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PSICOLOGIA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Reflexões e possibilidades teórico-práticas e-book índice Apresentação ...................................................................... 3 Psicologia e relações étnico-raciais: histórico ..................... 4 Conceitos centrais da temática étnico-racial ...................... 6 Efeitos do racismo: dimensão individual e sociocultural .................................................. 9 Racismo e socialização racial na infância e adolescência ................................................. 13 Por que discutir racismo na velhice? ..................................... 18 Saúde mental em contextos indígenas: invisibilidade das diferenças ............................................. 20 Relações raciais na formação do psicólogo e atuação profissional para desconstrução do racismo e para promoção da igualdade ........................................... 22 Considerações finais ........................................................ 25 Sobre este e-book ........................................................... 26 A Artmed ......................................................................... 27 Referências ..................................................................... 28 3 No último censo demográfico brasileiro, realizado em 2010, a população brasileira possuía o to- tal de 190.755.799 pessoas, e era composta por 47,51% de brancos, 50,94% de negros (7,52% de pretos e 43,42% de pardos), 1,10% de amarelos, 0,43% de indígenas e 0,02% sem declaração (Ins- tituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2010). No entanto, nos últimos 10 anos, estima- -se que o número de pessoas que se autodeclaram pretas tenha crescido 32,4% e pardas 10,8%, o que resultou no alcance de 56,1% da população negra, sendo constituída por 9,1% de pretos e 47% de pardos, e uma redução da branca para 43% (Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- tística - IBGE, 2022). A composição racial da população brasileira é diversificada e foi formada mediante um processo histórico em que um grupo racial escravizou e exterminou grupos raciais específicos. Nesse contexto repleto de desafios, o e-book Psicologia e Relações Étnico-Raciais: reflexões e possibilidades teórico-práticas tem como objetivo geral ampliar o conhecimento dos profissionais de psicologia acerca das relações étnico-raciais e seus impactos na formação e atuação profissional. Desse modo, desejamos uma ótima leitura! APRESENTAÇÃO 4 Discutir relações étnico raciais implica em retornar a um passado histórico marcado por opres- sões e dominações. Historicamente, o racismo brasileiro foi desenvolvido a partir da exploração de determinadas populações, cujas vidas foram apropriadas durante o período colonial. Nesta dinâmica, encontravam-se em desvantagem social as populações africanas, afro-brasileiras e tradicionais indígenas (Mäder, 2016). As distinções entre diferentes grupos étnicos e raciais co- meçaram a se constituir a partir do entendimento de que tais povos seriam inferiores em relação ao poder hegemônico, representado pela população branca (Schucman, Nunes, & Costa, 2015). As relações étnico-raciais no Brasil integram as relações sociais brasileiras e têm sido objeto de estudo da Psicologia (Ishikawa, Santos, 2018), a qual tem assumido grande importância no en- tendimento e na atuação frente aos impactos psicossociais advindos das desigualdades raciais. Conforme Santos, Schucman e Martins (2012), existem três momentos do pensamento psicoló- gico brasileiro sobre as relações étnico-raciais no país. Inicialmente, no final do século XIX e iní- cio do XX, a raça era associada a patologias psiquiátricas e tipologias criminais, como nas ideias difundidas pelo médico Nina Rodrigues. Este investigava as características psicológicas dos es- cravizados e os associava a criminalidade e perigo, reforçando estereótipos e preconceitos. Posteriormente, o período entre 1930 e 1950 foi caracterizado pela introdução da Psicologia no Ensino Superior e o debate sobre a construção sociocultural das diferenças. Diferente do período anterior, o debate não se debruçava sobre determinações genéticas, ao contrário, negava esta concepção e considerava que as diferenças raciais abrangiam aspectos econômicos e sociais (Santos, Schucman e Martins, 2012). Por fim, a partir de 1990, a raça passou a ser compreendida como construção social e discutida pela perspectiva das relações de dominação e hierarquiza- ção por meio do estudo das relações de poder e identidade étnico-racial. PSICOLOGIA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: HISTÓRICO 5 Embora o quantitativo de investigações acerca das relações étnico-raciais seja considerado pou- co expressivo no campo da Psicologia, o que pode revelar ser uma consequência do racismo sofrido, principalmente pelos negros e indígenas (CFP, 2017), no decorrer dos últimos anos, hou- ve aumento das discussões sobre atuação profissional do psicólogo e de pesquisas sobre a temática, merecendo destaque a subárea da Psicologia Social. A finalidade de desconstruir pre- conceitos e minimizar as desigualdades advindas das violências raciais tem sido adotada pela Psicologia ao assumir o papel crucial no estabelecimento de ações coletivas de reconhecimento social, tratando sobre as diversidades e sendo espaço de acolhimento da subjetividade (Mäder, 2016). Ainda que existam avanços nos debates raciais, a Psicologia deve demarcar um novo período histórico ao incluir, por exemplo, a produção de um maior conhecimento acerca do impacto psi- cossocial gerado pelo racismo (Benedito & Fernandes, 2021) e o desenvolvimento de interven- ções para reduzir seus efeitos negativos a favor da igualdade racial e saúde psicológica dos indivíduos pertencentes aos grupos raciais minoritários (CFP, 2017). Portanto, ampliar o debate acerca das desigualdades raciais como estruturantes da sociedade brasileira e sobre a atuação profissional do psicólogo como agente social ativo no rompimento de práticas perpetuadoras do racismo se faz necessário (Mäder, 2016; Schucman, Nunes & Costa, 2015). 6 Tendo em vista a complexidade do tema das relações étnico-raciais, muitos conceitos são utili- zados para a compreensão do assunto e explicação de fenômenos e comportamentos sociais. Abaixo, seguem alguns conceitos relevantes: CONCEITOS CENTRAIS DA TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL RAÇA: “raça” é uma construção social utilizada para diferenciar grupos humanos baseando-se em traços físicos (fenótipo), como a cor da pele, por exemplo. Este conceito também se estabelece a partir de características étnico-culturais tais como a língua, origem demográfica e outros costumes (Almeida, 2018). O significado de raça não é estático e depende do contexto histórico em que é utilizado. Historicamente, a raça foi definida como um conceito biológico, utilizado para dividir de forma arbitrária os seres de toda espécie, sendo muito utilizado na Zoologia e Botânica para classificar animais e vegetais nos séculos passados. No entanto, atualmente, conforme Munanga (2004), a raça não é uma condição biológica, mas um conceito utilizado para explicar a diversidade humana. ! Obs: É importante ressaltar que, a partir da realização do censo de 1991, a classificação da cor/raça da população brasileira passou a incluir cinco categorias (preto, pardo, branco, amarelo e indígena), sendo estas adotadas atualmente. Ressalta-se que a raça negra é composta por pretos e pardos (Osório, 2003). RACISMO: é uma forma de discriminação que tem a raça como fundamento e justifica as diferenças, preferências e privilégios Se manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes, gerando privilégios e desvantagens para determinados grupos raciais (Almeida, 2018; Shucman, 2014). Refere-se a uma conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade, conforme previsto na Lei n. 7.716/1989. Baseando-se no conceito de raça, o “racismo” resulta da crença da existência de “raças”hierarquizadas, na qual um grupo julga-se superior a outro (Munanga, 2004). 7 RACISMO ESTRUTURAL: significa dizer que o racismo integra toda a organização política e econômica da sociedade, sendo fruto de um processo complexo e estruturalmente produzido e reproduzido. Portanto, o racismo é sempre estrutural (Almeida, 2018). RACISMO INSTITUCIONAL: também denominado de racismo sistêmico, corresponde a formas organizativas, práticas, políticas e normativas institucionais, que provocam tratamentos desiguais, garantindo a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados, e aumentado a vulnerabilidade dos vitimados pelo racismo (Werneck, 2016). RACISMO RECREATIVO: envolve a utilização do humor como veículo de hostilidade racial. Manifesta-se por meio de piadas, gracejos e qualquer forma recreativa cujo objetivo seja subjugar ou diminuir a população negra ou indígena, por exemplo (Moreira, 2019). ETNIA: conjunto de pessoas que compartilham idiomas, espaço geográfico e/ou possuem a mesma fé ou cultura. É um conceito sociocultural menos marcado pelas características físicas e mais definido pelo conjunto de costumes e hábitos culturais (Munanga, 2004). PRECONCEITO RACIAL: refere-se ao conjunto de significados atribuídos a determinada pessoa ou grupo baseado em estereótipo, podendo ou não resultar em práticas discriminatórias (Almeida, 2018). DISCRIMINAÇÃO RACIAL: é o tratamento diferenciado em razão da raça. Possui conotação negativa e pode acontecer de forma direta - quando envolve o repúdio explícito e intencional a indivíduos ou grupos pela condição racial - ou de maneira indireta - quando não há intencionalidade explícita de discriminar pessoas (Almeida, 2018; Batista, 2018). 8 MICROAGRESSÕES RACIAIS: abrangem declarações e comportamentos “sutis” que comunicam ofensas raciais, depreciativas ou negativas. Se revelam por meio de brincadeiras, comentários diários, perguntas. Parecem insignificantes para quem os pratica, porém têm grande efeito sobre as vítimas, as quais geralmente são a população não branca (negros, indígenas) e também inclui outros grupos minoritários, tais como as pessoas com deficiência e a população LGBTQIAP+ (Martins, Lima & Santos, 2020; Nadal et al., 2014). COLORISMO: envolve a discriminação conforme graduação do tom de pele. Também conhecida como “pigmentocracia” (quanto mais pigmentada a pele de uma pessoa, mais discriminação racial ela tende a sofrer). Este termo enfatiza os traços físicos do indivíduo. BRANQUITUDE: é entendida como a ideia falaciosa da superioridade racial branca, onde os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos (Shucman, 2016). ESTEREÓTIPOS: são crenças ou representações utilizadas para qualificar determinadas pessoas ou grupos humanos. Os estereótipos podem ser considerados negativos quando utilizados para diminuir, hierarquizar ou subjugar um grupo, e podem ser considerados positivos quando visam apenas categorizar e diferenciar grupos diferentes (Pereira, 2021). Dentro da discussão racial, os estereótipos geralmente desqualificam os grupos minoritários (a população não branca). Alguns estereótipos negativos associados à população negra, por exemplo, envolvem qualificações como “feiura”, “preguiça”, “burrice”. Com relação à população indígena, alguns dos estereótipos difundidos são os termos “cruéis”, “bárbaros”, “primitivos”. 9 Os impactos do racismo são inúmeros e podem produzir efeitos que se fazem sentir na saúde física e psíquica da população não branca. As violências raciais podem levar a população negra e indígena ao sofrimento psíquico, em formas e intensidades diversas. A literatura pontua que as situações que envolvem discriminação racial, podem gerar nos sujeitos sentimentos de solidão, desamparo, angústia e silêncio. Sobre o silenciamento, Jesus e Costa (2018) pontuam que calar a dor sofrida pode gerar maiores sofrimentos pela lembrança guardada. A vergonha advinda da discriminação racial pode ocasionar este silenciamento e um constrangimento de compartilhar a experiência. Ademais, os efeitos do racismo podem ser sentidos também na autoestima e na consequente tentativa de “embranquecimento”, revelados por meio de mudanças estéticas e comportamentais. Isto pode ser entendido como uma estratégia compensatória disfuncional, visto que a não aceitação e a não identificação com seu grupo racial pode também gerar a repro- dução de comportamentos discriminatórios contra seus semelhantes, potencializando o auto-ó- dio (Tavares & Kuratani, 2019). Dentre os efeitos gerados pelo racismo, acrescenta-se o estresse crônico advindo da experiência de manter-se em constante estado de vigilância para proteger-se das microagressões e violên- cias raciais que se presentificam no cotidiano, conforme apontou a psiquiatra e psicanalista Neu- za Santos Souza no seu clássico livro “Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascensão social” (1983). Conforme pontuam Tavares e Kuratani (2019), destaca-se também que muitos negros brasileiros não estão conscientes do racismo estrutural e do estres- se diário resultante das violências raciais. EFEITOS DO RACISMO: DIMENSÃO INDIVIDUAL E SOCIOCULTURAL 10 Ocorre ainda o fato de muitas pessoas naturalizarem a situação de discriminação racial, e outros que afirmam ainda que existe igualdade racial, sendo o racismo um mito. Os efeitos psíquicos de narrativas como essas, que negam a existência do racismo, impactam de maneira negativa a subjetividade daqueles que convivem com esta realidade. Por outro lado, é comum que o so- frimento advindo do racismo não seja identificado de imediato por pessoas que se reconheçam negras e que procuram atendimento psicológico justamente pela naturalização que o racismo estrutural gera nas psiquês. É por isso que um pensamento crítico e racializado deve ser desen- volvido por todos os profissionais psicólogos, independente do grupo racial a que pertençam (Tavares & Kuratani, 2019). Estima-se que o número de pessoas que se autodeclaram pretas tenha crescido 32,4% e o de par- dos 10,8%, o que resultou no alcance de 56,1% da população negra, sendo constituída por 9,1% de pretos e 47% de pardos, e uma redução da branca para 43% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2022). Ainda que a população negra seja a maioria no Brasil e o racismo atravesse as diferentes áreas da vida, há escassos estudos que tratam dos impactos do racis- mo na vida dessa população (Tavares & Kuratani, 2019). As razões para esta situação, podem se justificar pelo desinteresse em tornar este tema uma pauta social. No entanto, é inegável a necessidade urgente de debater e criar políticas e práticas profissionais que incluam as popula- ções negra e indígena, uma vez que os impactos das violências raciais são sentidos de maneira individual e coletiva. No Brasil, há uma estreita relação entre racismo, baixa renda e desigualdade de oportunidades, sobretudo se considerados outros aspectos interseccionais como gênero, local de moradia, ida- de e outros aspectos, o que leva os grupos racialmente discriminados a ocuparem patamares inferiores da sociedade e de sujeição a ofertas de ações de saúde pública e privada precárias (Werneck, 2016). Alguns dos impactos da discriminação étnico-racial na sociedade são observados no âmbito da assistência em saúde. O processo de saúde e/ou adoecimento também está associado a aspec- tos sociais, econômicos, culturais e políticos que influenciam na integridade física, psicológica, individual e coletiva. A estes fatores se agregam as condições de moradia, renda, saúde, localiza- ção geográfica, as quais são elementos determinantes para o acesso a bens e serviços de saúde (Lin & Kelley-Moore, 2017). Historicamente, a população negra tem pouco acesso aos serviços de saúde, sobretudo os privados, contribuindo para que os profissionais não problematizem o racismo e,consequentemente, não desenvolvam ações profissionais antirracistas. O racismo institucional, na área da saúde, colabora para a iniquidade na assistência fornecida à população que, por sua vez, recebe atendimentos com menor qualidade se comparados aos da população branca (Werneck, 2016). 11 O acesso a serviços de saúde e o uso de instrumentos diagnósticos mais precários, produzem e/ou agravam quadros de adoecimento na população negra quando, na verdade, deveriam ser espaços promotores de saúde e bem-estar. No que tange a saúde mental, estudos sugerem que a população negra tende a apresentar maiores índices de quadros depressivos e de ansiedade, embora no Brasil não existam dados precisos sobre a prevalência dos transtornos mentais na população negra (Santos & Ricci, 2020). Contudo, alguns achados de pesquisas são alarman- tes. Por exemplo, de 2012 a 2016, a taxa de suicídio entre negros entre 10 e 29 anos de idade aumentou em comparação às outas raças, passando de 53,3% para 55,4%, considerando o inter- valo de tempo mencionado (Brasil, 2018). Estes quadros de adoecimento mental alertam para a necessidade da psicologia e demais áreas profissionais atentarem para a influência do racismo nas vivências de sofrimento psíquico. Conforme estudo de Martins, Lima e Santos (2020), a alta frequência de microagressões raciais prediz piores níveis de saúde mental e autoestima, espe- cialmente se considerarmos a questão de gênero. Além dos impactos na área da saúde, o racismo reverbera na inserção dificultada da população negra no mercado de trabalho, fruto das menores oportunidades educacionais e escolares. Tal fato influencia também na privação de acesso a melhores meios econômicos e sociais (CFP, 2017). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2019), a população preta e parda compõe a maior parcela de pessoas desocupadas e da população subutilizada. Conse- quentemente, a informalidade do trabalho acaba sendo a opção de trabalho mais “viável” para este grupo racial. A desvantagem desse grupo populacional se mantém até mesmo quando é considerado o recorte por nível de instrução, ou seja, atinge também a população negra com maior escolaridade. Especificamente no que se refere ao campo da educação, a proporção de jovens pretos ou par- dos de 18 a 24 anos que cursavam o ensino superior era de 55,6%, enquanto a de estudantes brancos com a mesma faixa etária era de 78,8%. Além disso, o número de pretos ou pardos do mesmo intervalo etário com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam escola atingiu o patamar de 28,8%, enquanto o de indivíduos brancos sob a mesma condição era de 17,4%. A taxa de analfabetismo é um outro índice que revela a disparidade entre os grupos raciais negro e branco. A taxa de pessoas pretas ou pardas de 15 anos ou mais que eram analfabetas em 2018 era de 9,1%, sendo a de brancos significativamente menor, equivalente a 3,9% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2019). 12 Outros dados preocupantes são referentes ao trabalho e à renda. De acordo com o Instituto Bra- sileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2019), no ano de 2018, entre a faixa populacional que re- presentava a força de trabalho do país, 64,2% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados eram pretos e pardos. Ademais, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas foi 73,9% superior ao de pretos e pardos. Estes receberam menos do que os trabalhadores de cor branca tanto nas ocupações formais, como nas informais. Ao se analisar os dados dos indivíduos que apresentavam nível superior completo, verificou-se que os brancos ganhavam 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível de escolaridade. Informações alarmantes também estão relacionadas aos números de homicídios no Brasil. Por exemplo, apesar da qualidade dos dados ser questionável devido a possíveis falhas no processo de notificação, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (Bueno & Lima, 2022) apresen- ta dados relevantes. No ano de 2021, 77,9% das vítimas de mortes violentas intencionais eram pessoas negras, sendo 77,6% vítimas de homicídio doloso e 84,1% vítimas de intervenções poli- ciais. Especificamente, em comparação ao ano de 2020, a taxa de mortalidade por intervenções policiais entre as vítimas brancas teve uma redução de 30,9% em 2021, enquanto a de vítimas negras cresceu em 5,8%. Por outro lado, a raça dos policiais também está associada ao quanti- tativo alto de vítimas letais. No mesmo período, 67,7% dos policiais civis e militares que tiveram morte violenta intencional eram negros. No que se refere à população carcerária brasileira, 67,5% são pessoas negras. Bueno e Lima (2022) revelaram que, do total de vítimas de feminicídio em 2021, 62% eram mu- lheres negras, enquanto 37,5% eram brancas. Das vítimas de estupro e estupro de vulnerável, a maioria, 52,2%, também eram pessoas negras A composição racial das mortes violentas in- tencionais de crianças e adolescentes também revela uma expressiva desigualdade. Em 2021, 66,3% das pessoas mortas de 0 a 11 anos de idade eram negras; na faixa etária de 12 a 17 anos as taxas aumentaram assustadoramente para 83,6% considerando o mesmo grupo racial. Além disso, em 2019, 66,1% das crianças e dos adolescentes em situação de trabalho infantil eram negros (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2020). 13 Diante da conjuntura apresentada no tópico anterior, a população negra brasileira lida regular- mente com Encontros Raciais Discriminatórios (ERDs). Os ERDs incluem formas explícitas e su- tis de discriminação racial (Anderson & Stevenson, 2019), que são comportamentos de distinção de grupos raciais dominantes com prejuízo para grupos raciais considerados inferiores (Conse- lho Federal de Psicologia, 2017). Desse modo, os ERDs podem ocorrer nos níveis interpessoal, institucional e sistêmico, incluindo situações como suspensões e expulsões dentro das escolas, ofensas diretas de outras pessoas, perseguição em estabelecimentos comerciais, assassinatos por policiais, entre outros (Anderson & Stevenson, 2019). As pesquisas mostram que o racismo vem aumentando nos últimos anos. Por exemplo, no Brasil, de 2020 para 2021, a taxa de regis- tros de casos de racismo teve um aumento de 31% (Bueno & Lima, 2022). Anderson e Stevenson (2019) afirmam que os ERDs podem afetar os indivíduos prejudicados durante e após o evento de discriminação, resultando em um estresse traumático relacionado à raça, o que pode implicar na manifestação de sintomas ansiosos, problemas de sono, rumi- nação, raiva, supressão emocional, evitação, entre outros. Desenvolver políticas públicas para reduzir os efeitos do racismo é essencial, bem como promover o ensino de estratégias de enfren- tamento e mecanismos à população negra para lidar com o racismo estrutural enquanto mudan- ças substanciais não acontecem na estrutura da sociedade brasileira. O racismo estrutural tem implicações negativas significativas para o desenvolvimento infantojuvenil. Somadas às ame- aças que seus pais e outros familiares enfrentam, reveladas nos dados sobre a desigualdade entre brancos e negros, os prejuízos se tornam devastadores. Nesse processo, a família tem um papel fundamental no preparo das crianças para lidar com a questão racial. Para ajudarem seus filhos a se prepararem e prevenirem as consequências dos ERDs e desenvolverem identidades raciais funcionais, as mães e pais de famílias de minorias étnico-raciais adotam certas atitudes e práticas. Esse conjunto de atitudes e práticas tem sido denominado socialização étnico-racial ou socialização racial. RACISMO E SOCIALIZAÇÃO RACIAL NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 14 A socialização racial pode ser definida como um conjunto de mensagens específicas transmiti- das pelos pais para modelar o comportamento dos filhos e expor a criança a diferentes contextos e objetos relacionados à etnia e raça. Essas mensagens possibilitam a transmissão de valores,atitudes, comportamentos e crenças acerca da etnia e raça, conteúdos acerca da herança, da cultura, do significado de pertencer a um grupo racial/étnico, da identidade pessoal e de grupo, das interações intragrupais e intergrupais e, por fim, do auxílio no enfrentamento das situações discriminatórias (Dunbar et al., 2017; Wang et al., 2019). De um modo geral, a socialização racial demonstrou proteger os jovens contra os efeitos nega- tivos relacionados ao racismo (p. ex., estresse), tornando-se uma importante fonte de resiliência (Hughes et al., 2016). Ademais, esteve associada a níveis mais baixos de estresse psicológico (percepção ou avaliação de certos eventos como estressantes ou custosos) e de sofrimento psi- cológico (grau em que um indivíduo está sofrendo de alguma forma de psicopatologia) (Bynum, 2009) e maiores níveis de desempenho escolar (Brown et al. 2009; Smalls, 2009). Outro achado relevante é a relação com o desenvolvimento de identidade e autoestima racial positiva e a dimi- nuição de problemas de comportamento (Neblett et al., 2012). Especificamente, uma metanálise (Wang et al., 2019) revelou uma correlação positiva entre socialização racial e os problemas de comportamento internalizantes de jovens, bem como uma melhor autopercepção, envolvendo crenças referentes à sua própria competência escolar, aceitação social, autoestima e o autocon- ceito em geral, e melhorias nas relações interpessoais e da adoção de fortes valores centrados na família. A socialização racial tem sido tipicamente caracterizada por seu conteúdo, sendo este classifi- cado em quatro categorias: socialização cultural, preparação para o preconceito, promoção da desconfiança e igualitarismo. A socialização cultural, também denominada de socialização do orgulho, engloba a promoção do orgulho e a transmissão de valores culturais, costumes, tradi- ções, história e pertencimento. Por exemplo, celebrar feriados culturais, fazer viagens culturais, visitar museus com exposições culturais, conversar sobre as realizações históricas de pessoas da mesma raça, assistir e discutir filmes com foco racial, cozinhar alimentos culturalmente tradi- cionais, entre outros (Huguley et al., 2019; Wang et al., 2019). A segunda categoria é a preparação para o preconceito. Os pais ensinam as crianças a antecipar, processar e/ou lidar com contextos de discriminação (Wang et al., 2019). 15 A promoção da desconfiança é uma dimensão da socialização racial pouco investigada. Esta categoria envolve os pais comunicarem aos filhos a necessidade de cautela e desconfiança no que se refere aos membros pertencentes a outros grupos raciais, principalmente aqueles que integram os grupos dominantes (Huguley et al., 2019). Por fim, a última categoria foi pouco pes- quisada. A dimensão do igualitarismo, envolve os pais enfatizarem para os filhos a existência de uma igualdade entre os variados grupos raciais (Huguley et al., 2019; Umaña-Taylor & Hill, 2020). Geralmente, quando adotada, sua finalidade é garantir o sucesso em uma sociedade racista que privilegia um grupo racial e o coloca em uma posição de superioridade e de domínio ou para lidar com o racismo e a discriminação reais ou potenciais. Desse modo, os pais focam nos valores e hábitos para o sucesso e minimização no papel da raça na sociedade e incentivam e modelam o comportamento infantil para aquisição de normas culturais dominantes (p. ex., usar as roupas, maquiagem e cabelo característico do outro grupo), o que leva os jovens a desenvolverem cren- ças daltônicas racialmente e à não discussão entre os membros familiares acerca das questões raciais (Huguley et al., 2019). Ao considerar tais práticas, algumas orientações podem ser fornecidas aos cuidadores de crian- ças e adolescentes. Por exemplo, Galán et al. (2019), ao visarem dúvidas frequentes que pais podem ter sobre como devem conversar sobre raça com seus filhos, destacam a necessidade de os socializadores desenvolverem uma série de habilidades relevantes para terem maior pro- babilidade de sucesso nas interações compostas por conteúdos raciais. Especificamente para crianças pequenas, sugerem que os pais pratiquem as conversas sem as crianças e na frente do espelho, por exemplo. Desse modo, os cuidadores conseguem treinar habilidades comunicacio- nais que envolverão uma linguagem simples, clara, concisa e apropriada para a idade dos filhos. Contudo, primeiramente, o indicativo é que os pais consigam avaliar e ampliar, se preciso, o seu nível de conhecimento acerca dos tópicos raciais, a fim de diminuir o estresse que podem sentir em decorrência da conversa e de aumentar a autoconfiança. 16 Sobre as interações pais-filhos acerca da temática racial, confira algumas orientações que os so- cializadores podem adotar, segundo Galán et al. (2019), de acordo com cada uma das categorias da socialização étnico-racial: • Socialização cultural: • Preparação para o preconceito: • Expor as crianças às pessoas negras talentosas a fim de construir confiança racial e aumentar a proteção contra ofensas raciais. • Aumentar o acesso das crianças aos livros e mídia visual que contém representatividades relevantes, ou seja, pessoas ou personagens. A finalidade é promover maior orgulho racial nos filhos. • A depender da idade das crianças, realizar hobbies, atividades e programas com as crianças, pois tocam em características relevantes da herança cultural. Exemplos são realizar refeições com alimentos “culturais”, participar de festivais culturais, ler livros específicos ou ouvir música podem ser estratégias para promover o orgulho racial. • Quanto aos pais de crianças brancas, eles devem avaliar a diversidade racial existente no ambiente de seus filhos. As crianças com quem os filhos brincam são todas brancas? Mesmo que haja crianças negras, os relacionamentos existentes são significativos para os filhos em comparação às amizades com outras crianças brancas? Qual é a raça dos personagens favoritos dos filhos? E os livros que leem ou as bonecas com que brincam? Qual é a raça do dentista, professor e pediatra da criança? Perguntas como essas servem para identificar o possível baixo acesso aos contextos específicos que envolvem os grupos minoritários, o que pode dificultar para que as crianças brancas saibam compreender e lidar com a diversidade. • Os pais de crianças mais novas (por exemplo, 3 a 5 anos de idade) podem falar sobre o conceito de disparidades raciais usando outros grupos compreensíveis e não raciais, como nível escolar ou cor dos olhos. Os pais podem também fornecer situações hipotéticas envolvendo justiça para trabalhar formas de identificar maus tratos e desigualdade. Ex.: “E se o seu professor estabelecesse uma regra que todos com [insira a cor dos olhos da criança] tivessem que almoçar uma hora mais tarde do que o resto da turma. Isso parece justo?” 17 • Promoção de desconfiança: • Para crianças mais velhas na infância ou adolescência, as conversas podem abordar as raízes históricas das desigualdades sociais, ressaltando como o racismo estrutural aumenta o risco de exposição e não realização de tratamento de determinadas infecções entre grupos raciais específicos, por exemplo, como foi o caso na pandemia da Covid-19. • Os pais também podem perguntar aos filhos o que eles podem fazer para lidar com essas desigualdades. Um exemplo de pergunta é a seguinte: “Como você acha que podemos tornar as coisas mais justas para todas as crianças?”. Convidar as crianças para que manifestem opiniões revela que os pais valorizam o que elas têm a dizer e aumenta a confiança delas em poder fazer novas perguntas ou conversar futuramente, inclusive envolvendo conteúdos de maior complexidade. • Os pais negros podem usar eventos de grande violência racial como uma oportunidade para aumentar a conscientização sobre o racismo, destacando as disparidades na forma como as pessoas são tratados na sociedade com base na raça. No entanto, não é indicado quepais negros utilizem tais episódios para incentivar a generalização e estereótipos de indivíduos brancos. • Embora possa ser tentador compartilhar imagens e vídeos de situações específicas para instruir os jovens, é importante que os pais reflitam se isso será útil ou induzirá mais estresse para eles e/ou para seus filhos. É essencial que os pais considerem quando e onde ter essa conversa. Além disso, é indicada a seleção de um momento em que os pais estejam menos estressados, pois isso, provavelmente, resultará em práticas de socialização racial mais competentes. • Um ponto essencial a se considerar é que as conversas sobre racismo não devem ser isoladas de eventos altamente divulgados na mídia. Devem ocorrer com frequência à medida que os pais percebem preconceitos e desigualdades raciais no contexto ou conteúdos que podem repercutir na criança. • Igualitarismo: • Inicialmente, é indicado examinar as crenças parentais e suas origens antes de se envolver em uma conversa com a criança, ou seja, refletir sobre como ocorreu o processo de socialização racial na família de origem dos pais e compreender o quadro atual é fundamental para criar crianças que sejam conscientes da raça e comprometidas com o antirracismo. Por exemplo, perguntas relevantes para uma possível intervenção devem ser realizadas, como: “Seus próprios pais falaram sobre raça enquanto você crescia? Você foi criado em uma família abertamente racista?”. 18 • Deve-se aproveitar constantemente as situações cotidianas que envolvem as relações étnico-raciais para conversar sobre o processo histórico existente no país, as diferenças que envolvem os grupos raciais, formas de enfrentar e combater o racismo, entre outros. Portanto, de acordo com as propostas apresentadas, é necessário compreender que todas as famílias devem desenvolver as habilidades para enfrentar com confiança o racismo que envolve a sociedade brasileira. Além disso, nenhuma criança nunca é jovem demais para ter uma dis- cussão sobre raça, e não se pode permitir que o medo que muitos pais possuem de conversar sobre a temática racial continue interferindo na criação de crianças para que sejam racialmente conscientes e antirracistas. Um primeiro ponto importante a se destacar é que somos seres cuja trajetória de vida se inicia na infância, perpassa a juventude, a vida adulta e consequentemente alcança a velhice. Ressalta-se que a população branca apresenta maiores possibilidades de chegar a idades mais longevas, devido às maiores oportunidades e condições de vida. Por outro lado, a mortalidade da popula- ção negra é mais acentuada, dificultando muitas vezes sua chegada à velhice (Santos & Rabelo, 2022). Uma vez que o racismo é uma ideologia que vigora e traz tantos impactos negativos, como pen- sar que as vivências raciais da infância não influenciarão a subjetividade da pessoa e demarca- rão o seu desenvolvimento na vida adulta e velhice? Como pensar que, ao longo do processo de envelhecimento, as desigualdades raciais não impactarão a velhice da população negra? Deste modo, entende-se que a velhice negra tem sua trajetória de vida perpassada por elementos que se iniciaram desde a infância, influenciando vivências posteriores e tendo o fator raça como ele- mento catalisador do cotidiano (Santos, 2020). Destaca-se que a população negra, quando tem a oportunidade de envelhecer, envelhece com menor qualidade de vida, de acordo com os indicadores gerais considerados mínimos para viver com dignidade (Brasil, 2016). Somam-se a isso os preconceitos sociais relacionados à idade (ageísmo), pois, à medida que a idade avança, as desigualdades associadas à raça, etnia e gêne- ro aumentam (Santos, 2020). Portanto, a violência racial atravessa o cotidiano dessa população em todas as etapas de vida, frustrando o exercício de direitos e gerando impactos psicológicos (Almeida, 2018; Moreira, 2019). POR QUE DISCUTIR RACISMO NA VELHICE? 19 Ressalta-se que para a população negra idosa muitas experiências de vida são estressantes e grande parte destas vivências possuem estreita relação com o racismo. Em estudo realizado por Santos (2020), por exemplo, observou-se como “situações estressantes” para mulheres idosas negras fatos relacionados à violência doméstica, à morte de filhos e demais familiares, à criação de filhos sem apoio, ao histórico de abandono, às péssimas condições trabalhistas, maus tratos e exploração desde a infância, restrições materiais e discriminação racial. Deste modo, entende-se que discutir racismo na velhice é uma pauta necessária, pois, para além do preconceito etário, a população idosa negra vivencia o racismo. Se pensadas as vivências das mulheres negras, acrescentamos ainda a questão de gênero como potencializador das condi- ções de sofrimento. De acordo Rabelo et al. (2018), na velhice, a pobreza, a baixa escolaridade e a desigualdade social são intensificadas pelos preconceitos culturais com relação à idade e, entre a população idosa negra, também pelo racismo, prejudicando o acesso e a atenção à saúde. É importante ressaltar que embora existam muitas vivências negativas impostas pelo racismo, esta não pode ser entendida como a história única da velhice negra e como único elemento para discussão, visto a necessidade de evidenciar as potencialidades deste grupo e as estratégias de resistência e apoio mútuo para o enfrentamento das questões sociais. Desta maneira, a psico- logia no atendimento ao público idoso precisa atentar-se aos aspectos anteriormente citados, a partir de uma prática mais inclusiva e por meio da criação de políticas públicas que visem mini- mizar os impactos do racismo na população negra e mais velha. 20 A discussão sobre o racismo na população negra tem sido cada vez mais significativa. No en- tanto, discutir racismo na população indígena ainda é escasso. É importante colocar este tema em pauta, tendo em vista que este grupo também compõe uma minoria racial e sofre com os impactos da falácia que a colonização implantou, tal como a ideia de que os grupos colonizados seriam naturalmente inferiores (Ribeiro, 2022). Desde o início da colonização do Brasil, os povos indígenas têm sofrido mudanças nos modos de viver, muitas vezes decorrentes de pressões sociais e violências, como a imposição de religião baseada na culpa e a extinção de hábitos culturais. Um número significativo de indígenas mor- reu ao longo dos combates de resistência contra as imposições colonialistas. A violência racial contra os povos indígenas, colaborou, inclusive na (re)organização geográfica deste grupo, que muitas vezes, ao migrar para os centros urbanos, sofreu de maneira mais intensa os efeitos da invisibilidade (Milanez et al., 2019; Ribeiro, 2022). A relação do Estado brasileiro com os povos indígenas resultou numa maior segregação deste grupo, devido às intensas perseguições territoriais, extermínio e genocídio do povo indígena, li- mitando os sobreviventes aos espaços das reservas florestais como se ali fosse o único espaço possível de viver, dado o estereótipo negativo da população indígena como primitiva (Ribeiro, 2022). Segundo este mesmo autor, muitos são os relatos de indígenas residindo nos centros urbanos e vivenciando discriminação étnico-racial em ambientes escolares, de trabalho, nos mo- mentos de lazer, nos acessos aos serviços comerciais e de saúde. SAÚDE MENTAL EM CONTEXTOS INDÍGENAS: INVISIBILIDADE DAS DIFERENÇAS 21 Nas cidades menos populosas, grande parte dos indígenas residem em terras oficiais, as quais “permitem” sua reprodução coletiva, mas, por outro lado, vivenciam limites para seu crescimento numérico e expansão cultural, o que ocorre por meio da degradação ambiental vigente em mui- tos desses territórios. Nos municípios mais populosos (geralmente urbanos), eles precisam criar meios que os vinculem entre si e estratégias de sobrevivência frente aos desafios comumente enfrentados nesses territórios (Ribeiro, 2022) Embora o racismocontra a população indígena seja evidente, este grupo tem pouco espaço no debate racial no Brasil, sendo contestada por alguns grupos a associação do racismo a esta minoria (Milanez et al., 2019). É urgente a necessidade de reconhecer o racismo contra esta população, evidenciando e validando as necessidades dos povos indígenas. Um caminho pos- sível é a escuta deste grupo e a sua inclusão no debate e na criação de políticas que enfoquem sua saúde mental, minimizando sua invisibilidade. Assim sendo, espera-se que que com maior enfoque neste problema social, seja evidenciada a prática colonial que reforça separações entre índios-brancos-negros, lógica esta que não ficou no passado, mas ainda molda a sociedade (Mi- lanez et al., 2019; Ribeiro, 2022). Segundo Ferraz e Domingues (2016), a complexidade desta temática demanda um olhar interdis- ciplinar e a Psicologia tem papel essencial na discussão racial, tal qual já explicitado. Porém, um grande desafio tem sido a escassez de referências específicas da Psicologia, talvez pela aproxi- mação “recente” desta área com os estudos raciais e também pela própria constituição da área ser pautada, especialmente, por tradições individualistas (ocidentais), opondo-se às tradições indígenas baseadas no coletivismo. ! ATENÇÃO: É pejorativo utilizar o termo “índio”, uma vez que esta terminologia reduz a diversidade de uma população e a associa a um lugar folclórico. Por isto, utiliza-se “indígena”, “povos indígenas”, “população indígena” ou “povos originários do Brasil” para se referir a este grupo (Silva, 2018). 22 Incluir na formação profissional de psicólogos no Brasil a temática do racismo se revela essen- cial já que o racismo estrutura a sociedade como um todo, operando no âmbito individual, nas relações interpessoais e nas instituições (Rabelo et al., 2018). Além disso, pela constatação de que a “grande maioria dos psicólogos e pesquisadores são brancos e socializados entre uma população que se acredita desracializada, o que colabora para reificar a ideia de que quem tem raça é o outro e para manter a branquitude como identidade racial normativa” (Schucman, 2014, p. 84). Desse modo, Tavares, Oliveira e Lages (2013) discutem como os profissionais tendem a não de- senvolver uma percepção crítica sobre as relações étnico-raciais e suas implicações no campo da saúde, reproduzindo a ideologia da igualdade social e democracia racial no país e não contri- buindo, assim, para com as ações promotoras da equidade. Especificamente sobre a formação dos profissionais de psicologia, a American Psychological Association (2019) destaca a importância de os educadores desenvolverem nos cursos de gra- duação currículos inclusivos, que devem ser abrangentes e ter uma abordagem baseada em pontos fortes para as questões enfrentadas pelas minorias raciais e étnicas. Além disso, orienta os educadores a promoverem nos estudantes o pensamento crítico e conscientização, com o compromisso profissional de realizar um aprendizado contínuo e exame das próprias crenças sobre raça e etnia. Outro ponto relevante é desenvolver nos graduandos de psicologia habilida- des clínicas para ajudá-los a atender populações diversas, incluindo exercícios em sala de aula para promover a autorreflexão ou o estabelecimento de parcerias comunitárias para práticas. RELAÇÕES RACIAIS NA FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO E ATUAÇÃO PROFISSIONAL PARA DESCONSTRUÇÃO DO RACISMO E PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE 23 Ademais, entre as estratégias de enfrentamento do racismo institucional, o Conselho Federal de Psicologia (2017) enfatiza a necessidade de os psicólogos brasileiros combaterem a discrimina- ção institucional, sendo compreendida como ação discriminatória no âmbito organizacional ou da comunidade. Para isso, algumas medidas devem ser adotadas pelos profissionais: 1. Diagnosticar a discriminação institucional: Para identificar a presença de discriminação institucional e os elementos que dificultam ou impossibilitam a igualdade de oportunidades e tratamento, para posteriormente elaborar um plano estratégico, devem ser realizados: levantamento histórico da instituição acerca das relações raciais; pesquisas sobre como ocorrem os processos de recursos humanos e se é efetuado um levantamento sobre a relação das instituições com a comunidade, parceiros, clientela, fornecedores e prestadores de serviços. 2. Quesito raça/cor: Ao se ter uma visão geral das fragilidades e pontos críticos das instituições sobre as ações existentes que mantém as desigualdades raciais, para se intervir em tais problemas, é necessário ter dados precisos acerca da composição racial dos colaboradores/usuários, bem como a identificação de quais medidas adotadas são ineficazes no combate da discriminação e que não possibilitam o alcance da igualdade. Além disso, é importante ter dados acerca da renda, sexo e idade, para que se trace o perfil dos indivíduos que estão inseridos ou se relacionam com as instituições. 3. Enfrentar a discriminação racial: Incorporar nas práticas das instituições as ações afirmativas comprometidas com a promoção da igualdade. Ou seja, é necessária a implementação de políticas de promoção da igualdade ou de inclusão. Desse modo, busca-se garantir, fomentar e propiciar a igualdade. Tal direcionamento vai além do não discriminar somente. parceiros, clientela, fornecedores e prestadores de serviços. 4. Sensibilizar gestores e profissionais: Frequentemente, devem ser realizadas as ações que visam promover uma reflexão dos gestores e profissionais da assistência no que se refere às questões que envolvem as relações étnico- raciais, tanto no contexto da instituição quanto fora desta. 24 A American Psychological Association (2019) também enfatiza a necessidade de psicólogos desenvolverem uma capacidade de resposta etnocultural e racial em decorrência da diversidade populacional e das persistentes disparidades raciais e étnicas existentes. Consequentemente, identificaram quatro diretrizes fundamentais na atuação e formação dos profissionais de Psico- logia, que facilmente podem ser adotadas pelos psicólogos brasileiros. Confira: Especificamente no campo da Psicologia Clínica, a American Psychological Association (2019) orienta que os psicólogos prestem serviços livres de preconceitos raciais e etnoculturais, incluin- do não somente o processo de intervenção, mas também as avaliações de indivíduos e grupos. Contudo, sabe-se que no campo da Psicologia Clínica brasileira não se tem um corpo de conhe- cimentos, métodos ou estratégias sistematicamente desenvolvidas para o manejo clínico das repercussões do racismo sobre a saúde mental da população negra (Tavares & Kuratani, 2019). De forma complementar à primeira estratégia, a American Psychological Association (2019) es- tabelece uma diretriz sobre a necessidade de que os profissionais de Psicologia reflitam sobre como seus próprios preconceitos e suposições enviesadas afetam os tipos de serviços que pres- tam e busquem compreender as especificidades dos clientes no que se refere à raça e etnia, que podem influenciar na percepção, avaliação e engajamento do tratamento. Outro aspecto relevante é o reconhecimento por parte dos psicólogos das opressões estruturais na sociedade e nos sistemas de saúde existentes na sociedade e a busca de desafiar os preconceitos nas ins- tituições e serviços que podem afetar direta ou indiretamente a saúde e o bem-estar dos clientes (American Psychological Association, 2019), pois quando o psicólogo clínico não reconhece o racismo como produtor de iniquidades sociais, preconceito e discriminação, contribui para o aumento de sofrimento psíquico de seu cliente pertencente a um grupo específico minoritário racial e etnicamente e para a manutenção das desigualdades raciais (Tavares & Kuratani, 2019). • 1ª Diretriz: reconhecer a influência de raça e etnia em todos os aspectos das atividades profissionais como um processo contínuo. • 2ª Diretriz: ampliar constantementeo conhecimento com base em evidências referentes à raça e etnia, incluindo aprofundar-se em outros campos de saber, como a Antropologia e a Sociologia. • 3ª Diretriz: aumentar a consciência sobre a própria posição na hierarquização racial e sociocultural, bem como refletir sobre privilégios, preconceitos, crenças e atitudes relacionadas à temática. Participar de grupos de estudos e cursos de formação que têm como foco conteúdos relacionadas à raça e etnia são exemplos de atividades que possibilitam uma maior reflexão pessoal e profissional. • 4ª Diretriz: abordar, de forma sistemática, desigualdades e injustiças organizacionais e sociais no que diz respeito à raça e etnia em estruturas organizacionais dentro e fora da Psicologia. 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil, nascer com a pele preta e/ou outras características negroides e compartilhar uma mesma história de desenraizamento, escravização e discriminação racial, bem como pertencer aos povos indígenas, implica em uma alta probabilidade de experiências negativas e dificuldade de acesso a condições de moradia adequadas, renda, saúde, educação e, até mesmo, à vida. Esperamos que o e-book Psicologia e Relações Étnico-Raciais: reflexões e possibilidades teóri- co-práticas tenha produzido valiosas contribuições para a sua prática profissional. Buscamos, aqui, sintetizar conteúdos fundamentais sobre a temática racial e sua relação com o campo da Psicologia. Desse modo, sugerimos a busca pelas produções que constam nas referências, bem como a procura por outros materiais de apoio a fim de obter uma compreensão mais específica sobre as particularidades que envolvem uma prática profissional antirracista. 26 Naylana Rute da Paixão Santos Doutoranda e Mestra em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Saúde da Pessoa Idosa pelo Programa de Residência Multiprofissional da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Docente nos cursos de graduação em Psicologia na EBMSP e na Faculdade Santa Casa (FSC). Integrante do Grupo de Trabalho “Psicologia, Envelhecimento e Velhice” do CRP03. Membro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Núcleo de Estudos Avançados em Desenvolvimento Humano e Saúde Mental”. Carmem Beatriz Neufeld Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Associação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas - ALAPCCO (2019-2022). Presidente da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Nilton Correia dos Anjos Filho. Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Terapeuta Cognitivo-Comportamental e Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Atua como psicólogo e supervisor clínico e docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade Salvador (UNIFACS) e cursos de especializações. Pesquisador do Parapais - Grupo de Pesquisa sobre Parentalidade e Desenvolvimento Socioemocional na Infância/UFBA. SOBRE ESTE E-BOOK A AUTORA E O AUTOR SOBRE A EDITORA-CHEFE Como citar: Santos, N. R. da P., Anjos Filho, N. C. dos & Neufeld, C. B. (2022). Ebook Psicologia e Relações Étnico-Raciais: reflexões e possibilidades teórico-práticas. Blog do Secad. [Site] 27 Este conteúdo foi útil para você? No nosso site, você encontra soluções para continuar se atualizando na área de Psicologia quando e onde quiser. Acesse o site e confira as opções de livros, cursos e programas de atualização para se aprimorar profissionalmente: www.artmed.com.br http://www.artmed.com.br 28 Almeida, S. L (2019). Racismo estrutural (1ª. ed.). Pólen. American Psychological Association, APA Task Force on Race and Ethnicity Guidelines in Psychology. (2019). 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