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Teoria da Investigação Criminal UNIDADE 1 - Aspectos Orgânicos e Sistêmicos Introdução da unidade Nesta unidade, você será apresentado ao mundo das investigações criminais, principalmente no que tange a seus aspectos orgânicos e sistêmicos. Na primeira aula desta unidade, abordaremos os aspectos gerais relativos à investigação criminal, com seu conceito, previsões legais e classificações. No que concerne ao conceito da investigação, estudaremos desde a etimologia da palavra até sua conceituação para diferentes autores, possibilitando, assim, a construção concatenada de um conceito próprio. Já no que tange às previsões legais, o objetivo é abordar tanto as previsões constitucionais e processuais penais, relativas à investigação criminal, quanto aquelas previstas em legislações especiais, permitindo a obtenção de conhecimentos amplos relativos aos instrumentos investigativos. Em se tratando das classificações da investigação criminal, abordaremos a chamada investigação pura (ou constitucional), a investigação derivada que, apesar da previsão constitucional, é realizada fora do padrão previsto para as infrações comuns e, por fim, a investigação impura, aquela que não possui previsão constitucional, mas existe em legislações esparsas, abordando os aspectos inerentes a cada uma delas. A segunda aula desta unidade tem por objetivo o estudo dos aspectos históricos que permeiam a investigação criminal, analisando sua realização com a antiguidade, por meio dos Magiaí, no antigo Egito, passando pelas previsões legais contidas no Código de Hamurabi da Babilônia, até as previsões do Direito Grego e Romano. Abordaremos, ainda, as investigações criminais no Brasil e como se desenvolveram durante o período das Ordenações do Reino, tratando especificamente das Ordenações Afonsinas (1446-1521), das Ordenações Manuelinas (1521-1603) e das Ordenações Filipinas (1603-1830), culminando na edição do Código Penal do Império e a alteração dos modelos até então adotados. Realizaremos uma análise acurada acerca da investigação criminal e suas nuances após a promulgação da Constituição de 1988, e a proteção aos direitos e garantias fundamentais trazida por meio do modelo garantista adotado após o período. Por meio da abordagem teórica, a última aula desta unidade abordará os sistemas processuais penais inquisitivo, acusatório e misto e como eles influenciam os procedimentos investigativos, principalmente no que tange à necessidade de respeito ao protecionismo constitucional. Nesta aula, trataremos, inclusive, da Lei Federal 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada “Pacote Anticrime” e as alterações trazidas no bojo do próprio sistema. Conceito Ao tratarmos do processo de investigação criminal, com relação a seus aspectos orgânicos e sistêmicos, é indispensável partirmos da conceituação desse complexo ato que inaugura a persecução penal. A expressão “investigação” vem do latim, investigatione, que, segundo o Dicionário Jurídico de Washington dos Santos (2001, p. 130) é: “Ato ou efeito de investigar; indagação minuciosa; inquirição; busca, pesquisa”, sendo definido, ainda pelo mesmo autor, que a “investigação criminal” refere-se ao “processo preparatório do sumário ou instrução criminal”. A investigação criminal, enquanto fase inaugural da persecução penal, visa a apuração dos fatos que envolvem um delito, com o objetivo de apontar sua materialidade e autoria. Nesse sentido, Piero Calamandrei (1936, p. 21), ao tratar da investigação, conceitua da seguinte forma: “É o conjunto de atividades desenvolvidas concatenadamente por órgãos do Estado, a partir de uma notícia- crime, com caráter prévio e de natureza preparatória com relação ao processo penal, e que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias de um fato aparentemente delituoso, com o fim de justificar o processo ou o não- processo.” Tomando por base tais premissas, podemos conceituar a investigação criminal como um conjunto de procedimentos e diligências, de caráter estritamente técnico, que tem por objeto a coleta de evidências destinadas a demonstrar a existência e determinar a autoria de um delito, a fim de que as informações coletadas sejam efetivamente utilizadas durante o processamento e julgamento do feito. A investigação criminal é uma atividade estatal voltada ao efetivo esclarecimento de um fato considerado criminoso e dotada do que chamamos de função tripla, qual seja, a preservação da evidência obtida, afastamento de acusações desprovidas de provas e a garantia de uma causa justa para a inauguração de uma ação penal. Nessa seara, visando conceituar o instituto da investigação criminal, Eliomar Pereira da Silva (2011, p. 43), em sua obra Teoria da Investigação Criminal, é didático ao defini-la como: “Pesquisa, ou conjunto de pesquisas, administrada estrategicamente, no curso da qual incidem certos conhecimentos operativos oriundos da teoria dos tipos e da teoria das provas, apresentando uma teorização sob várias perspectivas que concorrem para a compreensão de uma investigação criminal científica e juridicamente ponderada pelo respeito aos direitos fundamentais, segundo a doutrina do garantismo penal.” Ante a tais apontamentos, é possível concluir que a investigação criminal é o meio que dispõe o Estado para averiguar a autoria, existência e materialidade de um determinado delito, colhendo os subsídios necessários para a correta e fiel instrução de eventual processo criminal, com o objetivo de possibilitar a persecução penal e eventual condenação do acusado, portanto, instrumento indispensável ao bom andamento da justiça penal. Previsões legais A investigação criminal, em que pese não possuir um conceito definido pela própria legislação, possui previsão, tanto na Constituição Federal como no Código de Processo Penal e, até mesmo, em legislações especiais. A Magna Carta, ao tratar da investigação criminal, aborda a competência atribuída à Polícia Federal e Civil para apuração de infrações penais; a possibilidade de o Ministério Público requisitar diligências investigatórias e, ainda, a possibilidade de violação de sigilo de correspondência ou comunicação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Ao tratar do tema Segurança Pública, a Constituição Federal, em seu art. 144, §1º, atribui à Polícia Federal a responsabilidade pela efetiva apuração dos delitos cometidos contra a ordem política, social ou que afetam os interesses da União. Assim, a previsão constitucional a respeito da Polícia Federal, no que concerne à investigação criminal, é enfática ao atribuir-lhe responsabilidade pela apuração de determinados delitos que afetam direta ou indiretamente os interesses da União ou que possuam repercussão interestadual ou internacional. O parágrafo 4º do art. 144, ao definir a competência da polícia civil, atribui-lhe as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, ou seja, impõe-lhe a competência para investigação dos delitos em geral. Outro aspecto relevante no que tange à previsão constitucional da investigação criminal, diz respeito à necessidade de respeito aos direitos fundamentais, sendo sacramentado no art. 5º, XII (BRASIL, 1988), por exemplo, que: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” Relevante, ainda, apontar que o STF reconheceu, no bojo do RE 593.727, a competência constitucional do Ministério Público para promover, por autoridade própria, a investigação de natureza penal. Quanto à previsão das investigações criminais no bojo do Código de Processo Penal, o art. 4º do códex é enfático ao atribuir a função de polícia judiciária às autoridadespoliciais no território de sua circunscrição, definindo, ainda, que sua finalidade será a de apurar infrações penais e sua autoria, ou seja, exercer, efetivamente, a atividade investigativa. Importante apontarmos que a Lei Federal 12.830, de 20 de junho de 2013, versa sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, sendo enfática ao determinar, no parágrafo primeiro de seu art. 2º, que a investigação criminal será conduzida pelo delegado de polícia, por meio de inquérito policial ou outro procedimento, com o intuito de apurar a materialidade e a autoria de infrações penais. Ainda ao buscarmos referências na legislação especial, destacamos a Lei 12.529/11 que atribui o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE para apurar infrações econômicas relativas à defesa da concorrência; a Lei 9.605/98, que atribui ao IBAMA a competência para apuração de infrações ambientais e, até mesmo, a Lei 12.846/13, que atribui à CGU a responsabilidade pela apuração de ilícitos contra a Administração Pública relacionados à Lei Anticorrupção. Classificação da investigação criminal A fim de nos aprofundarmos no tema, é importante destacar que a investigação criminal, enquanto instrumento do Estado para apuração da materialidade e autoria de fatos delitivos, pode ser classificada de três formas, a depender da sua previsão legal e do órgão competente para realizá-la. A primeira classificação da investigação criminal é reservada para o procedimento comum, previsto constitucionalmente e realizado sob a presidência de um Delegado de Polícia. A essa classificação damos o nome de “Investigação Criminal Constitucional”, sendo nomeada por alguns autores como “autêntica” ou “pura”. A investigação criminal constitucional é efetivada pela Polícia Federal e pela Polícia Civil, na forma discriminada no art. 144 da Constituição Federal e voltada à apuração de infrações penais comuns (no caso da Polícia Civil) ou que afetam os interesses da União (no caso da Polícia Federal). Podemos, ainda, classificar a investigação criminal como “derivada”, quando sua execução é diversa do modelo padrão, como no caso das infrações militares nas quais a apuração deve ser realizada pela polícia judiciária militar, segundo previsão do art. 8º do Código de Processo Penal Militar (Lei nº 1.002/1969). Outra espécie de investigação criminal derivada é aquela realizada pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), prevista no art. 58, §3º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que confere poderes de investigação próprios das autoridades judiciais às Comissões: “Art. 58. [...] [...] 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.” Introdução da aula Qual é o foco da aula? Nesta aula, abordaremos os processos investigativos adotados na antiguidade e como o sistema de produção probatória funcionava nos primórdios da vida em sociedade. Objetivos gerais de aprendizagem Ao longo desta aula, você irá: examinar a investigação criminal na antiguidade; explicar a ordenação do reino; debater a investigação federal na constituição de 1988. Situação-problema O processo investigativo, com o passar dos anos, sofreu diversas mudanças, desenvolvendo-se para melhor se adequar as nuances políticas e sociais. A fim de ampliar nossos conhecimentos relativos ao tema, é indispensável procedermos a uma análise acurada no que concerne à evolução histórica da investigação criminal. Analisaremos, do ponto de vista histórico, o desenvolvimento das investigações criminais no Brasil, desde sua aplicabilidade durante as Ordenações do Reino, passando pelo Código Criminal do Império e culminando nos processos investigativos previstos na Constituição de 1988. Por meio desta aula, pretende-se ampliar os conhecimentos históricos relativos à investigação criminal, possibilitando o correto entendimento quanto às influências que as legislações antigas exerceram sobre os procedimentos atuais. Imagine a situação hipotética em que você foi procurado, no ano e 1831, para defender uma pessoa acusada de estupro, porém, soube que, para haver a confissão do crime, o acusado, seu cliente, passou por um processo inquisitorial focado na tortura. De posse dos elementos de defesa da época (se é que existem), apresente uma solução de defesa. Na hipótese de uma investigação criminal sem previsão constitucional, estaremos diante da chamada “investigação criminal impura”. A investigação criminal impura é a classificação dada às investigações realizadas sem previsão constitucional, sendo orientadas apenas por legislação especial, como as realizadas, por exemplo, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF; Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE ou Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. Com isso, no que tange às classificações da investigação criminal, é possível concluir que indicam não apenas o procedimento a ser adotado, mas também as partes integrantes do processo acusatório e quem, efetivamente, adotará as providências relativas à apuração de eventual delito, bem como sua materialidade e autoria. Consigne-se que, independentemente da efetiva classificação da investigação e sua previsão ou não no texto constitucional, é indispensável que sejam respeitados os direitos fundamentais dos investigados, não servindo a utilização de ordenamento especial para o desvirtuamento do caráter da investigação criminal. ______ 🔁 Assimile A investigação impura, como aquela realizada pelo COAF, foi impulsionada pelo julgamento do RE 1055941, em 04 de dezembro de 2019, onde o Supremo Tribunal Federal, por 10 votos a 1, aprovou as regras de compartilhamento de dados fiscais e bancários em investigações criminais, determinando que o COAF deve enviar as informações à polícia ou ao Ministério Público por meio de comunicação formal, protegida por sigilo e reservando-se a possibilidade de fiscalização judicial acerca de possíveis abusos; dessa forma, passou-se a dispensar a autorização judicial para o procedimento, fixando-se o Tema de Repercussão Geral nº 990. ______ 💭 Reflita Com base nos temas estudados, é possível refletir acerca das investigações criminais impuras e a ausência de autorização constitucional para sua execução, principalmente no que tange à violação de sigilo para fins investigativos realizada pelos órgãos de controle, como a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Essa violação fere a intimidade protegida pela Magna Carta? ______ 📝 Exemplificando No ano de 2020, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras bateu seu recorde de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs). Até 1º de dezembro daquele ano, foram expedidos 11.043 relatórios, quase 4 mil a mais do que no ano de 2018. ______ Os conceitos abordados nesta disciplina têm por objetivo auxiliar você no processo de assimilação e introdução à matéria de investigação criminal, demonstrando didaticamente as origens dos instrumentos investigativos e o papel do próprio Estado a depender do sistema de persecução penal adotado. Investigação criminal na antiguidade Ao buscar informações relativas às investigações criminais na Antiguidade, é possível encontrar traços dela em 4000 a.C., no antigo Egito onde os Magiaí eram responsáveis por colher as acusações e adotar as providências que entendessem necessárias para elucidação dos fatos. OsMagiaí eram conhecidos como procuradores do rei (ou mesmo, olhos e língua do rei) e, além de servirem de agentes responsáveis pelas investigações criminais, também aplicavam os castigos necessários à punição dos delitos. No ano de 1754 a.C., o rei Hamurabi, da Babilônia, editou o Código de Hamurabi, com 282 artigos, o qual já deixava clara a importância da investigação criminal para realização de uma acusação, expondo, logo em seu primeiro artigo, que “se um awllum acusou um awllum e lançou sobre ele (suspeita de) morte, mas não pôde comprovar: o seu acusador será morto”. É importante destacar que Emanuel Bouzon (1980, p. 25) ao traçar comentários sobre o Código de Hamurabi, frisou que, na Babilônia o termo awllum era usado para descrever o homem livre e que gozava de seus direitos. Na antiga Grécia, o sistema penal era baseado na acusação popular; a Helieia (tribunal) era composta por 500 membros, escolhidos por sorteio, dentre os cidadãos com mais de 30 anos. Na ágora (praça pública onde se realizada a Helieia), qualquer cidadão poderia sustentar uma acusação e, assim, tanto a defesa quanto a acusação possuíam o ônus da prova, ou seja, a investigação criminal no período não era competência exclusiva do Estado, mas de todos os interessados. Já no Direito Romano, a figura dos pater famílias era detentora de toda autoridade, dessa forma, cabia a ele investigar, apurar os fatos e impor a sanção que considerasse necessária a qualquer membro de seu grupo. Já na idade média, a Direito Canônico passou a ter fortes influências sobre a persecução penal e o processo investigativo em si, sendo que, a partir do ano 1184, passaram a vigorar as chamadas Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam e Vergentis in Senium, sendo que a segunda, editada pelo Papa Inocêncio III, no ano de 1199, deu início à investigação inquisitiva e equiparou o crime de heresia ao crime de traição ao rei. No período de inquisição católica, surgiu importante figura para o estudo das investigações criminais, a chamada “denúncia”, que poderia ser equiparada à atual delação, pela qual, caso alguém confessasse seus crimes dentro de determinado período e apontasse os seus comparsas, seria aceito novamente pela igreja. Dessa forma, é possível verificar que os procedimentos de investigação criminal estão em constante desenvolvimento e que as figuras responsáveis pela persecução penal são alteradas de tempos em tempos, porém, em todos os momentos da história, a investigação criminal sagrou-se como importante instrumento para a busca da justiça, seja com a finalidade de punir culpados ou mesmo de proteger inocentes. Ordenações do Reino No Brasil pré-colonial, ante a inexistência de um sistema jurídico próprio ou de regras relativas aos procedimentos de persecução penal, adotavam-se as leis de Portugal, as quais possuíam a denominação de Ordenações do Reino e sofriam fortes influências do Direito Canônico. Para o estudo relativo às investigações criminais no Brasil, existiram 3 ordenações importantes, sendo elas: as Ordenações Afonsinas (1446-1521); as Ordenações Manuelinas (1521-1603); as Ordenações Filipinas (1603-1830). No período em que vigoravam as Ordenações Afonsinas, a investigação criminal era realizada por meio de inquérito, pelo qual o sujeito denunciado por um determinado crime participava de todo o procedimento investigativo. Exceção ao inquérito era a realização da chamada “devassa”, iniciado de ofício e sem a participação do denunciado. Cabe ressaltar que as Ordenações Afonsinas tiveram pouca ou nenhuma aplicabilidade no Brasil, posto que, em que pese o descobrimento ter se dado em 1500, a colonização efetivamente se deu somente no ano de 1531, época em que já vigoravam as Ordenações Manuelinas. No período compreendido entre 1521-1603, as Ordenações Manuelinas é que determinavam os rumos da persecução penal em solo brasileiro. O procedimento criminal tinha início com as querelas juradas, denúncias ou devassas. Por fim, nas Ordenações Filipinas de 1603, as investigações criminais tinham início com denúncias perpetradas por particulares, dando origem a devassas ou querelas, de caráter inquisitorial e realizadas, ante a ausência de uma autoridade policial, por membros da sociedade, os quais recebiam ordens dos Alcaides. Nesse período, surgiu ainda a figura das devassas gerais ou especiais, que tinham por objetivo apurar crimes incertos. Nas querelas e devassas, realizadas sem a presença do denunciado nas investigações, o direito de defesa apenas era concedido na fase de julgamento, ocasião na qual, era oportunizada a apresentação de testemunhas. As Ordenações Filipinas vigoraram até a efetiva promulgação do Código Penal do Império, em 1830, que alterou drasticamente o modelo jurídico adotado no Brasil. O Código Penal do Império teve clara influência do movimento liberalista europeu, o que trouxe avanços para o processo investigativo no Brasil. A esse respeito, José Reinaldo Guimarães Carneiro (2007, p. 30), em sua obra O Ministério Público e suas Investigações Independentes, é didático ao afirmar que: “O movimento liberalista europeu acabou por implicar reflexos diretos no cenário legislativo e governamental brasileiro, iniciando-se o abandono aos regimes opressores e aos sistemas inquisitivos de investigação e aplicação da legislação penal, os quais desrespeitavam, por inteiro, os mais básicos direitos humanos.” Dessa forma, no que tange à evolução histórica da investigação criminal no Brasil, desde o descobrimento, a aplicação das Ordenações do Reino e seu caráter indubitavelmente opressivo e inquisitório foi claramente superada pelo desenvolvimento da própria sociedade e da forma como a persecução penal passou a ser vista, alcançando, assim, patamares mais próximos do efetivo respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais do indivíduo. A investigação federal na constituição de 1988 A investigação criminal é o instrumento de que dispõe o Estado para apuração da materialidade e da autoria de um determinado delito. Desde os primórdios, os procedimentos investigativos vêm evoluindo e se desenvolvendo, seja com atuação dos Magiaí, no antigo Egito, das prescrições dadas pelo Rei Hamurabi da Babilônia, pelas influências do direito grego e romano ou, até mesmo, pelas experiências cravadas pelo sistema inquisitorial das Ordenações do Reino. Com a promulgação da Constituição de 1988 não foi diferente. O Código de Processo Penal, promulgado em 03 de outubro de 1941, tinha como escopo a segurança pública, sem dar ênfase ao garantismo e proteção de direitos fundamentais; com o advento da Constituição Federal de 1988, os ideais democráticos conquistados no período pós-ditadura fortaleceram-se. A Magna Carta, também chamada de Constituição Cidadã, alterou a própria essência do Processo Penal, que deixou de ser um mero instrumento voltado à aplicação da lei e se converteu em verdadeira ferramenta garantista de proteção ao indivíduo face a persecução penal perpetrada pelo Estado. A respeito de tal premissa, Fauzi Choukr (2006, p. 8) é didático ao tratar do afastamento do modelo inquisitivo e da necessidade de respeito aos direitos do acusado: “A dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado sistema acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo de expressão que afirma que o réu (ou investigado) é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado.” A investigação criminal é alicerçada em diversos princípios trazidos pelo sistema garantista protegido pela Constituição Cidadã, como a isonomia, o contraditórioe a ampla defesa. A fim de dar efetivo cumprimento ao seu papel constitucional, a investigação criminal possui por objetivo evitar acusações infundadas e sem indícios de materialidade ou autoria, até porque o caráter estigmatizante do processo penal persiste mesmo que o acusado seja absolvido ao final do procedimento. A respeito do assunto, Salo de Carvalho (2008, p. 82) ensina: “O modelo garantista pretende instrumentalizar um paradigma de racionalidade do sistema jurídico, criando esquemas tipológicos baseados no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, com intuito de limitar o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada. Por se tratar de modelo ideal (e ideológico), apresenta inúmeros pressupostos e consequências lógicas e teóricas, negadas ou desqualificadas por modelos opostos de produção de saber/poder.” Ante a tais apontamentos, podemos enfatizar que a evolução histórica da investigação criminal, com o advento da Constituição Federal de 1988, teve claros avanços no sentido garantista, criando um verdadeiro equilíbrio entre a necessidade do Estado na obtenção de indícios de um delito e o respeito aos direitos e garantias fundamentais dos acusados, servindo, dessa forma, de verdadeiro instrumento de proteção à dignidade da pessoa humana. ______ 🔁 Assimile Alguns autores consideram que os Magiaí seriam a forma inicial do próprio Ministério Público, principalmente ante a sua dupla função no sistema penal egípcio, ou seja, acusador e protetor dos cidadãos. A assimilação deste conteúdo é importante, principalmente para entender sobre a estrutura e o desenvolvimento do próprio Ministério Público e sua atuação no sistema de persecução penal, principalmente no que tange à investigação criminal. ______ 💭 Reflita Ante aos apontamentos realizados no material, cabe a você refletir se os criminosos merecem tratamento isonômico, independentemente do delito cometido, ou se é possível a relativização de direitos em determinados casos, com a aplicação de um procedimento inquisitivo. ______ 📝 Exemplificando A adoção do modelo garantista pela Constituição Federal de 1988 é importante, posto que, com a abolição das penas de tortura pelo advento da Constituição de 1824, que balizou a promulgação do Código Penal do Império, em uma investigação criminal, nos dias de hoje, independente do delito cometido, a utilização de tortura para obtenção de uma confissão fatalmente fere a Magna Carta, ensejando a nulidade da prova obtida, além da responsabilidade pelo crime de tortura. ______ Assim, assimilando o conteúdo exposto até aqui, é possível notar que a investigação criminal passou por constante desenvolvimento no decurso dos anos, desde o modelo investigativo adotado no antigo Egito até aquele utilizado nos dias atuais. Parte desse desenvolvimento se deu em decorrência da própria evolução do pensamento social e/ou do modus operandi da criminalidade, que acabou forçando os processos investigativos a se modernizarem. Sistema inquisitivo O sistema penal inquisitivo, como o próprio nome sugere, remonta à época das inquisições católicas, que tinham por objetivo a investigação e punição daqueles considerados hereges pelo clero. O cerne do sistema penal inquisitivo é a acumulação de poderes e responsabilidade em apenas uma pessoa, encarregada de gerir todas as provas, acusar e julgar o infrator. A respeito do tema, Paulo Rangel (2009, p. 191) é didático, fazendo explanações acerca da aplicabilidade e dos objetivos do modelo penal inquisitivo, apontando que esse modelo foi aperfeiçoado com o avanço do direito canônico do mundo, tendo sido aplicado por praticamente todas as nações da Europa, do século XVI a XVII. Rangel afirma que o surgimento do modelo penal inquisitivo pode ser atribuído à visão de que a defesa social, antes realizada por particulares, não deveria depender da boa vontade, assim, o sistema penal inquisitivo serviu de espécie de reivindicação do Poder Punitivo pelo próprio Estado, que passou a ter a visão de que a responsabilidade pela punição dos delitos deveria ser de sua alçada. Característica marcante do sistema inquisitivo diz respeito à posição do acusado em relação ao procedimento. Para esse sistema, o infrator não possui desejos, sentimentos ou opiniões, não possui direitos, é considerado um simples objeto, sem qualquer direito de expor sua versão da verdade. No sistema inquisitivo, o processo tramitava em sigilo. Nem o réu tinha acesso às provas produzidas contra ele. Como explanado, no sistema inquisitivo, a reunião de funções atribuía ao próprio julgador a gestão das provas, o que fatalmente contamina a própria investigação, até porque, enquanto único conhecedor das provas produzidas, o magistrado seria guiado unicamente pela sua visão dos fatos. Quanto à problemática apontada, Jacinto Coutinho (2001, p. 24) enfatiza que o modelo inquisitório do sistema penal tem por característica fundamental a figura do magistrado como efetivo gestor da prova, sendo que, nesse modelo, há uma espécie de vantagem, posto que a gestão do conteúdo probatório permite que o juiz se informe sobre a verdade dos fatos, considerando apenas aqueles que entende ser penalmente relevantes. Coutinho conclui seu pensamento deixando claro que a vantagem mencionada é apenas aparente, posto que a onipotência do magistrado que detém a gestão probatória prejudica, de fato, a apuração dos fatos, ao passo que afasta o contraditório e faz com que a investigação seja guiada apenas pela visão do juiz. Com isso, esclarece a problemática quanto à aplicabilidade do sistema inquisitório, posto que a acumulação dos poderes relativos à investigação, julgamento e a gestão de provas em um único indivíduo fatalmente enseja a formação de um pré-julgamento, reduzindo ou mesmo impossibilitando a capacidade de defesa de um sujeito acusado injustamente. Sistema penal acusatório O sistema penal acusatório é marcado pela efetiva divisão de responsabilidade e atribuições, sendo que, diferente do sistema inquisitivo, as funções de acusar, defender e julgar são conferidas a pessoas distintas. Esse sistema é marcado pela imparcialidade do magistrado, a garantia efetiva de exercício do contraditório e ampla defesa por parte dos acusados. A fim diferenciar o modelo inquisitório de sistema penal do acusatório, o autor Renato Brasileiro (2017, p. 40) é enfático ao tratar da gestão de provas no sistema penal acusatório, afirmando que a responsabilidade por tal atribuição é das próprias partes, enquanto o juiz, dentro do modelo acusatório, assume o papel de garantidor dos direitos e liberdades fundamentais. O autor prossegue seu raciocínio apontando que: No que tange à não acumulação de funções em uma única figura, o modelo acusatório é eficaz na proteção dos direitos fundamentais do acusado ao garantir a possibilidade da formação do contraditório e a ampla defesa, de modo a auxiliar no livre convencimento do magistrado. É importante destacar que o modelo acusatório não é uma invenção do direito moderno, tendo sido utilizado durante a Antiguidade, em Roma e na Grécia, bem como na própria Idade Média, quando imperava o direito germânico, tendo entrado em declínio em meados do século XIII. A Magna Carta de 1988 acolheu expressamente o modelo penal acusatório ao atribuir, em seu art. 129, I, ao Ministério Público a atribuição privativa de propor ações penais públicas, reservando, assim, ao magistrado o poder de gerenciar o processo, impedindo que adote qualquer iniciativa que não se alinhe a equidistâncias em relação às partes envolvidas. Ao se debruçar sobre o sistema acusatório, Norberto Avena (2019, p. 87) aponta que ele é próprio dos regimes democráticos e enfatiza e garantia de isonomia processual presente nesse modelo:“Outra nota importante refere-se à garantia da isonomia processual, significando que acusação e defesa devem estar em posição de equilíbrio no processo, sendo-lhes asseguradas idênticas oportunidades de intervenção e igual possibilidade de acesso aos meios pelos quais poderão demonstrar a verdade do que alegam.” Quanto à natureza acusatória do processo penal brasileiro, é importante frisar que, com o advento da Lei 13.964 de 24, de dezembro de 2019, popularmente chamada “Pacote Anticrime”, o Código de Processo Penal foi aprimorado, sendo expresso em seu art. 3º-A (BRASIL, 2019) que: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Dessa forma, reforçou-se a aplicabilidade do sistema acusatório no Brasil e a proteção dos direitos fundamentais dos acusados, sendo criada, inclusive, a figura do juiz de garantias, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais, cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”. É importante destacar que a referida norma teve a eficácia suspensa pela decisão cautelar proferida nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, exarada pelo Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. Sistema misto O último, mas não menos importante, sistema penal a ser tratado nesta aula é o denominado “sistema misto” ou “sistema francês”, que seria praticamente uma fusão de algumas características dos sistemas inquisitivo e acusatório. Sua origem remonta ao período Pós-Revolução Francesa, ao Code d’Instruction Criminelle francês, promulgado em 1808, daí sua nomenclatura alternativa. Esse sistema é dividido em duas fases distintas, sendo que a primeira possui características do sistema inquisitorial, no qual a instrução é realizada de forma sigilosa e escrita, e não há efetivamente garantia de contraditório ou ampla defesa. A primeira fase do sistema misto tem por objetivo apurar a materialidade e autoria delitiva. A segunda fase do sistema misto é a chamada “fase de julgamento”, que possui características próprias do sistema acusatório, no qual predomina a oralidade, publicidade, o contraditório e a livre apreciação das provas, com efetivo respeito às garantias fundamentais e individuais do acusado. Alguns autores defendem que o sistema adotado pela legislação brasileira era o misto, porém, com o advento da Constituição Federal de 1988 que, expressamente, previu a separação das funções de acusação e julgamento, passou-se à adoção do sistema acusatório, sendo esse o posicionamento majoritário da doutrina. De modo diverso, há autores que defendem que somente com a promulgação da Lei 13.964/2019 que realizou alterações no Código de Processo Penal é que o Brasil deixou de adotar o sistema misto e passou a adotar o acusatório; nesse sentido, Guilherme Nucci (2020, p. 114) enfatiza: “O sistema adotado no Brasil era o misto; hoje, após a reforma realizada pela Lei 13.964/2019, é o acusatório mitigado. Na Constituição Federal de 1988, foram delineados vários princípios processuais penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um sistema acusatório, mas não o impõem, pois quem cria, realmente, as regras processuais penais a seguir é o Código de Processo Penal.” É possível definir que o sistema penal misto nada mais é do que um sistema intermediário, entre o modelo inquisitivo e o acusatório, principalmente no que tange à presença da efetiva observância dos princípios e garantias fundamentais, como a presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, porém, com traços pertencentes ao sistema inquisitivo, como a produção de provas pelo magistrado e a diminuta publicidade na primeira fase do procedimento. Diante dos aspectos apresentados, é possível concluir que, em que pese não haver consenso doutrinário, o posicionamento majoritário é que o sistema adotado no Brasil é acusatório, sendo reforçado tal entendimento em razão das previsões constitucionais e, principalmente, por meio das alterações promovidas na lei processual penal. ______ 🔁 Assimile As principais características do sistema acusatório podem ser definidas como a efetiva separação entre o juiz e a acusação; a oralidade e a publicidade das decisões e a igualdade de condições entre a defesa e a acusação. ______ 💭 Reflita Com base nas premissas apresentadas, o sistema acusatório brasileiro teria características comuns ao sistema inquisitório? ______ 📝 Exemplificando O sistema penal inquisitivo, no início do século XII, fortaleceu-se, principalmente com o aumento do poder da igreja, ganhando força, inclusive, usando da tortura como método de elucidação de crimes. ______ Por meio dos temas abordados nesta sessão, é possível assimilar e entender os diferentes sistemas penais existentes e analisar, sob o ponto de vista crítico, os benefícios e malefícios de cada um deles e como suas metodologias influenciam a própria persecução penal. UNIDADE 2 - Instrumentos Investigativos Introdução da unidade Olá, estudante! Nesta unidade, abordaremos temas de absoluta relevância para a disciplina Investigações Criminais e sua correta interpretação e aplicação em situações concretas. A primeira aula será reservada aos princípios constitucionais aplicáveis às investigações criminais, na qual abordaremos o princípio da isonomia, do contraditório e da ampla defesa. Ao tratarmos do princípio constitucional da isonomia, o foco será sua aplicabilidade no curso da investigação criminal. Desta forma, analisaremos a necessidade de igualdade de tratamento entre os acusados, fazendo um paralelo com o princípio da paridade de armas e a igualdade de oportunidades entre as partes. Em se tratando do contraditório e da ampla defesa, analisaremos, sob a ótica da investigação criminal, tanto a oportunidade do acusado de apresentar oposição a toda e qualquer acusação que lhe for atribuída, ou seja, a defesa em sentido estrito, quanto a ampla defesa em sentido amplo e sua aplicabilidade aos dois polos da ação. A segunda aula abordará o instrumento denominado inquérito policial e suas nuances, com explanações acerca de sua origem e finalidade. A fim de aprofundar os estudos relativos ao inquérito policial, analisaremos os conceitos, as características e os principais aspectos relativos ao instrumento e à sua aplicabilidade prática no curso das investigações. Por fim, na terceira aula, faremos uma análise concatenada acerca do papel do Ministério Público nas investigações criminais, tratando desde sua origem e evolução até suas funções institucionais relativas à atuação em matéria penal. Com enfoque na atuação do órgão ministerial, o objetivo da aula será tratar do papel investigativo do Ministério Públicos e as decisões recentes que permeiam a matéria. Isonomia O primeiro e, talvez, mais importante princípio a ser abordado nesta aula é o da isonomia. O princípio da isonomia é previsto na Constituição Federal, logo no caput do art. 5º, e é enfático ao dispor que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988, [s. p.]). Esta premissa trazida pela norma constitucional quanto à igualdade, em âmbito processual, indica que as partes devem ter igual tratamento durante a instrução processual, perante o magistrado, tendo, assim, as mesmas oportunidades de manifestação. Neste sentido, Pellegrini (2004, p. 53) afirma: “A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação da igualdade perante o juiz: da norma inscrita no art 5º, caput, da Constituição, brota o princípio da igualdade processual. As partes e os procuradores devem merecer tratamentoigualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.” A isonomia pode ser dividida em formal e real. Enquanto a primeira diz respeito à igualdade das pessoas perante a lei, conforme a expressa descrição do já citado art. 5º, a segunda é voltada à máxima de igualdade geométrica de Aristóteles, a qual afirma que devemos tratar desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades, visando, desta forma, alcançar a isonomia. Sob a ótica da investigação criminal, indispensável abordar o chamado “princípio da paridade de armas”, o qual, por muitas vezes, é tratado como sinônimo de isonomia, porém, na concepção majoritária, possui maior abrangência, conforme podemos extrair dos ensinamentos de Távora e Alencar (2016, p. 48): “O princípio da paridade de armas, malgrado seja tratado como sinônimo de igualdade ou isonomia no processo penal, tem conteúdo mais rico, indicando o direito da defesa de desempenhar um papel proativo, mormente na produção de prova e no exercício de poderes que possibilitem a plena igualdade, tal como consta do art. 8, do Pacto de São José da Costa Rica.” No âmbito do sistema acusatório, o princípio da paridade de armas visa garantir a igualdade de oportunidades entre as partes, posto que o ônus da prova, em matéria penal, é atribuído à parte acusadora, desta forma, o corolário lógico é a concessão de direito de defesa ao acusado, garantindo, desta forma, o necessário e indispensável equilíbrio processual. Acerca das premissas aqui lançadas, é possível concluir que o princípio constitucional da isonomia deve garantir o tratamento igualitário a todos os envolvidos na investigação criminal e/ou relação processual, oportunizando as mesmas possibilidades de manifestação e defesa, sem qualquer espécie de distinção. É importante ressaltar que o Ministério Público exerce a função acusatória no âmbito do processo penal, assim, no intuito de dar ao acusado as mesmas condições e oportunidades, o Código de Processo Penal, em seu art. 261, impõe a obrigatoriedade de representação por um defensor, garantindo a existência de defesa técnica. Contraditório De suma importância no estudo das investigações criminais, o princípio do contraditório garante a oportunidade do acusado de apresentar oposição a toda e qualquer acusação que lhe for atribuída. Neste sentido, Ramidolf (2017, p. 25) é didático: “A substancialidade do contraditório, isto é, a possiblidade de oposição a tudo que criminalmente seja atribuído ao agente a quem se imputa a prática de conduta considerada delituosa, reconhecendo-lhe, assim, a faculdade procedimental de contrapor argumentos e fundamentos à acusação, mediante a utilização de todos os meios de prova admitidos pelo direito.” Seguindo esta premissa, Brasileiro (2020, p. 58) é enfático ao analisar o efetivo momento em que o exercício do contraditório é possível quando da existência de uma interceptação telefônica, afirmando que não há sentido em proceder a intimação prévia do indivíduo para acompanhamento da investigação, até porque, se ciente da interceptação, o ato perderia sua finalidade. O autor afirma ainda que não há contraditório durante o curso desse ato processual, porém, com a conclusão da diligência e a expedição do respectivo laudo de gravação nos autos, é indispensável a abertura de vistas à defesa, para que esta possa exercer o direito constitucional do contraditório e da ampla defesa. Ante a tal premissa, é importante apontar que não há, no caso em questão, violação da garantia da efetiva bilateralidade da audiência, ao passo que não houve supressão do contraditório, mas apenas a sua postergação. Apesar de sua clara relação com o princípio da ampla defesa, o contraditório possui uma abrangência maior, principalmente no que concerne ao seu alcance, até porque não afeta única e exclusivamente o acusado mas também o acusador, na medida em que lhe deve ser oportunizado contrariar os atos praticados pela parte contrária. Ao tratarmos no contraditório, é importante apontar que há possibilidade de mitigação dele em determinados casos, por exemplo, em razão de medida que exija provimento imediato, sob pena de prejuízo processual ou ineficácia da medida, como ocorre no caso da decretação de uma prisão preventiva, sequestro de bens ou a própria interceptação telefônica, como já citado. Nestas hipóteses, ocorre o chamado contraditório diferido ou postergado, no qual são garantidas a ciência e a manifestação do acusado somente após a medida. Lembramos que a Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal trata expressamente da garantia do contraditório ao dispor que: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” (BRASIL, 2009, [s. p.]) Cristalina, desta forma, a efetiva importância do contraditório no âmbito do processo penal e, especificamente, durante a investigação criminal, principalmente no que concerne ao postulado da presunção de inocência e garantia de tratamento igualitário, cabendo frisar ainda que, mesmo com a postergação do contraditório em casos específicos, não é possível preservar a garantia de um processo penal igualitário sem a efetiva concessão do contraditório. Ampla defesa Tão importante quanto o contraditório, o princípio constitucional da ampla defesa é garantido pelo inciso LV do art. 5º da Magna Carta, que dispõe expressamente que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 1988, [s. p.]). Como abordado anteriormente, a ampla defesa e o contraditório, apesar de sua semelhança, são princípios distintos, na medida em que a defesa garante o contraditório, e somente é possível por meio do direito à informação (que é parte integrante do contraditório). Sobre a relação entre o contraditório e a ampla defesa, Brasileiro (2020, p. 58) discorre que, à luz do princípio constitucional do devido processo legal, visando à preservação das garantias constitucionais durante a persecução penal, é indispensável que existam partes em posições opostas, ou seja, uma delas, obrigatoriamente, deve estar em posição defensiva, enquanto a outra, de forma antagônica, deve se contrapor aos atos da parte contrária. Como já citado, o exercício do contraditório possui aplicação ampla, ao passo que os dois polos da ação fazem uso deste, assim, caso não seja oportunizado ao Ministério Público a manifestação relativa a uma prova produzida, haverá, claramente, violação ao contraditório. No que tange ao direito à ampla defesa, a hipótese citada não importa em sua violação, posto que, diferente do contraditório, o alcance da ampla defesa é estrito, restringindo-se apenas ao acusado. Tucci (2004, p. 257), ao se debruçar sobre a ampla defesa, expõe que, para seu efetivo respeito, é indispensável a existência de três “realidades procedimentais”, a saber: “A concepção moderna da garantia da ampla defesa reclama, para a sua verificação, seja qual for o objeto do processo, a conjugação de três realidades procedimentais, genericamente consideradas, a saber: a) o direito à informação (nemo inauditus damnari potest); b) a bilateralidade da audiência (contraditoriedade); c) o direito à prova legalmente obtida ou produzida (comprovação da inculpabilidade).” O direito de informação, como já citado, importa na efetiva necessidade de conhecimento por parte do acusado de todos os elementos de prova contra ele produzidos. Por fim, em se tratando do direito à prova legalmente obtida, temos que as partes podem trazer aos autos todos os elementos probatórios que julguem necessários a efetiva defesa de seus interesses,desde que estes tenham sido obtidos por meios lícitos, conforme disposição expressa do art. 157 do Código de Processo Penal, que dispõe serem: “Inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (BRASIL, 1941, [s. p.]). O respeito ao princípio da ampla defesa, assim como do contraditório, é indispensável no Estado Democrático de Direito e tem por finalidade preservar as garantias constitucionais que devem ser conferidas a todos. ______ 🔁 Assimile A garantia constitucional de isonomia, no âmbito do processo penal, é intimamente ligada à “paridade de armas”, ou seja, à garantia de igualdade de oportunidades de defesa dentro do sistema processual. ______ 💭 Reflita Ante os temas abordados, cabe ao estudante refletir se a ausência de contraditório na fase de inquérito fere as garantias constitucionais do investigado ou se a oportunização de defesa nas fases processuais posteriores supre essa ausência. ______ 📝 Exemplificando Cabe ressaltar que, dentre as peças defensivas existentes no processo penal para o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa, a resposta preliminar, prevista no art. 514 do Código de Processo Penal, é peça facultativa, sendo, inclusive, desnecessária na ação penal instruída por inquérito policial, nos exatos termos da Súmula 330 do Superior Tribunal de Justiça. ______ Diante dos assuntos abordados nesta disciplina, é possível concluir que, no efetivo prosseguimento dos processos de natureza penal e, principalmente, nos procedimentos relativos à investigação criminal, a observância dos princípios e das garantias fundamentais é indispensável, devendo sempre ser dado o devido respeito à isonomia, ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de nulidade processual. A origem do inquérito policial As origens do inquérito policial remontam à Grécia, sendo que a etimologia da expressão advém do latim in quaerere, cuja tradução literal pode ser definida como “em busca”. A Lei de 29 de novembro de 1832, que promulgou o Código do Processo Criminal de primeira instância, não tratava especificamente de um instrumento análogo ao inquérito policial, definindo apenas as atribuições dos chamados “Inspetores de Quarteirão”, aos quais competia vigiar sobre a prevenção de crimes, não lhes atribuindo, assim, a função de polícia judiciária, quedando-se silente também sobre o processo informativo. Em 3 de dezembro de 1841, a Lei nº 261 reformou o Código de Processo Criminal, atribuindo aos chefes de polícia, em toda a Província e na Corte, e aos seus delegados, nos respectivos distritos, a função de remeterem, quando conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos relativos ao delito apurado, com a devida exposição de motivos ao magistrado, ou seja, criando uma espécie de inquérito policial, mesmo sem a utilização da nomenclatura. O inquérito policial propriamente dito aparece nos textos legislativos brasileiros pela primeira vez no ano de 1871, quando, por meio do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro, regulou-se a execução da Lei nº 2.033, de 24 de setembro do mesmo ano, dispondo, em suma, que o inquérito policial consistiria no conjunto de atos concatenados voltados à identificação da materialidade e autoria de um fato criminoso em instrumento reduzido por escrito, definindo em seu art. 10: “Artigo 10. Aos Chefes, Delegados e Subdelegados de Polícia, além das suas actuaes attribuições tão sómente restringidas pelas disposições do artigo antecedente, e § unico, fica pertencendo o preparo do processo dos crimes, de que trata o art. 12 § 7º do Codigo do Processo Criminal até a sentença exclusivamente. Por escripto serão tomadas nos mesmos processos, com os depoimentos das testemunhas, as exposições da accusação e defesa; e os competentes julgadores, antes de proferirem suas decisões, deverão rectificar o processo no que fôr preciso.” (BRASIL, 1871, [s. p.]). Já no ano de 1936, com a criação do anteprojeto do Código de Processo Penal, Vicente Rao, até então Ministro de Justiça, tentou instituir os chamados “Juizados de Instrução”, em substituição ao inquérito policial, posto que tal instituição teria por objetivo justamente a obtenção de lastro probatório suficiente ao prosseguimento das ações penais. Sendo presidido por um magistrado, o Juizado de Instrução visava remover a atribuição investigativa das polícias, mantendo com elas apenas a prevenção e a repressão delitiva imediata, tendo tal proposta perdido força com as alterações políticas à época. O Código de Processo Penal de 1941 manteve o inquérito policial como é observado atualmente, como uma ferramenta voltada à efetiva identificação da materialidade e autoria de um delito, sendo instrumento indispensável à efetiva formação da cadeia de evidências. Conceitos e características Ao tratarmos do inquérito policial, indispensável abordarmos suas características e seus conceitos, possibilitando aprofundar os conhecimentos relativo ao tema. Insta consignar que o inquérito policial se trata de procedimento inquisitorial, voltado à efetiva obtenção das informações relativas a um determinado delito e necessárias à sua elucidação. Avena (2020, p. 335) conceitua o inquérito policial de forma didática e elucidativa: “Por inquérito policial compreende-se o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial para obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade das infrações penais investigadas, permitindo ao Ministério Público (nos crimes de ação penal pública) e ao ofendido (nos crimes de ação penal privada) o oferecimento da denúncia e da queixa-crime.” Por inquérito policial compreende-se o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial para obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade das infrações penais investigadas, permitindo ao Ministério Público (nos crimes de ação penal pública) e ao ofendido (nos crimes de ação penal privada) o oferecimento da denúncia e da queixa-crime. No que tange às características do inquérito policial, são comumente definidas como: procedimento escrito; oficiosidade; oficialidade; discricionariedade; inquisitorial; indisponibilidade; sigilo. Ao tratarmos da forma do procedimento, temos que este deve se dar de forma escrita, conforme previsão do art. 9º do Código de Processo Penal, o qual é expresso ao definir que: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processo, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade” (BRASIL, 1941, [s. p.]). A característica definida como oficiosidade se refere à necessidade de instauração independente de provocação do inquérito policial, ou seja, sempre que uma autoridade policial tiver ciência de um delito, deve proceder à instauração do respectivo inquérito. A respeito dessa característica, impende apontar que há exceção nos casos de ação penal pública condicionada à representação e dos delitos de ação penal privada, as quais não iniciadas de ofício. A oficialidade se refere à efetiva necessidade de os atos investigativos inerentes ao inquérito policial serem realizados por agentes públicos, não podendo tal atribuição ser delegada a um particular. Característica relevante pertencente ao inquérito policial é a discricionariedade, a qual se refere à liberdade que o delegado de polícia tem de realizar as diligências que entender necessárias para a instrução do inquérito, visando, desta forma, obter êxito na investigação. A natureza inquisitorial gravada como característica do inquérito diz respeito à ausência de ampla defesa nesta fase processual, principalmente ante a sua função preparatória. A respeito do tema, cabe frisar que essa natureza inquisitorial não obsta que advogados se manifestem no curso do inquérito,cabendo ao delegado, enquanto presidente do inquérito, indeferir diligências que considerar desnecessárias. Quanto à característica da indisponibilidade, por força do art. 17 do Código de Processo Penal, à autoridade policial é vedada a promoção de arquivamento do inquérito por iniciativa própria, mesmo que no curso da investigação apure tratar-se de conduta atípica, devendo, desta forma, os autos serem encaminhados ao juízo em qualquer hipótese. Por fim, a característica relativa ao sigilo do inquérito policial impõe exceção ao princípio da publicidade, visando justamente resguardar o sucesso de eventual investigação. Sob este aspecto, compete citar que a Súmula Vinculante 14, do Supremo Tribunal Federal, garante ao defensor o amplo acesso aos elementos de prova já documentados em procedimento investigatório. Principais aspectos Ao abordarmos a matéria relativa ao inquérito policial, há aspectos indispensáveis que devemos abordar, por exemplo, a forma de início desta fase investigativa. Em se tratando de crimes de ação penal pública incondicionada, o início do inquérito policial se dá por meio de portaria expedida pela autoridade policial, nos termos impostos pelo inciso I do art. 5º do Código de Processo Penal, independentemente de provocação das partes ou da forma que se deu a notícia do fato criminoso. De modo diverso, nos crimes de ação penal pública condicionada, o inquérito se inicia com a representação do ofendido. Por óbvio que a existência de irregularidade no inquérito gera efeitos e consequências relevantes para o curso das investigações e processamento, como no caso da possibilidade de relaxamento do auto de prisão em flagrante quando não observadas as formalidades dos arts. 304 a 306 do Código de Processo Penal. Quanto ao conteúdo probatório obtido em sede de inquérito, este é tratado como mero elemento de prova, posto que é indispensável a sua repetição em juízo, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa, à exceção das provas cautelares, as quais, nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal, são produzidas de forma antecipada e não são repetíveis. No que tange aos prazos para encerramento do inquérito policial, estes dependem do ilícito cometido e das condições em que o acusado se encontra – preso ou solto –, podendo variar de 10 dias (inquérito comum com o sujeito preso) a 90 dias (Lei de Drogas – sujeito solto), podendo ser prorrogável ou não, dependendo das circunstâncias. Em se tratando de crimes de caráter militar, há alterações quanto à competência para instauração do inquérito. Neste sentido, Brasileiro (2020, p. 177) é didático: “A atribuição para as investigações recai sobre a autoridade de polícia judiciária militar, a quem compete determinar a instauração de inquérito policial militar (IPM), seja no âmbito das Polícias Militares ou dos Corpos de Bombeiros, nos crimes da alçada da Justiça Militar Estadual, seja no âmbito do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, em relação aos crimes militares de competência da Justiça Militar da União.” O inquérito policial é indispensável à obtenção de elementos de prova que demonstrem a materialidade e a autoria de um fato criminoso, visando à instrução de uma futura e eventual ação penal. Desta forma, a correta instrução deste com o devido respeito às formalidades legais é vital para o sucesso de uma investigação. Assim, os principais aspectos que permeiam o instrumento de inquérito dizem respeito justamente à sua finalidade e às nuances relativas à sua promoção na fase investigativa, devendo sempre serem observados os detalhes e as nuances que o envolvem. ______ 🔁 Assimile O inquérito policial se trata de procedimento inquisitorial, voltado à efetiva obtenção das informações relativas a um determinado delito e necessárias à sua elucidação. São características do inquérito policial: procedimento escrito; oficiosidade; oficialidade; discricionariedade; inquisitorial; indisponibilidade e sigilo. ______ 💭 Reflita De acordo com o conteúdo estudado, em uma situação de crime ocorrida em uma pequena cidade do interior, onde o contingente policial não é suficiente para realização de inquérito policial, o prefeito pode realizar, por meio de dispensa de licitação, a contratação de profissionais particulares para realização de tal ato, ou isso fere a característica da oficialidade? ______ 📝 Exemplificando A respeito dos princípios que regem o inquérito policial, durante a efetiva execução deste, é imprescindível o seu sopesamento, objetivando o resguarde do sucesso da eventual investigação, como no caso da sobreposição do princípio do sigilo em relação ao princípio da publicidade, em casos em que a investigação pode ser afetada se tornada pública, uma vez que o investigado pode vir a destruir eventuais provas. ______ Os conceitos abordados nessa disciplina tem por objetivo auxiliar você no desenvolvimento relativo à matéria de investigação criminal, demonstrando, didaticamente, os princípios que regem tal ato e suas principais características. Origem e evolução do ministério público Antes de adentrar no tema, é importante ressaltar que a Constituição Federal define o Ministério Público, em seu art. 127, como uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do próprio Estado, atribuindo- lhe a responsabilidade pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No que concerne à atuação ministerial dentro da esfera criminal, o inciso I do art. 129 da Magna Carta é enfático ao impor que ao Ministério Público compete privativamente promover a ação penal pública, analisando as nuances do processo criminal É de fácil percepção que o Ministério Público, enquanto único titular da ação penal pública, exerce verdadeiro protagonismo na esfera penal. Ao tratar da participação do Ministério Público no processo criminal, Avena (2020, p. 255) é didático ao expor seu papel tanto nas ações penais públicas quanto nas privadas, diferenciando cada espécie de atuação: “Na órbita criminal, o Ministério Público representa o Estado-Administração, incumbindo-lhe, primordialmente, nos crimes de ação penal pública, deduzir perante o Estado-juiz as providências necessárias para que se concretize a pretensão punitiva; e, nos delitos de ação penal privada, fiscalizar a instauração e o desenvolvimento regulares do processo, bem como o cumprimento e a aplicação da lei ao caso concreto.” Abordando-se o tema relativo ao papel do Ministério Público dentro do processo criminal, indispensável falar acerca da função atribuída a este pelos incisos VII e VIII do art. 129 da Constituição Federal, qual seja, o dever de exercer o controle externo da atividade policial e de requisitar diligências investigatórias. No que tange à origem do Ministério Público, esta remonta à época das colonizações, ao passo que, no período das ordenações do reino, em especial, as Ordenações Manuelinas (1521-1603) e as Ordenações Filipinas (1603-1830), já se previa a existência do Promotor de Justiça, ao qual cabia a incumbência de fiscalizar a lei e efetivar as acusações criminais. O Código de Processo Criminal de 1832 previa a figura do promotor público da forma sistematizada que observamos atualmente, impondo a ele a atribuição de denunciar os crimes e acusar delinquentes, conforme disposição expressa no art. 37. O Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, dispôs em capítulo próprio acerca da estruturação e das atribuições do Ministério Público, dando ênfase aos critérios de indicação para o cargo de procurador-geral e as funções deste. Tratando-se das menções ao Ministério Público nas diversas constituições, a depender dos regimes adotados, há ou não menções, como no caso da Constituição de 1824, que não faz referência expressa ao Ministério Público. A atual Constituição Federal é expressa ao citar o MinistérioPúblico, inclusive, listando-o no capítulo relativo às funções essenciais da justiça. O papel do órgão ministerial se desenvolveu e se alterou com o passar dos anos, porém suas atribuições sempre estiveram ligadas ao sistema de persecução penal e à fiscalização da lei, sendo um órgão com clara proximidade com a população. Funções institucionais penais do ministério público Nos termos impostos pela própria Constituição Federal em seu art. 127, o Ministério Público é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, ao qual é incumbida a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O art. 129 da Constituição Federal define as funções institucionais do Ministério Público, listando-as nos incisos I a IX. Tratando-se de matéria penal, os incisos I, VII e VIII são os mais relevantes para o presente estudo: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; [...] VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; [...]” (BRASIL, 1988, [s. p.]). O primeiro inciso do art. 129 prevê que a atribuição de promover a ação penal pública é privativa do Ministério Público, porém tal afirmação possui exceções, como a possibilidade de promoção pela vítima na ação penal privada, subsidiária da pública. A ação penal privada subsidiária da pública é possibilitada pela inércia do órgão ministerial, o qual, se descumprido o prazo para adotar as medidas que lhe são cabíveis (de 5 a 15 dias, a depender da situação do réu, se preso ou solto), abre margem para que a vítima, seu representante ou seus sucessores ingressem com essa espécie de ação, fulcro no inciso LIX do art. 5 da Constituição Federal; no § 3º do art. 100 do Código Penal; no art. 29 do Código de Processo Penal. A referida legislação, em seu art. 3º, impõe ao Ministério Público da União o exercício do controle externo da atividade policial com vistas à manutenção da democracia; à preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas; à prevenção da ilegalidade ou do abuso de poder e à indisponibilidade da persecução penal. O controle externo da atividade policial por parte do Ministério Público é tratado, ainda, na Resolução nº 20, de 28 de maio de 2007, que regulamenta o art. 9º da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, e o art. 80 da Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, o controle externo da atividade policial, garantindo aos membros do Ministério Público o livre acesso aos estabelecimentos policiais e a qualquer documento relativo à atividade fim das polícias civil e militar, incluindo a polícia técnica desempenhada por outros órgãos, conforme previsão expressa no art. 5º da referida resolução. Por fim, o inciso VIII do art. 129 da Constituição Federal versa sobre a requisição de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. As diligências investigatórias serão tratadas em tópico próprio nesta disciplina, sendo extensas as discussões a respeito do poder investigativo do Ministério Público. No que tange à função institucional relativa à requisição de instauração de inquérito policial, o Ministério Público, após a realização de procedimentos próprios, visando apurar a ocorrência de um determinado delito, pode encaminhar à autoridade policial requisição visando à instauração de inquérito policial, conforme disposições da Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público. O poder investigativo do ministério público Conforme abordado, o art. 129 da Constituição Federal define as funções institucionais do Ministério Público, dispondo, em seu inciso VIII, que compete ao órgão requisitar diligências investigatórias e instaurar o inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. A respeito do tema, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no bojo do RE 593.727, a competência constitucional do Ministério Público para promover, por autoridade própria, a investigação de natureza penal, manifestando-se nos seguintes termos: “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XII, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade - sempre presente no Estado democrático de Direito - do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.” Vale destacar que o Ministério Público possui um instrumento de investigação próprio, denominado Procedimento de Investigação Criminal (PIC), regulamentado pela Resolução nº 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Cristiano Chaves de Farias (1999, p. 278), ao tratar do assunto, anos antes da referida resolução, é didático, definindo que as atribuições do órgão ministerial já incluiriam poderes implícitos para realizar investigações criminais, a saber: “Outrossim, destaca-se ser o Parquet o destinatário imediato das investigações criminais, tendo interesse direto nelas, a fim de formar a sua opinio delitcti. Ora, se pode o mais – que é requisitar tais diligências investigatórias – obviamente, poderá o menos, realizá-las pessoalmente, tendo contato direto com os indícios e provas colhidos, amadurecendo sua convicção.” O PIC possui fortes semelhanças com a natureza do próprio inquérito policial, ao passo que objetiva apurar a materialidade e a autoria de um determinado delito. Cabe lembrar que o sistema penal brasileiro é acusatório, ao passo que faz a separação das funções de acusar, defender e julgar. Frisa-se que os elementos colhidos pelo Ministério Público no uso de suas atribuições investigativas possuem o condão de servir de mera informação preliminar, ao passo que, assim como os elementos colhidos pelas polícias, sua ratificação pelo Judiciário é indispensável, respeitando-se o exercício do contraditório e da ampla defesa. ______ 🔁 Assimile O Ministério Público tem como responsabilidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo definido pela Constituição Federal, em seu art. 127, como uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do próprio Estado. O Ministério Público possui um instrumento de investigação próprio, denominado Procedimento de Investigação Criminal (PIC), sendo este regulamentado pela Resolução nº 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). ______ 💭 Reflita Conforme explanado, o Ministério Público tem o poder de requisitar diligências investigatórias e de realizá- las pessoalmente. Sabemos que o sistema penal brasileiro é acusatório, ao passo que faz a separação das funções de acusar, defender e julgar. Desta forma, é possível afirmar que a realização de investigações diretas pelo próprio Ministério Público fere a divisão de poderes? ______ 📝 Exemplificando Os conceitos teóricos analisados são de suma importância na futura atuação profissional, posto que os elementos colhidos pelo Ministério Público, no uso de suas atribuiçõesinvestigativas, possuem o condão de servir de mera informação preliminar, ao passo que, assim como os elementos colhidos pelas polícias, sua ratificação pelo Judiciário é indispensável, respeitando-se o exercício do contraditório e da ampla defesa, assim, a não observância dos mencionados “limites e princípios” importa fatalmente em nulidades processuais. ______ Os conceitos abordados nessa disciplina tem por objetivo auxiliar você no desenvolvimento relativo à matéria de investigação criminal, abordando, principalmente, o importante papel que o Ministério Público exerce na investigação criminal, face às recentes alterações no entendimento relativo ao tema por parte dos Tribunais. UNIDADE 3 - Investigação Criminal na Prática Introdução da unidade Estudante, nesta unidade, estudaremos os processos investigativos na prática e suas particularidades. Na primeira aula, abordaremos a investigação preliminar, analisando o momento em que a autoridade policial chega a uma cena de crime e quais procedimentos devem ser adotados para a efetiva preservação desta com o menor índice de contaminação. Analisaremos os aspectos relativos ao trabalho pericial imediato e os procedimentos básicos que devem ser seguidos pela perícia para a efetivação da obtenção de provas. A fim de complementar o tema, trataremos, ainda, sobre o momento em que deve ocorrer a liberação efetiva do local do crime e os cuidados que devem ser tomados. Na segunda aula, conheceremos o método investigativo denominado M.U.M.A., traçado pelas premissas de Guaracy Mingardi, tomando por base as nuances relativas à criminalidade no Brasil. A sigla M.U.M.A. diz respeito aos aspectos que serão analisados no processo investigativo: mecânica do crime; últimos passos da vítima; motivação e autoria. Trata-se de um roteiro para a coleta de dados relevantes para a apuração de um delito, preocupando-se em extrair o máximo de informações relativas aos aspectos citados. Ao estudarmos a análise da mecânica do crime, abordaremos a apuração do local onde ocorreu exatamente o delito, quais os meios empregados para sua prática e em que horário e dia se deram os fatos, possibilitando, desta forma, apontar a materialidade e a dinâmica do ato delituoso. Quanto aos últimos passos da vítima, enquanto segunda fase do método M.U.M.A., analisaremos desde o conceito de vítima até sua efetiva importância na elucidação de fatos criminosos. Ainda, faremos uma breve análise acerca da motivação e autoria do delito e dos passos necessários para a sua efetiva apuração. Na terceira aula, estudaremos outros métodos de investigação, como o denominado método de rastejamento, cujo objetivo é seguir os rastros da conduta delitiva, pautando-se em elementos previamente conhecidos, como uma conta bancária ou telefones utilizados pelos infratores quando do cometimento do delito. Além disso, procederemos a uma análise acurada acerca do chamado método dos círculos concêntricos, utilizado nos Estados Unidos, com explanações acerca de sua aplicação prática. Por fim, abordaremos o controverso método da detonação, no qual estamos diante de práticas investigativas de maior agressividade. Ante a tais premissas, o objetivo desta disciplina é possibilitar a análise e obtenção de conhecimento relativo às investigações criminais na prática e sua efetividade face ao avanço da criminalidade. Chegada da polícia no local e preservação da cena de crime Na abordagem relativa à investigação criminal prática, é importante ter ciência que o trabalho investigativo não se inicia somente com a chegada da autoridade policial no local do crime, mas tão logo a autoridade competente receba o chamado, situação na qual o agente responsável deve e precisa extrair o máximo de informações possíveis para que a equipe que atenda o chamado esteja preparada tanto para uma possível resistência quanto para a preservação correta do local dos fatos. Devemos frisar que, entre a efetiva ocorrência do fato delituoso e a chegada da autoridade policial, a depender do local onde se deram os fatos, a população, muitas vezes curiosa com o ocorrido, acaba por descaracterizar os vestígios, assim, visando à preservação do local do crime, o primeiro agente que chegar ao local deve, imediatamente, isolá-lo com os meios que tiver disponíveis. Tratando-se de uma cena de crime de homicídio, por exemplo, a própria autoridade policial, ao chegar ao local dos fatos, deve avaliar as condições do cenário, presumindo, inicialmente, que o crime ainda está em andamento e os criminosos podem estar no local. Essa premissa é válida ante a necessidade primária de preservação da vida humana, que deve pautar a atividade policial. Rabello (1996, p. 12), ao tratar sobre o tema “criminalística”, é didático ao conceituar a expressão e sua importância: “Pode ser definida, quer sob o ponto de vista da sua aplicação prática imediata aos misteres específicos da investigação criminal, quer doutrinariamente, como uma disciplina técnico científica por natureza e jurídico penal por destinação, a qual concorre para a elucidação e a prova das infrações penais e da identidade dos autores respectivos, através da pesquisa, do adequado exame e da interpretação correta dos vestígios materiais dessas infrações.” No que tange à preservação da cena do crime, a adoção de procedimentos que visem à mínima contaminação dela é indispensável para uma investigação criminal exitosa. O Código de Processo Penal, ao tratar da preservação do local do crime, é cristalino ao definir em seus arts. 6º e 169: “Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; Art. 169. Para o efeito de exame do local onde houver sido praticada a infração, a autoridade providenciará imediatamente para que não se altere o estado das coisas até a chegada dos peritos, que poderão instruir seus laudos com fotografias, desenhos ou esquemas elucidativos. (BRASIL, 1941, [s. p.]).” Assim, em que pese a importância do trabalho pericial para elucidação de um fato criminoso, é importante destacar que este restaria maculado sem os esforços imediatos da autoridade policial na efetiva preservação do local onde ocorreram os fatos e a sua análise primária da ocorrência. Trabalho pericial imediato Como abordado, com a efetiva preservação do local do crime por parte da autoridade policial e a adoção de medidas que visam à obtenção primária de informações, é iniciado o trabalho pericial imediato, ou seja, aquele realizado no próprio local dos fatos. A depender do tipo de delito, esse trabalho é indispensável à elucidação dos fatos. O perito criminal, ao chegar ao local, deve colher informações com a equipe de investigação, possibilitando a formação de uma linha investigativa e a identificação dos elementos a serem colhidos. Apesar de não ser de observação obrigatória, a Secretaria Nacional de Segurança Pública expediu, no ano de 2013, o chamado Procedimento Operacional Padrão (POP), relativo à perícia criminal. Esse material, disponível no site do Ministério da Justiça, define os procedimentos a serem adotados para a maior parte dos procedimentos periciais relacionados à balística forense, genética forense, informática forense, local do crime, medicina legal, papiloscopia e química forense. No que tange ao trabalho pericial imediato, o citado material aponta como procedimento: “Descrever o local e georreferenciá-lo (GPS). Verificar as condições topográficas, climáticas e de visibilidade no momento dos exames. Verificar a integridade das vias de acesso/obstáculos (portas, janelas, muros, cercas elétricas, limites, etc.). Promover buscas com vistas a localizar eventuais sistemas de vigilância, de registros, interfones, campainhas, etc. Efetuar fotografias
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