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Flávio Carneiro PASSE DE LETRA FUTEBOL & LITERATURA Para pular o Sumário, clique aqui. Aquecimento SELEFAMA ESPORTE CLUBE DIAS DE CHUVA PELADA EM BERLIM FUTEBOL & LITERATURA JANELA OU CORREDOR? O ÚLTIMO JOGO CANAL 100 COMO SE DIZ HISTÓRIAS POSSÍVEIS O LOUCO DE BUENOS AIRES OS IRMÃOS DA MINHA MÃE OS RECADOS DO NOME O CAMISA 7 O MAIOR CAMPEONATO DO MUNDO TORCEDORES ESTRELA SOLITÁRIA O NARRADOR Os PERSONAGENS O ENREDO MEU PEQUENO AMIGO CUBANO UM TIME CHAMADO CADUCA Acréscimos Créditos O Autor S Aquecimento empre quis escrever sobre futebol. Já havia escrito um conto e o roteiro de um curta-metragem, mas a oportunidade de escrever de forma mais regular sobre o tema surgiu a partir de um convite do Rogério Pereira, editor do jornal de literatura Rascunho, de Curitiba. Inicialmente, o convite era para assinar uma coluna sobre ficção brasileira atual. A partir, porém, de uma sugestão do escritor e jornalista José Castello, que também escrevia para o jornal, acabei mudando o rumo do projeto. Durante dois anos – 2007 e 2008 –, escrevi para o Rascunho a coluna “Passe de Letra”, que buscava juntar no mesmo espaço duas paixões antigas: futebol e literatura. O resultado está aqui, no livro que serve de novo abrigo às crônicas publicadas nesse período e que o leitor abre agora, dando início a mais um jogo. FC “O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol.” ALBERT CAMUS (filósofo, escritor e goleiro) O time de garotos mirrados comandado por Fausto e campeão goiano de Tampinhas em 1973. O autor é o oitavo, da esquerda para a direita. A Selefama Esporte Clube conteceu em Goiânia, no início dos anos 1970, num bairro da cidade chamado Fama. O nome vinha de uma instituição bastante conhecida naqueles tempos: a Fundação Abrigo ao Menor Abandonado. Eu era ainda bem pequeno para perceber a ironia que viajava clandestina na sigla da fundação. O que aqueles garotos tinham de famosos? O que neles poderia se aproximar de algo sequer parecido com fama? Eram garotos sem pai nem mãe, deixados à míngua por motivos diversos, eram moradores de rua. Não tinham nome ou sobrenome que os abrigasse, e mesmo o nome de batismo era muitas vezes esquecido, trocado por um apelido qualquer, tragado pelo turbilhão do anonimato ou adormecido sob o manto nada generoso da expressão: menor abandonado. Era na Fama que morava um certo Fausto, ex-jogador do Vila Nova, ponta- direita de chute poderosíssimo. Dizem que chegou a matar um zagueiro adversário. O cara ficou de costas na barreira, Fausto chutou com força, e a bola atingiu os rins do zagueiro, que morreu poucas horas depois de hemorragia interna. Pois esse Fausto era também, ironicamente, um quase anônimo. Pouco importava se seu nome carregava séculos de história. Não almejava o sobre-humano, não fez pacto com o diabo, não teve a glória do personagem de Goethe, eternizado para todo o sempre. Era apenas o Fausto, dono de bar e esquecido ídolo do Vila Nova. E eis que o destino quis juntar as duas ironias e fez com que Fausto tivesse uma ideia: criar um time de futebol com os meninos do bairro e arredores. Raspou as economias do bar, conseguiu aqui e ali uma ajudazinha do dono do armazém, do gerente do posto, do borracheiro da esquina, e com isso comprou as camisas amarelas, imitando as da seleção brasileira. Depois conseguiu comprar alguns metros de brim azul, com que sua mulher costurou os calções. Sobrou algum, que ele investiu na compra de três bolas de couro e alguns pares de meiões, também amarelos (nunca soube por que amarelos e não brancos, para fechar de vez com os da seleção). As chuteiras foram compradas com a ajuda de alguns pais e com o que restou do fundo do pote das doações. Na tal Fundação Abrigo ao Menor Abandonado havia um campo de futebol bem razoável para os padrões da época, com um gramado regular, traves, redes e tal. Fausto conseguiu de graça o uso do campo para treinos e jogos, com a condição de convocar para seu escrete alguns dos meninos da instituição. Ele aceitou (até porque isso já fazia mesmo parte dos seus planos) e, em breve, estava fundado o glorioso Selefama Esporte Clube. O nome, desnecessário dizer, acrescentava mais uma volta à espiral das ironias. Juntava-se aos garotos anônimos e ao ídolo esquecido uma palavra mágica: seleção. Quer dizer, aqueles garotos mirrados, alguns passando fome, que nunca tinham calçado uma chuteira na vida, aqueles sem-nome liderados por um ex-famoso eram agora nada mais nada menos do que os selecionados! Eram os eleitos, os craques da seleção da fama! Eu tinha onze anos e era o ponta-direita do Selefama. Morava num bairro vizinho, e se minha família não era exatamente pobre, rica também não era. Éramos de classe média, quem sabe tendendo a baixa, meu pai dava aulas de datilografia, e minha mãe era balconista numa loja de tecidos. Fui a um dos primeiros treinos do time e de repente me vi o dono da camisa 7, sem dúvida um dos maiores orgulhos da minha vida. Depois de alguns treinos e da papelada toda em ordem junto à Federação, entramos num campo de terra, terra vermelha, campo duro e esburacado, do Crimeia Leste, cuja torcida tinha ficado famosa pelas pedras, paus, laranjas e outras coisas inomináveis que atiravam no juiz, nos bandeirinhas e nos jogadores do time adversário. Naquele dia nos pouparam e só recebemos mesmo uns tomates podres (eu tive que mudar o esquema traçado pelo Fausto, não dava para ficar aberto na ponta, os caras da torcida deles ali pertinho de mim, convenhamos!). Era nossa estreia no campeonato estadual, categoria Tampinhas. Ninguém, claro, botava fé naquele time, ainda mais que o campeonato contava com as divisões de base dos quatro grandes da capital: Vila Nova, Goiás, Goiânia e Atlético. Pois de jogo em jogo, de surpresa em surpresa, o Selefama foi se aproximando do verdadeiro sentido de seu nome iluminado, e quem não esperava ficou boquiaberto quando chegamos à final. O jogo era contra o bicho-papão: o Goiás. E era na Serrinha, o campo deles (onde os profissionais treinavam!). Precisávamos de um empate, e eles acharam que iríamos jogar na retranca. Ledo engano. Fomos direto para o ataque, os caras se assustaram, começaram a ficar nervosos, a errar passes, a entrar de sola, e a gente só ali, tum-tum-tum, tocando bola de pé em pé, numa boa, com classe, como convinha aos seletos. Final do jogo: 0 x 0. E o Selefama Esporte Clube levantava a taça de campeão goiano de Tampinhas, no inesquecível ano de 1973. Tomamos muito guaraná Antarctica e comemos muito frango assado no bar do Fausto naquele dia. E antes de acabar a farra, o Fausto pediu silêncio e anunciou que um repórter de O Popular (o maior jornal da cidade) tinha pedido a ele para fazer uma foto do time, uma foto oficial, com troféu e tudo. Tinha pensado em fazer lá no campo mesmo, mas a gente fez tanta zona depois do jogo, e ficou todo mundo tão sujo, e depois saímos todos tão misturados até o caminhão – que tinha levado o time (já uniformizado) até o estádio, jogadores e torcedores se espremendo na boleia –, foi tanta bagunça que ele preferiu marcar um outro dia e fazer uma foto mais limpinha. Tiramos a foto. Uma foto muito estranha, hoje sei. Todo mundo de pé, uma longa muralha de moleques extremamente bem-comportados e limpos (vestimos o uniforme só para a foto), o capitão segurando a taça. A foto era estranha, mas pelo menos era nossa chance de finalmente fazer jus ao nome do time e adentrar o reino da mídia! Dias depois lá estava a foto, no caderno de esportes de O Popular (e aí nem me atrevo a cansar o leitor falando de mais essa ironia, a do nome do jornal). Estávamos quase todos na foto. Para caber no jornal, cortaram um pedaço e alguns dos valorosos atletas do Selefama Esporte Clube ficaram de fora (dois deles, os das pontas, foram cortados ao meio) e do Fausto não se viu nem a sombra. Para os que ficaram, o destino reservava ainda um toque de classe, uma bola debaixo daspernas, um lençol com que nos mandaram de uma vez por todas ao nosso lugar. E esse toque foi o seguinte: na legenda da foto, não vinha o nosso nome. A Dias de chuva lguém já deve ter escrito um livro sobre os estádios de futebol no Brasil. Caso o livro exista, dele certamente devem constar algumas palavras sobre o Estádio Olímpico Pedro Ludovico, em Goiânia. Inaugurado nos anos 1960, com capacidade para dez mil torcedores e por muitos anos ostentando o título de maior e mais moderno do centro-oeste, o Olímpico foi palco de jogos memoráveis, como, por exemplo, um Goiás e Santos, em 1973, válido pelo Campeonato Brasileiro. E o camisa 10 do Santos era ele, Édson Arantes do Nascimento, o Pelé. Era a primeira vez que um time goiano disputava o Brasileiro, e o Olímpico se transformou em palco de festas homéricas de torcedores alucinados. E havia outra novidade: a preliminar era sempre disputada por times de crianças. Ora jogavam os Tampinhas (categoria até doze anos), ora os Dente de leite (até catorze). Qualquer garoto da cidade sonhava em jogar no Olímpico. Se o simples fato de ir ao estádio ver um jogo do Goiás no Brasileiro já era um programa e tanto, imagina jogar naquele campo imenso, de grama retinha, num domingo à tarde ou numa quarta de noite, sob a luz dos refletores. Na condição de ponta-direita do Selefama Esporte Clube, eu não era uma exceção. Perdia noites sem sono imaginando um dia pisar a grama do estádio. Quando nos sagramos campeões estaduais, o sonho começou a ganhar contorno de realidade. Foi se desenhando aos poucos, o sonho, e já quase podia ver a figura pronta quando nosso técnico, Fausto, nos disse num treino que havia sim essa hipótese. Alguém da Federação falara com ele, a gente soubesse esperar. Saber esperar não é uma coisa fácil, convenhamos, ainda mais se você tem onze anos de idade. De todo modo, para não ficar pensando demais no assunto, comecei a estudar feito maluco. Devorava os livros de geografia, história, português, fazia contas que nem a professora de matemática havia pedido, quase explodia a escola com as experiências de química. Ninguém entendia nada, achavam que ou eu era ótimo aluno ou doido varrido. Até que chegou o dia em que o Fausto reuniu o time antes de um treino e anunciou que tinha uma coisa importante a dizer. Ficamos todos sentados no meio do campo, ele de pé, andando de um lado para o outro, as mãos nas costas, esperando não sei o quê. E a gente ali, roendo unha. Então chegou um cara todo bem-vestido, de terno e tal. O Fausto apresentou o sujeito, um cartola qualquer da Federação. E o cartola falou um tempão, uma conversa chata de doer, sobre esporte, educação, comunistas (eu nem sabia o que era comunista), um saco! E no final disse que gostaria de explicar o verdadeiro sentido da frase que vinha na nossa carteirinha de atleta (plastificada, com foto e tudo): CRAQUE NA BOLA, CRAQUE NA ESCOLA. Depois disso o cara da Federação falou o que devia ter falado desde o início. A diretoria do Goiás tinha pedido uma revanche – amistosa – da final do campeonato daquele ano. E o jogo seria no Olímpico. Foi uma gritaria danada, lógico, aquelas crianças aparentemente bem- comportadas, aqueles anjinhos, de repente, aprontaram uma zorra, alguém deu um bico na bola, que voou longe, e a farra foi tanta que quase ninguém ouviu quando o sujeito disse que iríamos jogar na preliminar de Goiás e Santos. Quase ninguém ouviu, mas eu ouvi. Ouvi muito bem. Aquilo significava o seguinte: você não apenas vai jogar no Olímpico como vai ver um jogo do Pelé! Era um pouco demais, sinceramente. O desenho do sonho estava pronto e ainda vinha em papel colorido! Passei a semana inteira pensando no jogo. Foi uma péssima semana na escola (o cartola complicou meus pensamentos com aquela falação toda, e minha tática de estudar para esquecer o assunto não deu certo). Quando ia dormir, contava os dias que faltavam para chegar quarta-feira (o jogo seria de noite). Seis, cinco, quatro, três. O problema começou quando, na terça-feira de tarde, os meninos da vizinhança entraram no quintal da minha casa gritando: tem chuva! Aquelas eram palavras mágicas. E traziam verdades indiscutíveis: o tempo está nublado, daqui a pouco vai cair um toró, você precisa se dirigir (descalço, obviamente) ao campinho de terra da praça de esportes. Já vivi algumas décadas e acredito que haja poucos prazeres na vida comparáveis ao de jogar bola na chuva. No campinho, o ritual era o mesmo de sempre. A garotada chegava e ficava por ali, de bobeira, jogando conversa fora. Alguns, mais afoitos, ainda batiam uma bola. Mas a pelada só começava mesmo quando caíssem os primeiros pingos de chuva. Aí era festa. Lama, caneladas, tombos (uma vez caí, bati a nuca numa pedra e desmaiei), tudo entrava como ingrediente na receita da alegria. Cheguei em casa pensando num banho quente. Não podia facilitar, no dia seguinte jogaria no Olímpico, na preliminar do jogo do Pelé. Não contava, porém, com o bilhete que vi na porta de casa. “Fui ao armazém, volto já”, estava escrito, com a letra da minha mãe. O armazém ficava a uns quinze minutos da minha casa. Eu sabia onde era e poderia ter ido lá, para pegar a chave. Acontece que a chuva apertou muito, era uma tempestade aquilo, e achei melhor esperar ali mesmo. Enquanto minha mãe não chegava, fiquei encostado na parede do alpendre, todo encharcado, tiritando de frio. Tinha visto um programa na televisão sobre um tal de pensamento positivo e achei que era uma boa praticar naquela hora. Fiquei repetindo para mim mesmo, em voz alta: não fica gripado, não fica, não fica, não fica! Continuei repetindo, cada vez mais alto, até ser interrompido por uma interminável sessão de espirros, que pareciam rir da minha cara, dizendo: nãoadianta, nãoadianta, nãoadianta!!! E não adiantou mesmo. De noite tive febre, e meu pai teve que me levar ao médico. O diagnóstico do médico não foi um diagnóstico, foi um veredicto: nada de futebol! Na quinta-feira não teve treino, mas se tivesse eu não teria ido. Nem na sexta. Só voltei aos treinos do Selefama um bom tempo depois (porque quando estava quase bom voltei a jogar bola na chuva e tive princípio de pneumonia). No dia seguinte tive notícias do que aconteceu naquela noite. Ganhamos o jogo de 1 x 0, o time entrou em campo aplaudido pela torcida do Goiás, antes da partida principal o Pelé tirou foto com o nosso time, e a foto virou pôster no bar do Fausto. Coisas assim, desimportantes. Muito tempo já se passou, claro. Parafraseando Drummond, diria hoje que aquele jogo é apenas um retrato na parede. Mas como dói. O timaço de peladeiros na Alemanha. O autor é o segundo, agachado, da esquerda para a direita. Dawid está logo atrás, de pé. P Pelada em Berlim eladeiro é igual em qualquer lugar. Sempre achei isso. Minha teoria, no entanto, carecia de alguma comprovação científica, de algo que lhe conferisse status de verdade incontestável, e a tese pudesse então, quem sabe, ser publicada em livro e servir de tema para seminários internacionais com a presença de doutores em pelada chegados dos cinco continentes. Pois tal comprovação veio em Berlim, durante a Copa do Mundo de 2006. Eu estava lá como curador (na área de literatura) do projeto Copa da Cultura, do MinC, e fui chamado para integrar um time de escritores e músicos brasileiros, capitaneado pelo Chico Buarque, que jogaria contra um combinado de jornalistas alemães. O jogo estava marcado para a Arena da Adidas, uma réplica de estádio de futebol, com arquibancada e tudo. Na parte de baixo, um campo de futebol society, de grama sintética. Cheguei ao local da peleja levando a tiracolo uma bolsa com meu material: chuteiras, caneleiras, calção, meiões. Estava tudo certo. Um belíssimo dia de sol, o calor ameno, as arquibancadas cheias. Ao tentar entrar para os vestiários, no entanto, fui barrado por um segurança alemão, me dizendo que com aquela credencial eu teria acesso apenas às arquibancadas.Abri a bolsa, mostrei a ele o material e respondi que tinha vindo para jogar no time do Brasil. Ele arregalou os olhos: você, no time do Brasil? Não no Brasil, Brasil, tive que explicar, no time do Chico Buarque. Mesmo assim não pode entrar, ele retrucou, é preciso outra credencial, com essa só na arquibancada. Pensei em retrucar que não dava para jogar futebol na arquibancada, mas receei que seu senso de humor não fosse lá essas coisas. E de nada adiantaram meus apelos, nem os da produtora que havia me convidado e até um funcionário da embaixada brasileira ali presente foi acionado. Nada demovia o alemão, absoluto, irredutível, imutável como um cartão vermelho. Quando dei por mim, os dois times já estavam em campo e o juiz apitava, dando início à partida. Resignado, fui me sentar ao lado da minha turma. Na arquibancada. E eis que um amigo berlinense, Dawid Bartelt, da anistia internacional, que havia acompanhado tudo a distância (talvez prevendo que minha batalha seria em vão), se aproximou, colocou a mão no meu ombro e disse: liga não, sábado te levo pra bater uma bola com uns amigos meus. Pelada de verdade tem que ser aos sábados. Em dia de semana é meio sem graça e no domingo não tem nada a ver. Poderia, claro, elencar aqui todos os motivos que me levaram a essa conclusão. Se os tivesse. Não tenho motivos mas sei que é assim: pelada tem que ser no sábado. Por isso gostei quando o Dawid me fez o convite. Combinamos de nos encontrar numa estação de trem, num subúrbio de Berlim, onde ele me pegaria de carro. Às 15:35, ele me disse, e fingi não estranhar tamanha exatidão. Desci do trem exatamente às 15:32, me sentei num banco de madeira e fiquei esperando. Minutos depois chega ele, caminhando calmamente pela estação, de camisa branca arrumada dentro do enorme calção preto, na altura do umbigo, meiões brancos e chuteiras. Diante do meu olhar de espanto, tentou se explicar: é meu uniforme de vôlei. E completou: quer dizer, sem as chuteiras. Ah, bom, respondi. Chegamos ao local do evento. Ele estacionou o carro num pátio. Ao descer do carro, travei a porta do carona. Foi a vez de ele se vingar, abrindo um largo sorriso: ei, não estamos no Rio não. Um a um, concluí. Caminhamos até o portão, e lá estava o gramado, um imenso campo aberto, cercado de árvores. Olhei em volta e não demorei a entender que estávamos num campo de rugby! Isso não vai dar certo, pensei comigo. Perguntei ao meu amigo onde estavam as traves de futebol, quer dizer, se é que havia traves. Claro que tem, ele respondeu, ligeiramente ofendido, já estão chegando. Não me atrevi a perguntar exatamente o que ele queria dizer com aquilo: as traves chegando? Logo depois entraram pelo portão alguns dos outros peladeiros, um dos quais trazendo uma bolsa, e dentro dela quatro pedaços de madeira, longos e finos, pintados de azul com listras verdes. Eram elas que chegavam, as traves. Um deles fincou as traves no lugar, e começaram a dividir os times. Como em toda pelada que se preze, havia um número ímpar de jogadores: nove. Decidiram, sem discussão, como se fosse uma decisão óbvia, que o time em que eu jogasse teria um jogador a menos. Ninguém sabia se eu era craque ou perna de pau, contava apenas um fato: ser brasileiro. Confesso que me senti a própria pátria de chuteiras e roguei aos céus que não fizesse nenhuma grande besteira, tentando manter a boa imagem do país no exterior. Começou o jogo, e só então me dei conta de que o alemão fincara as traves na transversal do gramado, quer dizer, o campo ficara curto no comprimento e imenso na largura. A lateral direita era marcada por uma estradinha de terra, toda torta, e a esquerda se estendia ao infinito e além. Aquilo me comoveu, confesso. Era um convite ao improviso e gostei mais ainda dos alemães (talvez porque naquele momento, sem que ninguém me dissesse nada, tenha aprendido um pouco mais sobre eles). Depois de uma hora de correria alucinante a partida estava empatada, acho que 4 a 4, quando o goleiro deles rebateu a bola, que veio parar justo à minha frente. Matei no peito e quis fazer bonito: tentei encobrir o goleiro, com estilo. Bola fora. Virei o corpo e dei de cara com meu time me olhando com cara de quem comeu chucrute estragado. Por que não chutou com força?, perguntou Dawid, desolado. E não disse, mas deve ter pensado: brasileiros, bah! A certa altura do jogo minhas pernas simplesmente se recusavam a me obedecer, enquanto os caras, quarentões que nem eu, corriam sem parar, parece que disputando a final da Copa. Para minha sorte, a pelada foi interrompida por uma senhora, que entrou no gramado querendo saber quem trancara a bicicleta junto com a dela. Resolvido o problema, recomeça a partida, justo na hora em que soam as seis badaladas do sino da igreja ao lado do campo. Viajei. Voltei à minha infância e me vi não entre aqueles simpáticos grandalhões de rosto afogueado mas entre moleques brasileiros, pés descalços, jogando bola no campinho em frente à igreja, até a hora da ave-maria. Quando a pelada já estava acabando, ainda chegou um retardatário, de óculos e todo vestido de preto. E entrou no time deles, que já tinha um a mais! No final, a glória: ganhamos o jogo. Recolhi o que sobrara de mim depois de quase duas horas de futebol e fui saindo de campo. Alguns caras do outro time se aproximaram e me cumprimentaram (eu acho), dizendo palavras das quais só distinguia uma: Ronaldo. Ainda não sei se era elogio ou ironia, mas o certo é que tudo terminou com abraços calorosos, piadas que não entendi e uma foto para registrar o momento histórico. No caminho de volta para casa, já dentro do trem, me lembrei do que me dissera um outro amigo: há duas palavras para “peladeiro” em alemão. Uma delas é A mateurkicker. Literalmente: chutador (de bola) amador. Aqueles alemães sabiam o que era isso, e me presentearam com uma bela tarde, de amadores. H Futebol & Literatura á mais afinidades entre futebol e literatura do que sonha nossa vã filosofia. E se na época de Shakespeare os ingleses já tivessem inventado o futebol, ele certamente teria sido tema de um dos sonetos do poeta. Ou quem sabe teria feito parte de alguma de suas tragédias. Ou das comédias, tudo bem. Como o futebol, a literatura também é um jogo. E como jogo, tem suas regras. Você pode transgredir uma ou outra mas não vai poder transgredir todas. O escritor inventa dentro de certos limites, a começar pelos próprios limites da língua. Guimarães Rosa burlava algumas regras da gramática oficial, mas o que ele escrevia, claro, era português. Na verdade, ele criava uma espécie de gramática própria dentro da língua portuguesa, quer dizer, inventava um jogo – com as regras que ele mesmo foi criando e o leitor aceitou. É importante isso, leitor e escritor precisam entrar num acordo sobre as regras. Quer um exemplo? Você está lendo um romance policial, buscando descobrir por sua conta quem é o assassino, e, de repente, no final do livro, o narrador revela que é Fulano, que não tinha nada a ver com a história. O assassino não pode vir assim, do nada, não pode cair de paraquedas no final do romance. Se isso acontece, o leitor vai ficar uma fera. Por quê? Porque o autor trapaceou. Leitor não perdoa trapaça de autor, pode ter certeza. E há algo que liga as regras do futebol às regras da literatura. São ambas da mesma natureza, digamos assim. São feitas para permitir a entrada do imponderável. Pense na regra do impedimento. Ela é aparentemente simples e diz, em outras palavras, o seguinte: quando a bola é lançada, o jogador que a recebe tem que ter, entre ele e a linha de fundo, pelo menos dois jogadores adversários. Depois começam as complicações. Se a bola vem de um arremesso lateral, não tem impedimento, se o jogador que recebe o passe está atrás da linha da bola, também não tem, e por aí vai. E o mais importante: o impedimento deve ser identificado exatamente na hora em que o jogador dá o passe. Em alguns casos, é humanamenteimpossível o bandeirinha ver isso. É tudo muito rápido e só mesmo o olho da câmera de televisão consegue detectar o impedimento. É uma regra feita para criar o inesperado. Tudo pode acontecer nessa hora, inclusive um gol mal anulado, que represente a perda do título do campeonato. Outra coisa: a maioria das regras do futebol depende de interpretação. É a leitura feita pelo árbitro que determina se um zagueiro atrasou intencionalmente ou não a bola para o goleiro (e aí ele não pode pegá-la com as mãos), ou se o atacante colocou a mão na bola de propósito e fez o gol da vitória, ou se aquele carrinho merecia cartão vermelho, amarelo ou só uma advertência verbal e passar bem. Resumindo, no futebol, como na literatura, tudo depende de como se lê. No futebol e na literatura as regras funcionam apenas para tornar possível a chegada do inusitado. Um bom romance é aquele que você sabe como começa, mas não sabe como vai terminar. Se já sabe, nem vale a pena ler. Um bom romance é uma caixinha de surpresas. Uma partida de futebol é a mesma coisa, com a vantagem, do futebol, de que mesmo uma partida ruim é imprevisível, ao contrário de um romance. E o tal do montinho artilheiro? Tentaram mandá-lo mais cedo para o chuveiro criando gramados perfeitos, que aparentemente evitam um quique inesperado da bola e o engano, fatal, do goleiro. Mas mesmo em campo bom não há uma ou outra falha, ainda mais se estiver chovendo? Montinho artilheiro é pura literatura. Quando algo inexplicável acontecia num jogo, Nelson Rodrigues dizia tratar-se de intervenção de uma entidade chamada Sobrenatural de Almeida. Se uma bola indefensável de repente morria nas mãos do goleiro, tinha sido por obra e arte do Sobrenatural de Almeida. Se um chute completamente torto de uma hora para outra mudava de trajetória e a bola ia se aninhar no fundo das redes, o goleador era ele, o Sobrenatural de Almeida. O montinho artilheiro não precisa de tanto. Basta estar ali no campo mesmo, sem ajuda do além. E, ainda hoje, ele continua aprontando das suas, ajudando a criar a fantasia, rindo de quem acredita ser possível abolir as artimanhas do acaso. Na Copa dos Estados Unidos, uma emissora de televisão convidou um americano para ver, pela primeira vez na vida, uma partida daquele estranho esporte. O jogo terminou 0 x 0 e esta foi a primeira surpresa do inocente espectador: como pode um jogo de noventa minutos terminar sem pontos para as duas equipes? Como pode um jogo terminar sem vencedor? Ele certamente estava acostumado com o basquete, o futebol americano, o beisebol, onde isso jamais aconteceria. E quando perguntado, afinal, o que tinha achado da partida, respondeu: parece um jogo de xadrez. Ele estava certo, com relação àquela partida. Às vezes o futebol pode ser isso mesmo, um jogo de xadrez. Às vezes não, é uma rodada de pôquer, uma partida de damas, um jogo da velha. E sendo tudo isso, é mais do que isso, justamente devido ao imponderável – venerando senhor a sobrevoar as partidas, dando apenas ao final o seu implacável veredicto. Agora, os poetas me expliquem: o que era um drible do Garrincha? Quando o mané pegava a bola e ficava estático, na frente do marcador, todo mundo sabia o que iria acontecer. Até a mãe do juiz, se estivesse no estádio, saberia. E ainda assim o drible acontecia. Exatamente como previsto. E o impressionante é que algo naquele drible soava como absolutamente inesperado, como uma grande novidade, um lance jamais visto. Como podia um drible ser tão inédito e tão familiar? E como aquele anjo torto, gauche de chuteiras, conseguia tal façanha com suas pernas tortas (as duas para o mesmo lado)? Garrincha dominava – como Bandeira, como Drummond – a arte da simplicidade. Sabia que do simples podem brotar o sonho e a alegria. Romário, um grande frasista, disse certa vez: Pelé, calado, é um poeta. A frase obviamente não tinha nada de elogiosa, era um revide à afirmação de Pelé de que Romário devia se aposentar. Como ocorre, porém, com um poema, o alcance do que se diz pode ser bem mais amplo do que imagina seu autor. Romário, sem querer, acertou na mosca. Diria que acertou noutra mosca. Pelé falava e fala, fora de campo, coisas questionáveis, mas dentro dele era um poeta. Poeta não de palavras mas de passes, dribles, gols antológicos. E caso o leitor ainda não esteja convencido de que futebol e literatura são pouco mais do que bons amigos, deixo-lhe uma pergunta final, para reflexão profunda, na solidão do travesseiro: como definir um passe de letra? S Janela ou corredor? onho a gente não escolhe. Você está andando à toa na rua, distraído, pensando na vida, e de repente acontece: um sonho vem e atropela você. Aí pronto, aquilo que entrou na sua cabeça sem pedir licença não vai sair tão cedo, nem você pedindo com jeitinho. Descobri isso na escola, quando tinha catorze anos. A professora de redação tinha pedido que escrevêssemos sobre o tema “Meu grande sonho”. Naquela época não poderia supor que se tratasse de tema tão pouco original, me cabia apenas dar conta da tarefa, sem maiores divagações. Anos mais tarde, em tempos de vacas magras e obrigado a corrigir redações para um colégio particular, me deparei com uma montanha delas cujo tema era justamente aquele da minha infância. E no meio daquelas linhas tortas surgiu uma pérola. Um garoto preencheu o espaço vazio da folha de papel com apenas uma frase: “Meu grande sonho é poder realizá-lo.” A redação era só isso, sem mais, apenas esta maravilha do nonsense, poesia em estado bruto. Naquele dia distante, porém, sentado diante do caderno, não me veio frase tão inspirada. Peguei o lápis disposto a simplesmente escrever a verdade. Até então estava claríssimo para mim qual era meu grande sonho: ser jogador profissional de futebol. Minha breve carreira (tinha começado a jogar em time com onze anos) contava já com um título de campeão estadual, categoria Tampinha, e isso, de alguma forma, servia de lastro ao sonho, impedindo que ele voasse sem destino até sumir nas nuvens, como tantos outros. Além disso, uma tia coruja que sempre assistia aos meus jogos dizia que eu tinha futuro. Obviamente, não me passava pela cabeça que aquela podia ser uma opinião bem pouco confiável, a começar pelo fato de que ela entendia tanto de futebol quanto eu de física quântica. De todo modo, o sonho permanecia ali, alimentado a pão e água mas pelo menos sem morrer de fome. Levantei o lápis e quando ia escrever a primeira letra me deu um branco. O braço permaneceu levemente levantado, a mão no ar, segurando o lápis, como se de repente eu estivesse num filme, e alguém congelasse a imagem. A professora se aproximou e perguntou o que estava acontecendo. Nada, estou pensando, respondi. Ela deu um sorriso de aprovação, como se dissesse: bom menino, pensando antes para não escrever besteira. Mas não era isso o que havia acontecido. Eu simplesmente fora transformado em estátua pela chegada de um sonho novo, que lançou de uma hora para outra seu raio paralisante sobre mim. Aquilo deve ter durado segundos mas na minha memória consta que levou séculos. Quando finalmente minha mão desceu sobre o papel, o que saiu foi: “Meu grande sonho é ser escritor.” De onde tinha vindo tamanha maluquice? Hoje penso que talvez do meu pai, um desses típicos contadores de histórias que raramente se vê por aí. Meu pai emendando um caso no outro, e todo mundo em volta ouvindo com atenção, sem desgrudar os olhos e os ouvidos da figura dele. Ou podia ser também da minha mãe, dizendo que minha letra era muito bonita e elogiando as histórias que eu escrevia. Na verdade, e ela sabia disso, o que eu fazia era chegar em casa e reescrever no caderno as histórias que a professora contava na escola. Depois meu pai, que na época era professor de datilografia, batia tudo à máquina, minha mãe costurava as folhas com agulha e linha e então criávamos a capa com recortes, colagens etc. Pode ser que fosse isso, não sei. O que sei é quenaquele dia um segundo sonho resolveu medir forças com o primeiro, e minha cabeça virou um ringue, com um socando de lá, outro de cá, e eu ali no meio, só recebendo bordoada. Até os meus dezoito anos, os dois sonhos foram obrigados a dividir espaço. Num dia em que eu jogava bem, o sonho de ser jogador ocupava a janela naquele ônibus imaginário. Se a professora de redação me dava dez com estrelinha – a estrelinha era um adesivo que ela comprava não sei onde (nunca ninguém soube) –, o sonho de ser ponta-direita num time grande era empurrado para o corredor pelo sonho de escrever um daqueles livrões enormes que eu via na sala da diretora. E houve vezes em que os dois iam tão mal das pernas que dava empate. Um empate sofrível, em que os dois perdiam. Por exemplo, no dia em que errei um gol feito, aos 44 do segundo tempo, na final de um torneio em Brasília. A bola veio cruzada da esquerda, rasteira, passou por todo mundo, o zagueiro furou, o goleiro deixou passar, e a bola sobrou limpinha na minha frente, quase na linha do gol. Era só tocar e correr pro abraço. Mas não sei o que houve, me desconcentrei e quando dei por mim a bola já tinha passado e saía pela linha de fundo. Ouvir todo mundo me xingando nem foi o pior. O pior foi escutar o massagista dizer para o técnico, no vestiário (ele pensou que eu não estava ouvindo mas estava sim, ouvi tudo debaixo do chuveiro): esse menino até que leva jeito, mas de vez em quando apaga, some no jogo, parece que está no mundo da lua. E arrematou: parece poeta. Aquilo doeu, sinceramente. O que o nosso massagista estava dizendo, em outras palavras, era o seguinte: para jogador, esse aí não serve. Mas se ele disse que eu parecia poeta, era de se esperar que nessa hora o sonho de ser escritor se achasse o cara. Poderia ter acontecido assim, claro, se logo no dia seguinte, bem cedo, eu não chegasse na escola e recebesse das mãos da diretora o resultado do meu teste vocacional. Tinham contratado uma psicóloga para fazer esse teste com a gente, era meio moda na época. A moça tinha feito várias perguntas para cada um de nós, além de ter pedido alguns desenhos: uma casa, uma árvore, uma pessoa da família, coisas assim. Li o resultado do meu teste e aquela foi uma experiência que a psicóloga, se estivesse ao meu lado na hora, chamaria de traumática. Não me lembro de tudo que havia naqueles papéis. Para ser sincero, só me lembro mesmo, com certeza, de uma frase, colocada na parte em que a psicóloga anotara o que não combinava com nossa personalidade, em termos de vocação profissional. E a frase dizia: desaconselhamos qualquer atividade ligada a redação. Isso não é exatamente o que um aspirante a escritor desejaria ouvir. Devo ter escrito algo muito horrível no meu teste, devo ter cometido erros de português gigantescos, homéricos, imperdoáveis! Nada de redação, meu filho, vai tentar outra coisa na vida, era o que ela estava querendo dizer. E nessa peleja quase interminável meus dois sonhos foram se batendo todos os dias, até que chegou o momento do apito final. Quando completei dezoito anos, ou me profissionalizava como jogador – aquela era a idade limite da categoria Juvenil, a última das categorias de base daquele tempo – ou pendurava as chuteiras. Por outro lado, precisava escolher o que iria estudar na faculdade, e onde. Se em Goiânia, onde morava, ou num centro maior. Foi então que recebi um convite do Guarani, de Campinas. Dois anos antes, em 1978, o Guarani tinha sido campeão brasileiro. O time estava em alta e resolveu investir em garotos de fora do eixo Rio-São Paulo. Era um convite para jogar no profissional! Poucos dias depois, recebi um telefonema dizendo que eu havia vencido um concurso importante, do governo do estado de Goiás. Um concurso de contos. Precisava decidir e precisava ser rápido. Venceu o sonho de ser escritor. Fiz vestibular para Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Me mudei para lá no ano seguinte. Fui para a cidade grande sem conhecer ninguém, sem parentes nem amigos, apenas com a cara, a coragem e o sonho de ser escritor viajando contente na janela do ônibus. Mais de uma vez me arrependi. Poderia ter sido um jogador de futebol medíocre, poderia ter quebrado a perna e abandonado a carreira, poderia ter sido marginalizado por uma panelinha qualquer de time grande. Tudo isso poderia ter acontecido. Mas também poderia ter dado certo. A verdade é que, qualquer que tivesse sido a decisão, iria sempre ficar faltando um pedaço. Um dos sonhos viria sempre cobrar sua parte. Fazer o quê? Como diria João Saldanha, dando de ombros: vida que segue. Esporte Clube Jaó, 1980, no estádio Serra Dourada. O autor é o primeiro, agachado, da esquerda para a direita. P O último jogo ara os jovens atletas do Esporte Clube Jaó, de Goiânia, 1980 foi um ano marcante. Disputávamos o campeonato estadual, categoria Juvenil, e naquele ano a maior parte dos jogos foi realizada no moderníssimo Serra Dourada, na preliminar das partidas dos profissionais. Até então, o máximo de glória que cada um de nós havia alcançado fora ter jogado no Olímpico. Agora, o Olímpico se destinava apenas a jogos da segunda divisão, e o Serra Dourada assumia o lugar do velho estádio na fantasia da garotada. O último jogo do campeonato foi contra o todo-poderoso Goiás, na preliminar de um clássico: Goiás e Vila Nova. Não aspirávamos mais ao título. Uma vitória, no entanto, nos garantiria um honroso segundo lugar (o campeonato era por pontos corridos). Ainda guardo a foto daquele domingo. Impressionante como todo mundo do nosso time saía nas fotos com cara de bravo. Quem visse nossas fotos acharia que se tratava de gente muito séria, disposta a dar o sangue pela vitória, mal sabendo que éramos tão moleques que disputávamos torneio de golzinho na sala de aquecimento antes do jogo, para desespero do nosso preparador físico. Daquela vez não foi diferente. Apenas nosso centroavante, o Cacau, aparece sorrindo na foto, talvez antevendo as alegrias que teria nos anos seguintes, jogando pelos profissionais do Goiás, do Fluminense e do Corinthians. Ninguém nos obrigava a fazer cara de mau, mas fazíamos assim mesmo e sem combinar antes. Acho que queríamos imitar time profissional, aqueles jogadores todos compenetrados, encarando a partida como uma batalha de vida ou morte. Meu pai, que não gostava de futebol, mas mesmo assim me dava força, naquela tarde estava no estádio. Antes de começar o jogo olhei para a arquibancada, vendo aquele monte de pontinhos coloridos e tentando adivinhar qual deles seria meu pai. Pouco importava, na verdade, saber onde ele estava, o importante era não fazer feio. Além de tudo, aquele era o meu último jogo. No ano seguinte, estaria morando no Rio de Janeiro, com minhas chuteiras dormindo empoeiradas num canto qualquer do sótão da casa dos meus pais, devidamente aposentadas. Logo no início, eles marcaram um gol. Sabíamos que o jogo não seria nada fácil, mas um gol assim, antes de cinco minutos, é para deixar qualquer um à beira de um ataque de nervos. Aos poucos, porém, nosso time foi se recompondo, e o jogo começou a ficar equilibrado. No final do primeiro tempo, empatamos, numa cobrança de falta. Na volta do vestiário, saindo do túnel, levei um susto. De uma hora pra outra o estádio tinha ficado simplesmente lotado! Certamente não acontecera assim, de repente, o mais provável é que eu não tenha reparado que o público fora aumentando aos poucos. Estivera concentrado na partida, claro. Pode ter sido isso, certo, mas a impressão era a de que todo mundo tinha resolvido chegar na mesma hora, só pra assustar a gente. Agora sim, pensei, nunca vou saber onde meu pai está. O segundo tempo foi de arrepiar porque a torcida do Goiás começou a incentivar o time deles e a do Vila Nova, em represália, passou a torcer por nós. Eram nada mais nada menos que as duas maiores torcidas do estado e parecia que estavam todos ali, que nenhum torcedor tinha ficadoem casa. Poucas vezes na vida senti um frio na barriga como o daquela volta para o segundo tempo. Se fizesse besteira, não era só do meu pai que iria ter vergonha. O jogo seguiu disputado e, por volta dos 35 minutos, aconteceu. Eu jogava de ponta-direita, bem aberto, mas num lance resolvi correr pelo meio, trocando de posição com o Cacau (ensaiávamos essa jogada nos treinos). Alguém lançou a bola em profundidade, e lá fui eu. A bola estava mais para o lateral esquerdo deles, que me acompanhara de perto, e percebi que ele chegaria primeiro. Então dei uma puxada rápida no braço dele e com o bico da chuteira toquei na bola. Ele ficou pra trás, corri com a bola nos pés e fiquei cara a cara com o goleiro. Nessas horas o goleiro cresce enormemente, vira um gigante. Quando o goleiro estava já monstruoso de tão grande, chutei rasteiro, no canto. Gol. Na hora foi uma festa, claro. A parte ruim veio depois. O lugar do campo em que eu jogava ficava perto da torcida do Goiás que estava na geral (ainda existia geral naquela época). De dentro do campo dava pra ouvir tudo o que eles gritavam. O juiz não tinha visto a minha falta, mas aquele povo todo ali do lado viu e começou a me xingar de coisas impublicáveis. E um bando deles desandou a gritar para o lateral: pega ele! Pega o cara! O cara, no caso, era eu. O lateral se aproximou de mim e disse baixinho, numa voz tristíssima: não precisava disso. Olhei bem pra ele. Era franzino, tinha os olhos fundos e a pele meio amarelada. O Goiás costumava trazer uns garotos do interior pra morar na concentração do clube, no bairro da Serrinha. Os meninos comiam lá, recebiam tratamento dentário, tinham médico etc. Quando estavam na idade de assinar contrato, subiam para o profissional ou eram vendidos para outro time. Alguns se davam bem, mas a maioria acabava voltando para a cidade de onde viera, com uma mão na frente e outra atrás. Eu tinha ouvido dizer que o lugar era meio precário, e a alimentação não era grandes coisas. Você mora na Serrinha?, perguntei. O lateral fez que sim. Quando percebi, o jogo estava pegando fogo, e nós dois conversando na ponta do campo. A galera da geral continuava gritando, pedindo a minha cabeça, e o lateral na minha sombra. Percebi logo que ele estava com medo. O coitado precisava tomar uma atitude, a torcida exigia uma reação, um companheiro de time fez um gesto pra ele me descer a botina, mas havia o problema de eu ser mais forte do que ele, não precisava comer a comida da Serrinha, almoçava na minha casa mesmo. E agora, o que que eu faço?, ele me perguntou, apontando com os olhos os torcedores da geral. Aquela pergunta me pegou em cheio. Tudo estava acontecendo por minha causa, afinal de contas. Mas tinha aprendido que em futebol não tem disso não, futebol é pra homem – não vê os profissionais nas fotos, tudo com cara de quem come pimenta de sobremesa? –, se fiz a falta, melhor ainda, valeu a malandragem, e lateral existe é pra isso mesmo, não é não? Enquanto esses pensamentos todos rondavam minha cabeça, ele me perguntou, à queima-roupa: você deixa eu te dar uma porrada? Olhei pra ele e vi que não estava brincando, o rosto estava sério. Mas de repente ele sorriu. Era um meio sorriso, de canto de lábios, parecia que estava pedindo a um amigo pra dar uma volta na sua bicicleta. Definitivamente, aquele lateral não combinava com nenhum que eu conhecera até então. Tudo bem, respondi. E completei: mas só finge, não bate de verdade não. Ele concordou. Logo depois alguém tocou a bola pra mim. Eu fiz que tentava um drible e trombei com o lateral, ele esticou a perna como se fosse me derrubar e dei um salto espetacular, caindo no chão com a mão no joelho e gritando de dor. Os caras da geral foram ao delírio. E dá-lhe palavrão nos meus ouvidos. Um deles me atirou uma laranja que passou raspando. Logo chegou a maca. Nem contava com aquilo, com a realização daquele desejo antigo: sair de campo de maca. Enquanto me levavam, eu realmente me sentia um profissional, se até sair de campo na maca eu saía! Voltei para o jogo e minutos depois o juiz apitou o final. Dois a um para a gente. Na geral, ninguém entendeu o abraço que o lateral veio me dar depois da partida, como se fôssemos velhos amigos. Mais tarde meu pai foi se encontrar comigo no vestiário, todo feliz. Chegou até a me chamar de artilheiro. Meu pai nunca soube da verdadeira história, do que realmente aconteceu dentro de campo naquele dia. Quer dizer, agora sabe. Q Canal 100 uem gosta de futebol e já era grandinho nos anos 1980 há de se lembrar do Canal 100. Quando as luzes da sala de cinema se apagavam, a tela se enchia de bolas coloridas de variados tamanhos, explodindo como se fossem fogos de artifício, e se ouvia em alto e bom som a musiquinha inesquecível: pananan nanammm... Nesse momento abriam-se, de par em par, as janelas do sonho. E por elas atravessávamos de corpo e alma, entregues à grandiosidade das imagens, à magia da câmera lenta, ao encanto de uma voz potente e familiar que narrava cada lance da partida como se fosse uma decisão de Copa do Mundo. Criado no final da década de 1950 por Carlos Niemeyer, o Canal 100 surgia como um telejornal provocador. Não era como os pequenos números da televisão: 2, 3, 5, 6, 7. Era o Canal 100 ora essa, faça-me o favor! Exibido antes das sessões de cinema, e renovado a cada semana, o telejornal abordava assuntos do momento, mas seu forte mesmo eram as matérias sobre futebol. Às vezes, o filme em si era fraquinho, e saíamos do cinema com aquela sensação de tempo perdido. Quer dizer, quase perdido. Por pior que fosse o filme, tínhamos assistido antes ao Canal 100 e isso já fazia valer o ingresso. Em artigo para o site Cinemascópio, Kleber Mendonça Filho lembra bem o que era aquilo: “O futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas impossíveis de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um futebol em 35 mm, gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na plateia geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores escarravam elegantemente ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em direção à rede.” Era isso. E era mais do que isso. Quando assistia às sessões do telejornal, ficava em mim a vaga intuição de que aquilo não era apenas efeito da arte de um grupo de cinegrafistas de primeira linha, com destaque para Francisco Torturra. Havia algo mais, que não se podia explicar pela técnica do cinema. Quem sabe fosse alguma coisa no campo da intuição, do espírito, talvez uma fagulha divina que se insinuava em algum lugar indecidível entre a câmera, a arquibancada, o gramado e, se metendo em meio aos torcedores, jogadores, juiz, bandeirinhas, gandulas, repórteres, encontrava o espaço exato para o indizível, para o que não se pode pegar com a mão. Minha intuição ganhou força quando um cinema do Rio, o Estação Botafogo, resolveu apresentar sessões mais longas do telejornal. Não seriam sessões que antecedessem as de um filme qualquer, nada disso, o Canal 100 deixaria de ser o jogo preliminar e passaria a ser ele mesmo o grande clássico. Seriam sessões editadas, reunindo séries de apresentações de modo a compor cada uma mais ou menos o tempo de duração de um longa-metragem. Não me lembro bem de quando se deu o festival do Estação, mas me lembro do que pensei quando soube da notícia: não vai dar certo. O Canal 100 funcionava justamente porque era curto e porque antecedia o longa-metragem. Colocado assim, no meio do palco, sob a luz dos holofotes, o coitado corria o risco de dar vexame, de gaguejar na frente da plateia, de esquecer a fala e ser vaiado ostensivamente por espectadores raivosos. Confesso, fiquei com pena do Canal 100. Nutria por ele um carinho fraternal e me doeu o coração saber que estaria exposto ao ridículo. Claro que não poderia me furtar ao compromisso de assistir. Afinal, era quase um irmão que estava lá,na berlinda. Escolhi uma sessão que apresentava um histórico dos clássicos entre Flamengo e Botafogo. Botafoguense de carteirinha, achei que não deveria ir sozinho. Seria fundamental convidar um flamenguista, já que o programa, se tinha a ver com futebol, exigia uma cerveja depois, acompanhada de apaixonado embate. Convidei meu amigo Miguel Falbo, músico de primeira e jogador de segunda, que apesar de tudo se dizia grande entendedor do esporte bretão. Quando entramos na sala de cinema, o que vi foi absolutamente insólito. Todos os lugares praticamente tomados (tivemos que ficar espremidos num cantinho lá na frente) por alucinados torcedores, alguns portando enormes bandeiras, a maioria com latas de cerveja ou refrigerante nas mãos. Ao meu lado, um senhor estava sentado sobre uma almofada rubro-negra que trouxera de casa e tinha um radinho de pilha colado no ouvido. A almofada até dava para entender, fora um capricho, mas radinho de pilha?! Como diria o velho Simão Bacamarte, saído da pena genial de Machado de Assis: “insânia, insânia, e só insânia”. Eram na maioria homens os espectadores, mas havia mulheres também. E muitos usando as camisas dos times (não entendi a presença de um moço branco, magro, pálido, com a camisa do Vasco – talvez tivesse errado de sessão ou talvez fosse um poeta romântico em busca de emoções fortes). Boa parte da plateia fumava desbragadamente, o que tornava ainda mais nebuloso o cenário, de onde surgiriam dali a pouco as tão esperadas imagens na tela. Aquilo não era uma sala de cinema, era uma mistura de bar e Maracanã em dia de decisão. Começa a sessão. Bolinhas coloridas pipocando na tela, música: pananan nanammm... Delírio da galera, bandeiras desfraldadas, uivos. Insânia, insânia, e só insânia. Diante de tudo isso, desse clima de paixão prestes a explodir, não era de se estranhar que, a cada cena passada na tela, os torcedores reagissem como se estivessem assistindo ao jogo ao vivo! Quando Paulo César Caju deu um toque de classe, a turba alvinegra gritou em coro: PC! PC! PC! Quando Zico bateu uma falta que passou arrancando tinta do travessão, foi a vez de os flamenguistas soltarem um urro vindo do fundo d’alma: uhhh!!! Um gol do Gérson quase fez o cinema vir abaixo. Um gol, aliás, vindo de que lado fosse, era seguido de verdadeira apoteose. Todos sabiam de cor e salteado o resultado dos jogos. Para os que não se lembrassem, um cartaz na porta do cinema ainda ajudava, anunciando os jogos (com placar e tudo) que seriam exibidos naquele horário. A maioria já havia assistido aos lances – boa parte mais de uma vez até –, e, no entanto, todos torciam como se fora a primeira vez. Na condição de quem estava ali para analisar o fenômeno e quem sabe utilizá-lo como matéria-prima para um conto futuro, resistia o quanto podia ao frenesi coletivo. Mas quando olhei pro lado e ouvi o Miguel mandando o Mozer (do Flamengo) ir tomar naquele lugar, percebi que o caso estava perdido. Não havia volta. Aquelas pessoas reunidas na sala de cinema eram a nata da nata do manicômio, e o grande louco, na verdade, era eu. Eu era o próprio Bacamarte, era o estrangeiro, o estranho no ninho e só havia um jeito de salvar minha alma. E este jeito tomou forma quando surgiu a ocasião: um zagueiro do Flamengo deu um carrinho por trás, uma entrada criminosa no centroavante do Botafogo, e o juiz nem falta marcou. Então me levantei, convicto, e do alto da minha doida sanidade gritei a plenos pulmões: ladrão! Pronto, estava decretada enfim minha entrada no país do delírio. Um garoto passou vendendo cerveja numa caixa de isopor e isso, claro, me pareceu perfeitamente normal, cheguei a perguntar onde é que ele estava que não havia chegado antes. Comprei duas latinhas, dei uma para o meu amigo. Quando houve um pequeno intervalo na projeção, brindamos como se nossas latinhas fossem grandes canecas de vinho tinto nas mãos de valorosos guerreiros vikings. E enquanto bebíamos olhávamos desconfiados um para o outro, na breve trégua que antecedia o segundo tempo. N Como se diz ão sei se você já parou para pensar num tema profundíssimo, que mereceria, sem dúvida, páginas e páginas de estudo por parte de sábios pesquisadores país afora: as palavras e expressões utilizadas no futebol. Há dentre elas uma em especial, que me encantou desde a primeira vez que a ouvi: ao apagar das luzes. Fulano fez um gol ao apagar das luzes. O atacante que aos 44 minutos do segundo tempo faz o gol da vitória não é apenas o herói do seu time. Tampouco o estádio é um mero espaço para o delírio coletivo numa noite qualquer. Nada disso. O estádio agora é um teatro monumental, o artilheiro é um tenor e seu gol é nada mais nada menos do que um último dó de peito antes que as cortinas se fechem e novamente se abram para que o artista, comovido, receba os aplausos extasiados da plateia, ao apagar das luzes. E se o gol foi bonito será chamado de gol de placa. Ou quem sabe gol antológico. Se foi difícil, dirão que foi um gol impossível. E se foi muito, mas muito difícil, algo que acontece de mil em mil anos, dirão os entendedores: aquele foi um gol espírita. Se, no entanto, bastou ao atacante tocar a bola para o gol vazio, haverá algum invejoso dizendo: esse até minha sogra fazia. Há também expressões exatas como um teorema. Nelson Rodrigues era mestre no assunto. Se um torcedor, por exemplo, se sentia indignado com algum erro do árbitro, Nelson não dizia que o sujeito estava danado da vida ou arrancando os cabelos ou carregado de fúria. Não, estas seriam palavras usadas pelos reles mortais. Nelson dizia: o pobre coitado subiu pelas paredes como lagartixa profissional. Dizem também que é dele uma outra preciosidade. É um monumento à exatidão o modo como foi definido aquele tipo de jogador franzino que corre pelo campo todo, corre sem parar durante noventa minutos, corre às vezes mais do que a bola (nesses momentos a bola até parece um detalhe). Eis a definição: coelhinho de desenho animado. As palavras e expressões ligadas à bola de futebol mereceriam um capítulo à parte. Você que se considera uma sumidade no assunto responda: quantos sinônimos para bola conhece? No seu clássico Dicionário de futebol, Haroldo Maranhão apresenta trinta e oito. A bola pode ser tratada de forma carinhosa, quase infantil: gorduchinha, boneca, criança, menina, bichinha, neném. Ou de modo passional: infiel, caprichosa, enganosa, demônia. Pode ser definida por sua forma ou matéria: redonda, esfera, pneu, número cinco, caroço, castanha, pelota. Ou por sua natureza feminina: nega, maricota, leonor, maria, ela, guiomar, margarida, moça. Isso, digamos, no seu estado de inércia. Em movimento, durante uma partida de futebol, ela assume outras identidades. Se é o craque que a ela se dirige, a bola é chamada de você, de meu bem. Se, no entanto, quem busca o diálogo não tem com ela a mínima intimidade, se é um perna de pau que não deixa dúvidas, a bola é no mínimo Vossa Excelência. E se um de seus vários nomes é “perseguida”, às vezes a história se inverte, e a bola passa a ser a perseguidora. É então que se diz que Fulano está apanhando da bola. É preciso, nesses casos, que alguém com mais habilidade trate de arredondar a bola, o que parece absurdo mas não é, se você imaginar que alguns jogam uma bola bem quadradinha. Há situações em que a bola assume nomes absolutamente delirantes para quem não sabe do que se trata, ou até para quem sabe e para um pouco para pensar no que está dizendo. Senão vejamos: bola com açúcar, bola no fogo, bola corrida, espirrada, limpa, pingada, trabalhada, venenosa (esta então você deve evitar sempre que quiser comer a bola). Agora imagine que você está em campo, em pleno jogo, e vai bater uma falta na entrada da grande área do time adversário. Um companheiro de time se aproxima, coloca a mão no seu ombro e sussurra no seu ouvido: chuta na orelha dela. Se você está lá nessa hora e se lhe deixaram bater a falta, é porque entendeo que o outro disse e portanto não vai dar o vexame de perguntar: na orelha de quem? Se, ao bater a falta, ela tocar na trave, alguém de fora poderá dizer, levando as mãos à cabeça: caramba, essa beijou o poste! Se a bola que você chutou tiver passado bem perto do gol antes de sair pela linha de fundo, é bem provável que se ouça: rapaz, essa tirou tinta da trave! E apesar de tudo isso ao final do jogo as traves estarão lá, intactas, sem falha de tinta ou marca de beijo. Agora, se você fez o gol e deu a vitória ao seu time, é quase certo que vai rolar um bicho. Se você jogasse nos tempos de antigamente, quando os cartolas da época tiveram essa ideia (inspirados no jogo do bicho), o dono do seu time poderia lhe dar, pelo gol e pela vitória, um cachorro (5 mil-réis), um coelho (10 mil-réis), um galo (50 mil-réis) ou quem sabe até uma vaca (100 mil-réis), se o jogo fosse decisão de campeonato. Numa crônica publicada no Jornal do Brasil em 1995, Sérgio Noronha conta que Pelé dormia antes dos jogos. Dormia na concentração, no vestiário, no ônibus, onde fosse. E se algum jogador do time fizesse barulho, havia sempre outro a dar a bronca: não acorda o bicho. O bicho, no caso, não era exatamente o Pelé, mas a grana que ele significava com seus gols. Se o goleiro sobe bonito e faz uma defesa sensacional, você pode ouvir o narrador do jogo, na televisão, dizer que o goleirão foi buscar a bola no segundo andar. Se o zagueiro brutamontes dá uma entrada violenta no centroavante, alguém vai dizer que o cara abriu a caixa de ferramentas. Se a bola entra na grande área, diz-se que ela está na zona do agrião (esta, confesso que nunca entendi). E se você nunca ouviu falar dessas expressões, não se preocupe. Isso não é nem de longe motivo para você se achar um bola murcha. São expressões cunhadas em épocas diversas, algumas ainda valem até hoje, outras ficaram paradas no tempo. Há em todas algo da necessidade que o apaixonado tem de dar nome às coisas que giram em torno da sua paixão. De certa forma, dar um nome é uma tentativa de entender, de desenhar o contorno do invisível, do intocável. E antes que a crônica descambe para a filosofia, embolando o meio de campo, é bom parar por aqui, ao apagar as luzes. O Histórias possíveis grande nome da final da Copa do Mundo de 1950 não foi Ghiggia, autor do gol que deu a vitória (2x1) ao time uruguaio, contra o Brasil, para desespero de um Maracanã com quase 200 mil torcedores e motivo de luto oficial no país. O nome do jogo foi o capitão do Uruguai, Obdulio Varela, que, segundo comentário de Nelson Rodrigues, nos tratou a chutes e pontapés. Com sua força, seus gritos, Obdulio comandou os uruguaios numa batalha heroica, cujo desfecho nem o mais pessimista dos brasileiros poderia esperar. Pois dizem que depois do jogo, enquanto a equipe uruguaia comemorava a conquista num hotel no Flamengo, Obdulio saiu solitário pela cidade. No dia seguinte, numa entrevista concedida a um jornal de seu país, ele diria que naquela noite, caminhando por um Rio de Janeiro absolutamente vazio, o capitão se deu conta da tragédia que havia ajudado, e muito, a consumar. Fico imaginando o que Obdulio teria visto pela cidade, o que chegou a pensar, o que sentiu quando viu caída na calçada a primeira página de um jornal qualquer, com a foto do escrete brasileiro e a frase: Campeão do Mundo. Frase e foto que, publicadas na manhã daquele mesmo dia, anteviam uma festa que só se realizou para os visitantes. Em parceria com Adolfo Lachtermarcher, escrevi o roteiro de um curta- metragem, A noite do capitão, resgatando o episódio. A história é contada sob a ótica de um jovem repórter que sai pela noite seguindo Obdulio, em busca de uma foto para a matéria do dia seguinte. O que escrevemos foi apenas uma versão ficcionalizada, possível talvez. Há, no entanto, dentro da história daquela decisão, várias outras histórias. Desse jogo resultou o livro de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota, que reproduz cada minuto da peleja, numa preciosa pesquisa sobre as narrações da partida veiculadas nas emissoras de rádio naquele domingo. Ao final do livro, Perdigão publica um conto em que um homem – que assistiu ao jogo quando criança e nunca conseguiu se livrar do trauma – usa uma máquina do tempo e volta ao dia fatídico, tentando avisar o goleiro do Brasil, Barbosa, do lugar em que Ghiggia iria chutar a bola. O conto, por sua vez, ganhou nova versão no cinema, num curta de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, com o título de Barbosa. E há também uma história não escrita, pelo menos não sob a forma de ficção. É aquela contada pelo próprio Barbosa. Ele disse certa vez que naquela noite, ao voltar para casa, se deparou no meio da rua com uma mesa posta, um verdadeiro banquete sendo devidamente devorado por cachorros. Alguém havia preparado a ceia contando como certíssima a vitória brasileira, e a derrota havia sido tão frustrante que o camarada nem teve ânimo para retirar dali toda aquela comida. O que Barbosa teria pensado ao ver a cena? Ele, que durante anos carregaria o peso da culpa pela derrota, depois de falhar no gol de Ghiggia, o que teria sentido ao ver os vira-latas devorando os pratos que lá estavam para alimentar o corpo e a alma de torcedores famintos depois de uma acachapante goleada no fraco time do Uruguai, que chegara àquela final nem se sabe como? O mundo do futebol está repleto de histórias possíveis, esperando quem sabe a vez de serem contadas. Que belo conto não poderia sair das mãos habilidosas que se dispusessem a passar para o papel alguma história girando em torno do milésimo gol de Pelé. E nem falo do jogo contra o Vasco no Maracanã, em que Pelé, batendo pênalti, conseguiu a marca histórica. Falo do que o rei pode ter sentido quando soube que, na verdade, aquele era o gol de número 999. Por um erro de cálculo, o milésimo gol só seria marcado mesmo na partida seguinte, contra o limitado Botafogo da Paraíba, em João Pessoa, num jogo que nem de longe teve o glamour daquele clássico no Maracanã, cercado de pompa e circunstância, como era de se esperar. E o que terá sentido o goleiro quando soube que, apesar de tudo, acabou não passando para a história, cabendo a honra ao arqueiro do Vasco, Andrada? Pensando bem, que narrativa beirando o absurdo não poderia sair do episódio ocorrido no jogo de estreia do Brasil na Copa de 1978, contra o time sueco? Um escanteio a favor do Brasil foi cobrado aos 45 minutos do segundo tempo, e Zico completou para as redes. Pois o juiz Clive Thomas, nascido no País de Gales, simplesmente anulou o gol, dizendo que encerrara o jogo enquanto a bola girava da batida do escanteio até o meio da área. Em função disso, o jogo não terminou com a vitória brasileira, mas com um suado 1x1. O que teria passado na cabeça daquele cidadão soprador de apito numa hora dessas? Que delírio o teria levado a cometer tamanha insanidade? Se era para acabar o jogo, por que permitiu que o escanteio fosse cobrado? E Zico, o que poderia ter dito? Xingou o juiz em um português que o outro jamais entenderia? Ficou em estado de choque, pasmo diante do que acabara de acontecer? Riu de nervoso? O que dizer, então, das mil e uma histórias envolvendo Garrincha? Dizem que num treino do Botafogo, em General Severiano, o técnico certa vez colocou uma cadeira na lateral do gramado e pediu aos atacantes que carregassem a bola, passassem pela cadeira como se fora um adversário, corressem com a bola nos pés até a linha de fundo e cruzassem para a área. Na vez de Garrincha fazer o exercício, em vez de contornar a cadeira, como os outros vinham fazendo, meteu a bola entre as pernas da distinta. Claro, era o que ele faria se a cadeira fosse um lateral esquerdo. Perfeitamente aceitável, ora essa. E no jogo semifinal da Copa de 1962, no Chile, quando o lateral chileno Eladio Rojas, depois de provocá-lo o tempo todo, deu-lhe uma bela cusparada em pleno rosto, seguido de um tapa na cara que se ouviuaté em território brasileiro? Garrincha revidou. Revidou com um modesto chute na bunda do chileno. Foi expulso. A biografia de Mané já foi escrita, mas suas histórias ainda não se esgotaram. O que o levou a criar aquele seu drible inconfundível, que deixava humilhados mesmo os marcadores mais ferrenhos e talentosos? Dizem que no seu primeiro treino no Botafogo quem o marcou foi ninguém menos do que Nilton Santos. Mané não se intimidou com a fama do craque e deu-lhe logo uma série de dribles. O lateral, então, imediatamente chamou o técnico e pediu que passasse Garrincha para o time titular. Não vou ficar aqui fazendo papel de palhaço, teria dito Nilton Santos. Numa crônica intitulada Cartão de visita, o saudoso João Saldanha diz que houve um tempo em que os profissionais de futebol adoravam apresentar cartões de visita. Curiosamente, eram todos escritos em letras azuis (sabe-se lá por quê). Um ex-técnico do Vasco, Telémaco Frazão de Lima, bem pouco modesto, pediu para imprimirem no seu: “professor de futebol”. Havia um outro, que Saldanha preferiu não identificar, que entrara de sócio numa firma comercial. No seu cartão vinha: “Fulano de Tal – sócio”. Apenas isso: sócio, não se sabia de quem ou de que empresa. O melhor deles era do Noronha, atacante do Canto do Rio. Logo abaixo do seu nome, lia-se: “impetuoso ponta- esquerda”. Fico imaginando que histórias poderiam sair daí, desse tema. Como seria, por exemplo, um cartão de visita do Rivelino? Talvez viesse assim: “inventor do famoso drible elástico”. E o cartão do Dadá Maravilha? “Dadá – além do helicóptero e do beija-flor, o único que para no ar”. Nos cartões do time do Íbis, poderia estar escrito: “o pior do mundo, com muito orgulho, com muito amor”. E no cartão de uma conhecida bandeirinha – que roubou feio o Botafogo em pleno Maracanã lotado na semifinal da Copa do Brasil de 2007, contra o Figueirense, e depois virou capa da Playboy –, o que viria? Bom, esse é melhor deixar pra lá. O pênalti que o italiano Roberto Baggio perdeu na final da Copa dos Estados Unidos, em 1994, contra o Brasil, num erro que nos deu o título. A cena mostrada pela TV: no vestiário, antes do jogo, Romário olha para a saída do túnel, com aparência tranquila, serena, enquanto Baggio olha fixamente para ele. O choro de Cerezo depois da falha contra a mesma Itália, em 1982, que resultou num dos gols de Paolo Rossi e nos eliminou da Copa, justo quando tínhamos uma das melhores seleções brasileiras, sob o comando do mestre Telê Santana. São, todas essas, sementes de histórias, adormecidas em algum canto por aí. Algum dia talvez venham a fazer parte também do baú imaginário que guarda já tantos casos engraçados, líricos, trágicos, com que se tece a magia do futebol. Magia que se estende para além de qualquer gramado e, vez ou outra, adquire forma de papel e tinta. V O louco de Buenos Aires isitar estádio de futebol é uma boa forma de se conhecer uma cidade. Uma visita ao Maracanã ou ao estádio da Vila Belmiro ajuda a vislumbrar as almas de cidades como o Rio de Janeiro e Santos, por exemplo. O melhor é ir em dia de jogo. Pode ser um clássico, com casa lotada, mas também um jogo de gatos pingados muitas vezes vale a pena. No primeiro você pode participar da emoção da partida, sentir a vibração das arquibancadas (em alguns estádios, a arquibancada vibra literalmente), observar um pouco do comportamento passional do torcedor. Mas assistir a um jogo no estádio quase vazio também pode ser uma rica experiência, se pensarmos que nesse caso você tem condições de sentir mais de perto a solidão acompanhada do torcedor sentado com seu radinho no ouvido, ou se ater a detalhes que se diluem em dias de grande público. E até em dias em que não há jogo você pode aproveitar a visita, vendo o estádio sem torcedores, o gramado sem ninguém a pisá-lo, nenhuma bola rolando, e naquele silêncio imaginar o que já se passou ali – as glórias, os lances grotescos e as angústias, o que teria acontecido no grande palco, agora em repouso. Em dezembro de 2007 estive em Buenos Aires para um encontro de escritores. Quando um poeta argentino me perguntou o que mais gostaria de conhecer na cidade não falei dos cafés, dos restaurantes, das inúmeras livrarias. Respondi convicto: La Bombonera. Não poderia sair de Buenos Aires sem conhecer o estádio do Boca Juniors, o time mais popular da Argentina, seguido pelo River Plate. Já sabia, de ter lido em algum lugar, que o nome do estádio se deve à sua forma de caixa, com as arquibancadas formando quatro longas paredes, ao contrário da maioria dos estádios, em que elas se espraiam na diagonal. É como uma caixa de bombons. Precisava ver isso de perto. Do hotel até o estádio, no bairro La Boca, levei noventa minutos de caminhada. Exatamente o tempo de uma partida de futebol. Aquilo podia não significar nada, mas vai você querer entender como funciona de fato o mundo dos signos? Então anotei sucintamente, no meu diário de bordo imaginário: valeu. Antes de entrar no estádio, caminhei um pouco ao seu redor. Dei uma volta completa, vendo a parte externa dos muros, pintados de amarelo e azul, e pensei que estádios pequenos como aquele são os que têm mais histórias para contar, justamente porque foram construídos antes da era dos estádios gigantes e moderníssimos. Não era dia de jogo e por isso podia caminhar com calma pelos arredores. Quando vi, estava me afastando de La Bombonera e me entranhando pelas ruas pequenas e tortuosas do velho bairro de operários, situado – daí seu nome – na boca do rio Riachuelo, e que até o final do século XIX era a entrada obrigatória da cidade. Desde logo ficou claro o que já era de se esperar: bairro, estádio e time formam uma única coisa, numa comunhão que se mostra ao visitante nas lojas, nas cantinas, nas crianças trajando mil variações da camisa oficial do Boca. Consta que, em 1905, alguns imigrantes italianos resolveram criar um time de futebol. Deram a ele o nome do bairro e acrescentaram um “Juniors” para conferir à equipe um ar britânico, numa tentativa de amenizar a condição de lugar pobre e com traços latinos numa Buenos Aires de feições europeias. Não conseguiram. O bairro continua pobre, meio atípico, e essa autenticidade talvez seja sua maior riqueza. Caminhei para o estádio. Logo na entrada, o sofisticado museu nos mostra um cartão de visita: somos de primeiro mundo. O cuidado com o registro da história do time se junta a uma grande maquete do bairro, simulando o traçado das ruas, a arquitetura, o interior das casas. Telões espalhados pelo caminho mostram uma infinidade de gols, comemorações, jogadas antológicas, que se mesclam a momentos importantes da história política do país, retirados de telejornais e documentários. Tudo no museu aponta para a profunda relação entre futebol, bairro, cidade e país. Ao entrar no estádio, porém, o cartão de visita é outro: precisamos de reforma. Os corredores, as arquibancadas, o próprio campo (de gramado sofrível), mostram o descaso, lembrando antigos e decadentes estádios de futebol no Brasil. Isso não impede que, sentados ali, possamos imaginar a vertigem que deve ser assistir a um jogo naquele lugar apertado e quase dentro do gramado, a poucos metros dos jogadores. Saí pensando que aquele contraste entre o campo e o museu definia bem a história do Boca... Juniors. De um lado a vontade de manter as raízes do bairro, de outro o desejo de fazer parte da Buenos Aires europeizada. Contradição que remonta não apenas ao nome do time mas à própria escolha das cores: amarelo e azul. Antes delas, o time usava um uniforme branco e preto, depois modificado para as cores da bandeira de um navio estrangeiro que atracara no porto. Um navio sueco. Andei um pouco mais pelas ruas e parei numa cantina. Enquanto tomava cerveja, vi na praça em frente uma cena digna de filme: um homem de cabelos desgrenhados, olhar perdido no tempo, calças jeans surradas e tênis, usava, sem o menorconstrangimento, uma camisa branca atravessada por uma faixa vermelha. Era a camisa do River. O garçom percebeu minha surpresa, aproximou-se da minha mesa e disse, apontando para o sujeito na praça: el Loco. Olhei para o garçom, pedindo com os olhos uma continuação. E ele, meio impaciente, como se eu fosse obrigado a saber de toda a história do bairro, explicou que se tratava de um tipo bastante conhecido nas redondezas. Era torcedor fanático do Boca, mas uma vez por mês, sem aviso prévio (não havia critério aparente para a escolha do dia, podia ser qualquer um), o sujeito vestia uma camisa do arquirrival, do maior inimigo, e se postava feito estátua naquela praça durante horas, naquele mesmo banco, no mais absoluto silêncio. E não ouse se aproximar dele, o garçom foi logo me advertindo, num argentinês legítimo que não ouso reproduzir aqui. Era um doido manso mas se chegassem perto dele nessa hora tornava-se violento. Está vendo as pedras? Olhei para o banco e vi um monte de pedras de variados tamanhos, formando um pequeno monte ao lado do homem. Quer levar uma pedrada?, continuou perguntando o garçom, me parecendo talvez mais louco do que el Loco. A advertência apenas acentuou minha vontade de me aproximar do homem. Não duvidei, porém, de que uma daquelas pedras pudesse ter como destino final minha pobre cabeça de turista e preferi ficar onde estava, até pensar num plano alternativo: não poderia falar com ele, mas poderia vê-lo mais de perto, quem sabe. Me mudei para uma mesa na calçada, de onde podia não apenas vê-lo melhor como também ser visto por ele, se assim o desejasse. Olhava vez ou outra para a praça, disfarçadamente, até que, ganhando um pouco mais de confiança, fixei meu olhar no seu rosto. Ele deve ter percebido e virou-se na minha direção. Para meu espanto, não havia agressividade alguma naquele olhar. Ficamos assim por um momento, um olhando para o outro, e pode ser que tenha sido efeito da longa caminhada, das coisas todas que eu havia visto no bairro, no estádio, no museu, ou efeito da cerveja, que me deixava mais sentimental, mas acreditei ver no olhar do homem algo quase infantil. Era uma criança que estava ali? Uma criança solitária, tentando chamar a atenção dos outros, buscando algum afeto? El Loco era, na verdade, el Niño? Ou, sendo criança, estava apenas brincando de ser outro, como um garoto brinca de ser médico, artista, jogador de futebol? Fiquei nessas viagens comigo mesmo até que o olhar mudou. El Loco voltou a ser o que era, as sobrancelhas se arquearam, o olhar adquiriu a fama que acompanhava a figura, a de doido varrido. Apanhou uma pedra no monte ao lado e ficou com ela suspensa no ar, enquanto sustentava para mim seu olhar ameaçador. Desviei meus olhos. Pedi a conta e saí. Caminhei por outra rua com um propósito definido: continuar observando o homem, agora sem que ele me observasse. Dei a volta e encontrei meu esconderijo. Encostado a um muro, podia vê-lo de costas, bem de perto. Foi então que pude ler o que estava escrito na parte de trás da camisa, no alto. No lugar em que normalmente vem o nome do jogador, não havia menção a qualquer valoroso atleta do River. Vinha apenas: EL LOCO. E logo abaixo: (NO ME PREGUNTES POR QUÉ). O que exatamente ele não queria que lhe perguntassem? Não me pergunte por que o quê? Por que me chamam de el Loco? Ou, sendo eu de fato louco, por que me tornei um? Era isso? Não me perguntem sobre a origem da minha loucura? Ou a frase entre parênteses se referia ao ato em si de se vestir com a camisa do rival e ficar sentado no meio na praça? Quer dizer, não me perguntem por que faço tamanha maluquice? Jamais pude saber, claro. E isso não era importante. Valia mesmo era o personagem e a biografia apenas sugerida. O homem não sabia que em breve viajaria para um país vizinho, na bagagem de um desconhecido, trajando apenas sua nobre loucura. Da esquerda para a direita: Ézio, Neném, Pereira e Hugo. (Álbum de família.) A Os irmãos da minha mãe Em memória do meu tio Hugo lguém aí teve quatro tios jogadores de futebol? E se teve, me responda com sinceridade: eram eles um goleiro, um zagueiro, um meio-campo e um centroavante? Duvido. Pois eu tive. Os quatro disputaram campeonatos de futebol amador em Goiânia, numa época em que não havia muitas diferenças entre amador e profissional. Minha avó teve quatro filhos e uma filha (minha mãe). E talvez tenha se sentido aliviada quando viu que pelo menos minha mãe não ligava muito para aquele jogo maluco que ralava joelhos e sujava a roupa dos meninos de uma terra vermelha que não saía de jeito nenhum. José, que todos conhecem por Pereira, era goleiro. De pernas finas e compridas, o corpo esguio, se lançava ao ar atrás da bola sem ligar para o fato de que, na aterrissagem, o esperava não um tapete de grama verdinha e felpuda mas um chão duro, feito sob encomenda para maltratar goleiros. Na foto que tenho dele trajando seu honroso uniforme de arqueiro, mais parece um Dom Quixote de chuteiras, prestes a alçar voo atrás de um sonho qualquer. Esse meu tio defendia as cores do Banco Cooperativo Luzzati, que nem existe mais. O gerente do banco era o técnico do time e mais tarde veio a ser presidente do Vila Nova e da Federação Goiana de Futebol por mais de vinte anos. Naquela época, no entanto – todos eles jogaram nos anos 1960, com exceção do caçula, que também atuou durante a década seguinte –, quem mandava mesmo no time era o Pereira, segundo fonte fidedigna (minha tia). Era o grande Pereira que orientava a defesa, gritava com o meio-campo e o ataque, e se preciso duelava com centroavantes em bolas divididas, armado não de escudos de ferro, como os antigos heróis dos romances de cavalaria, mas apenas de seu valoroso par de joelheiras, colocadas não onde se espera que estejam – nos joelhos – mas nas canelas! Imprevisível o Pereira, como convém a um verdadeiro Quixote. Quando comecei a jogar, aos onze anos, era ele que, sempre acompanhado da minha tia, ia assistir aos meus jogos, mesmo quando começavam às oito da manhã de um domingo chuvoso. Valente também era seu irmão, Neném, cujo apelido contrastava com sua função em campo: zagueiro. Zagueiro não pode ter esse apelido, convenhamos. Tem que ser chamado de Zezão, Pedrão, Junão, sei lá, qualquer coisa que soe como um sonoro aumentativo. Neném? Neném não dá. Mas tinha que dar, então meu tio se desdobrava em dois para compensar a sugestão do apelido e não consta que nenhum atacante tenha tido o atrevimento de brincar com coisa tão séria (pelo menos não na sua frente). O problema maior, aliás, não era o contraste entre o apelido e a virilidade que precisava demonstrar em campo. O problema mesmo já começava no nome do time: Cruzadinha do Padre Domingos. Fico imaginando: que cruzada era aquela empreendida campos afora pelos atletas de padre Domingos? Uma cruzadinha significa exatamente o quê? Que era humilde, sem grandes pretensões de derrotar os inimigos? Ou que era feita por crianças (e aí sim o apelido do meu tio combinava bem), no caso jovens, ainda iniciantes nas guerras santas do futebol? Não sei. O que se sabe mesmo é que só jogava no time quem fosse à missa. E não bastava estar presente, do início ao final, precisava também participar da comunhão, o que significava ter que se confessar primeiro. E nesse ponto imagino o conflito existencial por que passava padre Domingos, técnico do time. Suponha que seja você o padre. No jogo você vibrou com o gol da vitória do seu time no último minuto. No dia seguinte você está lá, no confessionário, e chega justo quem? Ele, o artilheiro, o grande herói, a estrela do grupo que você comanda. E ele te diz: padre, eu pequei. É mesmo, meu filho? Sim, padre, eu pequei. E que pecado foi esse? Sabe o gol do jogo de ontem? Claro que sei, um gol muito bonito, meus parabéns! Pois é, padre, só que foi com a mão. Como, meu filho? O gol não foi de cabeça, padre, foi com a mão, meti a mão na bola, e o juiz
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