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Literatura_Portugues_IV_Impresso-46

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- Muito conde, muita léria, mas há vinte anos que me comes as sopas. Quando houve fome lá 
pelos palácios, foi aqui que a vieste matar, com família atrás. E vinham todos mais humildes, vinham 
quase de rastos. Nesse tempo o que a prosápia queria era broa.
Tornou a passar-lhe o amoníaco pelo nariz e declarou na sua voz um pouco velada:
- Havia em Alva um cocheiro que falava mais ou menos assim e certo dia meu pai não teve outro 
remédio senão chicoteá-lo.
O rosto dela, espantosamente pálido, abria um fulgor ácido na penumbra da sala: 
- Mas não tenhas medo, Silvestre, podes insultar-me à vontade. Os mortos não empunham 
chicotes.
- Não? Os retratos dos nobre Pessoas pendem solenes das paredes do escritório. Olhe para eles, 
D. Maria dos Prazeres. Os mortos estão dentro desta sala, com um chicote implacável. O orgulho de 
velhos senhores, as carrancas severas, o pó das calendas, as tretas do costume. O seu marido tem 
de destruir os mortos. De tentar, pelo menos. Que outra coisa pode ele fazer? Deixe-o experimentar. 
Ou eu me engano muito ou vai sair-se mal. Ora repare.
Ergueu-se com dificuldade e apanhando pela sala tudo o que lhe veio à mão decidiu espatifar os 
retratos. Uma fúria trêmula de bêbedo. Ali tinha os Alvas, os Pessoas, os Sanchos, livros e garrafas 
nas trombas, copos e tinteiros nas fuças, jarras, cinzeiros, lixaria nas ventas. Vidros estilhaçados 
acordavam um som agudo pelo sombra, coisas pesadas tombavam surdamente no tapete.
...
Além do conflito de classes personificado no casal, o estilo de Carlos Oliveira é rico em símbolos, como o 
que sugere a abelha no título do romance ou a referência à água.
VEJA O TRECHO 
Eis um trecho ilustrativo dessa simbologia, em que o narrador compõe um paralelo entre a morte 
de uma personagem e a morte de uma abelha.
- Acuda, senhor doutor, a Clara atirou-se ao poço da olaria.
Arredou-as e largou a correr. Gente excitava rodeava a oficina. Acabavam de tirar a rapariga do 
poço. Rompeu o ajuntamento e foi parar como ela no poial da cozinha. Roxa, desfigurada; um certo 
halo de distância, que ele conhecia bem. Mesmo assim, tentou reanimá-la, farto de saber que era 
inútil. Tentou, como da outra vez, quando havia ainda alguma luz no olhar assustado. Virou-a de 
bruços, comprimiu-lhe as espáduas para aliviar os pulmões carregados de água. Inútil, mas continuou 
até o suor lhe correr pela cara. E as lágrimas também, apesar da sua velha convivência com a morte. 
Em volta, os homens rosnavam pragas ao acusa-cristos do Silvestre, as mulheres lamuriavam o 
responso.
De regresso a casa, ao entrar no quintal, começou a chover. Acolheu-se às ramagens da 
laranjeira grande. Cigarro sobre cigarro; difíceis de acender: tabaco úmido, muito vento. 
A chuva luminosa parecia deslizar numa superfície de cinza.
A noite longínqua, o rosto aflito; o bibe de riscado, as rosas, o diabo do pé; o chocalho da água 
nos pulmões. 
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