da própria morte o leva à compreensão da mesma. 
Nesse mesmo sentido, Sartre discorre que “a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência" (2010, p. 20). Conclui-se que para os padrões morais e éticos da sociedade ele é um cidadão incomum, estranho, um total “estrangeiro” neste mundo, por isso, não tinha a sensação de pertencimento com os espaços.
Podemos pensar a releitura do título "O Estrangeiro" perante Meursault ser estrangeiro ou estranho à própria existência, oscilando em movimentos de inautenticidade, quando não se responsabiliza pelas escolhas que são feitas diante das possibilidades e, de outro, em movimentos de autenticidade sutis, voltando-se para o grande momento de autenticidade no cerne de sua morte. Nesse sentido, todos nós temos um pouco do estrangeiro. Em janeiro de 1955 o autor do livro levanta uma crítica interessante:
 
“Eu resumi O Estrangeiro há muito tempo, com uma observação que admito ser altamente paradoxal: Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte. Só quis dizer que o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo”.
 
Por fim, compreendemos que o existir é um fardo para Meursault, o lidar com questões de presente, passado e futuro são de fato difíceis e que cabe ao psicoterapeuta manejar junto com o paciente, o caminho que vai ser trilhado pelo próprio paciente. A fenomenologia compreende que o Dasein significa nós mesmos; nós sempre no mundo; nós juntos as coisas com os outros. Portanto, tudo é significado, tudo tem seu sentido atribuído por nós e pelos outros.
 	A história de Meursault representa um homem que não dialogava com seu meio, nem se sentia fazendo parte, desta forma, não tinha forças suficientes para encontrar caminhos alternativos. Para a fenomenologia, não há mecanismos de defesas, nem teorias pré-estabelecidas para dar conta das problemáticas fenomenológicas existentes. Contudo, podemos considerar que o trabalho psicoterapêutico, nessa perspectiva, pode ajudar nos cuidados com nós mesmos, bem como, o sentido de coisas pertinentes para nós, compreendendo, assim, que cada ser é diverso e individual.
 
REFERÊNCIAS
 
BEAUREPAIRE, L. Z, O Estrangeiro: Albert Camus. Bons livros para ler, Rio de Janeiro, Ano 16, Maio/2016. Disponível em: <https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/o-estrangeiro/4929>Acesso em 18 de Março.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de António Quadros. — São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução por QUADROS, Antônio, 2000.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. 45ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019. Edição do Kindle. 
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. Matrizes do pensamento psicológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2008. 
KRETSCHMANN, Angela. O estrangeiro: Albert Camus. Diálogos do direito, Rio Grande do Sul, - v.5, n.9. 2015. Disponível em: https://ojs.cesuca.edu.br/index.php/dialogosdodireito/issue/view/60. Acesso: 15 Mar. 2023.
MUSSE, Ricardo. Contra a moral, a religião e a filosofia. Blog da Boitempo, 2013. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/11/29/contra-a-moral-a-religiao-e-a-filosofia/. Acesso: 15 Mar. 2023.
VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. 10. ed. Lisboa, 1996.

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