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UNILASALLE Bioética Introdução Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen [2010 II] O QUE É BIOÉTICA? Tecendo uma primeira noção INTRODUÇÃO As inúmeras transformações acontecidas nos últimos decênios, mediadas pelo acelerado desenvolvimento da ciência e da técnica, possibilitaram extraordinária capacidade de interferência do ser humano nos demais seres vivos, sobre os ecossistemas e, especialmente, sobre si mesmo. Esse poder de intervenção é, simultaneamente, admirável e perturbador. As inúmeras conquistas, mormente no campo das ciências médicas, por exemplo, têm estendido e qualificado a vida dos humanos sobre o planeta. As modificações climáticas, o consumo predatório, o desaparecimento precoce de inúmeras espécies, o esquecimento das populações periféricas, entretanto, indicam desequilíbrios não resolvidos pela capacidade técnico-instrumental. O paradoxo enunciado revela tanto confiança na ciência e nos seus resultados como, fragilidade em lidar com os seus limites e contradições. O quadro posto em questão mostra, claramente, o descompasso entre o pensamento instrumental, manipulador e transformador, e o pensamento reflexivo, impotente em criticar e dar razões ao pensamento técnico- científico1. O pólo do sentido, lócus nascente da reflexão ética, dá-se conta dos desafios lançados pelo pólo técnico-científico e descobre-se desafiado. A par dessa constatação, verificamos que a técnica dos gregos, esse saber fazer com ciência, era pensado na sua ligação com a dimensão ética ou prática da vida. A ética, na pretensão dos antigos, portanto, investigando o sentido das ações humanas, incidia sobre o fazer produtivo. As dimensões teórica [ciência], prática [ética] e técnica [instrumental] da vida humana, em resumo, se reivindicavam. Cumpre, então, diante dos novos desafios, interrogar os limites e possibilidades do pensamento instrumental, investigando seu sentido, recuperando a intencionalidade integrativa da tradição filosófica pela re-ligação entre ética e técnica. Essa 1 Segundo Jean Ladrière (Os desafios da Racionalidade. São Paulo: Vozes, 1979. p. 137-60) haveria, descompasso entre o Pólo da Tradição [Filosofia, Ciências Humanas, Teologia e Artes] e o Pólo da Ciência e da Tecnologia. O Pólo da Tradição, diante das aceleradas transformações no campo instrumental e do profundo impacto exercido sobre as culturas, não estaria conseguindo justificar [viabilizar sentido] a vida humana nesse novo contexto. Como, então, lidar com as novas possibilidades e os desafios desse novo mundo? Estamos diante de interrogação que exige nosso cotidiano esforço reflexivo. 2 tarefa, pensamos, realizada interdisciplinarmente, é reflexão filosófico-prática, exercício teórico-ético. A Bioética, a nova face aplicada da Ética, surge nesse contexto de inquietantes transformações, instigada pelas possibilidades de utilização das novas tecnologias biomédicas nas diversas áreas inserção. Em nosso estudo, de caráter propedêutico, perguntaremos pelo significado da Bioética, indicando sua relação com a Ética, explicitando seus conceitos operatórios fundamentais, discutindo sua natureza, dimensões e setores. 1 O que é Ética? Ao afirmarmos que a Bioética é nova face da ética aplicada, defendemos, implicitamente, determinada noção de Ética. É preciso, de conseguinte, antes de examinar a noção de Bioética, estudar o significado de Ética. O que é, de fato, Ética? Ética, situada no plano da Filosofia prática2, examina o agir humano. Poderíamos definir Ética, em conseqüência, como a ciência do agir humano. À Ética, segundo Aristóteles, competiria pensar a relação entre o agir humano e o sentido ou finalidades da existência do homem. Ética deriva de Ethos, indicando o caráter de uma pessoa ou de um povo. Cada povo, assim como cada pessoa, teria seu ethos, seu modo próprio de ser. Aristóteles, no entanto, define Ética como ciência, ou seja, define-a como um exercício rigoroso que investiga o agir humano. De que agir ou ações estamos falando? De um agir específico, qualificado, nascido da reflexão e da deliberação, capaz de afetar a vida do agente e, também, a vida de outras pessoas. Determinar a natureza de tal agir confrontando-o com os fins da vida humana, seria a tarefa da Ética. 2 Segundo Aristóteles (Metafísica I, 1,2 e Ética a Nicomâco VI), as ciências podem ser classificadas considerando seu objeto e grau de universalidade. Às ciências poéticas [arte ou técnica] é reservada a tarefa da produção dos bens necessários à vida humana [abrigo, alimento, saúde, bens culturais, etc.]. À Filosofia Prática [que examina o agir humano: práxis] compete refletir sobre a vida individual [Ética] e a vida na cidade [Política], indicando os critérios pelos quais atingiremos o máximo de realização humana, consideradas todas as possibilidades de vida feliz na perspectiva da realização do bem individual e do bem comum. As Ciências Teóricas, gratuitas, dividem- se em particulares [aquelas que examinam aspectos específicos do ser: como a biologia, a física, a psicologia e a matemática] e a Filosofia Primeira, saber abrangente que investiga os primeiros princípios da realidade. Se as Ciências Poéticas e a Filosofia Prática são conhecimentos aplicados, entretanto, as Ciências Teóricas são exercício gratuito de investigação. As Ciências Teóricas, destacamos, tratariam de aspectos particulares do ser [Ciências Particulares] ou do ser enquanto ser [Filosofia Primeira]. Segundo Aristóteles, participam em maior grau da natureza da Sabedoria – objeto da investigação das Ciências – os conhecimentos mais universais e gratuitos. Assim, teríamos a seguinte classificação, ascendente, quanto ao grau de dignidade e importância das ciências: Ciências Poéticas, Filosofia Prática, Ciências teórico-particulares e Filosofia Primeira [Metafísica]. Em nossa concepção, a Filosofia Prática [Política e Ética] – enquanto conhecimento aplicado – é exercício filosófico pleno, ação reflexiva de primeira grandeza. A Ética, reflexão prática, conseqüentemente, é pleno exercício filosófico, reflexão indispensável, Filosofia em sentido maior. 3 1.1 Ética e Moral: aproximações e definições Podemos, igualmente, definir Ética como ciência da moral, ou melhor, como teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade3. Ética, enquanto teoria, pretende ser conhecimento rigoroso do comportamento qualificável como moral. Moral4, por sua vez, deriva de mos, mores: costume, costumes [uso, caráter, comportamento]. Por moral, entendemos o conjunto de normas aceito e vivido por indivíduos concretos em determinada sociedade. O objeto da Ética é, por conseguinte, o comportamento caracterizado como moral, ou seja, nascido da reflexão e da consciência, orientado por normas admitidas e observadas livremente por indivíduos que compartilham suas vidas em determinada sociedade. É conveniente recordar: esse comportamento, caracterizado por moral, afeta a vida de outras pessoas. Na realização da moral, salientamos que o grau de autonomia e liberdade varia entre indivíduos, culturas e épocas da história. Entretanto, quanto maior o grau de autonomia na vida moral dos indivíduos e sociedades, tanto mais qualificada e plena será essa dimensão da existência5. 3 Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22. ed. RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 23. 4 Mos, mores é a tentativa dos latinos traduzirem ethos, daí as palavras ethikós e moralis [Cf. SARAIVA, F.R. dos Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993. p.435/754]. Aquilo que a tradição grega denominava ética, portanto, passou a ser designado pelos latinos por moral. Ética [do grego ethos] indica: costume, condução de vida, regrasde comportamento, caráter de uma pessoa ou de um povo. Moral [do latim mos, mores] designa: costumes, conduta de vida, regras de comportamento, remete ao agir humano. Ética e Moral, portanto, numa primeira compreensão, podem ser consideradas sinônimas, pois as palavras coincidem na indicação de um comportamento justificado por normas. Entrementes, embora as línguas ocidentais tenham usado esses vocábulos como sinônimos, é interessante diferenciá-los. Nessa perspectiva, convencionamos, considerando a evolução do uso das palavras, indicar por Ética a dimensão teórica, reservando a palavra Moral para sinalizar a instância dos costumes e normas. Em nosso estudo, destacamos, por questões metodológicas e epistemológicas [em acordo com a tradição inaugurada por Aristóteles], por Ética indicaremos o momento teórico e por Moral a dimensão normativa e os costumes. 5 Se o objeto da Ética é o comportamento moral, é conveniente entendê-lo. Em primeiro lugar, os animais, altamente especializados, estão rigidamente ligados ao meio ambiente. O ser humano, ao contrário, plástico [moldável] recebe da cultura uma segunda natureza que permitirá sua sobrevivência. Essa segunda natureza, a cultura, situa o homem no mundo, destacando-o do cosmo. Ser gregário, racional e portador de linguagem, o homem buscará na cultura respostas às diferentes necessidades. Nessa direção, precisará descobrir, interiorizar e realizar normas, pois sua plasticidade, seu comportamento não-fixado instintivamente, ao mesmo tempo que o abre ao mundo, exige novo suporte. Esse processo de interiorização das normas, mediado pela educação, realiza as várias etapas de socialização incorporadoras do indivíduo ao tecido social. Os animais, destacamos, recebem do rígido aparato instintivo a direção do comportamento. O homem, frisamos, encontrará na moral [nas normas] efetiva orientação e adequada compensação cultural. Em segundo lugar, somente poderá ser caracterizável como moral, aquele ato que, tendo observado ou não a norma, afeta positiva ou negativamente a vida de outras pessoas. Em terceiro lugar, a ação moral supõe a capacidade de antecipar os resultados, nascendo de livre deliberação, sendo avaliável segundo suas conseqüências. Em quarto lugar, o comportamento moral supõe a capacidade de resistir à coerção externa ou interna na direção do agir voluntário. Em quinto lugar, a voluntariedade supõe racionalidade compartilhável intersubjetivamente, capaz de conceber e reivindicar a norma, adequando-a, realizando-a, avaliando-a. A Ética procurará compreender e significar o comportamento que denominamos como moral. 4 1.2 Problemas éticos e problemas morais Efetuada a distinção entre Ética e Moral, podemos esclarecer e diferenciar o âmbito dos problemas morais e dos problemas éticos. Enquanto os problemas morais são factuais, práticos, concretos; os problemas éticos são gerais e teóricos. O indivíduo, agente moral, procura auxílio nas normas morais, pois, cotidianamente vê-se desafiado pelos dilemas do dever e de sua realização. O agente ético precisará indagar sobre o modo de aplicação da norma em cada situação. Se a norma, em sua universalidade, é precioso auxilio, todavia, como aplicá-la em cada caso singular e nos diferentes contextos? Como realizá-la, salvaguardando o bem dos indivíduos envolvidos em cada situação? A norma em sua generalidade, em conclusão, precisa ser adequada às singulares exigências que a reivindicam. Destarte, poderá orientar a ação na direção do bem visado, permitindo posterior avaliação das conseqüências positivas ou negativas alcançadas na ação. Os problemas morais, assim sendo, tratam dos conflitos inerentes à vida moral, essencialmente práxica. Dizíamos que os problemas éticos são gerais e teóricos. Então, quais são os problemas tratados pela Ética? Competirá a Ética estudar o comportamento moral, indicando seus elementos constituintes, explicitando as teorias que podem garantir sua racionalidade, justificando sua possibilidade. Cumprirá à Ética julgar os códigos morais e suas normas, indagando sobre sua aplicabilidade, questionando sua realização. A Ética perguntará pelos critérios da avaliação moral, investigando a contribuição das diversas escolas éticas. Estudará a relação entre a vida moral e seus fundamentos antropológicos, questionando a relação entre valor e norma, indagando a dialética entre indivíduo6 e sociedade7. Questionará a relação entre liberdade e obrigatoriedade8. Sobretudo, a Ética avaliará o conteúdo de racionalidade da norma, sua exeqüibilidade e alcance. A norma [em seu caráter incondicional] realmente se justifica? Através de quais procedimentos a norma poderá ser adequada e realizada? Cabe à Ética, finalmente, a tarefa de conceder, argumentativamente, as razões de possibilidade do mínimo ético9, capaz de orientar a vida 6 Dimensão subjetiva da vida moral. 7 Dimensão objetiva da vida moral. 8 Quais são as condições e os pressupostos da livre adesão do agente moral ao obrigatório [ao dever]? Por que e como o agente ético livremente realiza o obrigatório proposto pelo dever? 9 O que é o Mínimo Ético? Através de um exercício racional-comunicativo, podemos indagar: quais são os valores e princípios que permitiriam a convivência entre os humanos em sociedade? Esses valores e princípios, por sua validade intersubjetiva, por seu caráter trans-cultural, por seu conteúdo de racionalidade, forneceriam as bases dessa convivência num mundo em crescente globalização e mundialização. O respeito à vida em geral e às pessoas, o exercício da solidariedade, a promoção dos direitos e liberdades fundamentais, encontrariam no Mínimo Ético sua referência e fundamento. Nesse sentido: quais são as coisas mais importantes em minha vida? Quais são os valores pelos quais oriento minha existência? Incluo as outras pessoas e seres vivos no meu projeto de vida? Como minhas escolhas axiológicas são, de fato, vividas? 5 em sociedade. À Ética, em resumo, é indicada a tarefa de validar racional e intersubjetivamente o horizonte sobre o qual se estabelece a vida em comum. 1.3 Relações entre Ética e Moral Do exposto, é conveniente, em termos didáticos e metodológicos, diferenciar Ética de Moral, pois, comumente, usamos os dois termos como sinônimos. Assim, não agimos eticamente, mas agimos segundo normas morais, procurando realizá-las. A Ética, portanto, avalia o conteúdo da ação moral, reflete sobre essas ações, indaga, teoricamente, sobre o significado dessas ações. Agimos moralmente e avaliamos o conteúdo dessa ação observando suas conseqüências. A Ética poderá dizer se, atendendo as normas de determinada moral vigente, indagando sobre as conseqüências da ação, atuamos com correção, se afetamos positiva ou negativamente outras pessoas. Agimos moralmente e refletimos sobre o significado de nossas ações. Ética, enquanto ciência do comportamento moral, enquanto exercício teórico, poderá examinar o conteúdo dessa ação, na busca de compreendê-la. Ética, compreendida como ciência da moral, inquirirá sobre a relação entre o normativo e o factual, entre a norma [ou lei moral] e as ações morais, entre moral [geral] e moralidade [realização do geral]. Interrogará sobre a correspondência entre o Ideal [normativo] e a vida moral concreta. E, se as normas morais procuram expressar os valores que a humanidade vem descobrindo como fundamentais, a Ética examinará como tais valores são traduzidos nas normas vigentes e, sobretudo, como são vividos10. A seguir, relacionaremos Ética e Bioética refletindo sobre os dilemas éticos vivenciados pelos profissionais da área da saúde. 2 A Bioética e os dilemas éticos Os dilemas éticos acompanham os seres humanos ao longo da história, encontrando sua raiz nas ações morais. O que caracteriza a ação moral? A ação moral, recordamos,realiza uma norma, apresentando conseqüências constatáveis, positivas ou negativas, não somente para o agente, mas para outras pessoas. Ora, como a norma é prescritiva e 10 Como devemos compreender a instância normativa moral na sua relação com a lei? As normas morais traduzem valores e princípios que orientam a vida em sociedade. Vinculam-se ao costume, se enraízam na consciência do indivíduo e são livremente cumpridas ou violadas. Essas normas podem, com o tempo, receber explicitação em forma de lei positiva [escrita]. A lei, em sua positividade, traduz, antecipa ou contrária a norma moral, exercendo sobre as pessoas poder coercitivo. Se as normas morais regulam, com certo grau de espontaneidade a vida dos indivíduos, a lei ordena por seu caráter coercitivo. Daí as diferenças entre o moral e o legal, e os conseqüentes conflitos. Cumpre à Ética indagar se determinado dispositivo legal é, de fato, moralmente válido e eticamente justificável. 6 anunciadora do dever ser, cotidianamente, diante de exigências práxicas, o agente moral precisa decidir pelo cumprimento, adequação e realização dessa norma. Como conciliar a pretensão de universalidade da norma em cada situação? Motivado pela realização do fim, decidido em alcançá-lo, o agente ético elege os meios e atua na direção do bem visado. Norma realizada, ação concluída, o agente e pessoas envolvidas avaliam o resultado obtido. Nessa avaliação, perguntam pelo bem ou possível prejuízo resultante da ação. Nesse jogo, que envolve decisão e escolhas, destacamos, é importante eleger mediações adequadas e eticamente justificáveis, pois os meios se fazem presentes nos fins alcançados, denunciando o agente, tornando-o merecedor de mérito ou reprovação11. Os profissionais da saúde, ante dos avanços nas pesquisas biomédicas e de novos recursos tecnológicos, vêm-se, nesses novos tempos, desafiados por inúmeras possibilidades e, inquietos, indagam sobre a aplicação desses resultados no exercício profissional, nas suas ações cotidianas. Os profissionais da saúde, agentes morais, são capazes de responsabilidade: estão aptos para assumir as conseqüências de seus atos. Entretanto, mesmo amparados por normas, códigos deontológicos e prescrições legais, precisam refletir, dialogar, decidir, em cada caso, pelo modo de aplicação da norma segundo o bem visado naquela ação. As situações problemáticas, cotidianamente experimentadas, apontam para o uso adequado e prudente dos novos recursos, indicando gradativa consciência sobre o estabelecimento de limites à aplicação e utilização dessas tecnologias – segundo o horizonte do respeito à vida em geral e à vida humana em particular – e a correspondente não instrumentalização dos seres vivos, principalmente das pessoas. Então, se o técnico indica a possibilidade do fazer, a reflexão ética solicita a justificativa de tal fazer. A Bioética, assim pensamos, é instância reflexiva apta a justificar e ligar a dimensão técnica e a dimensão ética da existência, o campo da intervenção produtiva e o campo do sentido. O enfrentamento dos dilemas éticos no âmbito do cumprimento do dever, os desafios lançados pela aplicação das novas tecnologias, a necessidade de justificar eticamente normas capazes de orientar os profissionais da saúde, em suas atividades clínicas ou de 11 As ações humanas são passíveis de avaliação moral e jurídica. Julgamos e somos julgados segundo valores, princípios e normas socialmente compartilhados. Julgamos, inclusive, a nós mesmos. No campo legal, o descumprimento voluntário da lei implica em penalização, conforme culpa ou dolo. Nessa direção, na vida profissional, a negligência ou imperícia compromete o agente. A diferenciação entre ignorância voluntária e ignorância involuntária [existem coisas que não posso não saber e coisas que não poderia prever], a observância das prescrições legais, o cumprimento das normas dos códigos profissionais, a cotidiana reflexão, o empenho em realizar eticamente as tarefas determinadas: possibilita segurança, satisfação e realização na vida profissional. Portanto, a reflexão ética, a justificativa do cumprimento da norma, o atento desempenho das obrigações [deveres] envia o profissional à dimensão dos seus direitos, permitindo alcançar realização profissional e humana. Nessa direção, os valores e princípios, os códigos, leis e reflexão ética tornam-se indispensável auxílio, revelando vital significado, pois em cada ação – o profissional é convocado a justificar suas escolhas e partilhar racionalmente suas decisões. Os profissionais de todas as áreas, enquanto seres humanos e agentes éticos, enquanto responsáveis, precisam decidir prudentemente e na direção do bem das pessoas afetadas por suas decisões e escolhas. 7 pesquisa, movimenta a Bioética, essa nova face da Ética, enquanto Ética aplicada12. Mas, como entender a bioética? O que é a bioética? Qual é o seu campo de atuação? Que relações a bioética estabelece com as diversas ciências, com a Filosofia e com a Ética geral? São indagações justas que precisam ser examinadas. 3 Por que Bioética? O Prof. Joaquim Clotet, pioneiro nos estudos bioéticos no Brasil, quando do lançamento de revista nacional dedicada à reflexão bioética, comenta as mudanças estimuladoras ao surgimento da Bioética13. Segundo Clotet, o desenvolvimento das ciências biológicas e decorrente impacto na medicina alteraram práticas médicas tradicionais, desencadeando inusitados questionamentos, suscitando novos dilemas desafiadores à reflexão ética14. A socialização da medicina15, igualmente, é fator mobilizador de profissionais, instituições, comunidades e governos. Nesse sentido, quais são os percentuais dos orçamentos públicos a serem destinados à saúde? De que maneira devem ser aplicados? De que modo esses investimentos são controladas? Como conciliar as reivindicações das pessoas com a capacidade orçamentária dos sistemas de saúde? Quais sãos os direitos e deveres implicados, nessa democratização, envolvendo profissionais e beneficiados? A crescente medicalização da vida, ou seja, a existência de especialidades médicas que abrangem diferentes etapas da existência humana, é outro importante fator. Recorremos, freqüentemente, a médicos e outros profissionais da saúde, seja por razões clínicas importantes ou, até mesmo, por motivos estéticos16. A emancipação dos 12 A Bioética não é uma nova forma de Ética, mas, frisamos, Ética aplicada. A Bioética [enquanto Ética Aplicada], afirmamos provisoriamente, é reflexão interdisciplinar de caráter filosófico-prático, que procura responder aos desafios lançados pela aplicação das novas tecnologias médicas. 13 Cf. CLOTET, Joaquim. Por que Bioética. In: Bioética, uma aproximação. Porto Alegre: EDIPURS, 2003. p.16-21. 14 Se o progresso das ciências biológicas é inegável, no entanto, as mudanças decorrentes são questionáveis. 15 O reconhecimento do direito dos cidadãos acessarem os tratamentos reclamados por suas situações de saúde, em incontáveis casos, conflita com a capacidade dos sistemas públicos em atender essas demandas. Dentre as possíveis causas, encontramos a carência de recursos, planejamento equivocado e, até mesmo, aplicação deficiente dos recursos financeiros. Ao mesmo tempo, o alto valor de certos exames, procedimentos médicos e remédios permite indagar sobre a relação custo-benefício, suscitando o tema do equitativo acesso da população aos tratamentos disponíveis. Como, então, considerando os recursos existentes, maximizar e democratizar o acesso aos tratamentos? Na mesma linha, de que maneira é possível, através de políticas públicas, desenvolver políticas de prevenção? Outra interrogação encontra sua origem na crescente privatização da medicina.Podem planos privados negar cobertura aos seus clientes? Como as empresas de saúde devem conjugar a equação lucro e direitos dos seus clientes? Essas indagações, por sua urgência, merecem atenta reflexão. 16 Aqui, cabe importante indagação: Quais são os procedimentos que devem ser bancados pelos sistemas de saúde? Procedimentos de caráter estético, por exemplo, diante da escassez de recursos, deveriam ser realizados por instituições públicas e financiados pelos sistemas públicos de saúde? Nessa direção, quais os procedimentos prioritários? Quais os critérios que permitem indicar os procedimentos prioritários distinguindo-os dos supérfluos? 8 pacientes provocou revisão da relação médico-paciente. As pessoas, detentoras de informações sobre suas situações clínicas, reivindicam esclarecimentos de seu médico. Os tratamentos precisam ser, então, explicados. A figura do antigo médico, possuidor de saber inquestionável, cede lugar a um profissional que ensaia diálogos com os beneficiados por suas ações. Nos hospitais e organismos de pesquisa, surgem comitês de ética de caráter interdisciplinar. Esses comitês são importante apoio ao exercício profissional, estabelecendo protocolos e diretrizes para as práticas clínicas e exercício de pesquisa. A premência, em sociedades plurais, do estabelecimento de padrão moral compartilhável por pessoas de moralidades distintas, a busca de princípios mínimos capazes de orientar os profissionais da saúde em suas práticas clínicas e pesquisas, têm estimulado a reflexão bioética. Tal necessidade, agregada ao interesse da ética filosófica e da ética teológica pelos temas bioéticos, estimulam e desenvolvem os estudos na área. As razões descritas permitem afirmar, com Diego Gracia, catedrático de Bioética da Universidade Complutense de Madrid, que “a Bioética constitui o novo semblante da Ética científica17”. Por tudo isso, inquirir sobre princípios e condutas nas práticas e pesquisas em saúde, é sumamente importante, justificando o surgimento da Bioética, enquanto ética aplicada. 3. 1 O que é Bioética? As características da Bioética, enquanto reflexão ética aplicada, indicam sua especificidade e permitem defini-la. Na tecedura de primeira noção de Bioética, em conseqüência, é indispensável investigar as abordagens bioéticas predominantes, verificar as principais concepções de Bioética, indicar algumas das suas funções, examinar os níveis de envolvimento da reflexão bioética, apontar os setores sobre os quais incide tal exercício reflexivo e, finalmente, analisar as principais definições de Bioética. 3.1.1 Principais abordagens em Bioética Segundo o quadro delineado por Durant18, destacamos quatro abordagens predominantes: interdisciplinar, secular, global e sistêmica. Examinaremos, brevemente, cada uma delas. 17 GRACIA, Diego. Apud CLOTET, 2003, p.20. 18 Cf. DURANT, Guy. Noção de Bioética. In: Introdução geral à bioética. História, conceitos e instrumentos. 2 ed. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p.92-96. 9 3.1.1.1 Abordagem interdisciplinar A deontologia médica, nos primórdios do século XX, corporativa e privada, interpretando o código hipocrático19, visava à proteção dos doentes. A pesquisa e a experimentação também eram exercícios privados. O pesquisador, via de regra, trabalhava em sua casa e suas investigações suscitavam pouco interesse na comunidade. O desenvolvimento das pesquisas biomédicas e respectivas aplicações clínicas, especialmente visíveis nos anos 60, exigiram mudanças significativas. Os problemas antigos passaram a ser vistos em nova perspectiva, pois os dilemas surgidos não envolviam, apenas, médicos, pacientes e familiares, mas enfermeiros, técnicos de laboratório, assistentes sociais, psicólogos, toda uma nova gama de profissionais da saúde. A pesquisa acadêmica, financiada por fundos privados ou públicos, passou a ser observada por diversos atores sociais, tornando-se tema de interesse geral, pois os investimentos são altos e as conseqüências, tendo em conta as possíveis aplicações das descobertas, são visíveis. Diante da evolução em pesquisa e prática clínica, o quadro corporativista se revelou insatisfatório, pois não respondia às novas exigências. Era urgente, portanto, ampliar a reflexão. Frente a questões complexas e vastas, profissionais e pesquisadores de diversos campos e disciplinas se descobriram envolvidos em inusitada teia de problemas e, convocados a pensar respostas viáveis, inauguraram a abordagem interdisciplinar20. 3.1.1.2 Abordagem secular Nas sociedades tradicionais, basicamente homogêneas, os códigos deontológicos eram fundamentados nas tradições religiosas, tal qual na América do Norte, até meados dos anos sessenta21. O juramento hipocrático, em seu teor religioso, era interpretado segundo as expectativas das diversas confissões. Os professores de ética médica eram, em grande parte, teólogos católicos ou protestantes e rabinos. Entrementes, a revolução no campo da pesquisa médica acontecida nos idos dos anos sessenta, a pluralização das sociedades, a convivência de matizes culturais distintas, a gradativa secularização das sociedades – exigiu 19 O código hipocrático ou o juramento de Hipócrates, patrono da medicina científica. 20 É interessante diferenciar os termos: multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Abordagem multidisciplinar consiste na sobreposição de visões referentes a determinado problema. A abordagem interdisciplinar integra dialógica e criticamente as diversas contribuições. No exercício transdisciplinar, o agente reflexivo transita, desde sua formação básica, por todos os campos envolvidos em cada abordagem e suas solicitações. Se o transdisciplinar é o horizonte ideal, o exercício interdisciplinar é o horizonte viável e eticamente necessário. 21 Cf. DURANT, 2007. p.93. 10 empenho da reflexão ética frente aos novos desafios surgidos na complexa amálgama de interesses, visões e perspectivas. A Bioética, desde seu início, apresentou-se como reflexão secular ou enfoque não religioso de antigos e novos problemas na área da vida humana, segundo o fenômeno saúde e doença, vida e morte. Tal pretensão, todavia, não significa que os interessados nos debates bioéticos desconsideram convicções religiosas. Mas, por motivos metodológicos, as crenças e convicções são postas entre parênteses, permitindo diálogo e progresso na reflexão. Acrescentaria que, leitura hermenêutica e exegética dos conteúdos prescritivos das diversas tradições, permite a superação de interpretações equivocadas e, sobretudo, propiciam o encontro de razões profundas – capazes de auxiliar e alimentar a reflexão ética no campo da saúde22. 3.1.1.3 Abordagem global A concepção cartesiano-newtoniana, baseada na física dos sólidos e no paradigma da máquina, orientou as pesquisas biológicas durante largo período. Essa abordagem estaria presente, majoritariamente, nas escolas de medicina do final do século XIX e início do século XX. O modelo biomédico, conforme a tradição cartesiano-newtoniana, partia da concepção corpo-máquina, supondo pretensa separação entre mente e corpo, privilegiaria o tratamento da doença, desconsiderando a pessoa, ocasionalmente enferma23. Presumia ser o todo mero resultado da soma das partes; favorecendo, nas incursões investigativas, o estudo da parte, desprezando a inserção da parte no todo que a integra e antecede. O modelo biomédico, eficaz em descobertas, aplicações e resultados, no entanto, levaria à excessiva especialização; pois privilegiaria o tratamento do órgão doente em detrimento da pessoa sofredora, incentivaria o deslocamento da prática clínica para complexos hospitalares, fragmentaria a responsabilidade, ao pontualizar, excessivamente,o exercício das tarefas. A priorização do técnico sobre o relacional na prática clínica, finalmente, implicaria em certa despersonalização e desumanização dos tratamentos. O excesso geraria conseqüente reação. Há um bom tempo, identificamos tendência valorizadora de enfoques globais24 em saúde, baseados em perspectiva integrativa e capazes de compreensão biopsicosocial. O afetivo, o orgânico e o espiritual, na visão 22 Os códigos deontológicos das diversas Tradições religiosas, lidos em perspectiva aberta e dialógica, revelam valores básicos. Partindo do respeito às diferenças, a reflexão hermenêutica descobrirá nessas coincidências importante contribuição ao estabelecimento de um mínimo ético de caráter intercultural. 23 Cf. CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1997. p.259-298. 24 Por enfoques globais compreendemos abordagens integrativas, não fragmentárias, capazes de unificar as contribuições setoriais na busca de superação dos reducionismos. 11 integrativa, são considerados desde a totalidade da vida humana, em sua unicidade situacional irrepetível. Considerados os motivos descritos, a Bioética procurou ser abordagem global da pessoa, composta de corpo e espírito, inserida em contexto familiar e social próprios. A Bioética buscou ser, também, investigação interessada nas estruturas sociais e legais, preocupada com o estabelecimento da justiça, com a afirmação da equidade através de leis e práticas garantidoras de acesso aos cuidados preventivos e aos tratamentos curativos. 3.1.1.4 Abordagem sistêmica O juramento hipocrático, interpretado em chave biomédica, enfatizava o dever da benevolência, facultava ao médico decidir sobre o que era bom para o doente25. Entrementes, a revolução cultural de meados do século XX afirmou a autonomia e autodeterminação da pessoa expressa em declarações e conquistas no campo legal. Os elevados custos da medicina e os insuficientes recursos públicos gastos em saúde pública, despertaram intensos debates sobre a equânime e adequada aplicação do numerário. Instaurados os debates, algumas pessoas fizeram da autonomia o princípio basilar de sua abordagem e outras centraram o interesse nos debates em torno da justiça e solidariedade. Se a Bioética deseja resolver casos concretos, todavia, também se interessa pelo conjunto de problemas, enfoques e possibilidades revelados em cada situação, distanciando-se, assim, da antiga casuística. A Bioética reivindica estabelecimento, em cada caso analisado, de rigorosa análise, lógica e epistemicamente fundada, desenvolvida segundo plano ordenado, interligando as diversas fases investigativas entre si26. A investigação bioética pretende justificar, criteriosamente, princípios capazes de iluminar e auxiliar nos dilemas morais vividos no exercício clínico, pesquisa e elaboração de projetos públicos de saúde. Enquanto estudo sistêmico, pretende se afastar do casuísmo e do paternalismo, favorecendo enfoque integral, capaz de respeitar a unidade e singularidade da vida humana no seu contexto temporal e cultural. A Bioética, concluindo, é abordagem sistêmica27, pois conecta distintos aspectos dos problemas examinados, mediante argumentação ética validada intersubjetivamente, através de atento diálogo e reflexão. 25 Cf. DURANT, 2007, p.95. 26 Ibidem, p. 95. 27 Abordagem sistêmica, explicitando, implica em articulação rigorosa, argumentativamente construída, proposta através de conceitos adequadamente definidos e inter-relacionados, apta em conectar as diversas facetas do problema estudado. Sistêmica indica, então, elaboração sistemática e integrativa dos problemas examinados pela reflexão bioética. 12 3.1.2 Diversas concepções de bioética As várias definições de Bioética apontam para quatro concepções prevalentes de bioética: fórum, método de análise, processo de regulação e forma de ética. Examinaremos, brevemente, essas concepções. 3.1.2.1 Fórum A Bioética enquanto fórum, indicaria, simplesmente, um grupo de pessoas interessadas em dividir suas preocupações e visões, justapondo, multidisciplinarmente, seus estudos e dilemas. Nessa mesa redonda, da qual também participaria o eticista, aconteceriam debates, trocas, exposição de pontos de vistas, mas seus integrantes não intencionariam atingir resultados minimamente partilháveis e, tampouco, pretenderiam assumir responsabilidades decorrentes do esforço reflexivo comum. Essa concepção se revela insuficiente em suas pretensões democráticas, pois não estimula o autêntico diálogo, no qual os participantes, transformados pelos debates, se comprometem com os resultados obtidos. Os membros desses foros têm algo a dizer e a fazer, considerada a urgência e relevância dos casos estudados. Os envolvidos nos debates bioéticos não podem, em conclusão, apenas, enquanto espectadores, legitimar práticas: precisam criticá-las, justificá- las e assumir compromissos. 3.1.2 2 Método de análise Seria a bioética uma questão de método ou de técnica de análise de problemas e tomada de decisão28? Ao prescrever caminho capaz de analisar e solucionar casos, confrontada com dilemas práxicos, é reduzida a método de analise de casos. Essa apreciação, nascida de legítimas exigências, no entanto, evita questões de fundo, supondo que o estudo de caso não reivindique e envolva reflexão de base, postulação e justificação dos princípios orientadores de possíveis soluções. 3.1.2.3 Processo de regulação Os esforços dos bioeticistas, em sociedades plurais, implicam em esforços na busca de consensos mínimos, na procura de regras orientadoras do jogo, no estabelecimento de compromissos práticos, operacionais. Essa concepção busca elaborar uma espécie de ética 28 Cf. DURANT, 2007, p. 102. 13 consensual, ratificadora de valores com os quais a maioria dos cidadãos concordariam. Enquanto reflexão, é exercício filosófico e interdisciplinar de busca do mínimo ético; enquanto regulamentação, se aproxima do direito na busca do melhor possível. 3.1.2.4 Forma de ética No debate bioético, encontramos as diversas dimensões da ética: “pesquisa pessoal aprofundada, análise dos princípios, dos valores e dos postulados fundamentais; esforço sistemático e de coerência”29. Ora, o estudo bioético é reflexão ética aplicada, pois pretende alcançar respostas aos dilemas contemporâneos no campo da saúde, procedendo interdisciplinarmente e atendendo aos requisitos de criticidade e rigor. Assim, a Bioética designaria “a pesquisa do conjunto das exigências do respeito e da promoção da vida humana ou da pessoa humana no campo da saúde ou no setor biomédico30”. A compreensão examinada, nesse quarto modelo, não exclui as visões anteriores, mas inclui-as em totalidade abrangente, integrando-as criticamente e revelando as seguintes preocupações: – preocupação com os processos de decisão a serem deliberados em momentos difíceis (a); – preocupação regulamentar, política, jurídica, interessada, sobremaneira, pela retidão do comportamento dos profissionais e do conjunto da população (b); – preocupação reflexiva, justificadora, eminentemente ética, aprofundadora das novas problemáticas às quais a humanidade, em nossos dias, é confrontada (c)31. 4 A Tripla dimensão da Bioética [o singular, o contextual e o universal] Os profissionais da saúde enfrentam dilemas morais solicitadores de atenta reflexão, escolhas, justificações. A Bioética, abordagem global e sistêmica dos diversos assuntos e interrogações surgidos no campo das práticas na área da saúde, salientamos, é exercício ético reflexivo aplicado. 29 Cf. DURANT,2007, p. 104. 30 Ibidem, p.104. 31 Ibidem, p.106. 14 A Bioética, em conseqüência, exercício ético, interdisciplinar e epistêmico32 pretende: – abrir amplo espaço à argumentação racional (a); – reconhecer a rica contribuição dos diversos interlocutores (b); – postular princípios [universais]33 aptos à auxiliar os envolvidos nas práticas da saúde nas decisões cotidianas (c). Ao examinar os julgamentos éticos, a Bioética constata três níveis de envolvimento: 1) o singular [indivíduo, caso, situação única]; 2) o particular [a sociedade, a cultura, a instituição]; 3) o universal [a humanidade em seu conjunto] evocado pelos grandes princípios e valores34. Os julgamentos éticos, portanto, examinam a singularidade de cada caso, observando as estruturas culturais nas quais se encontra inserido, avaliando-o segundo valores e princípios racionalmente estabelecidos. Os três níveis descritos implicam três preocupações básicas: – atenção àquele que padece concretamente, com sua história e contexto (a); – o respeito às regras e aos princípios de diversas origens [o conseqüente respeito aos valores] (b); e, finalmente, respeito pelo sentido humano contido em toda regulamentação e em todo ato singular (c)35. Os profissionais da saúde, em conclusão, não emitem seus julgamentos arbitrariamente. Avaliam segundo normas aceitas socialmente, princípios justificados racionalmente, atentos aos preceitos legais e códigos deontológicos, mas, sobretudo, encontram na dignidade da pessoa, princípio orientador fundamental de seus atos e vida profissional. Os profissionais da saúde, despertando a confiança de seus clientes, são capazes de dialogar e escutar, aptos, portanto, à tarefa de promover e ajudar as pessoas que lhes procuram os serviços. O profissional da saúde, em cada decisão singular, percebe que está em jogo o futuro da humanidade, expressa nos anseios de cada pessoa que solicita seu empenho e cuidados. Estudar Bioética, considerada a natureza dessa reflexão, é tarefa indispensável de cada estudante e profissional da saúde, ponderadas suas responsabilidades presentes e futuras, responsabilidade para consigo e para com as pessoas que nele confiam. 32 Epistêmico: rigoroso, racionalmente demonstrável. 33 Universais ou racionalmente concebíveis, válidos e compartilháveis por todos os seres racionais. 34 Cf. DURANT, 2007, p. 110. 35 Ibidem, p. 110. 15 5 Definição de Bioética As questões éticas, no exercício biomédico, não surgiram a partir da Bioética. Os profissionais da saúde encontraram, ao longo dos anos, bases para os seus exercícios profissionais na tradição inaugurada por Hipócrates. Entrementes, mudanças importantes ocorridas nos últimos decênios contribuíram para o surgimento e afirmação da Bioética, esse novo e indispensável campo da ética aplicada36. O neologismo Bioética é, em primeiro lugar, o título de um livro publicado em 1971, nos USA, por Potter Van Rensselaer: Bioethics, Bridge to the future37. Potter propugnava por uma ética orientadora das ciências biológicas, tendo em vista conquistas e avanços na qualidade de vida das pessoas38. O contexto que abrigou a obra de Potter, fez surgir o Kennedy Institute of Ethics da Georgetown University de Washington (1971) e o Center of Bioethics que publicou a Encyclopedia of Bioethics (1978)39. A Bioética tem uma história marcada pelas diversas definições oferecidas nos últimos anos40. Destacaremos duas que parecem mais adequadas e oportunas. A primeira encontra-se na Encyclopedia of Bioethics (1978): “Bioética é entendida como o estudo sistemático da conduta humana na área da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais41”. 36 No Dicionário de Ética e Filosofia Moral da Universidade (CANTO-SPERBER, Monique (org). São Leopoldo: Unisinos, 2003. p.165-66) lemos: “Os limites da ética nas práticas médicas não nasceram da Bioética. Com efeito, a ética médica, isto é, o ethos [os costumes e valores] próprio da profissão médica, repousa sobre uma longa tradição que remonta ao juramento de Hipócrates [séc. V a. C.]”. Os médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde, em seus juramentos e práticas, encontraram, efetivamente, no código hipocrático princípios orientadores às suas ações. A própria OMS explicita, em declarações e documentos, a referida tradição. Entrementes, o Código de Nuremberg (1947), por ocasião do julgamento de Nuremberg e diante das atrozes experiências realizadas com seres humanos, procurou disciplinar a pesquisa científica. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) enriqueceria a reflexão ética na área biomédica. As intensas modificações ocorridas, especialmente, a partir dos anos 60, tais quais: o desenvolvimento do estado- providência, as reivindicações no campo dos direitos humanos, as interrogações sobre a aplicação das descobertas em biomedicina, despertaram inusitadas interrogações. O contexto, brevemente caracterizado, implicou na postulação de novo modo de pensar as questões da saúde. Nessa situação, de crise e interrogações, nasceria a Bioética. 37 Cf. CANTO-SPERBER, 2003, p. 166. 38 O lançamento do livro de Potter (cf. CANTO-SPERBER, 2003, p.166) foi precedido por encontros de universitários norte-americanos [teólogos, filósofos e médicos] que se reuniam para indagar sobre o desenvolvimento tecnológico, especialmente em medicina. 39 Cf. LEONE, Silvino; PRIVITERA, Salvatore. Dicionário de Bioética. SP, Aparecida: Santuário, 2001. p.87. 40 Destacamos quatro definições de Bioética, elencadas por LEONE e PRIVITERA (2001, p.88), que julgamos interessante transcrever: 1) “Filosofia da investigação e da prática biomédica (Sgreccia)”; 2) “Sector da Ética que estuda os problemas inerentes à tutela da vida física e, em particular, as implicações éticas das ciências biomédicas (Leone); 3) “Ética aplicada aos novos problemas que se desenvolvem nas fronteiras da vida (Viafora)”; 4) “A Ética, enquanto particularmente relacionada com os fenômenos da vida orgânica do corpo, da geração, do desenvolvimento, da maturidade e da velhice, da saúde, da doença e da morte (Scarpelli)”. 41 Cf. CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria. Bioética. “Uma visão panorâmica”. In: CLOTET; Joaquim; FEIJÓ, Anamaria dos Santos; OLIVEIRA, Marília Gerhardt. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p.10. Definição citada e comentada, igualmente, por LEONE e PRIVITERA (2001, p.88). 16 A Bioética, de conseguinte, não inventa princípios ou normas, todavia examina e justifica a aplicação de princípios e normas oferecidos pela reflexão ética nas situações singulares, tendo presente os dilemas do exercício clínico ou de pesquisa, diante dos avanços na investigação científica e decorrentes aplicações. Encontramos definição ampliada (1995), denotando por Bioética “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão e normas morais – das ciências da vida e dos cuidados da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar42”. Essa segunda definição engloba os debates, perspectivas e contribuições estabelecidas nos anos subseqüentes à primeira descrição e, nos parece, em acordo com as reflexões realizadas em nosso estudo. Estabelecido o campo da Bioética pelo exame de suas definições, importa, agora, interrogar sobre os princípios orientadores do seu exercício. Assim, se a moral indica o que devo fazer, a Bioética, reflexão ética aplicada, indaga: Por que devo fazer? Qual é o sentido de minha ação? Com que argumentos posso justificar minhas decisões? O principialismo, dentre as diversas teorias bioéticas, pensamos, é apto em oferecer importantes elementos capazes de auxiliar nos processos decisórios.6 O Principialismo O Principialismo é tematização bioética pioneira. Segundo essa doutrina, quatro princípios são capazes de orientar a reflexão bioética43. Apreciaremos, então, a contribuição de Beauchamps e Childres44, propositores de quatro princípios não absolutos, mas aplicáveis à resolução dos dilemas morais surgidos na pesquisa e prática clínica. Trata-se de postulados não absolutos, adaptáveis às situações singulares, capazes de iluminar e orientar as práticas dos profissionais da saúde. 42 Cf. CLOTET; FEIJÓ, 2005, p.10. 43 Cf. CANTO-SPERBER, 2003, p.168. 44 No dicionário de Ética e Moral (Canto-Sperber, 2003, p.168) lemos que “O principismo de Tom Beauchamp e James Childress é a tentativa mais antiga de teorização em Bioética, exposta em seu livro Principles of Biomedical Ethics, de 1979. Existem princípios que podem guiar o agir em todos os dilemas éticos de biomedicina? Sim, eles respondem, e são em número de quatro. O princípio de autonomia exprime a capacidade, para o indivíduo, de decidir por ele mesmo, o que implica que ele seja racionalmente informado e que influências externas não determinem sua ação. O princípio da beneficência consiste em fazer o bem de outrem, o que requer, no plano médico, avaliar a relação risco-benefício para o paciente. O princípio da não-maleficência possui uma longa tradição em medicina, associada à máxima primum non nocere [antes de tudo não prejudicar]: o médico tem o dever [e demais profissionais da saúde, nosso grifo] de não inflingir o mal a seu paciente. O princípio da justiça refere-se mais à justiça distributiva em sua dimensão de tratamento eqüitativo para todos [fair opportunity]. Esses quatro princípios se aplicam aos problemas suscitados pelo desenvolvimento biomédico. Desses princípios derivam regras [regra de consentimento, regra de confidencialidade] que, aplicados a casos, a dilemas éticos precisos, cujos elementos e circunstâncias são bem documentados, permitirão identificar soluções”. Salientemos o caráter não-absoluto desses princípios, pois necessitam adequar-se aos diversos casos e suas circunstâncias, orientando, então, as decisões, processos e práticas. 17 Partindo de concepção baseada na dignidade inviolável da pessoa, da não instrumentalização da vida humana, pois a pessoa é fim em si mesma e nunca meio [Kant]45, encontramos os princípios que seguem: – Princípio da autonomia46: a pessoa é capaz de autodeterminação, está apta a saber e decidir sobre o que é melhor para si; – Princípio da não-maleficência: baseado na tradição hipocrática convidando a criar o hábito de socorrer ou, ao menos, não causar danos. – Princípio da beneficência47: fundamentado na busca do bem do paciente, seu bem- estar e interesses em acordo do bem estabelecido na medicina ou por outras áreas da saúde. O profissional deve usar todas as suas capacidades, habilidades e conhecimentos técnicos a serviço do paciente, maximizando os benefícios e reduzindo ou minimizando os riscos; – Princípio da justiça48: reivindica equidade no acesso aos tratamentos, aplicação racional dos recursos, visa à distribuição dos bens e benefícios proporcionados pela medicina e área da saúde49. Ao salvaguardar a vida das pessoas, ao propor respeito à autonomia, ao reivindicar ações capazes de estabelecer maiores benefícios e o mínimo de danos, ao solicitar acesso equânime aos serviços de saúde; o principialismo oferece, aos profissionais da saúde e aos pesquisadores, orientação básica e convida a permanente reflexão ética50. 45 Mauro Godoy Prudente (Bioética, Conceitos Fundamentais. Porto Alegre: Editora do Autor, 2000. p.136-7) esclarece: “Pessoa [lat. Persona]. Esse conceito designa o ser humano em sua individualidade. Em Ética pessoa é o individuo moralmente competente [responsável]; aquele que é o sujeito nas relações consigo mesmo e com o mundo social que o cerca. Sua origem epistemológica vem do latim persona que designa a máscara utilizada pelos atores do teatro, para simbolizar que representavam papéis”. Pessoa lembra, também, a singularidade irrepetível de cada ser humano, seu rosto único, sua intimidade indevassável. A Pessoa, segundo a tradição inaugurada por Tomás de Aquino, enquanto indivíduo dotado de intelecto e vontade, é dona de seus atos [por isso responsável], possuindo a si mesma através desses atos e, portanto, apta para decidir o sentido de sua existência. 46 Do latim autonomia [aquele que dá leis para si próprio] cf. PRUDENTE, 2000, p.27. 47 Prudente (2000, p.36) declara que da conduta beneficente [relativa à beneficência, do latim Beneficentia] decorrem as seguintes implicações: “1. Todo o ser humano possui dignidade e, como tal, é capaz de escolher e hierarquizar os valores que dão sentido à sua existência; 2. Todo ser humano é uma pessoa e, como tal, possui características que o tornam único; 3. O ser humano vive em relação social com os demais, como tal, possui direitos e obrigações; 4. O ser humano é livre para escolher seus objetivos e viver de acordo com eles; 5. O ser humano é competente para decidir, com base em seus conhecimentos, o que considera melhor para si; 6. Só o consentimento autoriza outras pessoas a decidirem por ele; 7. O ser humano não existe em abstrato; é histórica e socialmente condicionado, o que não impede que construa seu universo interior de forma autônoma e escolha as comunidades morais de que deseja participar. 8. O ser humano passa a ser titular da reserva de domínio sobre esses princípios no momento em que chega à existência; no intervalo de tempo que vai até o exercício autônomo do mesmo, deve ser tutelado com esses mesmos princípios; 9. Faça aos demais seres humanos aquilo que eles considerem seu próprio bem”. 48 Justiça [do latim Justitia] é a virtude social por excelência, implica em equidade. 49 Cf. CLOTET; FEIJÓ, 2005, p.16-18. 50 Destacamos que os quatro princípios se encontram auto-referidos ou mutuamente implicados. É comum, nos processos reflexivos bioéticos percebermos conflito entre os mesmos. Na singularidade dos casos, dialógica e prudentemente, é preciso relacioná-los, determinando, se for necessário, qual [dentre os princípios] exerce relativa prioridade sobre os outros. Sua aplicação, portanto, não é mecânica, mas refletiva e flexível. 18 Recordamos, uma ética de princípios [formal] encontra complementação na denominada ética do cuidado [atitude]. 7 Da Ética de princípios à Ética do Cuidado Examinaremos, brevemente, as contribuições de Lawrence Kohlberg, Carol Gilligam e Martin Heidegger51, na proposição da teoria do desenvolvimento moral na descoberta da responsabilidade e nas reflexões sobre o cuidado [Sorge], esse modo de ser do Dasein humano. Essas reflexões permitem ao estudante de ética postular tanto uma Ética pautada em princípios [formal] como uma Ética entendida como atitude [cuidado / responsabilidade]. Nas pesquisas em psicologia, pela demonstração da existência dos estágios da moralidade e constatação de uma ética pautada pelo cuidado, Kohlberg e Gilligam inovaram. Martin Heidegger, entretanto, é o pensador que, pioneiramente, ao realizar descrição analítica da existência, propõe o cuidado como modo de ser do ser humano. Após analisarmos, brevemente, as pesquisas dos estudiosos de Harvard, intencionamos transitar pelo pensamento de Heidegger descrevendo a existência humana e indicando o significado do cuidado, esse modo-de-ser responsável do ser-aí-no-mundo [homem]. Investigando a técnica moderna, explicitaremos porque a técnica é barreira entre o Dasein e o mundo, inibindo, conseqüentemente, um existir autêntico e cuidante. Sinalizaremos, enfim, um modo prudente de lidar com os utensílios técnicos. 1 A teoria dos estágios do desenvolvimento moral de Kohlberg e adescoberta de Gilligam Lawrence Kohlberg (1927-1987), psicólogo e pedagogo americano52 ampliou as pesquisas de Piaget através de investigações latitudinais e longitudinais53, procurando evidenciar e diferenciar as várias fases do desenvolvimento moral. O prestigiado educador demonstrou que, paralelamente e para além do desenvolvimento cognitivo, ocorre o desenvolvimento moral segundo variados graus de autonomia e heteronomia. 51 Kohlberg procurou demonstrar e caracterizar as diversas fases do desenvolvimento moral [passagem da heteronomia à autonomia moral]. Carol Gilligan inova em suas pesquisas pela elaboração de teoria psicológica sobre o cuidado. Heidegger, em sua analítica existencial [Ser e Tempo], esclarece: o cuidado [Sorge] não é um acréscimo, mas modo de ser do Dasein Humano [do homem]. 52 Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p.76-80. 53 Pesquisas envolvendo adolescentes e adultos jovens, em diferentes lugares: USA, Turquia e Israel [latitudinais ou interculturais], durante considerável período de tempo. Esses indivíduos foram acompanhados da adolescência até idade adulta [em diferentes fases de seu desenvolvimento], tendo respondido, periodicamente, testes formulados pelo pesquisador de Harvard [longitudinais ou verticais]. 19 Lawrence Kohlberg descreve seis graus ascendentes na direção da autonomia ética54. Entretanto, Carol Gilligam, antiga colaboradora de Kohlberg, diante das dificuldades apresentadas pelas mulheres em solucionar os dilemas morais55, mostraria “que a mulher se desenvolve eticamente, com situações que envolvem relacionamentos, e não em relação a uma definição de direitos como o homem56”. Desse modo, se o menino confiava nas suas habilidades lógicas para resolver os dilemas propostos nos testes, a menina, avaliando os relacionamentos, os elementos envolvidos, privilegiaria o cuidado. De uma orientação à sobrevivência individual [1], passando pelo auto-sacrifício [2], a jovem adulta alcançaria o estágio da responsabilidade, equilibrando o cuidado do outro com o cuidado de si57. 2 O Dasein e o Cuidado [sobre a responsabilidade] Vivemos numa época acelerada, convocados pelas facilidades tecnológicas realizamos, simultaneamente, inúmeras tarefas. O tempo da existência, desconsiderado, é substituído pelo tempo do relógio transformado em tempo tecnológico. A proximidade58, 54 Segundo Kohberg (Cf. Bárbara Freitag. “Moralidade e Educação Moral”. In: Itinerário de Antígona. A questão da Moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) os estágios do desenvolvimento moral seriam seis. No primeiro estágio, denominado moralidade heterônoma, é considerado moralmente certo [correto] não violar regras que ocasionem punições, trata-se de um obedecer por obedecer. No segundo estágio, individualista, prevaleceria intenção instrumental e troca. É correto obedecer a normas quando essas satisfaçam o interesse imediato, atendendo às próprias necessidades e desejos. Encontramo-nos diante de moral egocêntrica. No terceiro estágio, busca-se conformidade interpessoal. O indivíduo se conforma ao que os outros esperam, pois deseja ser aceito pelo grupo. É preciso manter relações de confiança, lealdade, respeito e gratidão, pois participamos de uma coletividade. Há desejo de respeito às regras, porém, sob perspectiva estereotipada do bem. No quarto estágio, o indivíduo moral está apto a cumprir suas obrigações. A perspectiva sociomoral busca legitimar o todo social, o funcionamento das instituições. No quinto estágio, alguns valores universais são defendidos como indispensáveis à vida em comunidade [liberdade, vida, etc.]. Predomina, entretanto, visão contratualista ou legalista. No sexto estágio, a pessoa pauta suas ações por princípios universais, justificados racionalmente e capazes de orientar o agir. As leis e acordos sociais são considerados válidos porque se apóiam nesses princípios. Estamos, agora, falando de princípios universais de justiça, como a igualdade dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos seres humanos em sua unicidade irrepetível. A perspectiva moral desse sexto estágio é a de qualquer ser racional capaz de reconhecer, no fato de que as pessoas são um fim em si mesmas e precisam ser tratadas como tais, a fonte da moralidade. Kohlberg propugna educação que possibilite transição da heteronomia à autonomia na vida moral. JUNGES (2006, p.79) oferece um esquema dos diferentes estágios: α) No nível pré-convencional temos: estádio 1: “a orientação de castigo e de obediência”; estádio 2: “orientação instrumental e relativista”; β) No nível convencional: estádio 3: “a concordância interpessoal ou orientação a ser bom menino ou boa menina”; estádio 4: “a orientação da lei e da ordem”; γ) No nível pós- convencional: estádio 5: “a orientação legalista do contrato social”; estádio 6: “a orientação por princípios universais e éticos”. 55 Em solucionar, nos testes propostos, casos envolvendo dilemas morais. 56 JUNGES, 2006, p.81. 57 Ibidem, p.81. 58 No espaço existencial, o Dasein se relaciona com coisas, objetos, seres vivos, outras pessoas. Nesse espaço, relacionar-se é anular a distância através da proximidade [tendo coisas à-mão, dirigindo o olhar para determinada direção e coisa, estando face-a-face, etc.]. O espaço existencial difere do espaço geométrico [representação abstrata]. No mundo [espaço existencial], o Dasein realiza sua existência pela relação [estando próximo ou distante]. 20 modo de ser do Dasein59, vê-se obstaculizada. Transitando num espaço virtualizado, o ser- aí já não mais existe no aberto do mundo, já não mais se relaciona, autenticamente, com coisas e pessoas, já não mais destina a si mesmo. Atarefado, encontra desculpas à sua incapacidade de gerir a existência: estou muito ocupado, as atividades me consomem, preciso ganhar a vida. Diante do quadro brevemente descrito, importa indagar: quem, realmente, nós somos? Somos o resultado dos papéis sociais que desempenhamos, as múltiplas tarefas que executamos? Por que nos prendemos às rotinas que inventamos? Por que não nos desvencilhamos das rotinas impostas? Por que precisamos, sempre, parecer tão ocupados? Somos, de fato, capazes em assumir a vida como tarefa, sem transferirmos responsabilidades? O ser-aí-no-mundo é temporal. Não estamos falando do tempo do relógio ou do tempo multiplicado pela aceleração tecnológica. Estamos enunciando o tempo da existência: ser presença [kairós]60. Tempo que é, simultaneamente, em cada instante vivido: passado, presente e futuro. Somos, num presente que se esvai, um passado atualizado e um futuro por realizar, ou seja, possibilidade61. Descobrimos que a possibilidade última [derradeira] é nossa impossibilidade: um dia não seremos mais. O Dasein, temporal, um dia não mais será. Constatada nossa condição mortal62, nos evadimos dessa descoberta, montando rotinas e executando tarefas, fixando-nos, alienadamente, num presente que nega o futuro. A ocupação, nesses dias de onipotência da técnica, em conseqüência, é um modo de negar nossa condição mortal. Essa ocupação desordenada impossibilita, igualmente, vivermos com intensidade o presente e preocuparmo-nos autenticamente com o futuro. Se estamos sempre diante de possibilidades, se o futuro é imprevisível, a resposta às incertezas resultantes dessa condição não será encontrada na dispersão das ocupações, mas no cuidado. Como devemos, então, compreender o cuidado? O Dasein, no aberto do mundo e diante do possível, precisa cultivar esse mundo, tornando-o habitável. Ao destinar-se [realizar sua existência] o ser-aí-no-mundo é 59 Dasein ou ser aí [no mundo]. O ser humano é o ente privilegiado que indaga pelo sentido doser [pelo significado de sua própria existência]. O ser aí encontra no mundo o horizonte de sua existência. Como, então, devemos compreender a expressão mundo? Por mundo não devemos entender a soma dos entes, mas o lugar significado [nomeado pela linguagem], habitado e cultivado pelo Dasein [pelo homem]. O mundo, essa totalidade de significados [o horizonte vital de sua existência] é o a priori concreto que acolhe o ser aí. O Dasein, nessa perspectiva, ao acolher o mundo [nomeando-o, cultivando-o, habitando-o] – constitui a si mesmo e ao próprio mundo. O Dasein, podemos inferir, existe no aberto do mundo pelo cultivo responsável desse mundo. As coisas não têm mundo, o animal é pobre de mundo, o Dasein é rico de mundo [é formador de mundo]. De fato, as coisas participam do mundo através do Dasein. Em conclusão, assim como não há Dasein sem mundo, não há mundo sem o Dasein. O Dasein, sublinhamos, é um ser-aí-no-mundo [in-der-Welt-Sein]. 60 Kairós ou tempo da existência: presença a si mesmo, no mundo, no gratuito e intenso dom de existir 61 Vivenciamos o tempo na perspectiva de sua tridimensionalidade [presente das coisas passadas: memória; presente das coisas presentes: visão; presente das coisas futuras: expectação / Cf. Santo Agostinho no Livro XI das Confissões]. Em realidades, o Dasein é o próprio tempo: ele se temporaliza nas vivências do tempo. 62 Pois na gratuidade do existir, um dia não mais seremos. 21 convocado ao cuidado. O cuidado [Sorge]63, portanto, modo de ser do Dasein, se expressa como besorgen [pré-ocupação, pro-ver] e Fürsorge [solicitude]. O cuidado implica em preocupação com o futuro, pois é preciso cultivar o mundo, torná-lo habitável, respondendo, assim, às exigências de sua condição frágil e finita. O cuidado também é solicitude, pois ultrapassadas as preocupações relativas à sobrevivência, o Dasein humano é capaz de acolher o outro, promovendo-o. Cuidar, portanto, indica preocupação em construir abrigos, cultivar os campos, edificar o mundo. Cuidar envia à solicitude: ser-com-os-outros-no- mundo. Cuidar é, pois, cultivar-com, tornando o mundo nossa comum casa planetária. O ser-aí-no-mundo-com [os outros]64 implica em cuidar. O cuidado não é, ressaltamos, um acréscimo ao existir, mas dimensão constitutiva do humano. Entretanto, no que consiste, segundo o pensador de Messkirch, o modo adequado de cuidar? Existem dois modos extremos do cuidado: o cuidado substitutivo [inautêntico] e o cuidado liberador [autêntico]. O exercício inadequado do cuidado se revela num deslocamento de posição. No preocupado, transforma o outro em objeto de suas ocupações, substituindo-o na tarefa de cuidar de si mesmo. Na substituição dominadora, por conseguinte, verificamos deslocamento que fere a liberdade do beneficiado e, nesse contexto de dependência, o cuidado autêntico é impedido. Noutra direção, no que consiste o cuidado autêntico? O cuidado autêntico se revela na atitude pela qual o cuidador se antepõe ao outro, não para substituí-lo, mas para devolver-lhe a capacidade de cuidar de si mesmo. O Dasein humano, nas atitudes liberadoras do cuidado, num clima de confiança recíproca, buscará devolver ao beneficiado o cuidado [ou a capacidade de cuidar a si mesmo]. Todavia, na convivência cotidiana, o ser humano oscila entre esses dois extremos, entre a substituição dominadora e a anteposição liberadora. Nas ações liberadoras do cuidado [promotoras do cuidar de si], salientamos, se encontra o horizonte ético do existir humano. Esse horizonte pode ser significado pela palavra responsabilidade. Se o cuidado é atitude essencial na constituição do homem e do mundo, percebemos, nos tempos da onipresença da técnica, renuncia ao cuidado. O Dasein não mais se destina, não se responsabiliza, pois tende a transferir à técnica moderna essa tarefa. Embora a técnica moderna se apresenta como ameaça ao existir autêntico do homem, no entanto, não podemos viver sem ela. Precisamos dos artefatos técnicos, mas, paradoxalmente, esses magníficos engenhos perturbam e impedem o cuidado. Nesse contexto, se a técnica é um enigma para o homem de nossos dias, como lidar com ela? Heidegger nos oferece algumas pistas. É preciso afastar-se da órbita da técnica, distanciar- 63 Cuidado [do latim Cura, ae] indica: diligência, atenção. Interessante constatar: as palavras cuidado e cura têm a mesma raiz etimológica. Na língua alemã cuidado é Sorge. 64 O ser-aí-com [Mit-Dasein]. 22 se da dialética entre progresso e regresso nela implicada, para poder pensá-la. Distanciando-nos da órbita da técnica descobriremos: se o poder da técnica é superior às capacidades do Dasein em dominá-la, outrossim, ela, cotidianamente, solicita seu empenho e trabalho. Nessa solicitação estaria escondida a possibilidade da recuperação do cuidado. Prosseguindo, verificado nosso emaranhamento com os artefatos tecnológicos, como devemos, então, lidar com eles? Quando, realmente, precisarmos deles, os utilizemos sem que nos dominem. Essa atitude tranqüila diante dos utensílios técnicos é denominada, pelo filósofo da Floresta Negra, serenidade. Transitar num mundo [desconstituído] e penetrado pelo poder da técnica, exercendo o cuidado, assumindo compromisso em destinar a própria existência, reivindica, logo, essa atitude serena diante dos utensílios técnicos. Essa atitude serena e responsável poderá, um dia, devolver plenamente o mundo ao homem. A reflexão sobre a relação homem-mundo65 permitiu refletirmos sobre o cuidado. Descobrimos o Dasein humano66 em dinâmico processo de constituição existencial: na realização do conhecer, na constituição do mundo, no destinar-se, no ser-com e, sobretudo, no cuidar. O ser-aí-no-mundo, no exercício do cuidado, desenvolve atitude originária do existir. Ao cuidar, convida os outros seres humanos ao cuidado. Cuida de si para poder ajudar os outros a manterem ou recuperarem sua capacidade para o cuidado. O cuidado, recordamos, é atitude na vida que supõe a valorização de si mesmo e do outro. Quem cuida se importa, se preocupa. Aquele que cuida sabe-se co-responsável, sendo capaz, sublinhamos, de acolher e promover. Cuidar de si, cuidar do outro e deixar-se cuidar é um modo-de-ser-no- mundo. Um modo de ser que escuta, acolhe e promove. Um modo de ser que enriquece, sobremaneira, o cuidador, imprimindo sentido e intensidade à sua existência. Conclusão: Ética de princípios e cuidado [posições complementares] A Ética de princípios é, pois, complementada, pela Ética do cuidado. Não encontramos, considerado o exposto, oposição entre Ética baseada em princípios e Ética entendida como atitude. Com efeito, a compreensão da existência de princípios racionalmente alcançáveis e capazes de serem compartilhados, encontra, no cuidado, sua realização. Os princípios e normas de ação, de fato, precisam ser ultimados. O cuidado, modo-de-ser do homem, em conseqüência, atualiza, questiona e propõe revisão de comportamentos e regras. Se os princípios [formais] permitem justificar comportamentos éticos, o cuidado [atitude] é realização da dimensão ética da existência. Embora Heidegger, 65 O Dasein não se encontra diante de um mundo que interpreta, mas é-no-mundo. 66 Dasein ou ser-aí-no-mundo. 23 lembremos, não tenha proposto uma Ética67, suas reflexões sobre a Sorge, sobre a autenticidade e inautenticidade na ação do cuidar, permitem questionar nossas práticas profissionais. O presente estudo, relativo ao desenvolvimento moral, permite indagar sobre o grau de heteronomia ou autonomia conquistado na existência e vida profissional. Ao mesmo tempo, na medida em que podemos diferenciar ações cuidantes autênticas [liberadoras] das inautênticas [substituição dominadora], é possível avaliar nossas práticas intencionando, renovadamente,conquista de autenticidade e humanidade. O compromisso dos profissionais em interpretar e realizar, autonomamente, os preceitos de suas profissões tendo em vista o horizonte do cuidado, implica em cotidiana reflexão sobre suas responsabilidades e aprofundamento dos temas e interrogações no campo da Ética. 8 Principais setores da Bioética Os principais setores ou campos da Bioética são a Ética clínica, Ética da pesquisa e Ética das políticas públicas de saúde68. No desenvolvimento das atividades clínicas, de pesquisa e administração das políticas de saúde, recordamos, estão presentes as dimensões e tarefas da Bioética: a pessoa, o contexto de sua inserção, os princípios, normas e tarefas conseqüentes69. 67 De modo explicito e em perspectiva sistemática. 68 Cf. DURANT, 2001, p.11819. 69 A Bioética (cf. DURANT, 2007, p.117-118), segundo suas três dimensões, no desenvolvimento da prática clínica, da pesquisa e na administração das políticas de saúde considera: a) os casos individuais, valorizando a autonomia dos pacientes, suas expectativas, suscitando diálogo entre os envolvidos na direção da decisão final e do bem visado; b) o impacto das decisões sobre a sociedade e sobre os indivíduos [observando a crescente multiplicação de fatores envolvidos nessas decisões]; c) as complexas ligações entre o individual e o coletivo, indagando, por exemplo, se as normas estão a serviço de determinada instituição ou da sociedade em conjunto [ex. proteção de patentes de fármacos]. Podemos, em conseqüência, enumerar cinco tarefas da reflexão bioética: 1) análise de casos, solução de dilemas morais, exame de projetos de pesquisa, estudo de um problema de saúde pública; 2) elaboração de quadros de análise, de processos de tomada de decisão; 3) estabelecimento de princípios diretrizes para uma instituição ou „unidade de trabalho‟, elaboração de balizas de ação, de projetos de intervenção; 4) reflexão teórica sobre os princípios e valores em jogo, incluindo, eventualmente, crítica às estruturas e instituições; 5) reflexão sobre os fundamentos da Bioética e da própria Ética considerando o que está, fundamentalmente, em jogo. Essas tarefas, em sua diversidade, dependem de colaboração interdisciplinar dos diversos especialistas envolvidos. 24 8.1 Ética Clínica No exercício clínico, que demanda processos decisórios, os profissionais da saúde se defrontam, desafiados, invariavelmente, com conflitos, dilemas e incertezas70. No acompanhamento de pacientes, ao permanecerem junto à cabeceira dos seus leitos, próximos deles, perguntam, por exemplo: – pela manutenção ou interrupção de tratamentos em doentes terminais [a]; – sobre acompanhamento e tratamentos paliativos em doentes terminais [b]; – sobre a reanimação desses pacientes [c]; – sobre a confidencialidade nos casos que envolvem terceiras pessoas [d]. Surgem, então, inúmeras perguntas: Qual atitude é a mais adequada? Quais providências é preciso tomar? Quais as informações que podem e devem ser compartilhadas? Quais são as informações que devem ser preservadas? Essas são algumas dúvidas inerentes às práticas clínicas. Diante do quadro esboçado, no que consiste a Ética clínica? Podemos afirmar que a ética clínica diz respeito a todas as decisões, incertezas, [a todos os conflitos] de valores e dilemas aos quais os médicos e equipes médicas são confrontados na cabeceira dos pacientes, na sala de operações, no consultório médico ou na clínica e até mesmo no domicílio 71 . A Ética clínica, exercício reflexivo bioético, valorizará o paciente, o terapeuta e o contexto que os insere72. Compreenderá que o paciente [a], favorecido das ações terapêuticas, portador de história pessoal, valores e família, sujeito em situação de sofrimento é, fundamentalmente, pessoa. Perceberá que o terapeuta [b] – aquele que é capaz de curar – é um ser humano que, freqüentemente, enfrenta desconfortos institucionais diante de situações dificilmente toleráveis. Considerará, igualmente, os princípios e valores que estão em causa, não para impô-los ingenuamente, mas para iluminar cada situação [c]. Dos responsáveis pelas práticas clínicas é suposto terem clareza sobre seus próprios valores, que conheçam os valores específicos da instituição onde desenvolvem suas atividades e, até mesmo, da sociedade em conjunto73. A Ética clínica, salientamos, não diz respeito, somente, aos médicos e às equipes médicas, mas a todos profissionais que ministram tratamentos e participam de processos terapêuticos74. A Ética clínica não examina, apenas, conflitos e dilemas éticos, mas, 70 O clínico, não obstante sua competência técnica e humana, enfrentará dilemas éticos importantes. Durant (2007, p.121) nos oferece alguns exemplos: a) interromper ou continuar com um tratamento; b) informar o parceiro de um paciente vitimado pelo HIV ou manter silêncio. Em decorrência, se há um lado técnico [diagnóstico e prognóstico, alternativas terapêuticas], existe, igualmente, uma dimensão ética [escolha da decisão a ser tomada]. Freqüentemente não distinguimos essas dimensões do exercício clínico. Contudo, elas existem e precisam ser consideradas e conciliadas adequadamente. 71 JOY, David J. et.al. (La Bioetéthique. Ses fondements et ses controverses, p.53) apud DURANT, 2007, p.120. 72 Cf. DURANT, 2001, p.121. 73 Ibidem, p.121. 74 Ibidem, p120. 25 igualmente, comportamentos cotidianos: atitudes, decisões usuais, gestos comuns, indagações corriqueiras referentes às práticas terapêuticas75. A Ética clínica, na busca do ótimo, do melhor possível em cada caso e situação, não se restringe a determinar o que é permitido, prescrito, tolerado ou proibido. Intencionará em cada caso analisado, através do julgamento prudencial, o melhor possível76. A Bioética clínica ou Ética clínica, ética aplicada ao exercício clínico, enfim, não se resume a estudos de casos, mas solicita reflexão sobre princípios capazes de orientar profissionais e pacientes nas difíceis decisões a serem tomadas e implementadas, pois em toda decisão clínica existe uma dimensão ética que precisa ser considerada77. Destacamos a importância dos conselheiros em ética clínica, dos comitês de ética hospitalar, dos comitês de bioética, dos grupos de „livre expressão‟, dos grupos de auxílio à decisão ética. 8.2 Ética da Pesquisa Nos Estados Unidos da América, as experiências envolvendo seres humanos despertaram, provavelmente, o primeiro debate multidisciplinar e público78 sobre o estatuto ético e regulamentar da pesquisa79. No passado, o exercício da medicina caminhava ao lado da pesquisa de novas terapias. A pesquisa biomédica, enfim, diante do acelerado desenvolvimento tecnocientífico dos últimos decênios, gradativamente, efetuaria separação da prática clínica. O ensaio terapêutico, em conseqüência, na busca da cura dos pacientes, separar-se-ia das práticas usualmente aceitas. O cenário, brevemente descrito, levou ao estabelecimento de 75 Cf. Durant, 2001, p.120. 76 Ibidem, p.120. 77 Ibidem, p.121. 78 DURANT, 2007, p.122. 79 CLOTET e FEIJÓ (2005, p.10-11) relatam “Em 1966, pouco após a publicação da declaração de Helsinque, que continha em seu cerne o princípio do consentimento voluntário, o anestesista do Massachusetts General Hospital, Henry Beecher publicou um artigo compilando 22 casos de tratamento inadequado de indivíduos submetidos a atividades de pesquisa. Em seu artigo intitulado Ethics and Clinical Research, Beecher revelou o abuso sofrido por pessoas consideradas incapazes de exercer plenamente sua autonomia, de se posicionar frente a um processo de experimentação ou a um pesquisador com crianças com retardo mental, recém-nascidos, idosos, presidiários,
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