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CENTRO DE CUNClAS JURtDICAS E FILOSOFIA POUTICA o DIREITO SUBJETIVO NAS TEORIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS DJACIR MENEZES "Tâchez de considerer plutôt le sens du mouvement, contre qui je partais en bataille ... " MICHEL VILLBY 1. Relação jurldica e intersubjetividade; 2. O nódulo dos direitos humanos; 3. Estado constitucional e direitos huma nos; 4. O processo de subjetivação; 5. O absolutismo e a liberdade igualitária; 6. Direitos - atributos naturais ou culturais; 7. O antropocentrismo do pensamento jurídico; 8. Como se defenderia a consciência democrática? 1. Relaçlo jurídica e intersubjetlvidade Quando se diz que o direito subjetivo é reflexo da normatividade jurídica, que o Estado, simultaneamente criador e criatura do direito, vai cons truindo e reconstruindo como expressão do poder de limitar e autolimitar se, apenas se dá explicação parcial do fenômeno. Qual o prius lógico - a norma jurídica que confere o direito subjetivo (interesse legalmente pro tegido, na definição clássica de Jhering), ou a relação jurídica, de onde se destrinçam os elementos constitutivos: o "sujeito", o "objeto", a "pre tensão", a "ação", a "sanção"? Pretendemos estabelecer aqui os "momentos" da relação jurídica a partir da fase gnosiológica até a fase de sua integração. Assim, inicial mente teríamos o (sub x ob) jectum, ainda no despontar no plano da consciência cognoscente. Denominemo-Ia de relação epistêmica; a seguir, com a apreensão daquela bivalência na integração convivente, definir-se-ia como relação social; e enfim, já como relação-vetor, isto é, polarizada como sujeito x sujeito (objetivado), a relação jurídica. É, pois, na inter- R. Cio poI., Rio de Janeiro, 18(4) :51·59, out./dez. 1975 subjetivação, que assume a visibilidade jurídica, emergindo do tecido de . relações sociais do mundo fático como categoria do direito, no seio do mundo axiológico, mundo de coisas e valores vitalmente finalísticos. Nes se intersubjetivar-se (acepção diversa de "subjetivizar-se" em nossa ter minologia) é que reside o fenômeno típico do direito. Não há direito entre nomem e co:sa, mas entre homens a propósito de "coisas", que são bens valorados por eles. A relação jurídica eclode no processo interativo humano quando a consciência social se revela historicamente capaz de percepção normativa. Noutras palavras, quando a experiência social se objetiva como experiência normativa através de estruturas que disciplinam as formas de convivência, instaurando estilos de ação coercitiva, com a produção psicológica dos efeitos inibitórios sobre a conduta humana. Tal frase mostra a integração dos caracteres básicos que definem o fenômeno jurídico. É o surgir do imperium que irá caracterizar o Estado: obligo ergo sumo Este, entretanto, é estranho ao despontar da regra jurídica e de suas sanções. 2. O nódulo dos direitos humanos Essa transição da experiência social para a experiência normativa exprime a passagem dialética do fato para o valor, uma mudança qualitativa entre duas formas de experiência. O mundo dos valores é, por assim dizer, translúcido: nele é que se precisa o lineamento racional do direito. Não é um reino à parte. A opacidade da força bruta se diafaniza na força racional. Na linha desta argumentação, quando a relação social entra na esfera da proteção do poder é que toma a conotação íntima da juridicidade. De onde lhe advém a conotação denunciando-lhe outra essência? Porque, hegelianamente falando, a essência aparece. l Formulando a questão de outra maneira: que impele o Estado a proteger certas relações sociais, juridicizando-as? O sentido vital da coexistência é intuído na consciência humana como id quod justum est: o ponto interiormente luminescente da relação social que a torna jurídica. Só então se pode falar em "direito subjetivo", que é o nódulo dos direitos humanos. Decerto isso não significa que dali se irradiem todas as normas jurídicas que cobrem variadas relações so ciais, cuja proteção pelo poder não as torna subjetivadas. Mas, indiscutivel mente, é o antropocentrismo da experiência normativa que dá a tônica dominante do processo jurígeno: o homem é a medida de todas as coisas do universo do direito. Nesta altura de nossa argumentação, devemos atalhar que a tese não resvala no individualismo jurídico do século XIX e de seus continuadores do século XX. Porque ouvimos a lição da antropologia cultural explican do o processo de humanização histórica do ser que veio a tomar-se 1 Hegel. Wissenschaft der Logik. Leipzig, Felix Meiner, 1923. p. 100. 52 R.C.P. 4/75 subjectum. Isso, entretanto, não deve fazer perder de vista a individua lização crescente que levou às técnicas da personificação, com a atribuição de "direitos" não mais ao "grupo" mas ao "indivíduo", revelando ten dência profunda da elaboração da cultura política. Pouco importam os eclipses ocasionados pelas ideologias que con fiscam as prerrogativas da personalidade em benefício do imperium encar nado no Leviatã e no carisma de um líder (das Recht ist was der Führer spricht). Entre o individualismo que facilitou o jogo plutocrático do libe ralismo político (século XIX e meados do seguinte) e o esmagamento dos cives pelas ditaduras de tipo marxista, está a configurar-se a morfolo gia do Estado, que se armará dos instrumentos constitucionais capazes de resistir, sem o sacrifício das garantias dos cidadãos, às agressões contra as instituições representativas. 3. Estado constitucional e direitos humanos o capítulo constitucional dos direitos subjetivos, que se chamou garantia das liberdades e direitos -individuais, procede, genealogicamente, da fa mosa déclaration des droits de l'homme et du citoyen, que Mounier, no dia da queda da Bastilha, propôs à Assembléia para incorporar à Cons tituição. Atendendo à petição, Pethion de Villeneuve nomeou seis membros para apresentar o projeto constitucionaJ.2 Dispensemos as recordações das raízes remotas da Magna Carta (1615) e ouçamos a voz recente do Prof. Martin Kriele ensinar, no seu Einführung in die Staatslehre, que a Revolução Francesa é mais do que um exemplo doutrinário na teoria geral do Estado, é também "um ponto de partida dos movimentos de democratização que moveram a História".3 Ninguém ignora que a decla ração francesa inserida na Constituição de 3 de setembro de 1791 já fora formulada nos documentos americanos, notadamente o federalismo, alheia ao movimento continental europeu, conforme anota Themistocles Cavalcanti em estudo publicado nesta revista;' Sem Estado constitucional não há direitos humanos, resume Kriele. E no mesmo fio de raciocínio: no Estado constitucional não há nenhum soberano. A figura da soberania popular é algo difuso e irrepresentável: "a representação de um soberano é matéria revolucionária explosiva (revolutiorúirer Sprengstoff) contra o Estado constitucional".5 No dizer de Duguit, ao declarar o povo soberano, a metafísica jurídica implica um 2 Duguit &; Mounier. Les Constitutions et les principales lois politiques de la France depuis 1789. Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1908~ p. 15. 3 Kriele, M. Einführung in die Staatslehre. Hamburg, Rowahlt, 1975. p. 16l. 4 Cavalcanti, Themistocles. Revista de Ciência Política, v. 2, n. 4, out./dez. 1968. li Kriele. op. clt Direito subJetivo 53 ato de fé: três poderes hipostasiados e uma só figura soberana, reprodu ção do dogma teológico no cenário político. Quando se pensava fogosa mente o tema, nas horas místicas do revolucionarismo francês, o cidac1ão Anacharsis Clootz, concluindo o discurso, propôs uma Constituição de três artigos. Basta recordar o primeiro: "Não há outro soberano que o gênero humano." Os outros dois decretavam a fraternidade universal de todas as sociedades humanas. Tutti sono buona gentio De há muito, o desenvolvimento do capitalismo mercantil vinha ero dindo os vínculos sociais que sustentavam os privilégios do ancien régime. que os agentes econômicosdo processo de troca, os homines novi do ativo pensamento político, começavam a combater e demolir. A "igualdade jurídica de todos perante a lei" enunciava, sob forma abstrata, as determi nações reais que visavam abolir o estamento nobiliárquico. A igualdade jurídica partia do pressuposto concreto da desigualdade econômica básica. Di-lo bem Leibholz, "a liberdade produz inevitavelmente a desigualdade e a igualdade produz necessariamente não-liberdade (Unfreiheit): tanto mais livres os homens, tanto mais desiguais eles se tornam".6 Porque é exatamente na liberdade que se expandem as qualidades originais que desigualam os indivíduos. Então, os igualitaristas invocam o rolo aplainador da ditadura para nivelá-los. 4. O processo de subjetivação Coube a Jhering mostrar que o "direito subjetivo" não é qualitas moralis nem prerrogativa intrínseca do indivíduo, mas algo exterior, valor multi forme (interesse, bem, gozo, utilidade, que nome se lhe dê jogando com essas conotações habituais). Compreende-se por que Gaio fala nos jura como elementos componentes da "coisa" pars rerum. Ares conceitualizada na especulação jurídica tem objetividade ideal, que permitiu ao pensador romano descascar-lhe os jura componentes, fato que os pandectologistas não tomaram na devida responsabilidade. Assim, ao pensar o direito como "coisa" (res) , a intuição romana concebia-a como tecido de relações discerníveis no trato jurídico. Tais relações são essencialmente intersubje tivadas. Se o direito não é atributo inerente do sujeito, a relação em que se revela exige os sujeitos ativo e passivo, constituindo a bivalência vital da relação jurídica. O jus in re ipsa somente ganha sentido na intersubje tivação latente, onde palpita a valoratividade do justum. Não pára aí a tentativa de exame. O substratum ou "suporte" do direito subjetivo não é o sujeito individual: a realidade está também na relação, que é jurígena. Pelo fato de a tônica deslocar-se para o relaciona mento intersubjetivo não quer dizer que o direito se reduza à titularidade 6 Leibholz. Strukturwandel der modernen Demokratie. Frankfurt, Berlim, UlIstein Buch, 1973. 54 R.C.P. 4/75 subjetiva - intuição alimentada pela metafísica aristotélica transmitida no pensamento jurídico desde Leibniz, Thomasius e Wolff. Repetindo, pergunta-se: Seriam "direitos" essas faculdades ou poderes ou apanágios essenciais do homem (vida, liberdade, integridade física) os chamados outrora direitos personalíssimos? Seriam direitos primordiais e naturais inscritos na razão, que a ordem jurídica devia reconhecer, antecedentes ao normativo positivo? Noutras palavras - preexistem ao direito positivo ou são cria ções do poder legiferante? Como explica Helmut Coing, o direito natural não se transfere à realidade do direito positivo de maneira inalterável. A positividade modi fica a transição do physei dikaion ao thesei dikaion. Preferimos dizer que as qualidades da pessoa, nesse processo de "reconhecimento", é que se definem como direitos subjetivos fundamentais. Áreas variáveis do direito objetivo permanecem insubjetivâdas, con forme os diversos sistemas normativos. Sem que se conceitue o direito subjetivo, distinguindo-o da. pretensão como facultas exigendi, da ação como direito material e do remédio jurídico processual como direito for mal, não é possível determinar tecnicamente o alcance do problema. Nem sempre os estudiosos perceberam a sutileza da noção de pretensão (Ans pruch) , razão jurídica de agir, e a adio, razão judiciária de agir, como argutamente viu Alexandre Levy. Deixando de lado o processo de subjetivação dos direitos na esfera privada, interessam-nos as transformações que se operam no domínio do direito público constitucional - principalmente no tocante aos direitos humanos. Observe-se que o "direito à liberdade" passou ao centro da polêmica dramática - dele parecendo depender todos os demais direitos -, à vida, à propriedade, à integridade física e moral (dignidade). Plurali zou-se: não se conoeberam liberdades civis, mas liberdades humanas, pondo-se a tônica não no direito natural mas nas Constituições promulga das em nome de Deus. Ou do povo, com anuência tácita de Deus. Ou sem audiência de Deus, conforme os climas políticos. 5. O absolutismo e a liberdade Igualitária Qual o papel histórico do capítulo constitucional das garantias individuais? O de obstar a ação compressora do :poder sobre as potencialidades do in divíduo. Obstava, todavia, mais vivamente a classe que sofria mais forte mente a inibição histórica do movimento que a empenhava em direção ao poder econômico e politico. Chegara a hora da conquista de direção polí tica e a burguesia era a força em marcha: sua receptividade à diferença entre liberdade e privilégio se aguçava extraordinariamente. Assim, na literatura das declarações, "liberdades" e "direitos" sinonimizavam-se no capítulo constitucional. Nosso Pimenta Bueno ensinava que os "direitos políticos são filhos da Constituição do Estado" e assinala-os como "direi- Direito subjetivo 55 tos ou liberdades poIíticas".7 A antinomia de Rousseau entre "liberdade" e "autoridade" era, na verdade, entre "direito" e "poder aristocrático". A dissimetria entre classes seria tomada por Marx como dogma para expli cação de toda história humana. Viu bem o problema o Prof. Kriele quando apontou "a mistura (Verschmelzung) de Estado constitucional com direito natural para cria ção da força revolucionária que operou no sentido da determinação da liberdade igualitária no seio do Estado constitucional, do sufrágio universal, das tendências socializantes, da criação das condições reais para a liber dade de cada um".8 O Estado totalitário, que renovou o absolutismo no teor adequado ao industrialismo moderno, teve de abrir caminho demolindo o fundamen to jurídico dos direitos do homem. A teorização de seus ideólogos começou por negar o direito como elaboração histórica das forças tradicionais para vê-lo apenas como sistema normativo editado pelo Estado. Direito seria o que o Estado quisesse que fosse direito. E como o Estado acabou sendo o Führer ({'État c'est lui!) - desapareceram as clássicas distinções entre poder estatal e poder constituinte. Não teria sentido falar-se em "direito subjetivo". Como os extremos se tocam (enunciado popular de um aspecto dialético das coisas observadas), a tese do positivismo jurídico, levada ao extremo, transmuda-se na tese nazista do líder carismático. 6. Direitos - atributos naturais ou culturais Vale a pena examinar a questão. Sem remontar além de Leibniz ou Wolff encontra-se, nos seus textos, menção ao subjectum juris. Em Puchta e Savigny já aparece a expressão Recht im subjektiven. f:, todavia, em Jhering, Windscheid, Thon e na pandectologia alemã que circula o termo subjek tives Recht, confrontando com o objektives Recht, na acepção que veio a radicar-se no direito moderno. Faculdades ou poderes inerentes à personalidade humana (liberdade de locomoção, de manifestação do pensamento, direito à vida, à proprie dade) não são criaturas do direito: são declaradas ou instituídas pelo ordenamento jurídico. A lei intervém para reconhecê-las, autenticá-las, garantir-lhes a proteção do Estado, segundo o rito solenemente inscrito nas constituições. Até certo ponto, não são poderes criados mas qualidades socialmente desenvolvidas como atributos do homem, que o processo jurídico vem legitimar, dando-lhes status de positividade. Sua fonte originária não é pois o ordenamento legal, que o reconhece e institui juridicamente. 7 Pimenta Bueno. Direito público brasileiro. Rio, Typ. Imperial e Constitucional de J. VilIeneuve, 1957. p. 390. 8 Kriele. op. cit. 56 R.C.P. 4/75 Posto o problema nestes termos (e não vamos distinguir aqui, se guindo os passos de Alexandre Levy, entre a facultas agendi e o direito subjetivo),9 a explicação dada na literatura corrente de que o direito subjetivo seria mero reflexo da normatividadepositiva produzida pelos órgãos legiferantes peca por insuficiência no esclarecimento do processo. No propósito de fortalecer os direitos feudais, cuja contestação já se pressentia, os juristas medievais tiveram suas cautelas no modo de assentar as bases do direito natural, tendo seus exegetas exagerado, de acordo com a inspiração religiosa, a conceituação das faculdades morais. Estas foram consagradas como prerrogativas racionais acima das condições naturais - qualitas moralis personae competens, como escreveu Grocio (De Jure belli ac Pacis, 1 I, 4). E assim rezava nosso Pimenta Bueno: "Os direitos individuais, que se podem também denominar naturais, primitivos, absolutos, primordiais ou pessoais do homem, são as faculdades, as prerrogativas morais que a natureza conferiu ao homem como ser inte ligente; são atributos~ essenciais de sua individualidade, são propriedades inerentes à sua personalidade, são partes integrantes da entidade huma na."lO Apenas, em vez de reconhecer em tais atributos resultado da evolu ção humana e na personalidade um produto histórico, o velho tratadista, na vanguarda de seu tempo, afirma o que tantos hoje, na retaguarda do nosso tempo, repetem: tais prerrogativas "não são criaturas de leis positivas e sim criação de Deus, atnoutos do ser moral que ele formou". 7. O antropocentrismo do pensamento Jurídico É sedutora a tese de Michel Villey, que busca as nascentes medievais do direito subjetivo no nominalismo de Guilherme de Occam. Levanta a hi pótese de que a liberdade e o poder do indivíduo são condições prelimina res da elaboração da ciência do direito. Destarte, estimulou-se a convicção de que o jus era algo imanente à racionalidade humana, id quod justum est, que os pandectologistas glosaram incansavelmente, robustecendo a romanística, que só nos nossos dias começou a renovar-se mediante a crítica moderna. O direito subjetivo, entretanto, não é um ponto de partida na evolução da especulação jurídica. É um ponto de chegada: prende-se à luta por uma organização social onde os direitos fundamentais da pessoa não sejam deformados pela sujeição a minorias de dominação, plutocráti cas ou ideológicas. O novo antropocentrismo do pensamento jurídico será expressão de solidariedade humana, que deverá superar o nivelamento das ditaduras marxistas. A revisão histórica do capítulo constitucional das garantias dos direi tos fundamentais, feita à luz de princípios de solidariedade humana, se 9 Levy, Alexandre. Teoria generale dei direitto. Padova, Casa Editrice Antonio Mi· Iani, 1967. p. 282 e segs 10 Pimenta Bueno. op. cito Direito subjetivo 57 acelera com a entrada de uma segunda declaração dos direitos do homem no perímetro do direito positivo. Isso significa a instauração do mecanis mo da sanção organizada como processo de sua subjetivação. Essa inser ção na normatividade determina a nova exegese da expressão "garantia", com a passagem de direitos naturais a direitos civis - direitos que ingres sam no elenco da poUs. Mas não se trata mais de enunciados programá ticos: como outrora, transitam para a área de regras obrigatórias, isto é, para a subjetivação daqueles direitos. A aparição dos pouvoirs d'exiger, de que fala Rivero,l1 é o sintoma da programaticidade transformando-se em imperatividade. Em termos jurídicos, diríamos a aquisição da pretensão e da acionabilidade, que os transfiguram em direito público subjetivo. De tal modo no passado a tumescência desses direitos expressos nas garantias constitucionais inflou os textos do liberalismo, que se afinnou: "faire une constitution c'est d'abord garantir les droits de l'homme". Como efeito assecuratório daqueles direitos do cidadão, ~altava-se a teoria da divisão dos poderes, que enfraquecia o poder estatal desconcentrando-o. A importância da matéria cresceu nos dias correntes em face do absolu tismo do Estado, pondo em xeque a legalidade constitucional dos direitos fundamentais. As lutas sociais, porém, fizeram desabrochar as sementes de direitos complementares àquelas declarações clássicas (direito ao tra balho, à assistência, à educação), que balbuciavam na boca dos consti tuintes de 1791: "il sera crée et organisé un établissement générale de Secours publics pour élever les enfants abandonnés et fournir du travail aux pauvres infirmes qui n'auraient pas pu s'en procurer".12 Tais direitos não interessavam tão diretamente às reivindicações do século passado e iriam amadurecer historicamente nas entranhas da so ciedade industrial até o vigor que manifestariam nas Constituições con temporâneas. Teriam, todavia, enxertos temporões, plantados de garfo, nas Constituições africanas, meros preâmbulos pedagógicos de apanágios da personalidade cultural que não se elaborara no processo histórico atrasado. Nelas, o estatuto político antecipava categorias sociais que a queima das etapas não poderia improvisar. 8. Como se defenderia a consciência democrática? Nesta altura de nossa análise. será oportuno recordar a distinção feita por Jellinek. Ao conceituar os direitos fundamentais como direitos subjetivos, classificou-os em dois grupos: a) os que são liberdades públicas autênticas, conferindo aos indivíduos direitos subjetivos, com a delimitação de áreas respeitadas pelo poder (status negativus); b) liberdades-participação (status activus). 11 Rivero. Les droits de l'homme. Perspectivas dei derecho público en la segunda mitad dei siglo XX. Madrid, Estudios de Administración Local, 1969. v. 3, p. 25 e segs. 12 Duguit & Mounier. op. cit. 58 R.C.P. 4/75 Nas atuais circunstâncias históricas, a tática constitucional visa re tirar das hostes agressoras, obedientes às inspirações marxistas, a possi bilidade de usar legalmente tais direitos fundamentais na destruição do regime representativo e dos estilos de vida democráticos. Como fazê-lo sem negar tais direitos, que asseguram a liberdade de movimentos hostis? Como enfrentá-los sem recorrer às armas, proibidas pela consciência democrática? A melhor resposta não está na teoria democrática; está no" fatos históricos: o golpe bitIerista de 1933 foi preparado no clima da legalidade constitucional onde vigiam aqueles direitos.. Compreendemos então por que a Lei Fundamental de Bonn aparelhou o Tribunal Constitucional Federal com o art. 18, que determinou sabia mente a perda dos direitos fundamentais àquele que "usá-las contra a ordem fundamental liberal democrática (gegen die freiheitliche demokratische Grundordnung missbraucht, verwirktt diese Grundrechte)".13 A República Federal Alemã blindava-se para resistir às ideologias inimigas. Daí a força que ganhou o princípio da legalidade (Gesetzmaessigkeeitsprinzip): ne nhum ato de poder contrário à lei (Vo"ang des Gesetzes) , nenhum ato de poder não previsto pela lei (Vorbehalt von Rechten). Eisenmann tra duziu esses enunciados como "compatibilidade" e "conformidade" ao normativismo vigente. A sensibilidade à lei assumiu papel de orientar a resistência cívica. O Estado totalitário despe a personalidade de todos os atributos jurí dicos. Em tal nudez, não há "sujeito de direito". As qualidades intrínsecas, que a cultura aprimorou e a ordem jurídica reconheceu e declarou no pro cesso político, se porventura sobrevivem nas cabeças liderantes, não são direitos, são privilégios. Na sua antipatia pelos juristas, Comte adivinhou coisa parecida: "chacun a des devoirs envers tous, mais personne n'a aucun droit proprement dit." :E: exato que Comte pensava noutra direção e noutro contexto. Esclareçamos. Tais direitos não se tomam fundamentais porque as constituições os inserem no capítulo declaratório. Eles preexistiram como direitos humanos. Foram, através de lentas e penosas vicissitudes históri cas, formulados no curso das lutas contra grupos de dominação, e consa grados como princípios de convivência política e da estruturação do poder. São, sob certo ângulo, princípios de organização racional do uso da força e da ordem compatíveiscom a dignidade humana. 13 Duncher & Humblot. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deu~s~hla-';d~ arts. )-:j':. Gunther Abei. Die Bedeutüng der Lebre von den. Einrichtings garantien für die Ausle. gung des Bonner Gnmdgesetzes. Berlim, 1964. Direito subjetivo 59
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