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Passe de Letra_Futebol Literatura - Flávio Carneiro

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Flávio Carneiro
PASSE DE LETRA
FUTEBOL & LITERATURA
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Aquecimento
SELEFAMA ESPORTE CLUBE
DIAS DE CHUVA
PELADA EM BERLIM
FUTEBOL & LITERATURA
JANELA OU CORREDOR?
O ÚLTIMO JOGO
CANAL 100
COMO SE DIZ
HISTÓRIAS POSSÍVEIS
O LOUCO DE BUENOS AIRES
OS IRMÃOS DA MINHA MÃE
OS RECADOS DO NOME
O CAMISA 7
O MAIOR CAMPEONATO DO MUNDO
TORCEDORES
ESTRELA SOLITÁRIA
O NARRADOR
Os PERSONAGENS
O ENREDO
MEU PEQUENO AMIGO CUBANO
UM TIME CHAMADO CADUCA
Acréscimos
Créditos
O Autor
S
Aquecimento
empre quis escrever sobre futebol. Já havia escrito um conto e o roteiro de
um curta-metragem, mas a oportunidade de escrever de forma mais
regular sobre o tema surgiu a partir de um convite do Rogério Pereira, editor
do jornal de literatura Rascunho, de Curitiba.
Inicialmente, o convite era para assinar uma coluna sobre ficção brasileira
atual. A partir, porém, de uma sugestão do escritor e jornalista José Castello,
que também escrevia para o jornal, acabei mudando o rumo do projeto.
Durante dois anos – 2007 e 2008 –, escrevi para o Rascunho a coluna “Passe de
Letra”, que buscava juntar no mesmo espaço duas paixões antigas: futebol e
literatura.
O resultado está aqui, no livro que serve de novo abrigo às crônicas
publicadas nesse período e que o leitor abre agora, dando início a mais um
jogo.
FC
“O conhecimento da alma humana passa por um
campo de futebol.”
ALBERT CAMUS (filósofo, escritor e goleiro)
O time de garotos mirrados comandado por Fausto e campeão goiano de Tampinhas em 1973. O autor é
o oitavo, da esquerda para a direita.
A
Selefama Esporte Clube
conteceu em Goiânia, no início dos anos 1970, num bairro da cidade
chamado Fama. O nome vinha de uma instituição bastante conhecida
naqueles tempos: a Fundação Abrigo ao Menor Abandonado.
Eu era ainda bem pequeno para perceber a ironia que viajava clandestina na
sigla da fundação. O que aqueles garotos tinham de famosos? O que neles
poderia se aproximar de algo sequer parecido com fama? Eram garotos sem pai
nem mãe, deixados à míngua por motivos diversos, eram moradores de rua.
Não tinham nome ou sobrenome que os abrigasse, e mesmo o nome de
batismo era muitas vezes esquecido, trocado por um apelido qualquer, tragado
pelo turbilhão do anonimato ou adormecido sob o manto nada generoso da
expressão: menor abandonado.
Era na Fama que morava um certo Fausto, ex-jogador do Vila Nova, ponta-
direita de chute poderosíssimo. Dizem que chegou a matar um zagueiro
adversário. O cara ficou de costas na barreira, Fausto chutou com força, e a
bola atingiu os rins do zagueiro, que morreu poucas horas depois de
hemorragia interna. Pois esse Fausto era também, ironicamente, um quase
anônimo. Pouco importava se seu nome carregava séculos de história. Não
almejava o sobre-humano, não fez pacto com o diabo, não teve a glória do
personagem de Goethe, eternizado para todo o sempre. Era apenas o Fausto,
dono de bar e esquecido ídolo do Vila Nova.
E eis que o destino quis juntar as duas ironias e fez com que Fausto tivesse
uma ideia: criar um time de futebol com os meninos do bairro e arredores.
Raspou as economias do bar, conseguiu aqui e ali uma ajudazinha do dono do
armazém, do gerente do posto, do borracheiro da esquina, e com isso comprou
as camisas amarelas, imitando as da seleção brasileira. Depois conseguiu
comprar alguns metros de brim azul, com que sua mulher costurou os calções.
Sobrou algum, que ele investiu na compra de três bolas de couro e alguns pares
de meiões, também amarelos (nunca soube por que amarelos e não brancos,
para fechar de vez com os da seleção). As chuteiras foram compradas com a
ajuda de alguns pais e com o que restou do fundo do pote das doações.
Na tal Fundação Abrigo ao Menor Abandonado havia um campo de
futebol bem razoável para os padrões da época, com um gramado regular,
traves, redes e tal. Fausto conseguiu de graça o uso do campo para treinos e
jogos, com a condição de convocar para seu escrete alguns dos meninos da
instituição. Ele aceitou (até porque isso já fazia mesmo parte dos seus planos) e,
em breve, estava fundado o glorioso Selefama Esporte Clube.
O nome, desnecessário dizer, acrescentava mais uma volta à espiral das
ironias. Juntava-se aos garotos anônimos e ao ídolo esquecido uma palavra
mágica: seleção. Quer dizer, aqueles garotos mirrados, alguns passando fome,
que nunca tinham calçado uma chuteira na vida, aqueles sem-nome liderados
por um ex-famoso eram agora nada mais nada menos do que os selecionados!
Eram os eleitos, os craques da seleção da fama!
Eu tinha onze anos e era o ponta-direita do Selefama. Morava num bairro
vizinho, e se minha família não era exatamente pobre, rica também não era.
Éramos de classe média, quem sabe tendendo a baixa, meu pai dava aulas de
datilografia, e minha mãe era balconista numa loja de tecidos. Fui a um dos
primeiros treinos do time e de repente me vi o dono da camisa 7, sem dúvida
um dos maiores orgulhos da minha vida.
Depois de alguns treinos e da papelada toda em ordem junto à Federação,
entramos num campo de terra, terra vermelha, campo duro e esburacado, do
Crimeia Leste, cuja torcida tinha ficado famosa pelas pedras, paus, laranjas e
outras coisas inomináveis que atiravam no juiz, nos bandeirinhas e nos
jogadores do time adversário. Naquele dia nos pouparam e só recebemos
mesmo uns tomates podres (eu tive que mudar o esquema traçado pelo Fausto,
não dava para ficar aberto na ponta, os caras da torcida deles ali pertinho de
mim, convenhamos!).
Era nossa estreia no campeonato estadual, categoria Tampinhas. Ninguém,
claro, botava fé naquele time, ainda mais que o campeonato contava com as
divisões de base dos quatro grandes da capital: Vila Nova, Goiás, Goiânia e
Atlético.
Pois de jogo em jogo, de surpresa em surpresa, o Selefama foi se
aproximando do verdadeiro sentido de seu nome iluminado, e quem não
esperava ficou boquiaberto quando chegamos à final.
O jogo era contra o bicho-papão: o Goiás. E era na Serrinha, o campo deles
(onde os profissionais treinavam!). Precisávamos de um empate, e eles acharam
que iríamos jogar na retranca. Ledo engano. Fomos direto para o ataque, os
caras se assustaram, começaram a ficar nervosos, a errar passes, a entrar de sola,
e a gente só ali, tum-tum-tum, tocando bola de pé em pé, numa boa, com
classe, como convinha aos seletos.
Final do jogo: 0 x 0. E o Selefama Esporte Clube levantava a taça de
campeão goiano de Tampinhas, no inesquecível ano de 1973.
Tomamos muito guaraná Antarctica e comemos muito frango assado no
bar do Fausto naquele dia. E antes de acabar a farra, o Fausto pediu silêncio e
anunciou que um repórter de O Popular (o maior jornal da cidade) tinha
pedido a ele para fazer uma foto do time, uma foto oficial, com troféu e tudo.
Tinha pensado em fazer lá no campo mesmo, mas a gente fez tanta zona
depois do jogo, e ficou todo mundo tão sujo, e depois saímos todos tão
misturados até o caminhão – que tinha levado o time (já uniformizado) até o
estádio, jogadores e torcedores se espremendo na boleia –, foi tanta bagunça
que ele preferiu marcar um outro dia e fazer uma foto mais limpinha.
Tiramos a foto. Uma foto muito estranha, hoje sei. Todo mundo de pé,
uma longa muralha de moleques extremamente bem-comportados e limpos
(vestimos o uniforme só para a foto), o capitão segurando a taça. A foto era
estranha, mas pelo menos era nossa chance de finalmente fazer jus ao nome do
time e adentrar o reino da mídia!
Dias depois lá estava a foto, no caderno de esportes de O Popular (e aí nem
me atrevo a cansar o leitor falando de mais essa ironia, a do nome do jornal).
Estávamos quase todos na foto. Para caber no jornal, cortaram um pedaço e
alguns dos valorosos atletas do Selefama Esporte Clube ficaram de fora (dois
deles, os das pontas, foram cortados ao meio) e do Fausto não se viu nem a
sombra. Para os que ficaram, o destino reservava ainda um toque de classe,
uma bola debaixo daspernas, um lençol com que nos mandaram de uma vez
por todas ao nosso lugar. E esse toque foi o seguinte: na legenda da foto, não
vinha o nosso nome.
A
Dias de chuva
lguém já deve ter escrito um livro sobre os estádios de futebol no Brasil.
Caso o livro exista, dele certamente devem constar algumas palavras sobre
o Estádio Olímpico Pedro Ludovico, em Goiânia.
Inaugurado nos anos 1960, com capacidade para dez mil torcedores e por
muitos anos ostentando o título de maior e mais moderno do centro-oeste, o
Olímpico foi palco de jogos memoráveis, como, por exemplo, um Goiás e
Santos, em 1973, válido pelo Campeonato Brasileiro. E o camisa 10 do Santos
era ele, Édson Arantes do Nascimento, o Pelé.
Era a primeira vez que um time goiano disputava o Brasileiro, e o Olímpico
se transformou em palco de festas homéricas de torcedores alucinados. E havia
outra novidade: a preliminar era sempre disputada por times de crianças. Ora
jogavam os Tampinhas (categoria até doze anos), ora os Dente de leite (até
catorze).
Qualquer garoto da cidade sonhava em jogar no Olímpico. Se o simples
fato de ir ao estádio ver um jogo do Goiás no Brasileiro já era um programa e
tanto, imagina jogar naquele campo imenso, de grama retinha, num domingo
à tarde ou numa quarta de noite, sob a luz dos refletores.
Na condição de ponta-direita do Selefama Esporte Clube, eu não era uma
exceção. Perdia noites sem sono imaginando um dia pisar a grama do estádio.
Quando nos sagramos campeões estaduais, o sonho começou a ganhar
contorno de realidade. Foi se desenhando aos poucos, o sonho, e já quase
podia ver a figura pronta quando nosso técnico, Fausto, nos disse num treino
que havia sim essa hipótese. Alguém da Federação falara com ele, a gente
soubesse esperar.
Saber esperar não é uma coisa fácil, convenhamos, ainda mais se você tem
onze anos de idade. De todo modo, para não ficar pensando demais no
assunto, comecei a estudar feito maluco. Devorava os livros de geografia,
história, português, fazia contas que nem a professora de matemática havia
pedido, quase explodia a escola com as experiências de química. Ninguém
entendia nada, achavam que ou eu era ótimo aluno ou doido varrido.
Até que chegou o dia em que o Fausto reuniu o time antes de um treino e
anunciou que tinha uma coisa importante a dizer. Ficamos todos sentados no
meio do campo, ele de pé, andando de um lado para o outro, as mãos nas
costas, esperando não sei o quê. E a gente ali, roendo unha.
Então chegou um cara todo bem-vestido, de terno e tal. O Fausto
apresentou o sujeito, um cartola qualquer da Federação. E o cartola falou um
tempão, uma conversa chata de doer, sobre esporte, educação, comunistas (eu
nem sabia o que era comunista), um saco! E no final disse que gostaria de
explicar o verdadeiro sentido da frase que vinha na nossa carteirinha de atleta
(plastificada, com foto e tudo): CRAQUE NA BOLA, CRAQUE NA
ESCOLA.
Depois disso o cara da Federação falou o que devia ter falado desde o início.
A diretoria do Goiás tinha pedido uma revanche – amistosa – da final do
campeonato daquele ano. E o jogo seria no Olímpico.
Foi uma gritaria danada, lógico, aquelas crianças aparentemente bem-
comportadas, aqueles anjinhos, de repente, aprontaram uma zorra, alguém deu
um bico na bola, que voou longe, e a farra foi tanta que quase ninguém ouviu
quando o sujeito disse que iríamos jogar na preliminar de Goiás e Santos.
Quase ninguém ouviu, mas eu ouvi. Ouvi muito bem. Aquilo significava o
seguinte: você não apenas vai jogar no Olímpico como vai ver um jogo do
Pelé! Era um pouco demais, sinceramente. O desenho do sonho estava pronto
e ainda vinha em papel colorido!
Passei a semana inteira pensando no jogo. Foi uma péssima semana na
escola (o cartola complicou meus pensamentos com aquela falação toda, e
minha tática de estudar para esquecer o assunto não deu certo). Quando ia
dormir, contava os dias que faltavam para chegar quarta-feira (o jogo seria de
noite). Seis, cinco, quatro, três.
O problema começou quando, na terça-feira de tarde, os meninos da
vizinhança entraram no quintal da minha casa gritando: tem chuva!
Aquelas eram palavras mágicas. E traziam verdades indiscutíveis: o tempo
está nublado, daqui a pouco vai cair um toró, você precisa se dirigir (descalço,
obviamente) ao campinho de terra da praça de esportes.
Já vivi algumas décadas e acredito que haja poucos prazeres na vida
comparáveis ao de jogar bola na chuva. No campinho, o ritual era o mesmo de
sempre. A garotada chegava e ficava por ali, de bobeira, jogando conversa fora.
Alguns, mais afoitos, ainda batiam uma bola. Mas a pelada só começava
mesmo quando caíssem os primeiros pingos de chuva. Aí era festa. Lama,
caneladas, tombos (uma vez caí, bati a nuca numa pedra e desmaiei), tudo
entrava como ingrediente na receita da alegria.
Cheguei em casa pensando num banho quente. Não podia facilitar, no dia
seguinte jogaria no Olímpico, na preliminar do jogo do Pelé. Não contava,
porém, com o bilhete que vi na porta de casa. “Fui ao armazém, volto já”,
estava escrito, com a letra da minha mãe.
O armazém ficava a uns quinze minutos da minha casa. Eu sabia onde era e
poderia ter ido lá, para pegar a chave. Acontece que a chuva apertou muito, era
uma tempestade aquilo, e achei melhor esperar ali mesmo.
Enquanto minha mãe não chegava, fiquei encostado na parede do alpendre,
todo encharcado, tiritando de frio. Tinha visto um programa na televisão sobre
um tal de pensamento positivo e achei que era uma boa praticar naquela hora.
Fiquei repetindo para mim mesmo, em voz alta: não fica gripado, não fica, não
fica, não fica!
Continuei repetindo, cada vez mais alto, até ser interrompido por uma
interminável sessão de espirros, que pareciam rir da minha cara, dizendo:
nãoadianta, nãoadianta, nãoadianta!!!
E não adiantou mesmo. De noite tive febre, e meu pai teve que me levar ao
médico. O diagnóstico do médico não foi um diagnóstico, foi um veredicto:
nada de futebol!
Na quinta-feira não teve treino, mas se tivesse eu não teria ido. Nem na
sexta. Só voltei aos treinos do Selefama um bom tempo depois (porque quando
estava quase bom voltei a jogar bola na chuva e tive princípio de pneumonia).
No dia seguinte tive notícias do que aconteceu naquela noite. Ganhamos o
jogo de 1 x 0, o time entrou em campo aplaudido pela torcida do Goiás, antes
da partida principal o Pelé tirou foto com o nosso time, e a foto virou pôster
no bar do Fausto. Coisas assim, desimportantes.
Muito tempo já se passou, claro. Parafraseando Drummond, diria hoje que
aquele jogo é apenas um retrato na parede. Mas como dói.
O timaço de peladeiros na Alemanha. O autor é o segundo, agachado, da esquerda para a direita. Dawid
está logo atrás, de pé.
P
Pelada em Berlim
eladeiro é igual em qualquer lugar. Sempre achei isso. Minha teoria, no
entanto, carecia de alguma comprovação científica, de algo que lhe
conferisse status de verdade incontestável, e a tese pudesse então, quem sabe,
ser publicada em livro e servir de tema para seminários internacionais com a
presença de doutores em pelada chegados dos cinco continentes.
Pois tal comprovação veio em Berlim, durante a Copa do Mundo de 2006.
Eu estava lá como curador (na área de literatura) do projeto Copa da Cultura,
do MinC, e fui chamado para integrar um time de escritores e músicos
brasileiros, capitaneado pelo Chico Buarque, que jogaria contra um
combinado de jornalistas alemães. O jogo estava marcado para a Arena da
Adidas, uma réplica de estádio de futebol, com arquibancada e tudo. Na parte
de baixo, um campo de futebol society, de grama sintética.
Cheguei ao local da peleja levando a tiracolo uma bolsa com meu material:
chuteiras, caneleiras, calção, meiões. Estava tudo certo. Um belíssimo dia de
sol, o calor ameno, as arquibancadas cheias. Ao tentar entrar para os vestiários,
no entanto, fui barrado por um segurança alemão, me dizendo que com aquela
credencial eu teria acesso apenas às arquibancadas.Abri a bolsa, mostrei a ele o
material e respondi que tinha vindo para jogar no time do Brasil. Ele arregalou
os olhos: você, no time do Brasil?
Não no Brasil, Brasil, tive que explicar, no time do Chico Buarque. Mesmo
assim não pode entrar, ele retrucou, é preciso outra credencial, com essa só na
arquibancada. Pensei em retrucar que não dava para jogar futebol na
arquibancada, mas receei que seu senso de humor não fosse lá essas coisas. E de
nada adiantaram meus apelos, nem os da produtora que havia me convidado e
até um funcionário da embaixada brasileira ali presente foi acionado. Nada
demovia o alemão, absoluto, irredutível, imutável como um cartão vermelho.
Quando dei por mim, os dois times já estavam em campo e o juiz apitava,
dando início à partida. Resignado, fui me sentar ao lado da minha turma. Na
arquibancada.
E eis que um amigo berlinense, Dawid Bartelt, da anistia internacional, que
havia acompanhado tudo a distância (talvez prevendo que minha batalha seria
em vão), se aproximou, colocou a mão no meu ombro e disse: liga não, sábado
te levo pra bater uma bola com uns amigos meus.
Pelada de verdade tem que ser aos sábados. Em dia de semana é meio sem
graça e no domingo não tem nada a ver. Poderia, claro, elencar aqui todos os
motivos que me levaram a essa conclusão. Se os tivesse. Não tenho motivos
mas sei que é assim: pelada tem que ser no sábado. Por isso gostei quando o
Dawid me fez o convite.
Combinamos de nos encontrar numa estação de trem, num subúrbio de
Berlim, onde ele me pegaria de carro. Às 15:35, ele me disse, e fingi não
estranhar tamanha exatidão.
Desci do trem exatamente às 15:32, me sentei num banco de madeira e
fiquei esperando. Minutos depois chega ele, caminhando calmamente pela
estação, de camisa branca arrumada dentro do enorme calção preto, na altura
do umbigo, meiões brancos e chuteiras. Diante do meu olhar de espanto,
tentou se explicar: é meu uniforme de vôlei. E completou: quer dizer, sem as
chuteiras. Ah, bom, respondi.
Chegamos ao local do evento. Ele estacionou o carro num pátio. Ao descer
do carro, travei a porta do carona. Foi a vez de ele se vingar, abrindo um largo
sorriso: ei, não estamos no Rio não. Um a um, concluí.
Caminhamos até o portão, e lá estava o gramado, um imenso campo
aberto, cercado de árvores. Olhei em volta e não demorei a entender que
estávamos num campo de rugby!
Isso não vai dar certo, pensei comigo. Perguntei ao meu amigo onde
estavam as traves de futebol, quer dizer, se é que havia traves. Claro que tem,
ele respondeu, ligeiramente ofendido, já estão chegando. Não me atrevi a
perguntar exatamente o que ele queria dizer com aquilo: as traves chegando?
Logo depois entraram pelo portão alguns dos outros peladeiros, um dos
quais trazendo uma bolsa, e dentro dela quatro pedaços de madeira, longos e
finos, pintados de azul com listras verdes. Eram elas que chegavam, as traves.
Um deles fincou as traves no lugar, e começaram a dividir os times. Como
em toda pelada que se preze, havia um número ímpar de jogadores: nove.
Decidiram, sem discussão, como se fosse uma decisão óbvia, que o time em
que eu jogasse teria um jogador a menos.
Ninguém sabia se eu era craque ou perna de pau, contava apenas um fato:
ser brasileiro. Confesso que me senti a própria pátria de chuteiras e roguei aos
céus que não fizesse nenhuma grande besteira, tentando manter a boa imagem
do país no exterior.
Começou o jogo, e só então me dei conta de que o alemão fincara as traves
na transversal do gramado, quer dizer, o campo ficara curto no comprimento e
imenso na largura. A lateral direita era marcada por uma estradinha de terra,
toda torta, e a esquerda se estendia ao infinito e além.
Aquilo me comoveu, confesso. Era um convite ao improviso e gostei mais
ainda dos alemães (talvez porque naquele momento, sem que ninguém me
dissesse nada, tenha aprendido um pouco mais sobre eles).
Depois de uma hora de correria alucinante a partida estava empatada, acho
que 4 a 4, quando o goleiro deles rebateu a bola, que veio parar justo à minha
frente. Matei no peito e quis fazer bonito: tentei encobrir o goleiro, com estilo.
Bola fora. Virei o corpo e dei de cara com meu time me olhando com cara de
quem comeu chucrute estragado. Por que não chutou com força?, perguntou
Dawid, desolado. E não disse, mas deve ter pensado: brasileiros, bah!
A certa altura do jogo minhas pernas simplesmente se recusavam a me
obedecer, enquanto os caras, quarentões que nem eu, corriam sem parar,
parece que disputando a final da Copa. Para minha sorte, a pelada foi
interrompida por uma senhora, que entrou no gramado querendo saber quem
trancara a bicicleta junto com a dela.
Resolvido o problema, recomeça a partida, justo na hora em que soam as
seis badaladas do sino da igreja ao lado do campo. Viajei. Voltei à minha
infância e me vi não entre aqueles simpáticos grandalhões de rosto afogueado
mas entre moleques brasileiros, pés descalços, jogando bola no campinho em
frente à igreja, até a hora da ave-maria.
Quando a pelada já estava acabando, ainda chegou um retardatário, de
óculos e todo vestido de preto. E entrou no time deles, que já tinha um a mais!
No final, a glória: ganhamos o jogo. Recolhi o que sobrara de mim depois
de quase duas horas de futebol e fui saindo de campo. Alguns caras do outro
time se aproximaram e me cumprimentaram (eu acho), dizendo palavras das
quais só distinguia uma: Ronaldo. Ainda não sei se era elogio ou ironia, mas o
certo é que tudo terminou com abraços calorosos, piadas que não entendi e
uma foto para registrar o momento histórico.
No caminho de volta para casa, já dentro do trem, me lembrei do que me
dissera um outro amigo: há duas palavras para “peladeiro” em alemão. Uma
delas é A mateurkicker. Literalmente: chutador (de bola) amador. Aqueles
alemães sabiam o que era isso, e me presentearam com uma bela tarde, de
amadores.
H
Futebol & Literatura
á mais afinidades entre futebol e literatura do que sonha nossa vã filosofia.
E se na época de Shakespeare os ingleses já tivessem inventado o futebol,
ele certamente teria sido tema de um dos sonetos do poeta. Ou quem sabe teria
feito parte de alguma de suas tragédias. Ou das comédias, tudo bem.
Como o futebol, a literatura também é um jogo. E como jogo, tem suas
regras. Você pode transgredir uma ou outra mas não vai poder transgredir
todas. O escritor inventa dentro de certos limites, a começar pelos próprios
limites da língua. Guimarães Rosa burlava algumas regras da gramática oficial,
mas o que ele escrevia, claro, era português. Na verdade, ele criava uma espécie
de gramática própria dentro da língua portuguesa, quer dizer, inventava um
jogo – com as regras que ele mesmo foi criando e o leitor aceitou.
É importante isso, leitor e escritor precisam entrar num acordo sobre as
regras. Quer um exemplo? Você está lendo um romance policial, buscando
descobrir por sua conta quem é o assassino, e, de repente, no final do livro, o
narrador revela que é Fulano, que não tinha nada a ver com a história. O
assassino não pode vir assim, do nada, não pode cair de paraquedas no final do
romance. Se isso acontece, o leitor vai ficar uma fera. Por quê? Porque o autor
trapaceou. Leitor não perdoa trapaça de autor, pode ter certeza.
E há algo que liga as regras do futebol às regras da literatura. São ambas da
mesma natureza, digamos assim. São feitas para permitir a entrada do
imponderável. Pense na regra do impedimento. Ela é aparentemente simples e
diz, em outras palavras, o seguinte: quando a bola é lançada, o jogador que a
recebe tem que ter, entre ele e a linha de fundo, pelo menos dois jogadores
adversários. Depois começam as complicações. Se a bola vem de um arremesso
lateral, não tem impedimento, se o jogador que recebe o passe está atrás da
linha da bola, também não tem, e por aí vai.
E o mais importante: o impedimento deve ser identificado exatamente na
hora em que o jogador dá o passe. Em alguns casos, é humanamenteimpossível o bandeirinha ver isso. É tudo muito rápido e só mesmo o olho da
câmera de televisão consegue detectar o impedimento. É uma regra feita para
criar o inesperado. Tudo pode acontecer nessa hora, inclusive um gol mal
anulado, que represente a perda do título do campeonato.
Outra coisa: a maioria das regras do futebol depende de interpretação. É a
leitura feita pelo árbitro que determina se um zagueiro atrasou
intencionalmente ou não a bola para o goleiro (e aí ele não pode pegá-la com
as mãos), ou se o atacante colocou a mão na bola de propósito e fez o gol da
vitória, ou se aquele carrinho merecia cartão vermelho, amarelo ou só uma
advertência verbal e passar bem. Resumindo, no futebol, como na literatura,
tudo depende de como se lê.
No futebol e na literatura as regras funcionam apenas para tornar possível a
chegada do inusitado. Um bom romance é aquele que você sabe como começa,
mas não sabe como vai terminar. Se já sabe, nem vale a pena ler. Um bom
romance é uma caixinha de surpresas. Uma partida de futebol é a mesma coisa,
com a vantagem, do futebol, de que mesmo uma partida ruim é imprevisível,
ao contrário de um romance.
E o tal do montinho artilheiro? Tentaram mandá-lo mais cedo para o
chuveiro criando gramados perfeitos, que aparentemente evitam um quique
inesperado da bola e o engano, fatal, do goleiro. Mas mesmo em campo bom
não há uma ou outra falha, ainda mais se estiver chovendo? Montinho
artilheiro é pura literatura.
Quando algo inexplicável acontecia num jogo, Nelson Rodrigues dizia
tratar-se de intervenção de uma entidade chamada Sobrenatural de Almeida. Se
uma bola indefensável de repente morria nas mãos do goleiro, tinha sido por
obra e arte do Sobrenatural de Almeida. Se um chute completamente torto de
uma hora para outra mudava de trajetória e a bola ia se aninhar no fundo das
redes, o goleador era ele, o Sobrenatural de Almeida.
O montinho artilheiro não precisa de tanto. Basta estar ali no campo
mesmo, sem ajuda do além. E, ainda hoje, ele continua aprontando das suas,
ajudando a criar a fantasia, rindo de quem acredita ser possível abolir as
artimanhas do acaso.
Na Copa dos Estados Unidos, uma emissora de televisão convidou um
americano para ver, pela primeira vez na vida, uma partida daquele estranho
esporte. O jogo terminou 0 x 0 e esta foi a primeira surpresa do inocente
espectador: como pode um jogo de noventa minutos terminar sem pontos para
as duas equipes? Como pode um jogo terminar sem vencedor? Ele certamente
estava acostumado com o basquete, o futebol americano, o beisebol, onde isso
jamais aconteceria. E quando perguntado, afinal, o que tinha achado da
partida, respondeu: parece um jogo de xadrez.
Ele estava certo, com relação àquela partida. Às vezes o futebol pode ser isso
mesmo, um jogo de xadrez. Às vezes não, é uma rodada de pôquer, uma
partida de damas, um jogo da velha. E sendo tudo isso, é mais do que isso,
justamente devido ao imponderável – venerando senhor a sobrevoar as
partidas, dando apenas ao final o seu implacável veredicto.
Agora, os poetas me expliquem: o que era um drible do Garrincha?
Quando o mané pegava a bola e ficava estático, na frente do marcador, todo
mundo sabia o que iria acontecer. Até a mãe do juiz, se estivesse no estádio,
saberia. E ainda assim o drible acontecia. Exatamente como previsto. E o
impressionante é que algo naquele drible soava como absolutamente
inesperado, como uma grande novidade, um lance jamais visto. Como podia
um drible ser tão inédito e tão familiar? E como aquele anjo torto, gauche de
chuteiras, conseguia tal façanha com suas pernas tortas (as duas para o mesmo
lado)? Garrincha dominava – como Bandeira, como Drummond – a arte da
simplicidade. Sabia que do simples podem brotar o sonho e a alegria.
Romário, um grande frasista, disse certa vez: Pelé, calado, é um poeta. A
frase obviamente não tinha nada de elogiosa, era um revide à afirmação de Pelé
de que Romário devia se aposentar. Como ocorre, porém, com um poema, o
alcance do que se diz pode ser bem mais amplo do que imagina seu autor.
Romário, sem querer, acertou na mosca. Diria que acertou noutra mosca. Pelé
falava e fala, fora de campo, coisas questionáveis, mas dentro dele era um
poeta. Poeta não de palavras mas de passes, dribles, gols antológicos.
E caso o leitor ainda não esteja convencido de que futebol e literatura são
pouco mais do que bons amigos, deixo-lhe uma pergunta final, para reflexão
profunda, na solidão do travesseiro: como definir um passe de letra?
S
Janela ou corredor?
onho a gente não escolhe. Você está andando à toa na rua, distraído,
pensando na vida, e de repente acontece: um sonho vem e atropela você.
Aí pronto, aquilo que entrou na sua cabeça sem pedir licença não vai sair tão
cedo, nem você pedindo com jeitinho.
Descobri isso na escola, quando tinha catorze anos. A professora de redação
tinha pedido que escrevêssemos sobre o tema “Meu grande sonho”. Naquela
época não poderia supor que se tratasse de tema tão pouco original, me cabia
apenas dar conta da tarefa, sem maiores divagações. Anos mais tarde, em
tempos de vacas magras e obrigado a corrigir redações para um colégio
particular, me deparei com uma montanha delas cujo tema era justamente
aquele da minha infância. E no meio daquelas linhas tortas surgiu uma pérola.
Um garoto preencheu o espaço vazio da folha de papel com apenas uma frase:
“Meu grande sonho é poder realizá-lo.”
A redação era só isso, sem mais, apenas esta maravilha do nonsense, poesia
em estado bruto.
Naquele dia distante, porém, sentado diante do caderno, não me veio frase
tão inspirada. Peguei o lápis disposto a simplesmente escrever a verdade. Até
então estava claríssimo para mim qual era meu grande sonho: ser jogador
profissional de futebol. Minha breve carreira (tinha começado a jogar em time
com onze anos) contava já com um título de campeão estadual, categoria
Tampinha, e isso, de alguma forma, servia de lastro ao sonho, impedindo que
ele voasse sem destino até sumir nas nuvens, como tantos outros.
Além disso, uma tia coruja que sempre assistia aos meus jogos dizia que eu
tinha futuro. Obviamente, não me passava pela cabeça que aquela podia ser
uma opinião bem pouco confiável, a começar pelo fato de que ela entendia
tanto de futebol quanto eu de física quântica. De todo modo, o sonho
permanecia ali, alimentado a pão e água mas pelo menos sem morrer de fome.
Levantei o lápis e quando ia escrever a primeira letra me deu um branco. O
braço permaneceu levemente levantado, a mão no ar, segurando o lápis, como
se de repente eu estivesse num filme, e alguém congelasse a imagem. A
professora se aproximou e perguntou o que estava acontecendo.
Nada, estou pensando, respondi. Ela deu um sorriso de aprovação, como se
dissesse: bom menino, pensando antes para não escrever besteira. Mas não era
isso o que havia acontecido. Eu simplesmente fora transformado em estátua
pela chegada de um sonho novo, que lançou de uma hora para outra seu raio
paralisante sobre mim. Aquilo deve ter durado segundos mas na minha
memória consta que levou séculos.
Quando finalmente minha mão desceu sobre o papel, o que saiu foi: “Meu
grande sonho é ser escritor.”
De onde tinha vindo tamanha maluquice? Hoje penso que talvez do meu
pai, um desses típicos contadores de histórias que raramente se vê por aí. Meu
pai emendando um caso no outro, e todo mundo em volta ouvindo com
atenção, sem desgrudar os olhos e os ouvidos da figura dele. Ou podia ser
também da minha mãe, dizendo que minha letra era muito bonita e elogiando
as histórias que eu escrevia. Na verdade, e ela sabia disso, o que eu fazia era
chegar em casa e reescrever no caderno as histórias que a professora contava na
escola.
Depois meu pai, que na época era professor de datilografia, batia tudo à
máquina, minha mãe costurava as folhas com agulha e linha e então criávamos
a capa com recortes, colagens etc.
Pode ser que fosse isso, não sei. O que sei é quenaquele dia um segundo
sonho resolveu medir forças com o primeiro, e minha cabeça virou um ringue,
com um socando de lá, outro de cá, e eu ali no meio, só recebendo bordoada.
Até os meus dezoito anos, os dois sonhos foram obrigados a dividir espaço.
Num dia em que eu jogava bem, o sonho de ser jogador ocupava a janela
naquele ônibus imaginário. Se a professora de redação me dava dez com
estrelinha – a estrelinha era um adesivo que ela comprava não sei onde (nunca
ninguém soube) –, o sonho de ser ponta-direita num time grande era
empurrado para o corredor pelo sonho de escrever um daqueles livrões
enormes que eu via na sala da diretora.
E houve vezes em que os dois iam tão mal das pernas que dava empate. Um
empate sofrível, em que os dois perdiam.
Por exemplo, no dia em que errei um gol feito, aos 44 do segundo tempo,
na final de um torneio em Brasília. A bola veio cruzada da esquerda, rasteira,
passou por todo mundo, o zagueiro furou, o goleiro deixou passar, e a bola
sobrou limpinha na minha frente, quase na linha do gol. Era só tocar e correr
pro abraço. Mas não sei o que houve, me desconcentrei e quando dei por mim
a bola já tinha passado e saía pela linha de fundo.
Ouvir todo mundo me xingando nem foi o pior. O pior foi escutar o
massagista dizer para o técnico, no vestiário (ele pensou que eu não estava
ouvindo mas estava sim, ouvi tudo debaixo do chuveiro): esse menino até que
leva jeito, mas de vez em quando apaga, some no jogo, parece que está no
mundo da lua. E arrematou: parece poeta.
Aquilo doeu, sinceramente. O que o nosso massagista estava dizendo, em
outras palavras, era o seguinte: para jogador, esse aí não serve.
Mas se ele disse que eu parecia poeta, era de se esperar que nessa hora o
sonho de ser escritor se achasse o cara. Poderia ter acontecido assim, claro, se
logo no dia seguinte, bem cedo, eu não chegasse na escola e recebesse das mãos
da diretora o resultado do meu teste vocacional.
Tinham contratado uma psicóloga para fazer esse teste com a gente, era
meio moda na época. A moça tinha feito várias perguntas para cada um de nós,
além de ter pedido alguns desenhos: uma casa, uma árvore, uma pessoa da
família, coisas assim. Li o resultado do meu teste e aquela foi uma experiência
que a psicóloga, se estivesse ao meu lado na hora, chamaria de traumática.
Não me lembro de tudo que havia naqueles papéis. Para ser sincero, só me
lembro mesmo, com certeza, de uma frase, colocada na parte em que a
psicóloga anotara o que não combinava com nossa personalidade, em termos
de vocação profissional. E a frase dizia: desaconselhamos qualquer atividade
ligada a redação.
Isso não é exatamente o que um aspirante a escritor desejaria ouvir. Devo
ter escrito algo muito horrível no meu teste, devo ter cometido erros de
português gigantescos, homéricos, imperdoáveis! Nada de redação, meu filho,
vai tentar outra coisa na vida, era o que ela estava querendo dizer.
E nessa peleja quase interminável meus dois sonhos foram se batendo todos
os dias, até que chegou o momento do apito final.
Quando completei dezoito anos, ou me profissionalizava como jogador –
aquela era a idade limite da categoria Juvenil, a última das categorias de base
daquele tempo – ou pendurava as chuteiras. Por outro lado, precisava escolher
o que iria estudar na faculdade, e onde. Se em Goiânia, onde morava, ou num
centro maior.
Foi então que recebi um convite do Guarani, de Campinas. Dois anos
antes, em 1978, o Guarani tinha sido campeão brasileiro. O time estava em
alta e resolveu investir em garotos de fora do eixo Rio-São Paulo. Era um
convite para jogar no profissional!
Poucos dias depois, recebi um telefonema dizendo que eu havia vencido um
concurso importante, do governo do estado de Goiás. Um concurso de contos.
Precisava decidir e precisava ser rápido.
Venceu o sonho de ser escritor. Fiz vestibular para Letras na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Me mudei para lá no ano seguinte. Fui para a
cidade grande sem conhecer ninguém, sem parentes nem amigos, apenas com a
cara, a coragem e o sonho de ser escritor viajando contente na janela do
ônibus.
Mais de uma vez me arrependi. Poderia ter sido um jogador de futebol
medíocre, poderia ter quebrado a perna e abandonado a carreira, poderia ter
sido marginalizado por uma panelinha qualquer de time grande. Tudo isso
poderia ter acontecido. Mas também poderia ter dado certo. A verdade é que,
qualquer que tivesse sido a decisão, iria sempre ficar faltando um pedaço. Um
dos sonhos viria sempre cobrar sua parte. Fazer o quê? Como diria João
Saldanha, dando de ombros: vida que segue.
Esporte Clube Jaó, 1980, no estádio Serra Dourada. O autor é o primeiro, agachado, da esquerda para a
direita.
P
O último jogo
ara os jovens atletas do Esporte Clube Jaó, de Goiânia, 1980 foi um ano
marcante. Disputávamos o campeonato estadual, categoria Juvenil, e
naquele ano a maior parte dos jogos foi realizada no moderníssimo Serra
Dourada, na preliminar das partidas dos profissionais.
Até então, o máximo de glória que cada um de nós havia alcançado fora ter
jogado no Olímpico. Agora, o Olímpico se destinava apenas a jogos da
segunda divisão, e o Serra Dourada assumia o lugar do velho estádio na
fantasia da garotada.
O último jogo do campeonato foi contra o todo-poderoso Goiás, na
preliminar de um clássico: Goiás e Vila Nova. Não aspirávamos mais ao título.
Uma vitória, no entanto, nos garantiria um honroso segundo lugar (o
campeonato era por pontos corridos).
Ainda guardo a foto daquele domingo. Impressionante como todo mundo
do nosso time saía nas fotos com cara de bravo. Quem visse nossas fotos
acharia que se tratava de gente muito séria, disposta a dar o sangue pela vitória,
mal sabendo que éramos tão moleques que disputávamos torneio de golzinho
na sala de aquecimento antes do jogo, para desespero do nosso preparador
físico.
Daquela vez não foi diferente. Apenas nosso centroavante, o Cacau, aparece
sorrindo na foto, talvez antevendo as alegrias que teria nos anos seguintes,
jogando pelos profissionais do Goiás, do Fluminense e do Corinthians.
Ninguém nos obrigava a fazer cara de mau, mas fazíamos assim mesmo e
sem combinar antes. Acho que queríamos imitar time profissional, aqueles
jogadores todos compenetrados, encarando a partida como uma batalha de
vida ou morte.
Meu pai, que não gostava de futebol, mas mesmo assim me dava força,
naquela tarde estava no estádio. Antes de começar o jogo olhei para a
arquibancada, vendo aquele monte de pontinhos coloridos e tentando
adivinhar qual deles seria meu pai. Pouco importava, na verdade, saber onde
ele estava, o importante era não fazer feio. Além de tudo, aquele era o meu
último jogo. No ano seguinte, estaria morando no Rio de Janeiro, com minhas
chuteiras dormindo empoeiradas num canto qualquer do sótão da casa dos
meus pais, devidamente aposentadas.
Logo no início, eles marcaram um gol. Sabíamos que o jogo não seria nada
fácil, mas um gol assim, antes de cinco minutos, é para deixar qualquer um à
beira de um ataque de nervos. Aos poucos, porém, nosso time foi se
recompondo, e o jogo começou a ficar equilibrado. No final do primeiro
tempo, empatamos, numa cobrança de falta.
Na volta do vestiário, saindo do túnel, levei um susto. De uma hora pra
outra o estádio tinha ficado simplesmente lotado! Certamente não acontecera
assim, de repente, o mais provável é que eu não tenha reparado que o público
fora aumentando aos poucos. Estivera concentrado na partida, claro. Pode ter
sido isso, certo, mas a impressão era a de que todo mundo tinha resolvido
chegar na mesma hora, só pra assustar a gente. Agora sim, pensei, nunca vou
saber onde meu pai está.
O segundo tempo foi de arrepiar porque a torcida do Goiás começou a
incentivar o time deles e a do Vila Nova, em represália, passou a torcer por
nós. Eram nada mais nada menos que as duas maiores torcidas do estado e
parecia que estavam todos ali, que nenhum torcedor tinha ficadoem casa.
Poucas vezes na vida senti um frio na barriga como o daquela volta para o
segundo tempo. Se fizesse besteira, não era só do meu pai que iria ter vergonha.
O jogo seguiu disputado e, por volta dos 35 minutos, aconteceu. Eu jogava
de ponta-direita, bem aberto, mas num lance resolvi correr pelo meio,
trocando de posição com o Cacau (ensaiávamos essa jogada nos treinos).
Alguém lançou a bola em profundidade, e lá fui eu. A bola estava mais para o
lateral esquerdo deles, que me acompanhara de perto, e percebi que ele
chegaria primeiro.
Então dei uma puxada rápida no braço dele e com o bico da chuteira toquei
na bola. Ele ficou pra trás, corri com a bola nos pés e fiquei cara a cara com o
goleiro. Nessas horas o goleiro cresce enormemente, vira um gigante. Quando
o goleiro estava já monstruoso de tão grande, chutei rasteiro, no canto. Gol.
Na hora foi uma festa, claro. A parte ruim veio depois. O lugar do campo
em que eu jogava ficava perto da torcida do Goiás que estava na geral (ainda
existia geral naquela época). De dentro do campo dava pra ouvir tudo o que
eles gritavam. O juiz não tinha visto a minha falta, mas aquele povo todo ali do
lado viu e começou a me xingar de coisas impublicáveis. E um bando deles
desandou a gritar para o lateral: pega ele! Pega o cara!
O cara, no caso, era eu. O lateral se aproximou de mim e disse baixinho,
numa voz tristíssima: não precisava disso.
Olhei bem pra ele. Era franzino, tinha os olhos fundos e a pele meio
amarelada. O Goiás costumava trazer uns garotos do interior pra morar na
concentração do clube, no bairro da Serrinha. Os meninos comiam lá,
recebiam tratamento dentário, tinham médico etc. Quando estavam na idade
de assinar contrato, subiam para o profissional ou eram vendidos para outro
time. Alguns se davam bem, mas a maioria acabava voltando para a cidade de
onde viera, com uma mão na frente e outra atrás. Eu tinha ouvido dizer que o
lugar era meio precário, e a alimentação não era grandes coisas.
Você mora na Serrinha?, perguntei. O lateral fez que sim. Quando percebi,
o jogo estava pegando fogo, e nós dois conversando na ponta do campo. A
galera da geral continuava gritando, pedindo a minha cabeça, e o lateral na
minha sombra. Percebi logo que ele estava com medo. O coitado precisava
tomar uma atitude, a torcida exigia uma reação, um companheiro de time fez
um gesto pra ele me descer a botina, mas havia o problema de eu ser mais forte
do que ele, não precisava comer a comida da Serrinha, almoçava na minha casa
mesmo.
E agora, o que que eu faço?, ele me perguntou, apontando com os olhos os
torcedores da geral. Aquela pergunta me pegou em cheio. Tudo estava
acontecendo por minha causa, afinal de contas. Mas tinha aprendido que em
futebol não tem disso não, futebol é pra homem – não vê os profissionais nas
fotos, tudo com cara de quem come pimenta de sobremesa? –, se fiz a falta,
melhor ainda, valeu a malandragem, e lateral existe é pra isso mesmo, não é
não?
Enquanto esses pensamentos todos rondavam minha cabeça, ele me
perguntou, à queima-roupa: você deixa eu te dar uma porrada?
Olhei pra ele e vi que não estava brincando, o rosto estava sério. Mas de
repente ele sorriu. Era um meio sorriso, de canto de lábios, parecia que estava
pedindo a um amigo pra dar uma volta na sua bicicleta. Definitivamente,
aquele lateral não combinava com nenhum que eu conhecera até então.
Tudo bem, respondi. E completei: mas só finge, não bate de verdade não.
Ele concordou. Logo depois alguém tocou a bola pra mim. Eu fiz que tentava
um drible e trombei com o lateral, ele esticou a perna como se fosse me
derrubar e dei um salto espetacular, caindo no chão com a mão no joelho e
gritando de dor.
Os caras da geral foram ao delírio. E dá-lhe palavrão nos meus ouvidos. Um
deles me atirou uma laranja que passou raspando. Logo chegou a maca. Nem
contava com aquilo, com a realização daquele desejo antigo: sair de campo de
maca. Enquanto me levavam, eu realmente me sentia um profissional, se até
sair de campo na maca eu saía!
Voltei para o jogo e minutos depois o juiz apitou o final. Dois a um para a
gente. Na geral, ninguém entendeu o abraço que o lateral veio me dar depois
da partida, como se fôssemos velhos amigos.
Mais tarde meu pai foi se encontrar comigo no vestiário, todo feliz. Chegou
até a me chamar de artilheiro. Meu pai nunca soube da verdadeira história, do
que realmente aconteceu dentro de campo naquele dia. Quer dizer, agora sabe.
Q
Canal 100
uem gosta de futebol e já era grandinho nos anos 1980 há de se lembrar
do Canal 100. Quando as luzes da sala de cinema se apagavam, a tela se
enchia de bolas coloridas de variados tamanhos, explodindo como se fossem
fogos de artifício, e se ouvia em alto e bom som a musiquinha inesquecível:
pananan nanammm...
Nesse momento abriam-se, de par em par, as janelas do sonho. E por elas
atravessávamos de corpo e alma, entregues à grandiosidade das imagens, à
magia da câmera lenta, ao encanto de uma voz potente e familiar que narrava
cada lance da partida como se fosse uma decisão de Copa do Mundo.
Criado no final da década de 1950 por Carlos Niemeyer, o Canal 100
surgia como um telejornal provocador. Não era como os pequenos números da
televisão: 2, 3, 5, 6, 7. Era o Canal 100 ora essa, faça-me o favor!
Exibido antes das sessões de cinema, e renovado a cada semana, o telejornal
abordava assuntos do momento, mas seu forte mesmo eram as matérias sobre
futebol. Às vezes, o filme em si era fraquinho, e saíamos do cinema com aquela
sensação de tempo perdido. Quer dizer, quase perdido. Por pior que fosse o
filme, tínhamos assistido antes ao Canal 100 e isso já fazia valer o ingresso.
Em artigo para o site Cinemascópio, Kleber Mendonça Filho lembra bem o
que era aquilo: “O futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas impossíveis
de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um futebol em 35 mm,
gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na plateia geralmente amavam as
imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores escarravam
elegantemente ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma barreira de homens
preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em direção à
rede.”
Era isso. E era mais do que isso. Quando assistia às sessões do telejornal,
ficava em mim a vaga intuição de que aquilo não era apenas efeito da arte de
um grupo de cinegrafistas de primeira linha, com destaque para Francisco
Torturra. Havia algo mais, que não se podia explicar pela técnica do cinema.
Quem sabe fosse alguma coisa no campo da intuição, do espírito, talvez uma
fagulha divina que se insinuava em algum lugar indecidível entre a câmera, a
arquibancada, o gramado e, se metendo em meio aos torcedores, jogadores,
juiz, bandeirinhas, gandulas, repórteres, encontrava o espaço exato para o
indizível, para o que não se pode pegar com a mão.
Minha intuição ganhou força quando um cinema do Rio, o Estação
Botafogo, resolveu apresentar sessões mais longas do telejornal. Não seriam
sessões que antecedessem as de um filme qualquer, nada disso, o Canal 100
deixaria de ser o jogo preliminar e passaria a ser ele mesmo o grande clássico.
Seriam sessões editadas, reunindo séries de apresentações de modo a compor
cada uma mais ou menos o tempo de duração de um longa-metragem.
Não me lembro bem de quando se deu o festival do Estação, mas me
lembro do que pensei quando soube da notícia: não vai dar certo.
O Canal 100 funcionava justamente porque era curto e porque antecedia o
longa-metragem. Colocado assim, no meio do palco, sob a luz dos holofotes, o
coitado corria o risco de dar vexame, de gaguejar na frente da plateia, de
esquecer a fala e ser vaiado ostensivamente por espectadores raivosos. Confesso,
fiquei com pena do Canal 100. Nutria por ele um carinho fraternal e me doeu
o coração saber que estaria exposto ao ridículo.
Claro que não poderia me furtar ao compromisso de assistir. Afinal, era
quase um irmão que estava lá,na berlinda. Escolhi uma sessão que apresentava
um histórico dos clássicos entre Flamengo e Botafogo.
Botafoguense de carteirinha, achei que não deveria ir sozinho. Seria
fundamental convidar um flamenguista, já que o programa, se tinha a ver com
futebol, exigia uma cerveja depois, acompanhada de apaixonado embate.
Convidei meu amigo Miguel Falbo, músico de primeira e jogador de segunda,
que apesar de tudo se dizia grande entendedor do esporte bretão.
Quando entramos na sala de cinema, o que vi foi absolutamente insólito.
Todos os lugares praticamente tomados (tivemos que ficar espremidos num
cantinho lá na frente) por alucinados torcedores, alguns portando enormes
bandeiras, a maioria com latas de cerveja ou refrigerante nas mãos. Ao meu
lado, um senhor estava sentado sobre uma almofada rubro-negra que trouxera
de casa e tinha um radinho de pilha colado no ouvido. A almofada até dava
para entender, fora um capricho, mas radinho de pilha?!
Como diria o velho Simão Bacamarte, saído da pena genial de Machado de
Assis: “insânia, insânia, e só insânia”.
Eram na maioria homens os espectadores, mas havia mulheres também. E
muitos usando as camisas dos times (não entendi a presença de um moço
branco, magro, pálido, com a camisa do Vasco – talvez tivesse errado de sessão
ou talvez fosse um poeta romântico em busca de emoções fortes). Boa parte da
plateia fumava desbragadamente, o que tornava ainda mais nebuloso o cenário,
de onde surgiriam dali a pouco as tão esperadas imagens na tela. Aquilo não
era uma sala de cinema, era uma mistura de bar e Maracanã em dia de decisão.
Começa a sessão. Bolinhas coloridas pipocando na tela, música: pananan
nanammm... Delírio da galera, bandeiras desfraldadas, uivos. Insânia, insânia,
e só insânia. Diante de tudo isso, desse clima de paixão prestes a explodir, não
era de se estranhar que, a cada cena passada na tela, os torcedores reagissem
como se estivessem assistindo ao jogo ao vivo!
Quando Paulo César Caju deu um toque de classe, a turba alvinegra gritou
em coro: PC! PC! PC! Quando Zico bateu uma falta que passou arrancando
tinta do travessão, foi a vez de os flamenguistas soltarem um urro vindo do
fundo d’alma: uhhh!!! Um gol do Gérson quase fez o cinema vir abaixo. Um
gol, aliás, vindo de que lado fosse, era seguido de verdadeira apoteose.
Todos sabiam de cor e salteado o resultado dos jogos. Para os que não se
lembrassem, um cartaz na porta do cinema ainda ajudava, anunciando os jogos
(com placar e tudo) que seriam exibidos naquele horário. A maioria já havia
assistido aos lances – boa parte mais de uma vez até –, e, no entanto, todos
torciam como se fora a primeira vez.
Na condição de quem estava ali para analisar o fenômeno e quem sabe
utilizá-lo como matéria-prima para um conto futuro, resistia o quanto podia ao
frenesi coletivo. Mas quando olhei pro lado e ouvi o Miguel mandando o
Mozer (do Flamengo) ir tomar naquele lugar, percebi que o caso estava
perdido.
Não havia volta. Aquelas pessoas reunidas na sala de cinema eram a nata da
nata do manicômio, e o grande louco, na verdade, era eu. Eu era o próprio
Bacamarte, era o estrangeiro, o estranho no ninho e só havia um jeito de salvar
minha alma. E este jeito tomou forma quando surgiu a ocasião: um zagueiro
do Flamengo deu um carrinho por trás, uma entrada criminosa no
centroavante do Botafogo, e o juiz nem falta marcou. Então me levantei,
convicto, e do alto da minha doida sanidade gritei a plenos pulmões: ladrão!
Pronto, estava decretada enfim minha entrada no país do delírio. Um
garoto passou vendendo cerveja numa caixa de isopor e isso, claro, me pareceu
perfeitamente normal, cheguei a perguntar onde é que ele estava que não havia
chegado antes.
Comprei duas latinhas, dei uma para o meu amigo. Quando houve um
pequeno intervalo na projeção, brindamos como se nossas latinhas fossem
grandes canecas de vinho tinto nas mãos de valorosos guerreiros vikings. E
enquanto bebíamos olhávamos desconfiados um para o outro, na breve trégua
que antecedia o segundo tempo.
N
Como se diz
ão sei se você já parou para pensar num tema profundíssimo, que
mereceria, sem dúvida, páginas e páginas de estudo por parte de sábios
pesquisadores país afora: as palavras e expressões utilizadas no futebol.
Há dentre elas uma em especial, que me encantou desde a primeira vez que
a ouvi: ao apagar das luzes. Fulano fez um gol ao apagar das luzes. O atacante
que aos 44 minutos do segundo tempo faz o gol da vitória não é apenas o herói
do seu time. Tampouco o estádio é um mero espaço para o delírio coletivo
numa noite qualquer.
Nada disso. O estádio agora é um teatro monumental, o artilheiro é um
tenor e seu gol é nada mais nada menos do que um último dó de peito antes
que as cortinas se fechem e novamente se abram para que o artista, comovido,
receba os aplausos extasiados da plateia, ao apagar das luzes.
E se o gol foi bonito será chamado de gol de placa. Ou quem sabe gol
antológico. Se foi difícil, dirão que foi um gol impossível. E se foi muito, mas
muito difícil, algo que acontece de mil em mil anos, dirão os entendedores:
aquele foi um gol espírita. Se, no entanto, bastou ao atacante tocar a bola para
o gol vazio, haverá algum invejoso dizendo: esse até minha sogra fazia.
Há também expressões exatas como um teorema. Nelson Rodrigues era
mestre no assunto. Se um torcedor, por exemplo, se sentia indignado com
algum erro do árbitro, Nelson não dizia que o sujeito estava danado da vida ou
arrancando os cabelos ou carregado de fúria. Não, estas seriam palavras usadas
pelos reles mortais. Nelson dizia: o pobre coitado subiu pelas paredes como
lagartixa profissional.
Dizem também que é dele uma outra preciosidade. É um monumento à
exatidão o modo como foi definido aquele tipo de jogador franzino que corre
pelo campo todo, corre sem parar durante noventa minutos, corre às vezes
mais do que a bola (nesses momentos a bola até parece um detalhe). Eis a
definição: coelhinho de desenho animado.
As palavras e expressões ligadas à bola de futebol mereceriam um capítulo à
parte. Você que se considera uma sumidade no assunto responda: quantos
sinônimos para bola conhece? No seu clássico Dicionário de futebol, Haroldo
Maranhão apresenta trinta e oito.
A bola pode ser tratada de forma carinhosa, quase infantil: gorduchinha,
boneca, criança, menina, bichinha, neném. Ou de modo passional: infiel,
caprichosa, enganosa, demônia. Pode ser definida por sua forma ou matéria:
redonda, esfera, pneu, número cinco, caroço, castanha, pelota. Ou por sua
natureza feminina: nega, maricota, leonor, maria, ela, guiomar, margarida,
moça.
Isso, digamos, no seu estado de inércia. Em movimento, durante uma
partida de futebol, ela assume outras identidades. Se é o craque que a ela se
dirige, a bola é chamada de você, de meu bem. Se, no entanto, quem busca o
diálogo não tem com ela a mínima intimidade, se é um perna de pau que não
deixa dúvidas, a bola é no mínimo Vossa Excelência.
E se um de seus vários nomes é “perseguida”, às vezes a história se inverte, e
a bola passa a ser a perseguidora. É então que se diz que Fulano está
apanhando da bola. É preciso, nesses casos, que alguém com mais habilidade
trate de arredondar a bola, o que parece absurdo mas não é, se você imaginar
que alguns jogam uma bola bem quadradinha.
Há situações em que a bola assume nomes absolutamente delirantes para
quem não sabe do que se trata, ou até para quem sabe e para um pouco para
pensar no que está dizendo. Senão vejamos: bola com açúcar, bola no fogo,
bola corrida, espirrada, limpa, pingada, trabalhada, venenosa (esta então você
deve evitar sempre que quiser comer a bola).
Agora imagine que você está em campo, em pleno jogo, e vai bater uma
falta na entrada da grande área do time adversário. Um companheiro de time
se aproxima, coloca a mão no seu ombro e sussurra no seu ouvido: chuta na
orelha dela. Se você está lá nessa hora e se lhe deixaram bater a falta, é porque
entendeo que o outro disse e portanto não vai dar o vexame de perguntar: na
orelha de quem?
Se, ao bater a falta, ela tocar na trave, alguém de fora poderá dizer, levando
as mãos à cabeça: caramba, essa beijou o poste! Se a bola que você chutou tiver
passado bem perto do gol antes de sair pela linha de fundo, é bem provável que
se ouça: rapaz, essa tirou tinta da trave! E apesar de tudo isso ao final do jogo as
traves estarão lá, intactas, sem falha de tinta ou marca de beijo.
Agora, se você fez o gol e deu a vitória ao seu time, é quase certo que vai
rolar um bicho. Se você jogasse nos tempos de antigamente, quando os cartolas
da época tiveram essa ideia (inspirados no jogo do bicho), o dono do seu time
poderia lhe dar, pelo gol e pela vitória, um cachorro (5 mil-réis), um coelho
(10 mil-réis), um galo (50 mil-réis) ou quem sabe até uma vaca (100 mil-réis),
se o jogo fosse decisão de campeonato.
Numa crônica publicada no Jornal do Brasil em 1995, Sérgio Noronha
conta que Pelé dormia antes dos jogos. Dormia na concentração, no vestiário,
no ônibus, onde fosse. E se algum jogador do time fizesse barulho, havia
sempre outro a dar a bronca: não acorda o bicho. O bicho, no caso, não era
exatamente o Pelé, mas a grana que ele significava com seus gols.
Se o goleiro sobe bonito e faz uma defesa sensacional, você pode ouvir o
narrador do jogo, na televisão, dizer que o goleirão foi buscar a bola no
segundo andar. Se o zagueiro brutamontes dá uma entrada violenta no
centroavante, alguém vai dizer que o cara abriu a caixa de ferramentas. Se a
bola entra na grande área, diz-se que ela está na zona do agrião (esta, confesso
que nunca entendi).
E se você nunca ouviu falar dessas expressões, não se preocupe. Isso não é
nem de longe motivo para você se achar um bola murcha.
São expressões cunhadas em épocas diversas, algumas ainda valem até hoje,
outras ficaram paradas no tempo. Há em todas algo da necessidade que o
apaixonado tem de dar nome às coisas que giram em torno da sua paixão. De
certa forma, dar um nome é uma tentativa de entender, de desenhar o
contorno do invisível, do intocável. E antes que a crônica descambe para a
filosofia, embolando o meio de campo, é bom parar por aqui, ao apagar as
luzes.
O
Histórias possíveis
grande nome da final da Copa do Mundo de 1950 não foi Ghiggia, autor
do gol que deu a vitória (2x1) ao time uruguaio, contra o Brasil, para
desespero de um Maracanã com quase 200 mil torcedores e motivo de luto
oficial no país. O nome do jogo foi o capitão do Uruguai, Obdulio Varela,
que, segundo comentário de Nelson Rodrigues, nos tratou a chutes e pontapés.
Com sua força, seus gritos, Obdulio comandou os uruguaios numa batalha
heroica, cujo desfecho nem o mais pessimista dos brasileiros poderia esperar.
Pois dizem que depois do jogo, enquanto a equipe uruguaia comemorava a
conquista num hotel no Flamengo, Obdulio saiu solitário pela cidade. No dia
seguinte, numa entrevista concedida a um jornal de seu país, ele diria que
naquela noite, caminhando por um Rio de Janeiro absolutamente vazio, o
capitão se deu conta da tragédia que havia ajudado, e muito, a consumar.
Fico imaginando o que Obdulio teria visto pela cidade, o que chegou a
pensar, o que sentiu quando viu caída na calçada a primeira página de um
jornal qualquer, com a foto do escrete brasileiro e a frase: Campeão do Mundo.
Frase e foto que, publicadas na manhã daquele mesmo dia, anteviam uma festa
que só se realizou para os visitantes.
Em parceria com Adolfo Lachtermarcher, escrevi o roteiro de um curta-
metragem, A noite do capitão, resgatando o episódio. A história é contada sob a
ótica de um jovem repórter que sai pela noite seguindo Obdulio, em busca de
uma foto para a matéria do dia seguinte. O que escrevemos foi apenas uma
versão ficcionalizada, possível talvez. Há, no entanto, dentro da história
daquela decisão, várias outras histórias.
Desse jogo resultou o livro de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota,
que reproduz cada minuto da peleja, numa preciosa pesquisa sobre as narrações
da partida veiculadas nas emissoras de rádio naquele domingo. Ao final do
livro, Perdigão publica um conto em que um homem – que assistiu ao jogo
quando criança e nunca conseguiu se livrar do trauma – usa uma máquina do
tempo e volta ao dia fatídico, tentando avisar o goleiro do Brasil, Barbosa, do
lugar em que Ghiggia iria chutar a bola. O conto, por sua vez, ganhou nova
versão no cinema, num curta de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, com o
título de Barbosa.
E há também uma história não escrita, pelo menos não sob a forma de
ficção. É aquela contada pelo próprio Barbosa. Ele disse certa vez que naquela
noite, ao voltar para casa, se deparou no meio da rua com uma mesa posta, um
verdadeiro banquete sendo devidamente devorado por cachorros. Alguém
havia preparado a ceia contando como certíssima a vitória brasileira, e a derrota
havia sido tão frustrante que o camarada nem teve ânimo para retirar dali toda
aquela comida.
O que Barbosa teria pensado ao ver a cena? Ele, que durante anos carregaria
o peso da culpa pela derrota, depois de falhar no gol de Ghiggia, o que teria
sentido ao ver os vira-latas devorando os pratos que lá estavam para alimentar o
corpo e a alma de torcedores famintos depois de uma acachapante goleada no
fraco time do Uruguai, que chegara àquela final nem se sabe como?
O mundo do futebol está repleto de histórias possíveis, esperando quem
sabe a vez de serem contadas.
Que belo conto não poderia sair das mãos habilidosas que se dispusessem a
passar para o papel alguma história girando em torno do milésimo gol de Pelé.
E nem falo do jogo contra o Vasco no Maracanã, em que Pelé, batendo
pênalti, conseguiu a marca histórica. Falo do que o rei pode ter sentido quando
soube que, na verdade, aquele era o gol de número 999.
Por um erro de cálculo, o milésimo gol só seria marcado mesmo na partida
seguinte, contra o limitado Botafogo da Paraíba, em João Pessoa, num jogo
que nem de longe teve o glamour daquele clássico no Maracanã, cercado de
pompa e circunstância, como era de se esperar. E o que terá sentido o goleiro
quando soube que, apesar de tudo, acabou não passando para a história,
cabendo a honra ao arqueiro do Vasco, Andrada?
Pensando bem, que narrativa beirando o absurdo não poderia sair do
episódio ocorrido no jogo de estreia do Brasil na Copa de 1978, contra o time
sueco? Um escanteio a favor do Brasil foi cobrado aos 45 minutos do segundo
tempo, e Zico completou para as redes. Pois o juiz Clive Thomas, nascido no
País de Gales, simplesmente anulou o gol, dizendo que encerrara o jogo
enquanto a bola girava da batida do escanteio até o meio da área. Em função
disso, o jogo não terminou com a vitória brasileira, mas com um suado 1x1.
O que teria passado na cabeça daquele cidadão soprador de apito numa
hora dessas? Que delírio o teria levado a cometer tamanha insanidade? Se era
para acabar o jogo, por que permitiu que o escanteio fosse cobrado? E Zico, o
que poderia ter dito? Xingou o juiz em um português que o outro jamais
entenderia? Ficou em estado de choque, pasmo diante do que acabara de
acontecer? Riu de nervoso?
O que dizer, então, das mil e uma histórias envolvendo Garrincha? Dizem
que num treino do Botafogo, em General Severiano, o técnico certa vez
colocou uma cadeira na lateral do gramado e pediu aos atacantes que
carregassem a bola, passassem pela cadeira como se fora um adversário,
corressem com a bola nos pés até a linha de fundo e cruzassem para a área. Na
vez de Garrincha fazer o exercício, em vez de contornar a cadeira, como os
outros vinham fazendo, meteu a bola entre as pernas da distinta. Claro, era o
que ele faria se a cadeira fosse um lateral esquerdo. Perfeitamente aceitável, ora
essa.
E no jogo semifinal da Copa de 1962, no Chile, quando o lateral chileno
Eladio Rojas, depois de provocá-lo o tempo todo, deu-lhe uma bela cusparada
em pleno rosto, seguido de um tapa na cara que se ouviuaté em território
brasileiro? Garrincha revidou. Revidou com um modesto chute na bunda do
chileno. Foi expulso.
A biografia de Mané já foi escrita, mas suas histórias ainda não se
esgotaram. O que o levou a criar aquele seu drible inconfundível, que deixava
humilhados mesmo os marcadores mais ferrenhos e talentosos? Dizem que no
seu primeiro treino no Botafogo quem o marcou foi ninguém menos do que
Nilton Santos. Mané não se intimidou com a fama do craque e deu-lhe logo
uma série de dribles. O lateral, então, imediatamente chamou o técnico e
pediu que passasse Garrincha para o time titular. Não vou ficar aqui fazendo
papel de palhaço, teria dito Nilton Santos.
Numa crônica intitulada Cartão de visita, o saudoso João Saldanha diz que
houve um tempo em que os profissionais de futebol adoravam apresentar
cartões de visita. Curiosamente, eram todos escritos em letras azuis (sabe-se lá
por quê). Um ex-técnico do Vasco, Telémaco Frazão de Lima, bem pouco
modesto, pediu para imprimirem no seu: “professor de futebol”. Havia um
outro, que Saldanha preferiu não identificar, que entrara de sócio numa firma
comercial. No seu cartão vinha: “Fulano de Tal – sócio”. Apenas isso: sócio,
não se sabia de quem ou de que empresa. O melhor deles era do Noronha,
atacante do Canto do Rio. Logo abaixo do seu nome, lia-se: “impetuoso ponta-
esquerda”.
Fico imaginando que histórias poderiam sair daí, desse tema. Como seria,
por exemplo, um cartão de visita do Rivelino? Talvez viesse assim: “inventor
do famoso drible elástico”. E o cartão do Dadá Maravilha? “Dadá – além do
helicóptero e do beija-flor, o único que para no ar”. Nos cartões do time do
Íbis, poderia estar escrito: “o pior do mundo, com muito orgulho, com muito
amor”. E no cartão de uma conhecida bandeirinha – que roubou feio o
Botafogo em pleno Maracanã lotado na semifinal da Copa do Brasil de 2007,
contra o Figueirense, e depois virou capa da Playboy –, o que viria? Bom, esse é
melhor deixar pra lá.
O pênalti que o italiano Roberto Baggio perdeu na final da Copa dos
Estados Unidos, em 1994, contra o Brasil, num erro que nos deu o título. A
cena mostrada pela TV: no vestiário, antes do jogo, Romário olha para a saída
do túnel, com aparência tranquila, serena, enquanto Baggio olha fixamente
para ele. O choro de Cerezo depois da falha contra a mesma Itália, em 1982,
que resultou num dos gols de Paolo Rossi e nos eliminou da Copa, justo
quando tínhamos uma das melhores seleções brasileiras, sob o comando do
mestre Telê Santana.
São, todas essas, sementes de histórias, adormecidas em algum canto por aí.
Algum dia talvez venham a fazer parte também do baú imaginário que guarda
já tantos casos engraçados, líricos, trágicos, com que se tece a magia do futebol.
Magia que se estende para além de qualquer gramado e, vez ou outra, adquire
forma de papel e tinta.
V
O louco de Buenos Aires
isitar estádio de futebol é uma boa forma de se conhecer uma cidade. Uma
visita ao Maracanã ou ao estádio da Vila Belmiro ajuda a vislumbrar as
almas de cidades como o Rio de Janeiro e Santos, por exemplo.
O melhor é ir em dia de jogo. Pode ser um clássico, com casa lotada, mas
também um jogo de gatos pingados muitas vezes vale a pena.
No primeiro você pode participar da emoção da partida, sentir a vibração
das arquibancadas (em alguns estádios, a arquibancada vibra literalmente),
observar um pouco do comportamento passional do torcedor.
Mas assistir a um jogo no estádio quase vazio também pode ser uma rica
experiência, se pensarmos que nesse caso você tem condições de sentir mais de
perto a solidão acompanhada do torcedor sentado com seu radinho no ouvido,
ou se ater a detalhes que se diluem em dias de grande público.
E até em dias em que não há jogo você pode aproveitar a visita, vendo o
estádio sem torcedores, o gramado sem ninguém a pisá-lo, nenhuma bola
rolando, e naquele silêncio imaginar o que já se passou ali – as glórias, os lances
grotescos e as angústias, o que teria acontecido no grande palco, agora em
repouso.
Em dezembro de 2007 estive em Buenos Aires para um encontro de
escritores. Quando um poeta argentino me perguntou o que mais gostaria de
conhecer na cidade não falei dos cafés, dos restaurantes, das inúmeras livrarias.
Respondi convicto: La Bombonera.
Não poderia sair de Buenos Aires sem conhecer o estádio do Boca Juniors,
o time mais popular da Argentina, seguido pelo River Plate. Já sabia, de ter
lido em algum lugar, que o nome do estádio se deve à sua forma de caixa, com
as arquibancadas formando quatro longas paredes, ao contrário da maioria dos
estádios, em que elas se espraiam na diagonal. É como uma caixa de bombons.
Precisava ver isso de perto.
Do hotel até o estádio, no bairro La Boca, levei noventa minutos de
caminhada. Exatamente o tempo de uma partida de futebol. Aquilo podia não
significar nada, mas vai você querer entender como funciona de fato o mundo
dos signos? Então anotei sucintamente, no meu diário de bordo imaginário:
valeu.
Antes de entrar no estádio, caminhei um pouco ao seu redor. Dei uma
volta completa, vendo a parte externa dos muros, pintados de amarelo e azul, e
pensei que estádios pequenos como aquele são os que têm mais histórias para
contar, justamente porque foram construídos antes da era dos estádios gigantes
e moderníssimos.
Não era dia de jogo e por isso podia caminhar com calma pelos arredores.
Quando vi, estava me afastando de La Bombonera e me entranhando pelas
ruas pequenas e tortuosas do velho bairro de operários, situado – daí seu nome
– na boca do rio Riachuelo, e que até o final do século XIX era a entrada
obrigatória da cidade.
Desde logo ficou claro o que já era de se esperar: bairro, estádio e time
formam uma única coisa, numa comunhão que se mostra ao visitante nas lojas,
nas cantinas, nas crianças trajando mil variações da camisa oficial do Boca.
Consta que, em 1905, alguns imigrantes italianos resolveram criar um time
de futebol. Deram a ele o nome do bairro e acrescentaram um “Juniors” para
conferir à equipe um ar britânico, numa tentativa de amenizar a condição de
lugar pobre e com traços latinos numa Buenos Aires de feições europeias. Não
conseguiram. O bairro continua pobre, meio atípico, e essa autenticidade
talvez seja sua maior riqueza.
Caminhei para o estádio. Logo na entrada, o sofisticado museu nos mostra
um cartão de visita: somos de primeiro mundo. O cuidado com o registro da
história do time se junta a uma grande maquete do bairro, simulando o
traçado das ruas, a arquitetura, o interior das casas. Telões espalhados pelo
caminho mostram uma infinidade de gols, comemorações, jogadas antológicas,
que se mesclam a momentos importantes da história política do país, retirados
de telejornais e documentários. Tudo no museu aponta para a profunda
relação entre futebol, bairro, cidade e país.
Ao entrar no estádio, porém, o cartão de visita é outro: precisamos de
reforma. Os corredores, as arquibancadas, o próprio campo (de gramado
sofrível), mostram o descaso, lembrando antigos e decadentes estádios de
futebol no Brasil. Isso não impede que, sentados ali, possamos imaginar a
vertigem que deve ser assistir a um jogo naquele lugar apertado e quase dentro
do gramado, a poucos metros dos jogadores.
Saí pensando que aquele contraste entre o campo e o museu definia bem a
história do Boca... Juniors. De um lado a vontade de manter as raízes do
bairro, de outro o desejo de fazer parte da Buenos Aires europeizada.
Contradição que remonta não apenas ao nome do time mas à própria
escolha das cores: amarelo e azul. Antes delas, o time usava um uniforme
branco e preto, depois modificado para as cores da bandeira de um navio
estrangeiro que atracara no porto. Um navio sueco.
Andei um pouco mais pelas ruas e parei numa cantina. Enquanto tomava
cerveja, vi na praça em frente uma cena digna de filme: um homem de cabelos
desgrenhados, olhar perdido no tempo, calças jeans surradas e tênis, usava, sem
o menorconstrangimento, uma camisa branca atravessada por uma faixa
vermelha. Era a camisa do River.
O garçom percebeu minha surpresa, aproximou-se da minha mesa e disse,
apontando para o sujeito na praça: el Loco. Olhei para o garçom, pedindo com
os olhos uma continuação. E ele, meio impaciente, como se eu fosse obrigado a
saber de toda a história do bairro, explicou que se tratava de um tipo bastante
conhecido nas redondezas. Era torcedor fanático do Boca, mas uma vez por
mês, sem aviso prévio (não havia critério aparente para a escolha do dia, podia
ser qualquer um), o sujeito vestia uma camisa do arquirrival, do maior inimigo,
e se postava feito estátua naquela praça durante horas, naquele mesmo banco,
no mais absoluto silêncio.
E não ouse se aproximar dele, o garçom foi logo me advertindo, num
argentinês legítimo que não ouso reproduzir aqui. Era um doido manso mas se
chegassem perto dele nessa hora tornava-se violento. Está vendo as pedras?
Olhei para o banco e vi um monte de pedras de variados tamanhos, formando
um pequeno monte ao lado do homem. Quer levar uma pedrada?, continuou
perguntando o garçom, me parecendo talvez mais louco do que el Loco.
A advertência apenas acentuou minha vontade de me aproximar do
homem. Não duvidei, porém, de que uma daquelas pedras pudesse ter como
destino final minha pobre cabeça de turista e preferi ficar onde estava, até
pensar num plano alternativo: não poderia falar com ele, mas poderia vê-lo
mais de perto, quem sabe.
Me mudei para uma mesa na calçada, de onde podia não apenas vê-lo
melhor como também ser visto por ele, se assim o desejasse. Olhava vez ou
outra para a praça, disfarçadamente, até que, ganhando um pouco mais de
confiança, fixei meu olhar no seu rosto.
Ele deve ter percebido e virou-se na minha direção. Para meu espanto, não
havia agressividade alguma naquele olhar. Ficamos assim por um momento,
um olhando para o outro, e pode ser que tenha sido efeito da longa
caminhada, das coisas todas que eu havia visto no bairro, no estádio, no
museu, ou efeito da cerveja, que me deixava mais sentimental, mas acreditei ver
no olhar do homem algo quase infantil.
Era uma criança que estava ali? Uma criança solitária, tentando chamar a
atenção dos outros, buscando algum afeto? El Loco era, na verdade, el Niño?
Ou, sendo criança, estava apenas brincando de ser outro, como um garoto
brinca de ser médico, artista, jogador de futebol?
Fiquei nessas viagens comigo mesmo até que o olhar mudou. El Loco voltou
a ser o que era, as sobrancelhas se arquearam, o olhar adquiriu a fama que
acompanhava a figura, a de doido varrido. Apanhou uma pedra no monte ao
lado e ficou com ela suspensa no ar, enquanto sustentava para mim seu olhar
ameaçador.
Desviei meus olhos. Pedi a conta e saí. Caminhei por outra rua com um
propósito definido: continuar observando o homem, agora sem que ele me
observasse. Dei a volta e encontrei meu esconderijo. Encostado a um muro,
podia vê-lo de costas, bem de perto.
Foi então que pude ler o que estava escrito na parte de trás da camisa, no
alto. No lugar em que normalmente vem o nome do jogador, não havia
menção a qualquer valoroso atleta do River. Vinha apenas: EL LOCO. E logo
abaixo: (NO ME PREGUNTES POR QUÉ).
O que exatamente ele não queria que lhe perguntassem? Não me pergunte
por que o quê? Por que me chamam de el Loco? Ou, sendo eu de fato louco,
por que me tornei um? Era isso? Não me perguntem sobre a origem da minha
loucura? Ou a frase entre parênteses se referia ao ato em si de se vestir com a
camisa do rival e ficar sentado no meio na praça? Quer dizer, não me
perguntem por que faço tamanha maluquice?
Jamais pude saber, claro. E isso não era importante. Valia mesmo era o
personagem e a biografia apenas sugerida. O homem não sabia que em breve
viajaria para um país vizinho, na bagagem de um desconhecido, trajando
apenas sua nobre loucura.
Da esquerda para a direita: Ézio, Neném, Pereira e Hugo. (Álbum de família.)
A
Os irmãos da minha mãe
Em memória do meu tio Hugo
lguém aí teve quatro tios jogadores de futebol? E se teve, me responda
com sinceridade: eram eles um goleiro, um zagueiro, um meio-campo e
um centroavante? Duvido.
Pois eu tive. Os quatro disputaram campeonatos de futebol amador em
Goiânia, numa época em que não havia muitas diferenças entre amador e
profissional.
Minha avó teve quatro filhos e uma filha (minha mãe). E talvez tenha se
sentido aliviada quando viu que pelo menos minha mãe não ligava muito para
aquele jogo maluco que ralava joelhos e sujava a roupa dos meninos de uma
terra vermelha que não saía de jeito nenhum.
José, que todos conhecem por Pereira, era goleiro. De pernas finas e
compridas, o corpo esguio, se lançava ao ar atrás da bola sem ligar para o fato
de que, na aterrissagem, o esperava não um tapete de grama verdinha e felpuda
mas um chão duro, feito sob encomenda para maltratar goleiros. Na foto que
tenho dele trajando seu honroso uniforme de arqueiro, mais parece um Dom
Quixote de chuteiras, prestes a alçar voo atrás de um sonho qualquer.
Esse meu tio defendia as cores do Banco Cooperativo Luzzati, que nem
existe mais. O gerente do banco era o técnico do time e mais tarde veio a ser
presidente do Vila Nova e da Federação Goiana de Futebol por mais de vinte
anos. Naquela época, no entanto – todos eles jogaram nos anos 1960, com
exceção do caçula, que também atuou durante a década seguinte –, quem
mandava mesmo no time era o Pereira, segundo fonte fidedigna (minha tia).
Era o grande Pereira que orientava a defesa, gritava com o meio-campo e o
ataque, e se preciso duelava com centroavantes em bolas divididas, armado não
de escudos de ferro, como os antigos heróis dos romances de cavalaria, mas
apenas de seu valoroso par de joelheiras, colocadas não onde se espera que
estejam – nos joelhos – mas nas canelas! Imprevisível o Pereira, como convém
a um verdadeiro Quixote.
Quando comecei a jogar, aos onze anos, era ele que, sempre acompanhado
da minha tia, ia assistir aos meus jogos, mesmo quando começavam às oito da
manhã de um domingo chuvoso.
Valente também era seu irmão, Neném, cujo apelido contrastava com sua
função em campo: zagueiro. Zagueiro não pode ter esse apelido, convenhamos.
Tem que ser chamado de Zezão, Pedrão, Junão, sei lá, qualquer coisa que soe
como um sonoro aumentativo. Neném? Neném não dá. Mas tinha que dar,
então meu tio se desdobrava em dois para compensar a sugestão do apelido e
não consta que nenhum atacante tenha tido o atrevimento de brincar com
coisa tão séria (pelo menos não na sua frente).
O problema maior, aliás, não era o contraste entre o apelido e a virilidade
que precisava demonstrar em campo. O problema mesmo já começava no
nome do time: Cruzadinha do Padre Domingos.
Fico imaginando: que cruzada era aquela empreendida campos afora pelos
atletas de padre Domingos? Uma cruzadinha significa exatamente o quê? Que
era humilde, sem grandes pretensões de derrotar os inimigos? Ou que era feita
por crianças (e aí sim o apelido do meu tio combinava bem), no caso jovens,
ainda iniciantes nas guerras santas do futebol?
Não sei. O que se sabe mesmo é que só jogava no time quem fosse à missa.
E não bastava estar presente, do início ao final, precisava também participar da
comunhão, o que significava ter que se confessar primeiro. E nesse ponto
imagino o conflito existencial por que passava padre Domingos, técnico do
time.
Suponha que seja você o padre. No jogo você vibrou com o gol da vitória
do seu time no último minuto. No dia seguinte você está lá, no confessionário,
e chega justo quem? Ele, o artilheiro, o grande herói, a estrela do grupo que
você comanda. E ele te diz: padre, eu pequei. É mesmo, meu filho? Sim, padre,
eu pequei. E que pecado foi esse? Sabe o gol do jogo de ontem? Claro que sei,
um gol muito bonito, meus parabéns! Pois é, padre, só que foi com a mão.
Como, meu filho? O gol não foi de cabeça, padre, foi com a mão, meti a mão
na bola, e o juiz

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