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2010_2_22032010_PUCRS_O_QUE_E_BIOETICA _Tecendo_uma_primeira_nocao

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UNILASALLE 
Bioética 
Introdução 
Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen [2010 II] 
 
 
O QUE É BIOÉTICA? 
Tecendo uma primeira noção 
 
INTRODUÇÃO 
 
 As inúmeras transformações acontecidas nos últimos decênios, mediadas pelo 
acelerado desenvolvimento da ciência e da técnica, possibilitaram extraordinária capacidade 
de interferência do ser humano nos demais seres vivos, sobre os ecossistemas e, 
especialmente, sobre si mesmo. Esse poder de intervenção é, simultaneamente, admirável 
e perturbador. As inúmeras conquistas, mormente no campo das ciências médicas, por 
exemplo, têm estendido e qualificado a vida dos humanos sobre o planeta. As modificações 
climáticas, o consumo predatório, o desaparecimento precoce de inúmeras espécies, o 
esquecimento das populações periféricas, entretanto, indicam desequilíbrios não resolvidos 
pela capacidade técnico-instrumental. 
 O paradoxo enunciado revela tanto confiança na ciência e nos seus resultados como, 
fragilidade em lidar com os seus limites e contradições. O quadro posto em questão mostra, 
claramente, o descompasso entre o pensamento instrumental, manipulador e transformador, 
e o pensamento reflexivo, impotente em criticar e dar razões ao pensamento técnico-
científico1. O pólo do sentido, lócus nascente da reflexão ética, dá-se conta dos desafios 
lançados pelo pólo técnico-científico e descobre-se desafiado. A par dessa constatação, 
verificamos que a técnica dos gregos, esse saber fazer com ciência, era pensado na sua 
ligação com a dimensão ética ou prática da vida. A ética, na pretensão dos antigos, 
portanto, investigando o sentido das ações humanas, incidia sobre o fazer produtivo. As 
dimensões teórica [ciência], prática [ética] e técnica [instrumental] da vida humana, em 
resumo, se reivindicavam. Cumpre, então, diante dos novos desafios, interrogar os limites e 
possibilidades do pensamento instrumental, investigando seu sentido, recuperando a 
intencionalidade integrativa da tradição filosófica pela re-ligação entre ética e técnica. Essa 
 
1
 Segundo Jean Ladrière (Os desafios da Racionalidade. São Paulo: Vozes, 1979. p. 137-60) haveria, 
descompasso entre o Pólo da Tradição [Filosofia, Ciências Humanas, Teologia e Artes] e o Pólo da Ciência e da 
Tecnologia. O Pólo da Tradição, diante das aceleradas transformações no campo instrumental e do profundo 
impacto exercido sobre as culturas, não estaria conseguindo justificar [viabilizar sentido] a vida humana nesse 
novo contexto. Como, então, lidar com as novas possibilidades e os desafios desse novo mundo? Estamos diante 
de interrogação que exige nosso cotidiano esforço reflexivo. 
2 
tarefa, pensamos, realizada interdisciplinarmente, é reflexão filosófico-prática, exercício 
teórico-ético. 
 A Bioética, a nova face aplicada da Ética, surge nesse contexto de inquietantes 
transformações, instigada pelas possibilidades de utilização das novas tecnologias 
biomédicas nas diversas áreas inserção. Em nosso estudo, de caráter propedêutico, 
perguntaremos pelo significado da Bioética, indicando sua relação com a Ética, explicitando 
seus conceitos operatórios fundamentais, discutindo sua natureza, dimensões e setores. 
 
1 O que é Ética? 
 
 Ao afirmarmos que a Bioética é nova face da ética aplicada, defendemos, 
implicitamente, determinada noção de Ética. É preciso, de conseguinte, antes de examinar a 
noção de Bioética, estudar o significado de Ética. O que é, de fato, Ética? 
 Ética, situada no plano da Filosofia prática2, examina o agir humano. Poderíamos 
definir Ética, em conseqüência, como a ciência do agir humano. À Ética, segundo 
Aristóteles, competiria pensar a relação entre o agir humano e o sentido ou finalidades da 
existência do homem. Ética deriva de Ethos, indicando o caráter de uma pessoa ou de um 
povo. Cada povo, assim como cada pessoa, teria seu ethos, seu modo próprio de ser. 
Aristóteles, no entanto, define Ética como ciência, ou seja, define-a como um exercício 
rigoroso que investiga o agir humano. De que agir ou ações estamos falando? De um agir 
específico, qualificado, nascido da reflexão e da deliberação, capaz de afetar a vida do 
agente e, também, a vida de outras pessoas. Determinar a natureza de tal agir 
confrontando-o com os fins da vida humana, seria a tarefa da Ética. 
 
 
 
 
2
 Segundo Aristóteles (Metafísica I, 1,2 e Ética a Nicomâco VI), as ciências podem ser classificadas considerando 
seu objeto e grau de universalidade. Às ciências poéticas [arte ou técnica] é reservada a tarefa da produção dos 
bens necessários à vida humana [abrigo, alimento, saúde, bens culturais, etc.]. À Filosofia Prática [que examina 
o agir humano: práxis] compete refletir sobre a vida individual [Ética] e a vida na cidade [Política], indicando os 
critérios pelos quais atingiremos o máximo de realização humana, consideradas todas as possibilidades de vida 
feliz na perspectiva da realização do bem individual e do bem comum. As Ciências Teóricas, gratuitas, dividem-
se em particulares [aquelas que examinam aspectos específicos do ser: como a biologia, a física, a psicologia e a 
matemática] e a Filosofia Primeira, saber abrangente que investiga os primeiros princípios da realidade. Se as 
Ciências Poéticas e a Filosofia Prática são conhecimentos aplicados, entretanto, as Ciências Teóricas são 
exercício gratuito de investigação. As Ciências Teóricas, destacamos, tratariam de aspectos particulares do ser 
[Ciências Particulares] ou do ser enquanto ser [Filosofia Primeira]. Segundo Aristóteles, participam em maior 
grau da natureza da Sabedoria – objeto da investigação das Ciências – os conhecimentos mais universais e 
gratuitos. Assim, teríamos a seguinte classificação, ascendente, quanto ao grau de dignidade e importância das 
ciências: Ciências Poéticas, Filosofia Prática, Ciências teórico-particulares e Filosofia Primeira [Metafísica]. 
Em nossa concepção, a Filosofia Prática [Política e Ética] – enquanto conhecimento aplicado – é exercício 
filosófico pleno, ação reflexiva de primeira grandeza. A Ética, reflexão prática, conseqüentemente, é pleno 
exercício filosófico, reflexão indispensável, Filosofia em sentido maior. 
3 
1.1 Ética e Moral: aproximações e definições 
 
 Podemos, igualmente, definir Ética como ciência da moral, ou melhor, como teoria ou 
ciência do comportamento moral dos homens em sociedade3. Ética, enquanto teoria, 
pretende ser conhecimento rigoroso do comportamento qualificável como moral. Moral4, por 
sua vez, deriva de mos, mores: costume, costumes [uso, caráter, comportamento]. Por 
moral, entendemos o conjunto de normas aceito e vivido por indivíduos concretos em 
determinada sociedade. O objeto da Ética é, por conseguinte, o comportamento 
caracterizado como moral, ou seja, nascido da reflexão e da consciência, orientado por 
normas admitidas e observadas livremente por indivíduos que compartilham suas vidas em 
determinada sociedade. É conveniente recordar: esse comportamento, caracterizado por 
moral, afeta a vida de outras pessoas. Na realização da moral, salientamos que o grau de 
autonomia e liberdade varia entre indivíduos, culturas e épocas da história. Entretanto, 
quanto maior o grau de autonomia na vida moral dos indivíduos e sociedades, tanto mais 
qualificada e plena será essa dimensão da existência5. 
 
 
 
 
3
 Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22. ed. RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 23. 
4
 Mos, mores é a tentativa dos latinos traduzirem ethos, daí as palavras ethikós e moralis [Cf. SARAIVA, F.R. 
dos Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993. p.435/754]. Aquilo que a 
tradição grega denominava ética, portanto, passou a ser designado pelos latinos por moral. Ética [do grego 
ethos] indica: costume, condução de vida, regrasde comportamento, caráter de uma pessoa ou de um povo. 
Moral [do latim mos, mores] designa: costumes, conduta de vida, regras de comportamento, remete ao agir 
humano. Ética e Moral, portanto, numa primeira compreensão, podem ser consideradas sinônimas, pois as 
palavras coincidem na indicação de um comportamento justificado por normas. Entrementes, embora as línguas 
ocidentais tenham usado esses vocábulos como sinônimos, é interessante diferenciá-los. Nessa perspectiva, 
convencionamos, considerando a evolução do uso das palavras, indicar por Ética a dimensão teórica, reservando 
a palavra Moral para sinalizar a instância dos costumes e normas. Em nosso estudo, destacamos, por questões 
metodológicas e epistemológicas [em acordo com a tradição inaugurada por Aristóteles], por Ética indicaremos 
o momento teórico e por Moral a dimensão normativa e os costumes. 
5
 Se o objeto da Ética é o comportamento moral, é conveniente entendê-lo. Em primeiro lugar, os animais, 
altamente especializados, estão rigidamente ligados ao meio ambiente. O ser humano, ao contrário, plástico 
[moldável] recebe da cultura uma segunda natureza que permitirá sua sobrevivência. Essa segunda natureza, a 
cultura, situa o homem no mundo, destacando-o do cosmo. Ser gregário, racional e portador de linguagem, o 
homem buscará na cultura respostas às diferentes necessidades. Nessa direção, precisará descobrir, interiorizar e 
realizar normas, pois sua plasticidade, seu comportamento não-fixado instintivamente, ao mesmo tempo que o 
abre ao mundo, exige novo suporte. Esse processo de interiorização das normas, mediado pela educação, realiza 
as várias etapas de socialização incorporadoras do indivíduo ao tecido social. Os animais, destacamos, recebem 
do rígido aparato instintivo a direção do comportamento. O homem, frisamos, encontrará na moral [nas normas] 
efetiva orientação e adequada compensação cultural. Em segundo lugar, somente poderá ser caracterizável como 
moral, aquele ato que, tendo observado ou não a norma, afeta positiva ou negativamente a vida de outras 
pessoas. Em terceiro lugar, a ação moral supõe a capacidade de antecipar os resultados, nascendo de livre 
deliberação, sendo avaliável segundo suas conseqüências. Em quarto lugar, o comportamento moral supõe a 
capacidade de resistir à coerção externa ou interna na direção do agir voluntário. Em quinto lugar, a 
voluntariedade supõe racionalidade compartilhável intersubjetivamente, capaz de conceber e reivindicar a 
norma, adequando-a, realizando-a, avaliando-a. A Ética procurará compreender e significar o comportamento 
que denominamos como moral. 
4 
1.2 Problemas éticos e problemas morais 
 
 Efetuada a distinção entre Ética e Moral, podemos esclarecer e diferenciar o âmbito 
dos problemas morais e dos problemas éticos. Enquanto os problemas morais são factuais, 
práticos, concretos; os problemas éticos são gerais e teóricos. 
 O indivíduo, agente moral, procura auxílio nas normas morais, pois, cotidianamente 
vê-se desafiado pelos dilemas do dever e de sua realização. O agente ético precisará 
indagar sobre o modo de aplicação da norma em cada situação. Se a norma, em sua 
universalidade, é precioso auxilio, todavia, como aplicá-la em cada caso singular e nos 
diferentes contextos? Como realizá-la, salvaguardando o bem dos indivíduos envolvidos em 
cada situação? A norma em sua generalidade, em conclusão, precisa ser adequada às 
singulares exigências que a reivindicam. Destarte, poderá orientar a ação na direção do bem 
visado, permitindo posterior avaliação das conseqüências positivas ou negativas alcançadas 
na ação. Os problemas morais, assim sendo, tratam dos conflitos inerentes à vida moral, 
essencialmente práxica. 
 Dizíamos que os problemas éticos são gerais e teóricos. Então, quais são os 
problemas tratados pela Ética? Competirá a Ética estudar o comportamento moral, 
indicando seus elementos constituintes, explicitando as teorias que podem garantir sua 
racionalidade, justificando sua possibilidade. Cumprirá à Ética julgar os códigos morais e 
suas normas, indagando sobre sua aplicabilidade, questionando sua realização. A Ética 
perguntará pelos critérios da avaliação moral, investigando a contribuição das diversas 
escolas éticas. Estudará a relação entre a vida moral e seus fundamentos antropológicos, 
questionando a relação entre valor e norma, indagando a dialética entre indivíduo6 e 
sociedade7. Questionará a relação entre liberdade e obrigatoriedade8. Sobretudo, a Ética 
avaliará o conteúdo de racionalidade da norma, sua exeqüibilidade e alcance. A norma [em 
seu caráter incondicional] realmente se justifica? Através de quais procedimentos a norma 
poderá ser adequada e realizada? Cabe à Ética, finalmente, a tarefa de conceder, 
argumentativamente, as razões de possibilidade do mínimo ético9, capaz de orientar a vida 
 
6
 Dimensão subjetiva da vida moral. 
7
 Dimensão objetiva da vida moral. 
8
 Quais são as condições e os pressupostos da livre adesão do agente moral ao obrigatório [ao dever]? Por que e 
como o agente ético livremente realiza o obrigatório proposto pelo dever? 
9
 O que é o Mínimo Ético? Através de um exercício racional-comunicativo, podemos indagar: quais são os 
valores e princípios que permitiriam a convivência entre os humanos em sociedade? Esses valores e princípios, 
por sua validade intersubjetiva, por seu caráter trans-cultural, por seu conteúdo de racionalidade, forneceriam as 
bases dessa convivência num mundo em crescente globalização e mundialização. O respeito à vida em geral e às 
pessoas, o exercício da solidariedade, a promoção dos direitos e liberdades fundamentais, encontrariam no 
Mínimo Ético sua referência e fundamento. Nesse sentido: quais são as coisas mais importantes em minha vida? 
Quais são os valores pelos quais oriento minha existência? Incluo as outras pessoas e seres vivos no meu projeto 
de vida? Como minhas escolhas axiológicas são, de fato, vividas? 
5 
em sociedade. À Ética, em resumo, é indicada a tarefa de validar racional e 
intersubjetivamente o horizonte sobre o qual se estabelece a vida em comum. 
 
1.3 Relações entre Ética e Moral 
 
 Do exposto, é conveniente, em termos didáticos e metodológicos, diferenciar Ética 
de Moral, pois, comumente, usamos os dois termos como sinônimos. Assim, não agimos 
eticamente, mas agimos segundo normas morais, procurando realizá-las. A Ética, portanto, 
avalia o conteúdo da ação moral, reflete sobre essas ações, indaga, teoricamente, sobre o 
significado dessas ações. Agimos moralmente e avaliamos o conteúdo dessa ação 
observando suas conseqüências. A Ética poderá dizer se, atendendo as normas de 
determinada moral vigente, indagando sobre as conseqüências da ação, atuamos com 
correção, se afetamos positiva ou negativamente outras pessoas. Agimos moralmente e 
refletimos sobre o significado de nossas ações. Ética, enquanto ciência do comportamento 
moral, enquanto exercício teórico, poderá examinar o conteúdo dessa ação, na busca de 
compreendê-la. 
 Ética, compreendida como ciência da moral, inquirirá sobre a relação entre o 
normativo e o factual, entre a norma [ou lei moral] e as ações morais, entre moral [geral] e 
moralidade [realização do geral]. Interrogará sobre a correspondência entre o Ideal 
[normativo] e a vida moral concreta. E, se as normas morais procuram expressar os valores 
que a humanidade vem descobrindo como fundamentais, a Ética examinará como tais 
valores são traduzidos nas normas vigentes e, sobretudo, como são vividos10. 
 A seguir, relacionaremos Ética e Bioética refletindo sobre os dilemas éticos 
vivenciados pelos profissionais da área da saúde. 
 
2 A Bioética e os dilemas éticos 
 
 Os dilemas éticos acompanham os seres humanos ao longo da história, encontrando 
sua raiz nas ações morais. O que caracteriza a ação moral? A ação moral, recordamos,realiza uma norma, apresentando conseqüências constatáveis, positivas ou negativas, não 
somente para o agente, mas para outras pessoas. Ora, como a norma é prescritiva e 
 
10
 Como devemos compreender a instância normativa moral na sua relação com a lei? As normas morais 
traduzem valores e princípios que orientam a vida em sociedade. Vinculam-se ao costume, se enraízam na 
consciência do indivíduo e são livremente cumpridas ou violadas. Essas normas podem, com o tempo, receber 
explicitação em forma de lei positiva [escrita]. A lei, em sua positividade, traduz, antecipa ou contrária a norma 
moral, exercendo sobre as pessoas poder coercitivo. Se as normas morais regulam, com certo grau de 
espontaneidade a vida dos indivíduos, a lei ordena por seu caráter coercitivo. Daí as diferenças entre o moral e o 
legal, e os conseqüentes conflitos. Cumpre à Ética indagar se determinado dispositivo legal é, de fato, 
moralmente válido e eticamente justificável. 
6 
anunciadora do dever ser, cotidianamente, diante de exigências práxicas, o agente moral 
precisa decidir pelo cumprimento, adequação e realização dessa norma. Como conciliar a 
pretensão de universalidade da norma em cada situação? Motivado pela realização do fim, 
decidido em alcançá-lo, o agente ético elege os meios e atua na direção do bem visado. 
Norma realizada, ação concluída, o agente e pessoas envolvidas avaliam o resultado obtido. 
Nessa avaliação, perguntam pelo bem ou possível prejuízo resultante da ação. Nesse jogo, 
que envolve decisão e escolhas, destacamos, é importante eleger mediações adequadas e 
eticamente justificáveis, pois os meios se fazem presentes nos fins alcançados, 
denunciando o agente, tornando-o merecedor de mérito ou reprovação11. 
 Os profissionais da saúde, ante dos avanços nas pesquisas biomédicas e de novos 
recursos tecnológicos, vêm-se, nesses novos tempos, desafiados por inúmeras 
possibilidades e, inquietos, indagam sobre a aplicação desses resultados no exercício 
profissional, nas suas ações cotidianas. Os profissionais da saúde, agentes morais, são 
capazes de responsabilidade: estão aptos para assumir as conseqüências de seus atos. 
Entretanto, mesmo amparados por normas, códigos deontológicos e prescrições legais, 
precisam refletir, dialogar, decidir, em cada caso, pelo modo de aplicação da norma 
segundo o bem visado naquela ação. 
 As situações problemáticas, cotidianamente experimentadas, apontam para o uso 
adequado e prudente dos novos recursos, indicando gradativa consciência sobre o 
estabelecimento de limites à aplicação e utilização dessas tecnologias – segundo o 
horizonte do respeito à vida em geral e à vida humana em particular – e a correspondente 
não instrumentalização dos seres vivos, principalmente das pessoas. Então, se o técnico 
indica a possibilidade do fazer, a reflexão ética solicita a justificativa de tal fazer. A Bioética, 
assim pensamos, é instância reflexiva apta a justificar e ligar a dimensão técnica e a 
dimensão ética da existência, o campo da intervenção produtiva e o campo do sentido. 
 O enfrentamento dos dilemas éticos no âmbito do cumprimento do dever, os desafios 
lançados pela aplicação das novas tecnologias, a necessidade de justificar eticamente 
normas capazes de orientar os profissionais da saúde, em suas atividades clínicas ou de 
 
11
 As ações humanas são passíveis de avaliação moral e jurídica. Julgamos e somos julgados segundo valores, 
princípios e normas socialmente compartilhados. Julgamos, inclusive, a nós mesmos. No campo legal, o 
descumprimento voluntário da lei implica em penalização, conforme culpa ou dolo. Nessa direção, na vida 
profissional, a negligência ou imperícia compromete o agente. A diferenciação entre ignorância voluntária e 
ignorância involuntária [existem coisas que não posso não saber e coisas que não poderia prever], a observância 
das prescrições legais, o cumprimento das normas dos códigos profissionais, a cotidiana reflexão, o empenho em 
realizar eticamente as tarefas determinadas: possibilita segurança, satisfação e realização na vida profissional. 
Portanto, a reflexão ética, a justificativa do cumprimento da norma, o atento desempenho das obrigações 
[deveres] envia o profissional à dimensão dos seus direitos, permitindo alcançar realização profissional e 
humana. Nessa direção, os valores e princípios, os códigos, leis e reflexão ética tornam-se indispensável auxílio, 
revelando vital significado, pois em cada ação – o profissional é convocado a justificar suas escolhas e partilhar 
racionalmente suas decisões. Os profissionais de todas as áreas, enquanto seres humanos e agentes éticos, 
enquanto responsáveis, precisam decidir prudentemente e na direção do bem das pessoas afetadas por suas 
decisões e escolhas. 
7 
pesquisa, movimenta a Bioética, essa nova face da Ética, enquanto Ética aplicada12. Mas, 
como entender a bioética? O que é a bioética? Qual é o seu campo de atuação? Que 
relações a bioética estabelece com as diversas ciências, com a Filosofia e com a Ética 
geral? São indagações justas que precisam ser examinadas. 
 
3 Por que Bioética? 
 
 O Prof. Joaquim Clotet, pioneiro nos estudos bioéticos no Brasil, quando do 
lançamento de revista nacional dedicada à reflexão bioética, comenta as mudanças 
estimuladoras ao surgimento da Bioética13. 
 Segundo Clotet, o desenvolvimento das ciências biológicas e decorrente impacto na 
medicina alteraram práticas médicas tradicionais, desencadeando inusitados 
questionamentos, suscitando novos dilemas desafiadores à reflexão ética14. 
 A socialização da medicina15, igualmente, é fator mobilizador de profissionais, 
instituições, comunidades e governos. Nesse sentido, quais são os percentuais dos 
orçamentos públicos a serem destinados à saúde? De que maneira devem ser aplicados? 
De que modo esses investimentos são controladas? Como conciliar as reivindicações das 
pessoas com a capacidade orçamentária dos sistemas de saúde? Quais sãos os direitos e 
deveres implicados, nessa democratização, envolvendo profissionais e beneficiados? 
 A crescente medicalização da vida, ou seja, a existência de especialidades médicas 
que abrangem diferentes etapas da existência humana, é outro importante fator. 
Recorremos, freqüentemente, a médicos e outros profissionais da saúde, seja por razões 
clínicas importantes ou, até mesmo, por motivos estéticos16. A emancipação dos 
 
12
 A Bioética não é uma nova forma de Ética, mas, frisamos, Ética aplicada. A Bioética [enquanto Ética 
Aplicada], afirmamos provisoriamente, é reflexão interdisciplinar de caráter filosófico-prático, que procura 
responder aos desafios lançados pela aplicação das novas tecnologias médicas. 
13
 Cf. CLOTET, Joaquim. Por que Bioética. In: Bioética, uma aproximação. Porto Alegre: EDIPURS, 2003. 
p.16-21. 
14
 Se o progresso das ciências biológicas é inegável, no entanto, as mudanças decorrentes são questionáveis. 
15
 O reconhecimento do direito dos cidadãos acessarem os tratamentos reclamados por suas situações de saúde, 
em incontáveis casos, conflita com a capacidade dos sistemas públicos em atender essas demandas. Dentre as 
possíveis causas, encontramos a carência de recursos, planejamento equivocado e, até mesmo, aplicação 
deficiente dos recursos financeiros. Ao mesmo tempo, o alto valor de certos exames, procedimentos médicos e 
remédios permite indagar sobre a relação custo-benefício, suscitando o tema do equitativo acesso da população 
aos tratamentos disponíveis. Como, então, considerando os recursos existentes, maximizar e democratizar o 
acesso aos tratamentos? Na mesma linha, de que maneira é possível, através de políticas públicas, desenvolver 
políticas de prevenção? Outra interrogação encontra sua origem na crescente privatização da medicina.Podem 
planos privados negar cobertura aos seus clientes? Como as empresas de saúde devem conjugar a equação lucro 
e direitos dos seus clientes? Essas indagações, por sua urgência, merecem atenta reflexão. 
16
 Aqui, cabe importante indagação: Quais são os procedimentos que devem ser bancados pelos sistemas de 
saúde? Procedimentos de caráter estético, por exemplo, diante da escassez de recursos, deveriam ser realizados 
por instituições públicas e financiados pelos sistemas públicos de saúde? Nessa direção, quais os procedimentos 
prioritários? Quais os critérios que permitem indicar os procedimentos prioritários distinguindo-os dos 
supérfluos? 
8 
pacientes provocou revisão da relação médico-paciente. As pessoas, detentoras de 
informações sobre suas situações clínicas, reivindicam esclarecimentos de seu médico. Os 
tratamentos precisam ser, então, explicados. A figura do antigo médico, possuidor de saber 
inquestionável, cede lugar a um profissional que ensaia diálogos com os beneficiados por 
suas ações. 
 Nos hospitais e organismos de pesquisa, surgem comitês de ética de caráter 
interdisciplinar. Esses comitês são importante apoio ao exercício profissional, estabelecendo 
protocolos e diretrizes para as práticas clínicas e exercício de pesquisa. 
 A premência, em sociedades plurais, do estabelecimento de padrão moral 
compartilhável por pessoas de moralidades distintas, a busca de princípios mínimos 
capazes de orientar os profissionais da saúde em suas práticas clínicas e pesquisas, têm 
estimulado a reflexão bioética. Tal necessidade, agregada ao interesse da ética filosófica e 
da ética teológica pelos temas bioéticos, estimulam e desenvolvem os estudos na área. 
 As razões descritas permitem afirmar, com Diego Gracia, catedrático de Bioética da 
Universidade Complutense de Madrid, que “a Bioética constitui o novo semblante da Ética 
científica17”. Por tudo isso, inquirir sobre princípios e condutas nas práticas e pesquisas em 
saúde, é sumamente importante, justificando o surgimento da Bioética, enquanto ética 
aplicada. 
 
3. 1 O que é Bioética? 
 
 As características da Bioética, enquanto reflexão ética aplicada, indicam sua 
especificidade e permitem defini-la. Na tecedura de primeira noção de Bioética, em 
conseqüência, é indispensável investigar as abordagens bioéticas predominantes, verificar 
as principais concepções de Bioética, indicar algumas das suas funções, examinar os níveis 
de envolvimento da reflexão bioética, apontar os setores sobre os quais incide tal exercício 
reflexivo e, finalmente, analisar as principais definições de Bioética. 
 
3.1.1 Principais abordagens em Bioética 
 
 Segundo o quadro delineado por Durant18, destacamos quatro abordagens 
predominantes: interdisciplinar, secular, global e sistêmica. Examinaremos, brevemente, 
cada uma delas. 
 
 
17
 GRACIA, Diego. Apud CLOTET, 2003, p.20. 
18
 Cf. DURANT, Guy. Noção de Bioética. In: Introdução geral à bioética. História, conceitos e instrumentos. 2 
ed. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p.92-96. 
9 
3.1.1.1 Abordagem interdisciplinar 
 
 A deontologia médica, nos primórdios do século XX, corporativa e privada, 
interpretando o código hipocrático19, visava à proteção dos doentes. A pesquisa e a 
experimentação também eram exercícios privados. O pesquisador, via de regra, trabalhava 
em sua casa e suas investigações suscitavam pouco interesse na comunidade. 
 O desenvolvimento das pesquisas biomédicas e respectivas aplicações clínicas, 
especialmente visíveis nos anos 60, exigiram mudanças significativas. Os problemas antigos 
passaram a ser vistos em nova perspectiva, pois os dilemas surgidos não envolviam, 
apenas, médicos, pacientes e familiares, mas enfermeiros, técnicos de laboratório, 
assistentes sociais, psicólogos, toda uma nova gama de profissionais da saúde. 
 A pesquisa acadêmica, financiada por fundos privados ou públicos, passou a ser 
observada por diversos atores sociais, tornando-se tema de interesse geral, pois os 
investimentos são altos e as conseqüências, tendo em conta as possíveis aplicações das 
descobertas, são visíveis. 
 Diante da evolução em pesquisa e prática clínica, o quadro corporativista se revelou 
insatisfatório, pois não respondia às novas exigências. Era urgente, portanto, ampliar a 
reflexão. Frente a questões complexas e vastas, profissionais e pesquisadores de diversos 
campos e disciplinas se descobriram envolvidos em inusitada teia de problemas e, 
convocados a pensar respostas viáveis, inauguraram a abordagem interdisciplinar20. 
 
3.1.1.2 Abordagem secular 
 
 Nas sociedades tradicionais, basicamente homogêneas, os códigos deontológicos 
eram fundamentados nas tradições religiosas, tal qual na América do Norte, até meados dos 
anos sessenta21. O juramento hipocrático, em seu teor religioso, era interpretado segundo as 
expectativas das diversas confissões. Os professores de ética médica eram, em grande 
parte, teólogos católicos ou protestantes e rabinos. Entrementes, a revolução no campo da 
pesquisa médica acontecida nos idos dos anos sessenta, a pluralização das sociedades, a 
convivência de matizes culturais distintas, a gradativa secularização das sociedades – exigiu 
 
19
 O código hipocrático ou o juramento de Hipócrates, patrono da medicina científica. 
20
 É interessante diferenciar os termos: multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Abordagem 
multidisciplinar consiste na sobreposição de visões referentes a determinado problema. A abordagem 
interdisciplinar integra dialógica e criticamente as diversas contribuições. No exercício transdisciplinar, o agente 
reflexivo transita, desde sua formação básica, por todos os campos envolvidos em cada abordagem e suas 
solicitações. Se o transdisciplinar é o horizonte ideal, o exercício interdisciplinar é o horizonte viável e 
eticamente necessário. 
21
 Cf. DURANT, 2007. p.93. 
10 
empenho da reflexão ética frente aos novos desafios surgidos na complexa amálgama de 
interesses, visões e perspectivas. 
 A Bioética, desde seu início, apresentou-se como reflexão secular ou enfoque não 
religioso de antigos e novos problemas na área da vida humana, segundo o fenômeno 
saúde e doença, vida e morte. Tal pretensão, todavia, não significa que os interessados nos 
debates bioéticos desconsideram convicções religiosas. Mas, por motivos metodológicos, as 
crenças e convicções são postas entre parênteses, permitindo diálogo e progresso na 
reflexão. Acrescentaria que, leitura hermenêutica e exegética dos conteúdos prescritivos das 
diversas tradições, permite a superação de interpretações equivocadas e, sobretudo, 
propiciam o encontro de razões profundas – capazes de auxiliar e alimentar a reflexão ética 
no campo da saúde22. 
 
3.1.1.3 Abordagem global 
 
 A concepção cartesiano-newtoniana, baseada na física dos sólidos e no paradigma 
da máquina, orientou as pesquisas biológicas durante largo período. Essa abordagem 
estaria presente, majoritariamente, nas escolas de medicina do final do século XIX e início 
do século XX. O modelo biomédico, conforme a tradição cartesiano-newtoniana, partia da 
concepção corpo-máquina, supondo pretensa separação entre mente e corpo, privilegiaria o 
tratamento da doença, desconsiderando a pessoa, ocasionalmente enferma23. Presumia ser 
o todo mero resultado da soma das partes; favorecendo, nas incursões investigativas, o 
estudo da parte, desprezando a inserção da parte no todo que a integra e antecede. 
 O modelo biomédico, eficaz em descobertas, aplicações e resultados, no entanto, 
levaria à excessiva especialização; pois privilegiaria o tratamento do órgão doente em 
detrimento da pessoa sofredora, incentivaria o deslocamento da prática clínica para 
complexos hospitalares, fragmentaria a responsabilidade, ao pontualizar, excessivamente,o 
exercício das tarefas. A priorização do técnico sobre o relacional na prática clínica, 
finalmente, implicaria em certa despersonalização e desumanização dos tratamentos. 
 O excesso geraria conseqüente reação. Há um bom tempo, identificamos tendência 
valorizadora de enfoques globais24 em saúde, baseados em perspectiva integrativa e 
capazes de compreensão biopsicosocial. O afetivo, o orgânico e o espiritual, na visão 
 
22
 Os códigos deontológicos das diversas Tradições religiosas, lidos em perspectiva aberta e dialógica, revelam 
valores básicos. Partindo do respeito às diferenças, a reflexão hermenêutica descobrirá nessas coincidências 
importante contribuição ao estabelecimento de um mínimo ético de caráter intercultural. 
23
 Cf. CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1997. p.259-298. 
24
 Por enfoques globais compreendemos abordagens integrativas, não fragmentárias, capazes de unificar as 
contribuições setoriais na busca de superação dos reducionismos. 
11 
integrativa, são considerados desde a totalidade da vida humana, em sua unicidade 
situacional irrepetível. 
 Considerados os motivos descritos, a Bioética procurou ser abordagem global da 
pessoa, composta de corpo e espírito, inserida em contexto familiar e social próprios. A 
Bioética buscou ser, também, investigação interessada nas estruturas sociais e legais, 
preocupada com o estabelecimento da justiça, com a afirmação da equidade através de leis 
e práticas garantidoras de acesso aos cuidados preventivos e aos tratamentos curativos. 
 
3.1.1.4 Abordagem sistêmica 
 
 O juramento hipocrático, interpretado em chave biomédica, enfatizava o dever da 
benevolência, facultava ao médico decidir sobre o que era bom para o doente25. 
Entrementes, a revolução cultural de meados do século XX afirmou a autonomia e 
autodeterminação da pessoa expressa em declarações e conquistas no campo legal. Os 
elevados custos da medicina e os insuficientes recursos públicos gastos em saúde pública, 
despertaram intensos debates sobre a equânime e adequada aplicação do numerário. 
Instaurados os debates, algumas pessoas fizeram da autonomia o princípio basilar de sua 
abordagem e outras centraram o interesse nos debates em torno da justiça e solidariedade. 
 Se a Bioética deseja resolver casos concretos, todavia, também se interessa pelo 
conjunto de problemas, enfoques e possibilidades revelados em cada situação, 
distanciando-se, assim, da antiga casuística. A Bioética reivindica estabelecimento, em cada 
caso analisado, de rigorosa análise, lógica e epistemicamente fundada, desenvolvida 
segundo plano ordenado, interligando as diversas fases investigativas entre si26. A 
investigação bioética pretende justificar, criteriosamente, princípios capazes de iluminar e 
auxiliar nos dilemas morais vividos no exercício clínico, pesquisa e elaboração de projetos 
públicos de saúde. Enquanto estudo sistêmico, pretende se afastar do casuísmo e do 
paternalismo, favorecendo enfoque integral, capaz de respeitar a unidade e singularidade da 
vida humana no seu contexto temporal e cultural. 
A Bioética, concluindo, é abordagem sistêmica27, pois conecta distintos aspectos dos 
problemas examinados, mediante argumentação ética validada intersubjetivamente, através 
de atento diálogo e reflexão. 
 
 
25
 Cf. DURANT, 2007, p.95. 
26
 Ibidem, p. 95. 
27
 Abordagem sistêmica, explicitando, implica em articulação rigorosa, argumentativamente construída, proposta 
através de conceitos adequadamente definidos e inter-relacionados, apta em conectar as diversas facetas do 
problema estudado. Sistêmica indica, então, elaboração sistemática e integrativa dos problemas examinados pela 
reflexão bioética. 
12 
3.1.2 Diversas concepções de bioética 
 
 As várias definições de Bioética apontam para quatro concepções prevalentes de 
bioética: fórum, método de análise, processo de regulação e forma de ética. Examinaremos, 
brevemente, essas concepções. 
 
3.1.2.1 Fórum 
 
 A Bioética enquanto fórum, indicaria, simplesmente, um grupo de pessoas 
interessadas em dividir suas preocupações e visões, justapondo, multidisciplinarmente, seus 
estudos e dilemas. Nessa mesa redonda, da qual também participaria o eticista, 
aconteceriam debates, trocas, exposição de pontos de vistas, mas seus integrantes não 
intencionariam atingir resultados minimamente partilháveis e, tampouco, pretenderiam 
assumir responsabilidades decorrentes do esforço reflexivo comum. Essa concepção se 
revela insuficiente em suas pretensões democráticas, pois não estimula o autêntico diálogo, 
no qual os participantes, transformados pelos debates, se comprometem com os resultados 
obtidos. Os membros desses foros têm algo a dizer e a fazer, considerada a urgência e 
relevância dos casos estudados. Os envolvidos nos debates bioéticos não podem, em 
conclusão, apenas, enquanto espectadores, legitimar práticas: precisam criticá-las, justificá-
las e assumir compromissos. 
 
3.1.2 2 Método de análise 
 
 Seria a bioética uma questão de método ou de técnica de análise de problemas e 
tomada de decisão28? Ao prescrever caminho capaz de analisar e solucionar casos, 
confrontada com dilemas práxicos, é reduzida a método de analise de casos. Essa 
apreciação, nascida de legítimas exigências, no entanto, evita questões de fundo, supondo 
que o estudo de caso não reivindique e envolva reflexão de base, postulação e justificação 
dos princípios orientadores de possíveis soluções. 
 
3.1.2.3 Processo de regulação 
 
 Os esforços dos bioeticistas, em sociedades plurais, implicam em esforços na busca 
de consensos mínimos, na procura de regras orientadoras do jogo, no estabelecimento de 
compromissos práticos, operacionais. Essa concepção busca elaborar uma espécie de ética 
 
28
 Cf. DURANT, 2007, p. 102. 
13 
consensual, ratificadora de valores com os quais a maioria dos cidadãos concordariam. 
Enquanto reflexão, é exercício filosófico e interdisciplinar de busca do mínimo ético; 
enquanto regulamentação, se aproxima do direito na busca do melhor possível. 
 
3.1.2.4 Forma de ética 
 
 No debate bioético, encontramos as diversas dimensões da ética: “pesquisa pessoal 
aprofundada, análise dos princípios, dos valores e dos postulados fundamentais; esforço 
sistemático e de coerência”29. Ora, o estudo bioético é reflexão ética aplicada, pois pretende 
alcançar respostas aos dilemas contemporâneos no campo da saúde, procedendo 
interdisciplinarmente e atendendo aos requisitos de criticidade e rigor. Assim, a Bioética 
designaria “a pesquisa do conjunto das exigências do respeito e da promoção da vida 
humana ou da pessoa humana no campo da saúde ou no setor biomédico30”. 
 A compreensão examinada, nesse quarto modelo, não exclui as visões anteriores, 
mas inclui-as em totalidade abrangente, integrando-as criticamente e revelando as seguintes 
preocupações: 
 – preocupação com os processos de decisão a serem deliberados em momentos 
difíceis (a); 
 – preocupação regulamentar, política, jurídica, interessada, sobremaneira, pela 
retidão do comportamento dos profissionais e do conjunto da população (b); 
 – preocupação reflexiva, justificadora, eminentemente ética, aprofundadora das 
novas problemáticas às quais a humanidade, em nossos dias, é confrontada (c)31. 
 
4 A Tripla dimensão da Bioética [o singular, o contextual e o universal] 
 
 Os profissionais da saúde enfrentam dilemas morais solicitadores de atenta reflexão, 
escolhas, justificações. A Bioética, abordagem global e sistêmica dos diversos assuntos e 
interrogações surgidos no campo das práticas na área da saúde, salientamos, é exercício 
ético reflexivo aplicado. 
 
 
 
 
 
 
29
 Cf. DURANT,2007, p. 104. 
30
 Ibidem, p.104. 
31
 Ibidem, p.106. 
14 
 A Bioética, em conseqüência, exercício ético, interdisciplinar e epistêmico32 
pretende: 
 – abrir amplo espaço à argumentação racional (a); – reconhecer a rica contribuição 
dos diversos interlocutores (b); – postular princípios [universais]33 aptos à auxiliar os 
envolvidos nas práticas da saúde nas decisões cotidianas (c). 
 Ao examinar os julgamentos éticos, a Bioética constata três níveis de envolvimento: 
1) o singular [indivíduo, caso, situação única]; 2) o particular [a sociedade, a cultura, a 
instituição]; 3) o universal [a humanidade em seu conjunto] evocado pelos grandes 
princípios e valores34. 
 Os julgamentos éticos, portanto, examinam a singularidade de cada caso, 
observando as estruturas culturais nas quais se encontra inserido, avaliando-o segundo 
valores e princípios racionalmente estabelecidos. 
 Os três níveis descritos implicam três preocupações básicas: – atenção àquele que 
padece concretamente, com sua história e contexto (a); – o respeito às regras e aos 
princípios de diversas origens [o conseqüente respeito aos valores] (b); e, finalmente, 
respeito pelo sentido humano contido em toda regulamentação e em todo ato singular (c)35. 
 Os profissionais da saúde, em conclusão, não emitem seus julgamentos 
arbitrariamente. Avaliam segundo normas aceitas socialmente, princípios justificados 
racionalmente, atentos aos preceitos legais e códigos deontológicos, mas, sobretudo, 
encontram na dignidade da pessoa, princípio orientador fundamental de seus atos e vida 
profissional. Os profissionais da saúde, despertando a confiança de seus clientes, são 
capazes de dialogar e escutar, aptos, portanto, à tarefa de promover e ajudar as pessoas 
que lhes procuram os serviços. O profissional da saúde, em cada decisão singular, percebe 
que está em jogo o futuro da humanidade, expressa nos anseios de cada pessoa que 
solicita seu empenho e cuidados. 
 Estudar Bioética, considerada a natureza dessa reflexão, é tarefa indispensável de 
cada estudante e profissional da saúde, ponderadas suas responsabilidades presentes e 
futuras, responsabilidade para consigo e para com as pessoas que nele confiam. 
 
 
 
 
 
 
 
32
 Epistêmico: rigoroso, racionalmente demonstrável. 
33
 Universais ou racionalmente concebíveis, válidos e compartilháveis por todos os seres racionais. 
34
 Cf. DURANT, 2007, p. 110. 
35
 Ibidem, p. 110. 
15 
5 Definição de Bioética 
 
As questões éticas, no exercício biomédico, não surgiram a partir da Bioética. Os 
profissionais da saúde encontraram, ao longo dos anos, bases para os seus exercícios 
profissionais na tradição inaugurada por Hipócrates. 
 Entrementes, mudanças importantes ocorridas nos últimos decênios contribuíram 
para o surgimento e afirmação da Bioética, esse novo e indispensável campo da ética 
aplicada36. 
 O neologismo Bioética é, em primeiro lugar, o título de um livro publicado em 1971, 
nos USA, por Potter Van Rensselaer: Bioethics, Bridge to the future37. Potter propugnava por 
uma ética orientadora das ciências biológicas, tendo em vista conquistas e avanços na 
qualidade de vida das pessoas38. O contexto que abrigou a obra de Potter, fez surgir o 
Kennedy Institute of Ethics da Georgetown University de Washington (1971) e o Center of 
Bioethics que publicou a Encyclopedia of Bioethics (1978)39. 
 A Bioética tem uma história marcada pelas diversas definições oferecidas nos 
últimos anos40. Destacaremos duas que parecem mais adequadas e oportunas. A primeira 
encontra-se na Encyclopedia of Bioethics (1978): “Bioética é entendida como o estudo 
sistemático da conduta humana na área da saúde, na medida em que esta conduta é 
examinada à luz dos valores e princípios morais41”. 
 
36
 No Dicionário de Ética e Filosofia Moral da Universidade (CANTO-SPERBER, Monique (org). São 
Leopoldo: Unisinos, 2003. p.165-66) lemos: “Os limites da ética nas práticas médicas não nasceram da Bioética. 
Com efeito, a ética médica, isto é, o ethos [os costumes e valores] próprio da profissão médica, repousa sobre 
uma longa tradição que remonta ao juramento de Hipócrates [séc. V a. C.]”. Os médicos, enfermeiros e outros 
profissionais da saúde, em seus juramentos e práticas, encontraram, efetivamente, no código hipocrático 
princípios orientadores às suas ações. A própria OMS explicita, em declarações e documentos, a referida 
tradição. Entrementes, o Código de Nuremberg (1947), por ocasião do julgamento de Nuremberg e diante das 
atrozes experiências realizadas com seres humanos, procurou disciplinar a pesquisa científica. A Declaração 
Universal dos Direitos do Homem (1948) enriqueceria a reflexão ética na área biomédica. As intensas 
modificações ocorridas, especialmente, a partir dos anos 60, tais quais: o desenvolvimento do estado-
providência, as reivindicações no campo dos direitos humanos, as interrogações sobre a aplicação das 
descobertas em biomedicina, despertaram inusitadas interrogações. O contexto, brevemente caracterizado, 
implicou na postulação de novo modo de pensar as questões da saúde. Nessa situação, de crise e interrogações, 
nasceria a Bioética. 
37
 Cf. CANTO-SPERBER, 2003, p. 166. 
38
 O lançamento do livro de Potter (cf. CANTO-SPERBER, 2003, p.166) foi precedido por encontros de 
universitários norte-americanos [teólogos, filósofos e médicos] que se reuniam para indagar sobre o 
desenvolvimento tecnológico, especialmente em medicina. 
39
 Cf. LEONE, Silvino; PRIVITERA, Salvatore. Dicionário de Bioética. SP, Aparecida: Santuário, 2001. p.87. 
40
 Destacamos quatro definições de Bioética, elencadas por LEONE e PRIVITERA (2001, p.88), que julgamos 
interessante transcrever: 1) “Filosofia da investigação e da prática biomédica (Sgreccia)”; 2) “Sector da Ética que 
estuda os problemas inerentes à tutela da vida física e, em particular, as implicações éticas das ciências 
biomédicas (Leone); 3) “Ética aplicada aos novos problemas que se desenvolvem nas fronteiras da vida 
(Viafora)”; 4) “A Ética, enquanto particularmente relacionada com os fenômenos da vida orgânica do corpo, da 
geração, do desenvolvimento, da maturidade e da velhice, da saúde, da doença e da morte (Scarpelli)”. 
41
 Cf. CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria. Bioética. “Uma visão panorâmica”. In: CLOTET; Joaquim; FEIJÓ, 
Anamaria dos Santos; OLIVEIRA, Marília Gerhardt. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: 
EDIPUCRS, 2005. p.10. Definição citada e comentada, igualmente, por LEONE e PRIVITERA (2001, p.88). 
16 
 A Bioética, de conseguinte, não inventa princípios ou normas, todavia examina e 
justifica a aplicação de princípios e normas oferecidos pela reflexão ética nas situações 
singulares, tendo presente os dilemas do exercício clínico ou de pesquisa, diante dos 
avanços na investigação científica e decorrentes aplicações. 
 Encontramos definição ampliada (1995), denotando por Bioética “o estudo 
sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão e normas morais – das 
ciências da vida e dos cuidados da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas 
num contexto multidisciplinar42”. Essa segunda definição engloba os debates, perspectivas e 
contribuições estabelecidas nos anos subseqüentes à primeira descrição e, nos parece, em 
acordo com as reflexões realizadas em nosso estudo. 
 Estabelecido o campo da Bioética pelo exame de suas definições, importa, agora, 
interrogar sobre os princípios orientadores do seu exercício. Assim, se a moral indica o que 
devo fazer, a Bioética, reflexão ética aplicada, indaga: Por que devo fazer? Qual é o sentido 
de minha ação? Com que argumentos posso justificar minhas decisões? O principialismo, 
dentre as diversas teorias bioéticas, pensamos, é apto em oferecer importantes elementos 
capazes de auxiliar nos processos decisórios.6 O Principialismo 
 
 O Principialismo é tematização bioética pioneira. Segundo essa doutrina, quatro 
princípios são capazes de orientar a reflexão bioética43. Apreciaremos, então, a contribuição 
de Beauchamps e Childres44, propositores de quatro princípios não absolutos, mas 
aplicáveis à resolução dos dilemas morais surgidos na pesquisa e prática clínica. Trata-se 
de postulados não absolutos, adaptáveis às situações singulares, capazes de iluminar e 
orientar as práticas dos profissionais da saúde. 
 
42
 Cf. CLOTET; FEIJÓ, 2005, p.10. 
43
 Cf. CANTO-SPERBER, 2003, p.168. 
44
 No dicionário de Ética e Moral (Canto-Sperber, 2003, p.168) lemos que “O principismo de Tom Beauchamp e 
James Childress é a tentativa mais antiga de teorização em Bioética, exposta em seu livro Principles of 
Biomedical Ethics, de 1979. Existem princípios que podem guiar o agir em todos os dilemas éticos de 
biomedicina? Sim, eles respondem, e são em número de quatro. O princípio de autonomia exprime a capacidade, 
para o indivíduo, de decidir por ele mesmo, o que implica que ele seja racionalmente informado e que 
influências externas não determinem sua ação. O princípio da beneficência consiste em fazer o bem de outrem, o 
que requer, no plano médico, avaliar a relação risco-benefício para o paciente. O princípio da não-maleficência 
possui uma longa tradição em medicina, associada à máxima primum non nocere [antes de tudo não prejudicar]: 
o médico tem o dever [e demais profissionais da saúde, nosso grifo] de não inflingir o mal a seu paciente. O 
princípio da justiça refere-se mais à justiça distributiva em sua dimensão de tratamento eqüitativo para todos 
[fair opportunity]. Esses quatro princípios se aplicam aos problemas suscitados pelo desenvolvimento 
biomédico. Desses princípios derivam regras [regra de consentimento, regra de confidencialidade] que, aplicados 
a casos, a dilemas éticos precisos, cujos elementos e circunstâncias são bem documentados, permitirão 
identificar soluções”. Salientemos o caráter não-absoluto desses princípios, pois necessitam adequar-se aos 
diversos casos e suas circunstâncias, orientando, então, as decisões, processos e práticas. 
17 
 Partindo de concepção baseada na dignidade inviolável da pessoa, da não 
instrumentalização da vida humana, pois a pessoa é fim em si mesma e nunca meio 
[Kant]45, encontramos os princípios que seguem: 
 – Princípio da autonomia46: a pessoa é capaz de autodeterminação, está apta a 
saber e decidir sobre o que é melhor para si; 
 – Princípio da não-maleficência: baseado na tradição hipocrática convidando a criar o 
hábito de socorrer ou, ao menos, não causar danos. 
 – Princípio da beneficência47: fundamentado na busca do bem do paciente, seu bem-
estar e interesses em acordo do bem estabelecido na medicina ou por outras áreas da 
saúde. O profissional deve usar todas as suas capacidades, habilidades e conhecimentos 
técnicos a serviço do paciente, maximizando os benefícios e reduzindo ou minimizando os 
riscos; 
 – Princípio da justiça48: reivindica equidade no acesso aos tratamentos, aplicação 
racional dos recursos, visa à distribuição dos bens e benefícios proporcionados pela 
medicina e área da saúde49. 
 Ao salvaguardar a vida das pessoas, ao propor respeito à autonomia, ao reivindicar 
ações capazes de estabelecer maiores benefícios e o mínimo de danos, ao solicitar acesso 
equânime aos serviços de saúde; o principialismo oferece, aos profissionais da saúde e aos 
pesquisadores, orientação básica e convida a permanente reflexão ética50. 
 
45
 Mauro Godoy Prudente (Bioética, Conceitos Fundamentais. Porto Alegre: Editora do Autor, 2000. p.136-7) 
esclarece: “Pessoa [lat. Persona]. Esse conceito designa o ser humano em sua individualidade. Em Ética pessoa é 
o individuo moralmente competente [responsável]; aquele que é o sujeito nas relações consigo mesmo e com o 
mundo social que o cerca. Sua origem epistemológica vem do latim persona que designa a máscara utilizada 
pelos atores do teatro, para simbolizar que representavam papéis”. Pessoa lembra, também, a singularidade 
irrepetível de cada ser humano, seu rosto único, sua intimidade indevassável. A Pessoa, segundo a tradição 
inaugurada por Tomás de Aquino, enquanto indivíduo dotado de intelecto e vontade, é dona de seus atos [por 
isso responsável], possuindo a si mesma através desses atos e, portanto, apta para decidir o sentido de sua 
existência. 
46
 Do latim autonomia [aquele que dá leis para si próprio] cf. PRUDENTE, 2000, p.27. 
47
 Prudente (2000, p.36) declara que da conduta beneficente [relativa à beneficência, do latim Beneficentia] 
decorrem as seguintes implicações: “1. Todo o ser humano possui dignidade e, como tal, é capaz de escolher e 
hierarquizar os valores que dão sentido à sua existência; 2. Todo ser humano é uma pessoa e, como tal, possui 
características que o tornam único; 3. O ser humano vive em relação social com os demais, como tal, possui 
direitos e obrigações; 4. O ser humano é livre para escolher seus objetivos e viver de acordo com eles; 5. O ser 
humano é competente para decidir, com base em seus conhecimentos, o que considera melhor para si; 6. Só o 
consentimento autoriza outras pessoas a decidirem por ele; 7. O ser humano não existe em abstrato; é histórica e 
socialmente condicionado, o que não impede que construa seu universo interior de forma autônoma e escolha as 
comunidades morais de que deseja participar. 8. O ser humano passa a ser titular da reserva de domínio sobre 
esses princípios no momento em que chega à existência; no intervalo de tempo que vai até o exercício autônomo 
do mesmo, deve ser tutelado com esses mesmos princípios; 9. Faça aos demais seres humanos aquilo que eles 
considerem seu próprio bem”. 
48
 Justiça [do latim Justitia] é a virtude social por excelência, implica em equidade. 
49
 Cf. CLOTET; FEIJÓ, 2005, p.16-18. 
50
 Destacamos que os quatro princípios se encontram auto-referidos ou mutuamente implicados. É comum, nos 
processos reflexivos bioéticos percebermos conflito entre os mesmos. Na singularidade dos casos, dialógica e 
prudentemente, é preciso relacioná-los, determinando, se for necessário, qual [dentre os princípios] exerce 
relativa prioridade sobre os outros. Sua aplicação, portanto, não é mecânica, mas refletiva e flexível. 
18 
 Recordamos, uma ética de princípios [formal] encontra complementação na 
denominada ética do cuidado [atitude]. 
 
7 Da Ética de princípios à Ética do Cuidado 
 
 Examinaremos, brevemente, as contribuições de Lawrence Kohlberg, Carol Gilligam 
e Martin Heidegger51, na proposição da teoria do desenvolvimento moral na descoberta da 
responsabilidade e nas reflexões sobre o cuidado [Sorge], esse modo de ser do Dasein 
humano. Essas reflexões permitem ao estudante de ética postular tanto uma Ética pautada 
em princípios [formal] como uma Ética entendida como atitude [cuidado / responsabilidade]. 
 Nas pesquisas em psicologia, pela demonstração da existência dos estágios da 
moralidade e constatação de uma ética pautada pelo cuidado, Kohlberg e Gilligam 
inovaram. Martin Heidegger, entretanto, é o pensador que, pioneiramente, ao realizar 
descrição analítica da existência, propõe o cuidado como modo de ser do ser humano. Após 
analisarmos, brevemente, as pesquisas dos estudiosos de Harvard, intencionamos transitar 
pelo pensamento de Heidegger descrevendo a existência humana e indicando o significado 
do cuidado, esse modo-de-ser responsável do ser-aí-no-mundo [homem]. Investigando a 
técnica moderna, explicitaremos porque a técnica é barreira entre o Dasein e o mundo, 
inibindo, conseqüentemente, um existir autêntico e cuidante. Sinalizaremos, enfim, um modo 
prudente de lidar com os utensílios técnicos. 
 
1 A teoria dos estágios do desenvolvimento moral de Kohlberg e adescoberta de 
Gilligam 
 
 Lawrence Kohlberg (1927-1987), psicólogo e pedagogo americano52 ampliou as 
pesquisas de Piaget através de investigações latitudinais e longitudinais53, procurando 
evidenciar e diferenciar as várias fases do desenvolvimento moral. 
O prestigiado educador demonstrou que, paralelamente e para além do 
desenvolvimento cognitivo, ocorre o desenvolvimento moral segundo variados graus de 
autonomia e heteronomia. 
 
51
 Kohlberg procurou demonstrar e caracterizar as diversas fases do desenvolvimento moral [passagem da 
heteronomia à autonomia moral]. Carol Gilligan inova em suas pesquisas pela elaboração de teoria psicológica 
sobre o cuidado. Heidegger, em sua analítica existencial [Ser e Tempo], esclarece: o cuidado [Sorge] não é um 
acréscimo, mas modo de ser do Dasein Humano [do homem]. 
52
 Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p.76-80. 
53
 Pesquisas envolvendo adolescentes e adultos jovens, em diferentes lugares: USA, Turquia e Israel [latitudinais 
ou interculturais], durante considerável período de tempo. Esses indivíduos foram acompanhados da 
adolescência até idade adulta [em diferentes fases de seu desenvolvimento], tendo respondido, periodicamente, 
testes formulados pelo pesquisador de Harvard [longitudinais ou verticais]. 
19 
 Lawrence Kohlberg descreve seis graus ascendentes na direção da autonomia 
ética54. Entretanto, Carol Gilligam, antiga colaboradora de Kohlberg, diante das dificuldades 
apresentadas pelas mulheres em solucionar os dilemas morais55, mostraria “que a mulher se 
desenvolve eticamente, com situações que envolvem relacionamentos, e não em relação a 
uma definição de direitos como o homem56”. Desse modo, se o menino confiava nas suas 
habilidades lógicas para resolver os dilemas propostos nos testes, a menina, avaliando os 
relacionamentos, os elementos envolvidos, privilegiaria o cuidado. De uma orientação à 
sobrevivência individual [1], passando pelo auto-sacrifício [2], a jovem adulta alcançaria o 
estágio da responsabilidade, equilibrando o cuidado do outro com o cuidado de si57. 
 
2 O Dasein e o Cuidado [sobre a responsabilidade] 
 
 Vivemos numa época acelerada, convocados pelas facilidades tecnológicas 
realizamos, simultaneamente, inúmeras tarefas. O tempo da existência, desconsiderado, é 
substituído pelo tempo do relógio transformado em tempo tecnológico. A proximidade58, 
 
54
 Segundo Kohberg (Cf. Bárbara Freitag. “Moralidade e Educação Moral”. In: Itinerário de Antígona. A 
questão da Moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) os estágios do desenvolvimento moral seriam 
seis. No primeiro estágio, denominado moralidade heterônoma, é considerado moralmente certo [correto] não 
violar regras que ocasionem punições, trata-se de um obedecer por obedecer. No segundo estágio, individualista, 
prevaleceria intenção instrumental e troca. É correto obedecer a normas quando essas satisfaçam o interesse 
imediato, atendendo às próprias necessidades e desejos. Encontramo-nos diante de moral egocêntrica. No 
terceiro estágio, busca-se conformidade interpessoal. O indivíduo se conforma ao que os outros esperam, pois 
deseja ser aceito pelo grupo. É preciso manter relações de confiança, lealdade, respeito e gratidão, pois 
participamos de uma coletividade. Há desejo de respeito às regras, porém, sob perspectiva estereotipada do bem. 
No quarto estágio, o indivíduo moral está apto a cumprir suas obrigações. A perspectiva sociomoral busca 
legitimar o todo social, o funcionamento das instituições. No quinto estágio, alguns valores universais são 
defendidos como indispensáveis à vida em comunidade [liberdade, vida, etc.]. Predomina, entretanto, visão 
contratualista ou legalista. No sexto estágio, a pessoa pauta suas ações por princípios universais, justificados 
racionalmente e capazes de orientar o agir. As leis e acordos sociais são considerados válidos porque se apóiam 
nesses princípios. Estamos, agora, falando de princípios universais de justiça, como a igualdade dos direitos 
humanos e o respeito à dignidade dos seres humanos em sua unicidade irrepetível. A perspectiva moral desse 
sexto estágio é a de qualquer ser racional capaz de reconhecer, no fato de que as pessoas são um fim em si 
mesmas e precisam ser tratadas como tais, a fonte da moralidade. Kohlberg propugna educação que possibilite 
transição da heteronomia à autonomia na vida moral. JUNGES (2006, p.79) oferece um esquema dos diferentes 
estágios: α) No nível pré-convencional temos: estádio 1: “a orientação de castigo e de obediência”; estádio 2: 
“orientação instrumental e relativista”; β) No nível convencional: estádio 3: “a concordância interpessoal ou 
orientação a ser bom menino ou boa menina”; estádio 4: “a orientação da lei e da ordem”; γ) No nível pós-
convencional: estádio 5: “a orientação legalista do contrato social”; estádio 6: “a orientação por princípios 
universais e éticos”. 
55
 Em solucionar, nos testes propostos, casos envolvendo dilemas morais. 
56
 JUNGES, 2006, p.81. 
57
 Ibidem, p.81. 
58
 No espaço existencial, o Dasein se relaciona com coisas, objetos, seres vivos, outras pessoas. Nesse espaço, 
relacionar-se é anular a distância através da proximidade [tendo coisas à-mão, dirigindo o olhar para determinada 
direção e coisa, estando face-a-face, etc.]. O espaço existencial difere do espaço geométrico [representação 
abstrata]. No mundo [espaço existencial], o Dasein realiza sua existência pela relação [estando próximo ou 
distante]. 
20 
modo de ser do Dasein59, vê-se obstaculizada. Transitando num espaço virtualizado, o ser-
aí já não mais existe no aberto do mundo, já não mais se relaciona, autenticamente, com 
coisas e pessoas, já não mais destina a si mesmo. Atarefado, encontra desculpas à sua 
incapacidade de gerir a existência: estou muito ocupado, as atividades me consomem, 
preciso ganhar a vida. Diante do quadro brevemente descrito, importa indagar: quem, 
realmente, nós somos? Somos o resultado dos papéis sociais que desempenhamos, as 
múltiplas tarefas que executamos? Por que nos prendemos às rotinas que inventamos? Por 
que não nos desvencilhamos das rotinas impostas? Por que precisamos, sempre, parecer 
tão ocupados? Somos, de fato, capazes em assumir a vida como tarefa, sem transferirmos 
responsabilidades? 
 O ser-aí-no-mundo é temporal. Não estamos falando do tempo do relógio ou do 
tempo multiplicado pela aceleração tecnológica. Estamos enunciando o tempo da existência: 
ser presença [kairós]60. Tempo que é, simultaneamente, em cada instante vivido: passado, 
presente e futuro. Somos, num presente que se esvai, um passado atualizado e um futuro 
por realizar, ou seja, possibilidade61. Descobrimos que a possibilidade última [derradeira] é 
nossa impossibilidade: um dia não seremos mais. O Dasein, temporal, um dia não mais 
será. Constatada nossa condição mortal62, nos evadimos dessa descoberta, montando 
rotinas e executando tarefas, fixando-nos, alienadamente, num presente que nega o futuro. 
A ocupação, nesses dias de onipotência da técnica, em conseqüência, é um modo de negar 
nossa condição mortal. Essa ocupação desordenada impossibilita, igualmente, vivermos 
com intensidade o presente e preocuparmo-nos autenticamente com o futuro. Se estamos 
sempre diante de possibilidades, se o futuro é imprevisível, a resposta às incertezas 
resultantes dessa condição não será encontrada na dispersão das ocupações, mas no 
cuidado. Como devemos, então, compreender o cuidado? 
 O Dasein, no aberto do mundo e diante do possível, precisa cultivar esse mundo, 
tornando-o habitável. Ao destinar-se [realizar sua existência] o ser-aí-no-mundo é 
 
59
 Dasein ou ser aí [no mundo]. O ser humano é o ente privilegiado que indaga pelo sentido doser [pelo 
significado de sua própria existência]. O ser aí encontra no mundo o horizonte de sua existência. Como, então, 
devemos compreender a expressão mundo? Por mundo não devemos entender a soma dos entes, mas o lugar 
significado [nomeado pela linguagem], habitado e cultivado pelo Dasein [pelo homem]. O mundo, essa 
totalidade de significados [o horizonte vital de sua existência] é o a priori concreto que acolhe o ser aí. O 
Dasein, nessa perspectiva, ao acolher o mundo [nomeando-o, cultivando-o, habitando-o] – constitui a si mesmo e 
ao próprio mundo. O Dasein, podemos inferir, existe no aberto do mundo pelo cultivo responsável desse mundo. 
As coisas não têm mundo, o animal é pobre de mundo, o Dasein é rico de mundo [é formador de mundo]. De 
fato, as coisas participam do mundo através do Dasein. Em conclusão, assim como não há Dasein sem mundo, 
não há mundo sem o Dasein. O Dasein, sublinhamos, é um ser-aí-no-mundo [in-der-Welt-Sein]. 
60
 Kairós ou tempo da existência: presença a si mesmo, no mundo, no gratuito e intenso dom de existir 
61
 Vivenciamos o tempo na perspectiva de sua tridimensionalidade [presente das coisas passadas: memória; 
presente das coisas presentes: visão; presente das coisas futuras: expectação / Cf. Santo Agostinho no Livro XI 
das Confissões]. Em realidades, o Dasein é o próprio tempo: ele se temporaliza nas vivências do tempo. 
62
 Pois na gratuidade do existir, um dia não mais seremos. 
21 
convocado ao cuidado. O cuidado [Sorge]63, portanto, modo de ser do Dasein, se expressa 
como besorgen [pré-ocupação, pro-ver] e Fürsorge [solicitude]. O cuidado implica em 
preocupação com o futuro, pois é preciso cultivar o mundo, torná-lo habitável, respondendo, 
assim, às exigências de sua condição frágil e finita. O cuidado também é solicitude, pois 
ultrapassadas as preocupações relativas à sobrevivência, o Dasein humano é capaz de 
acolher o outro, promovendo-o. Cuidar, portanto, indica preocupação em construir abrigos, 
cultivar os campos, edificar o mundo. Cuidar envia à solicitude: ser-com-os-outros-no-
mundo. Cuidar é, pois, cultivar-com, tornando o mundo nossa comum casa planetária. 
 O ser-aí-no-mundo-com [os outros]64 implica em cuidar. O cuidado não é, 
ressaltamos, um acréscimo ao existir, mas dimensão constitutiva do humano. Entretanto, no 
que consiste, segundo o pensador de Messkirch, o modo adequado de cuidar? Existem dois 
modos extremos do cuidado: o cuidado substitutivo [inautêntico] e o cuidado liberador 
[autêntico]. O exercício inadequado do cuidado se revela num deslocamento de posição. No 
preocupado, transforma o outro em objeto de suas ocupações, substituindo-o na tarefa de 
cuidar de si mesmo. Na substituição dominadora, por conseguinte, verificamos 
deslocamento que fere a liberdade do beneficiado e, nesse contexto de dependência, o 
cuidado autêntico é impedido. Noutra direção, no que consiste o cuidado autêntico? O 
cuidado autêntico se revela na atitude pela qual o cuidador se antepõe ao outro, não para 
substituí-lo, mas para devolver-lhe a capacidade de cuidar de si mesmo. O Dasein humano, 
nas atitudes liberadoras do cuidado, num clima de confiança recíproca, buscará devolver ao 
beneficiado o cuidado [ou a capacidade de cuidar a si mesmo]. Todavia, na convivência 
cotidiana, o ser humano oscila entre esses dois extremos, entre a substituição dominadora e 
a anteposição liberadora. Nas ações liberadoras do cuidado [promotoras do cuidar de si], 
salientamos, se encontra o horizonte ético do existir humano. Esse horizonte pode ser 
significado pela palavra responsabilidade. 
 Se o cuidado é atitude essencial na constituição do homem e do mundo, 
percebemos, nos tempos da onipresença da técnica, renuncia ao cuidado. O Dasein não 
mais se destina, não se responsabiliza, pois tende a transferir à técnica moderna essa 
tarefa. Embora a técnica moderna se apresenta como ameaça ao existir autêntico do 
homem, no entanto, não podemos viver sem ela. Precisamos dos artefatos técnicos, mas, 
paradoxalmente, esses magníficos engenhos perturbam e impedem o cuidado. Nesse 
contexto, se a técnica é um enigma para o homem de nossos dias, como lidar com ela? 
Heidegger nos oferece algumas pistas. É preciso afastar-se da órbita da técnica, distanciar-
 
63
 Cuidado [do latim Cura, ae] indica: diligência, atenção. Interessante constatar: as palavras cuidado e cura têm 
a mesma raiz etimológica. Na língua alemã cuidado é Sorge. 
64
 O ser-aí-com [Mit-Dasein]. 
22 
se da dialética entre progresso e regresso nela implicada, para poder pensá-la. 
Distanciando-nos da órbita da técnica descobriremos: se o poder da técnica é superior às 
capacidades do Dasein em dominá-la, outrossim, ela, cotidianamente, solicita seu empenho 
e trabalho. Nessa solicitação estaria escondida a possibilidade da recuperação do cuidado. 
Prosseguindo, verificado nosso emaranhamento com os artefatos tecnológicos, como 
devemos, então, lidar com eles? Quando, realmente, precisarmos deles, os utilizemos sem 
que nos dominem. Essa atitude tranqüila diante dos utensílios técnicos é denominada, pelo 
filósofo da Floresta Negra, serenidade. Transitar num mundo [desconstituído] e penetrado 
pelo poder da técnica, exercendo o cuidado, assumindo compromisso em destinar a própria 
existência, reivindica, logo, essa atitude serena diante dos utensílios técnicos. Essa atitude 
serena e responsável poderá, um dia, devolver plenamente o mundo ao homem. 
 A reflexão sobre a relação homem-mundo65 permitiu refletirmos sobre o cuidado. 
Descobrimos o Dasein humano66 em dinâmico processo de constituição existencial: na 
realização do conhecer, na constituição do mundo, no destinar-se, no ser-com e, sobretudo, 
no cuidar. 
 O ser-aí-no-mundo, no exercício do cuidado, desenvolve atitude originária do existir. 
Ao cuidar, convida os outros seres humanos ao cuidado. Cuida de si para poder ajudar os 
outros a manterem ou recuperarem sua capacidade para o cuidado. O cuidado, recordamos, 
é atitude na vida que supõe a valorização de si mesmo e do outro. Quem cuida se importa, 
se preocupa. Aquele que cuida sabe-se co-responsável, sendo capaz, sublinhamos, de 
acolher e promover. Cuidar de si, cuidar do outro e deixar-se cuidar é um modo-de-ser-no-
mundo. Um modo de ser que escuta, acolhe e promove. Um modo de ser que enriquece, 
sobremaneira, o cuidador, imprimindo sentido e intensidade à sua existência. 
 
 
Conclusão: Ética de princípios e cuidado [posições complementares] 
 
 A Ética de princípios é, pois, complementada, pela Ética do cuidado. Não 
encontramos, considerado o exposto, oposição entre Ética baseada em princípios e Ética 
entendida como atitude. Com efeito, a compreensão da existência de princípios 
racionalmente alcançáveis e capazes de serem compartilhados, encontra, no cuidado, sua 
realização. Os princípios e normas de ação, de fato, precisam ser ultimados. O cuidado, 
modo-de-ser do homem, em conseqüência, atualiza, questiona e propõe revisão de 
comportamentos e regras. Se os princípios [formais] permitem justificar comportamentos 
éticos, o cuidado [atitude] é realização da dimensão ética da existência. Embora Heidegger, 
 
65
 O Dasein não se encontra diante de um mundo que interpreta, mas é-no-mundo. 
66
 Dasein ou ser-aí-no-mundo. 
23 
lembremos, não tenha proposto uma Ética67, suas reflexões sobre a Sorge, sobre a 
autenticidade e inautenticidade na ação do cuidar, permitem questionar nossas práticas 
profissionais. 
 O presente estudo, relativo ao desenvolvimento moral, permite indagar sobre o grau 
de heteronomia ou autonomia conquistado na existência e vida profissional. Ao mesmo 
tempo, na medida em que podemos diferenciar ações cuidantes autênticas [liberadoras] das 
inautênticas [substituição dominadora], é possível avaliar nossas práticas intencionando, 
renovadamente,conquista de autenticidade e humanidade. O compromisso dos 
profissionais em interpretar e realizar, autonomamente, os preceitos de suas profissões 
tendo em vista o horizonte do cuidado, implica em cotidiana reflexão sobre suas 
responsabilidades e aprofundamento dos temas e interrogações no campo da Ética. 
 
8 Principais setores da Bioética 
 
 Os principais setores ou campos da Bioética são a Ética clínica, Ética da pesquisa e 
Ética das políticas públicas de saúde68. No desenvolvimento das atividades clínicas, de 
pesquisa e administração das políticas de saúde, recordamos, estão presentes as 
dimensões e tarefas da Bioética: a pessoa, o contexto de sua inserção, os princípios, 
normas e tarefas conseqüentes69. 
 
 
 
 
 
 
 
 
67
 De modo explicito e em perspectiva sistemática. 
68
 Cf. DURANT, 2001, p.11819. 
69 A Bioética (cf. DURANT, 2007, p.117-118), segundo suas três dimensões, no desenvolvimento da prática 
clínica, da pesquisa e na administração das políticas de saúde considera: a) os casos individuais, valorizando a 
autonomia dos pacientes, suas expectativas, suscitando diálogo entre os envolvidos na direção da decisão final e 
do bem visado; b) o impacto das decisões sobre a sociedade e sobre os indivíduos [observando a crescente 
multiplicação de fatores envolvidos nessas decisões]; c) as complexas ligações entre o individual e o coletivo, 
indagando, por exemplo, se as normas estão a serviço de determinada instituição ou da sociedade em conjunto 
[ex. proteção de patentes de fármacos]. Podemos, em conseqüência, enumerar cinco tarefas da reflexão bioética: 
1) análise de casos, solução de dilemas morais, exame de projetos de pesquisa, estudo de um problema de saúde 
pública; 2) elaboração de quadros de análise, de processos de tomada de decisão; 3) estabelecimento de 
princípios diretrizes para uma instituição ou „unidade de trabalho‟, elaboração de balizas de ação, de projetos de 
intervenção; 4) reflexão teórica sobre os princípios e valores em jogo, incluindo, eventualmente, crítica às 
estruturas e instituições; 5) reflexão sobre os fundamentos da Bioética e da própria Ética considerando o que 
está, fundamentalmente, em jogo. Essas tarefas, em sua diversidade, dependem de colaboração interdisciplinar 
dos diversos especialistas envolvidos. 
24 
8.1 Ética Clínica 
 
 No exercício clínico, que demanda processos decisórios, os profissionais da saúde 
se defrontam, desafiados, invariavelmente, com conflitos, dilemas e incertezas70. No 
acompanhamento de pacientes, ao permanecerem junto à cabeceira dos seus leitos, 
próximos deles, perguntam, por exemplo: – pela manutenção ou interrupção de tratamentos 
em doentes terminais [a]; – sobre acompanhamento e tratamentos paliativos em doentes 
terminais [b]; – sobre a reanimação desses pacientes [c]; – sobre a confidencialidade nos 
casos que envolvem terceiras pessoas [d]. Surgem, então, inúmeras perguntas: Qual atitude 
é a mais adequada? Quais providências é preciso tomar? Quais as informações que podem 
e devem ser compartilhadas? Quais são as informações que devem ser preservadas? Essas 
são algumas dúvidas inerentes às práticas clínicas. Diante do quadro esboçado, no que 
consiste a Ética clínica? Podemos afirmar que 
 
 a ética clínica diz respeito a todas as decisões, incertezas, [a todos os conflitos] de 
valores e dilemas aos quais os médicos e equipes médicas são confrontados na 
cabeceira dos pacientes, na sala de operações, no consultório médico ou na clínica 
e até mesmo no domicílio
71
. 
 
 A Ética clínica, exercício reflexivo bioético, valorizará o paciente, o terapeuta e o 
contexto que os insere72. Compreenderá que o paciente [a], favorecido das ações 
terapêuticas, portador de história pessoal, valores e família, sujeito em situação de 
sofrimento é, fundamentalmente, pessoa. Perceberá que o terapeuta [b] – aquele que é 
capaz de curar – é um ser humano que, freqüentemente, enfrenta desconfortos 
institucionais diante de situações dificilmente toleráveis. Considerará, igualmente, os 
princípios e valores que estão em causa, não para impô-los ingenuamente, mas para 
iluminar cada situação [c]. Dos responsáveis pelas práticas clínicas é suposto terem clareza 
sobre seus próprios valores, que conheçam os valores específicos da instituição onde 
desenvolvem suas atividades e, até mesmo, da sociedade em conjunto73. 
 A Ética clínica, salientamos, não diz respeito, somente, aos médicos e às equipes 
médicas, mas a todos profissionais que ministram tratamentos e participam de processos 
terapêuticos74. A Ética clínica não examina, apenas, conflitos e dilemas éticos, mas, 
 
70
 O clínico, não obstante sua competência técnica e humana, enfrentará dilemas éticos importantes. Durant 
(2007, p.121) nos oferece alguns exemplos: a) interromper ou continuar com um tratamento; b) informar o 
parceiro de um paciente vitimado pelo HIV ou manter silêncio. Em decorrência, se há um lado técnico 
[diagnóstico e prognóstico, alternativas terapêuticas], existe, igualmente, uma dimensão ética [escolha da decisão 
a ser tomada]. Freqüentemente não distinguimos essas dimensões do exercício clínico. Contudo, elas existem e 
precisam ser consideradas e conciliadas adequadamente. 
71
 JOY, David J. et.al. (La Bioetéthique. Ses fondements et ses controverses, p.53) apud DURANT, 2007, p.120. 
72
 Cf. DURANT, 2001, p.121. 
73
 Ibidem, p.121. 
74
 Ibidem, p120. 
25 
igualmente, comportamentos cotidianos: atitudes, decisões usuais, gestos comuns, 
indagações corriqueiras referentes às práticas terapêuticas75. A Ética clínica, na busca do 
ótimo, do melhor possível em cada caso e situação, não se restringe a determinar o que é 
permitido, prescrito, tolerado ou proibido. Intencionará em cada caso analisado, através do 
julgamento prudencial, o melhor possível76. 
 A Bioética clínica ou Ética clínica, ética aplicada ao exercício clínico, enfim, não se 
resume a estudos de casos, mas solicita reflexão sobre princípios capazes de orientar 
profissionais e pacientes nas difíceis decisões a serem tomadas e implementadas, pois em 
toda decisão clínica existe uma dimensão ética que precisa ser considerada77. Destacamos 
a importância dos conselheiros em ética clínica, dos comitês de ética hospitalar, dos comitês 
de bioética, dos grupos de „livre expressão‟, dos grupos de auxílio à decisão ética. 
 
8.2 Ética da Pesquisa 
 
 
 Nos Estados Unidos da América, as experiências envolvendo seres humanos 
despertaram, provavelmente, o primeiro debate multidisciplinar e público78 sobre o estatuto 
ético e regulamentar da pesquisa79. 
 No passado, o exercício da medicina caminhava ao lado da pesquisa de novas 
terapias. A pesquisa biomédica, enfim, diante do acelerado desenvolvimento tecnocientífico 
dos últimos decênios, gradativamente, efetuaria separação da prática clínica. O ensaio 
terapêutico, em conseqüência, na busca da cura dos pacientes, separar-se-ia das práticas 
usualmente aceitas. O cenário, brevemente descrito, levou ao estabelecimento de 
 
75
 Cf. Durant, 2001, p.120. 
76
 Ibidem, p.120. 
77
 Ibidem, p.121. 
78
 DURANT, 2007, p.122. 
79
 CLOTET e FEIJÓ (2005, p.10-11) relatam “Em 1966, pouco após a publicação da declaração de Helsinque, 
que continha em seu cerne o princípio do consentimento voluntário, o anestesista do Massachusetts General 
Hospital, Henry Beecher publicou um artigo compilando 22 casos de tratamento inadequado de indivíduos 
submetidos a atividades de pesquisa. Em seu artigo intitulado Ethics and Clinical Research, Beecher revelou o 
abuso sofrido por pessoas consideradas incapazes de exercer plenamente sua autonomia, de se posicionar frente 
a um processo de experimentação ou a um pesquisador com crianças com retardo mental, recém-nascidos, 
idosos, presidiários,

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