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Discurso proferido pelo Prof Afonso Arinos de Melo Franco, diretor do INDIPO na solenidade de abertura do VII Curso de Direito Internacional

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DISCURSO PROFERIDO PELO PROF. 
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, DIRETOR DO 
INSTITUTO DE DIREITO PÚBLICO E CIÊNCIA 
POLÍTICA, NA SOLENIDADE DE ABERTURA DO 
VII CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL * 
Senhor presidente do Comitê Jurídico Americano, meu prezado colega 
de congregação, ProL Haroldo Valadão, senhores representantes das Orga­
nização das Nações Unidas e Organização dos Estados Americanos, senho­
res cônsules, senhores embaixadores do Brasil, senhores bolsistas inscritos 
no curso, minhas senhoras e meus senhores. 
O direito internacional americano tem por si uma vasta bibliografia histó­
rica e doutrinária. Historicamente, como todo o tipo de direito público, ele 
depende da formação do Estado não apenas no Brasil como no resto do 
mundo. O direito internacional é um direito do Estado e ele se inaugura 
naturalmente com a formação do Estado moderno. 
O Brasil tem uma curiosa perspectiva na formação do seu direito inter­
nacional, sobretudo o direito internacional americano, porque ele se formou 
em etapas sucessivas, através da realização e execução de negociações diplo­
máticas. O direito internacional brasileiro é inicialmente obra da diplomacia. 
Posteriormente a doutrina foi se formando na ordenação dos episódios diplo­
máticos e as suas soluções negociáveis em torno dos princípios fundamentais 
assentados pela ciência jurídica. Eu poderia estender isso por longos mi­
nutos se estivesse dando uma aula, mas prefiro apenas referir os episódios 
fundamentais dessa sucessão de etapas construtivas, para ilustrar aquilo 
que estou sugerindo. 
Bem antes da independência, no período de delimitação do nosso terri­
tório, nós levamos a efeito essa delimitação do território e, em seguida, a 
fixação das fronteiras. A delimitação do território é um episódio tipicamente 
colonial, a fixação das fronteiras é um episódio posterior à independência. 
No período de delimitação do território aparece o primeiro grande diplo­
mata brasileiro, Alexandre de Gusmão; ele criou as condições e os funda­
mentos da sustentação jurídica da posição brasileira com relação aos países 
espanhóis da América do Sul, em função da união das coroas de Castela 
e de Lisboa e da ocupação, pelos brasileiros, dos territórios do Oeste. 
Assim um país dividido pelo tratado de Tordesilhas que mal abrangia um 
terço ou menos do território nacional de hoje, expande-se a Oeste indepen­
dentemente de qualquer luta, porque a coroa era comum e assim formou-se 
o território nacional brasileiro, que tem uma distância maior entre o extremo 
Oeste e o extremo Leste do que entre o extremo Norte e o extremo Sul. 
Em torno dessas negociações que determinaram o Tratado de Madri foi 
* OEA/FGV, em 4 de agosto de 1980. 
R. Cio pai., Rio de Janeiro, 23(3): 19-23, set./dez. 1980 
que se formou a teoria do uti possidetis através da ação principalmente de 
Alexandre de Gusmão. 
Outro fato que pode ser citado para sustentação da nossa tese é o pro­
blema do reconhecimento da independência. Este reconhecimento era uma 
questão de direito internacional mundial, porque envolvia a questão funda­
mental da época, que era o princípio da legitimidade dos governos, firmado 
no Tratado da Santa Aliança. Formada em Viena para restauração dos 
Bourbons e proscrição dos Bonapartes, a Santa Aliança tinha restaurado o 
princípio da legitimidade monárquica e a independência do Brasil feria 
tal princípio, uma vez que em Portugal D. João VI, rei legitimista, não estava 
ainda de acordo com a coroação do Imperador Pedro I. As negociações em 
torno da independência foram muito dificultadas pelos adeptos do legiti­
mismo dinástico inclusive, principalmente, o grande Visconde Chateau­
briand, um dos maiores escritores do século XIX, que era ministro dos 
Negócios Estrangeiros do Rei de França Luís XVIII, diretamente interes­
sado na causa legitimista, contra os seus concorrentes Orléans e Bonapartes. 
A Inglaterra, também, não aceitava nossa independência a princípio, e só 
depois da presença de Canning no governo torna-se a favor, porque não 
lhe interessava tanto a tese legitimista. 
As negociações relativas à independência foram de fundo diplomático, 
porque era o afastamento do princípio da legitimidade e o reconhecimento 
de um soberano que subia ao trono suscitando uma dúvida sobre esse prin­
cípio: o filho sucedia ao pai contra a vontade deste. Só depois o acordo 
foi feito, no tratado do Rio de Janeiro de 1825, sobretudo, por intermédio 
de negociador inglês. A importância da missão inglesa era tão grande que 
o governo inglês tirou o embaixador de Paris e o mudou para o Rio de 
Janeiro. 
Nesta etapa, o direito internacional brasileiro evoluiu através do Patriarca 
José Bonifácio, que não chegou à conclusão porque se afastou. Os nego­
ciadores brasUeiros foram o grande Marquês de Barbacena, Felisberto Cal­
deira Brant, Marquês de Paranaguá, o Marquês de Santo Amaro e o Vis­
conde da Cachoeira. 
Estes experientes diplomatas brasileiros do Primeiro Reinado deram à 
negociação diplomática a direção jurídica de que saiu a possibilidade do 
reconhecimento da independência por meio do Tratado do Rio, entre partes, 
de um lado Brasil, de outro Portugal, de outro, como garante, a Inglaterra. 
Este tratado é uma segunda etapa da formação do direito brasileiro. 
Uma terceira etapa dessa formação, ainda no Primeiro Reinado, foi o 
Tratado de 1826, com a Inglaterra, que proibiu o tráfico negreiro, mas este 
tratado foi interpretado pela Inglaterra de uma maneira unilateral através 
da famosa Lei Aberdeen, creio que de 1843. 
Por esta lei a Inglaterra assumiu o direito de visitar os nossos navios no 
mar. Visita esta que era feita arbitrariamente porque chegou a ser procedida 
na boca dos canhões dentro da Baía da Guanabara. Os navios ingleses 
mataram brasileiros que atravessavam daqui para a chamada Praia Grande, 
hoje Niterói. 
20 R.C.P. 3/80 
o tráfico de escravos naquela época estava interessando à Inglaterra de 
dois modos: a uma elite intelectual formada por parlamentares e escritores, 
mas também à colonização inglesa na África, América e Ásia que sofria 
muito com a concorrência da mão-de-obra de escravos, na América Latina. A 
oposição brasileira é uma página corajosa da nossa história diplomática, atra­
vés da nota memorável do Visconde de Abaeté, Ministro das Relações Exte­
riores, contra os excessos do poderio inglês, que só faziam aumentar o 
tráfico. Nossa posição era defender os princípios gerais do direito interna­
cional, que estavam sendo violados pela Inglaterra. Esta nota do Visconde 
de Abaeté, publicada há mais de um século por Perdigão Malheiro, no seu 
livro sobre a escravidão, é um notável documento de caráter jurídico, sus­
citado pelo problema diplomático. 
A ela se junta o discurso do Senador Euzébio de Queiroz, que foi de 
fato quem fez cessar o tráfico, com a Lei de 1850. O discurso do Senador 
Euzébio de Queiroz é uma outra página memorável de direito internacional 
brasileiro, na defesa das nossas posições. O tráfico aumentou muito com a 
Lei Aberdeen e com a repressão inglesa, porque a proibição do tráfico 
aumentava o valor dos escravos, e este valor maior aumentava o tráfico. O 
sucesso aumentava o contrabando dos escravos que vinham da África. 
Dobrou, triplicou o número de escravos durante a repressão inglesa e a 
posição brasileira é defendida com uma integridade, uma serenidade, uma 
energia que são de admirar naqueles documentos diplomáticos dos meados 
do século XIX. Só o Brasil poderia liquidar o tráfico por lei interna. 
Euzébio de Queiroz o fez. 
A terceira grande prova de que o direito internacional sai muito do pacto 
político, no Brasil, é a Guerra do Paraguai. O documento básico foi o 
Tratado da Tríplice Aliança, negociado em 1865 em Buenos Aires por 
Francisco Otaviano de Almeida Rosa e, depois, ratificado pelo governo 
brasileiro. Este tratado é um outro modelo, modelo dos princípios mais 
respeitados e permanentes do direito internacional, constituído em documen­
to diplomático, inclusive a declaraçãoprévia de que o Brasil nunca se 
aproveitaria da vitória para se apossar de qualquer espécie de território 
dos países que tiveram a atitude de iniciar essa guerra. 
De maneira que nosso compromisso de respeitar fronteiras e bandeiras 
consta do documento que elaborou a Tríplice Aliança. Exemplo não obe­
decido pela Prússia, na guerra contra a França, em 1870. 
Francisco Otaviano é continuador de uma das linhas da nossa posição, 
aquela de não obter crescimentos territoriais, a não ser dentro do direito 
internacional. 
O Barão do Rio Branco completou este trabalho. A obra do barão foi a 
delimitação nítida das linhas de fronteiras nos litígios mantidos com a 
Argentina na questão das Missões, com a França na questão do Oiapoque, 
com a Bolívia na questão do Acre, e tantos outros casos de fronteiras com 
os países vizinhos da América do Sul. A ação diplomática foi uma perma­
nente obra de criação do direito internacional através da diplomacia, obra 
de negociação e de paz. No encerramento do século XIX e princípio do 
Discurso 21 
século XX, tivemos o ápice deste direito internacional fundado na atividade 
diplomática. 
Por isso mesmo é que, no Brasil, só começaram a aparecer os grandes 
teóricos do direito internacional depois que os problemas diplomáticos 
internacionais estavam mais ou menos assentados, mais ou menos pacifi­
cados. Aí começam a aparecer os teóricos, aí aparece Rui Barbosa na Con­
ferência de Haia, aí aparece Clóvis Bevilacqua, o grande jurista do direito 
privado que foi também especialista do direito internacional. Haroldo Va­
ladão, ao meu lado, é também especialista de direito privado e direito inter­
nacional. Aí nós tivemos Lafayette Pereira, outro grande autor do direito 
privado, que teve parte insigne no direito internacional. Ainda temos Epi­
tácio Pessoa, presidente da República, com o seu Projeto de Codificação 
do Direito Internacional. Aí, nós tivemos diplomatas que fizeram direito, 
como meu pai, Afrânio de Melo Franco, e Raul Fernandes, dois diplomatas 
e internacionalistas da Primeira República. Meu pai destacou-se em várias 
conferências americanas, na Liga das Nações e na paz entre Peru e Co­
lômbia. Raul Fernandes, grande diplomata e grande jurista, foi o autor da 
famosa doutrina que permitiu a formação da Corte Internacional de Justiça 
de Haia. 
Devemos lembrar o maior tratadista do direito interna~al brasileiro 
que foi Hildebrando Accioly, meu querido amigo e mestre. Accioly foi di­
plomata e jurista a vida inteira. 
Vamos referir alguns que hoje fazem o direito internacional do Brasil. 
Aqui mesmo, nesta sala, temos presenças como as do Embaixador Ilmar 
Pena Marinho, o Embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento Silva, o pro­
fessor e ilustre decano Haroldo Valadão, presidente da nossa comissão ju­
rídica, o Prof. Celso de Albuquerque Melo que sucede a seu pai, o saudoso 
Lineu de Albuquerque Melo. Lembremos ainda o também saudoso amigo 
Oscar Tenório, o atual mestre em São Paulo, ProL Marota Rangel, o ProL 
Celso Lafer. Poderia alongar a lista, feita de memória e seguramente incom­
pleta. Todos os citados, em conjunto e individualmente, pela experiência da 
vida e pelos trabalhos acadêmicos, honraram e honram a cultura jurídica e 
a tradição diplomática brasileiras. 
Gerações de juristas se estão formando para um novo direito internacional. 
Todo sistema da nossa Organização dos Estados Americanos é fundamen­
tado em uma expansão racional dos princípios acertados desde a Primeira 
Conferência de Washington. Mas os nossos problemas históricos exigem a 
presença, a curiosidade, a energia e os debates de novos problemas, que 
dificultam a nossa vida. Eu queria citar alguns poucos. A questão das em­
presas multinacionais e seu relacionamento com o Estado nacional é um 
deles. Outro ponto seria um estudo jurídico, não sobre o relacionamento dos 
países latino-americanos com o Estado do Vaticano, mas sobre a conver­
gência das posições e do comportamento das novas gerações políticas com a 
posição atual da Igreja Católica, em face do desenvolvimento do conceito 
social dos direitos humanos. 
22 R.C.P. 3/80 
É uma questão a ser suscitada no plano jurídico, é uma questão a ser 
dominada no plano jurídico sobretudo na América Latina, porque é natural 
que este assunto não tenha a mesma repercussão nos países protestantes e 
desenvolvidos. Esta posição da Igreja não é só da América Latina, ela é 
mundial e envolve problemas que precisam ser focalizados e analisados ju­
ridicamente. A possível convergência de posições, de análises, de situações 
no plano do direito internacional, para defesa dos direitos humanos e para 
o desenvolvimento econômico-social dos povos, é um assunto a ser talvez 
estudado juridicamente, porque aí a Igreja funciona como Estado do Vati­
cano mas também como uma organização mundial sui generis. Ela é uma 
fonte de inspiração que não pode ser abandonada e a sua linha segue um 
movimento pluralista, porém nitidamente progressista. O progresso dentro 
da concepção jurídica de evolução social é um problema que está ligado hoje 
à posição da Igreja. 
Outro problema que eu gostaria que fosse citado no plano do estudo in­
ternacional seria o da energia nuclear. Os países que não a possuem se es­
forçam para possuí-la a ponto de torná-la uma arma de guerra de uma des­
truição tremenda porque aumenta na medida em que diminui a responsabili­
dade dos seus detentores e o maior número de Estados é composto dos me­
nos responsáveis internacionalmente. É outra questão que deve ser estudada 
no direito internacional moderno americano. Quando eu era embaixador 
do Brasil nas Nações Unidas, propus uma pequena sugestão sobre a pros­
crição das armas nucleares na América Latina, depois tornada em tratado 
assinado do México. O Brasil não o ratificou, o que considero um erro. Este 
tratado deve ser discutido academicamente e não politicamente. 
Já devo terminar. Quero agradecer, em nome da Fundação Getulio Vargas 
e em nome do seu Instituto de Direito Público e Ciência Política, a honra 
de sediar mais uma vez esta experiência renovada e de tão grandes frutos 
para a cultura jurídica do continente. Olho com esperança e com admiração 
todas essas inteligências jovens que vão se aprimorando e amadurecendo 
para sua realização de cultura. A todos boas vindas em nome da nossa casa 
e em nome desta cidade que atravessa uma das fases mais belas da sua vida 
que é o inverno. Vocês se apliquem, pois o Rio de Janeiro nos meses de 
julho, agosto e setembro é uma das melhores coisas do mundo. 
Saiu O l~ volume da Série Educação 
Discurso 
Veja e compre nas livra.:'ias da FGV: Rio - Pro de Botafogo, 
188 e Av. Graça Aranha, 26 -lojas C e E; São Pm:lo - Av. 
Nove de Julho, 2029; Brasília - CLs. 104, Bloco A, loja 37. 
(Trabalhos do Institúto de Estudos Avançados 
em Educação)

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