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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL BACHAREL EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS GABRIEL ROSA NUNES ENTRE SUBSTÂNCIAS E PESSOAS: o caráter necropolítico da “guerra às drogas” CAMPOSDOS GOYTCAZES, RJ 2023 GABRIEL ROSA NUNES ENTRE SUBSTÂNCIAS E PESSOAS: o caráter necropolítico da “guerra às drogas” Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para conclusão do curso de Bacharel em Ciências Econômicas. Orientador: Prof. Dr. Maracajaro Mansor Silveira CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ 2023 GABRIEL ROSA NUNES ENTRE SUBSTÂNCIAS E PESSOAS: o caráter necropolítico da “guerra às drogas” Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para conclusão do curso de Bacharel em Ciências Econômicas Aprovada em 13 de dezembro de 2023. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Prof. Dr.Maracajaro Mansor Silveira – UFF _____________________________________________ Prof. Drª. Daniela Franco Cerqueira – UFF _____________________________________________ Prof. Drª. Vanessa Lopes Teixeira– UFF _____________________________________________ Prof. Drª Renata de Souza Francisco - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ 2023 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, quero agradecer a minha querida e tão amada mãe por ser a pessoa incrível que foi e continua ser ao longo da minha jornada neste plano. Sem todo o esforço feito para que não faltasse meios para eu ter acesso aos estudos nada disso seria possível, como gostamos de brincar “lá em casa, algumas vezes, faltou comida, mas nunca livros”. Quero deixar também meu agradecimento a minha vovó Cida, a melhor vovó do mundo! Uma mulher que criou 6 filhos apesar de todas as dificuldades impostas pela trágica condição social de ser uma mulher negra e pobre. A minha avó é o principal motivo de eu falar sobre esse tema e ter optado por cursar ciências econômicas. Gostaria de agradecer aos meus amigos pois sem eles jamais conseguiria sobreviver na cidade de Campos dos Goytacazes. Em especial o GB que acompanhou grande parte da minha trajetória e muitas vezes, com seu afeto, carinho, escuta, troca, atenção e amizade me mostrou que a experiência de ser um homem negro pode e deve ser muito melhor do que é. Markin e Ícaro, meus amigos de infância, que me motivam a ser uma pessoa melhor e sempre apoiaram meus sonhos incondicionalmente. Aos amigos que moraram comigo depois da pandemia (Art, Méu, Fábio Zé e Fábio Punk) também gostaria de expressar meus agradecimentos porque compartilhamos experiências únicas e incríveis dotadas de amor, momentos que por muitas vezes me expandiu no sentido de ser amado e amar, com certeza me fizeram aprender o sentido de família. Reconheço que não sou uma pessoa fácil de conviver, eles me mostraram que mesmo assim é sempre possível vivermos amorosamente com quem se gosta. Menciono neste parágrafo, ademais, a minha tropinha da terapia (Vinicin, Italin, Hugão, Thomaz, Ancorano, Careca, Rasta e Andrei) que fazem meus dias melhores quando estamos juntos compartilhando de momentos engraçados descontraídos, estar com vocês é sempre muito bom. Acredito que a vida é bem melhor quando vivemos coletivamente e que essa visão individual de tudo, faz parte de um sistema que nos aprisiona e reduz nossas experiências. Por isso, meu agradecimento aos coletivos negros Dores Enjauladas, Balbúrdia e Mercedes Baptista. Esses coletivos ajudaram a me constituir enquanto intelectual, artista e negro. Por último, mas não menos importante, gostaria de agradecer ao meu amigo e orientador Maracajaro. Ele mudou minha vida dentro da academia seja por meio das aulas ou do simples fato de perguntar como estou, dentro do curso foi único professor a trazer autores não convencionais e repetitivos, depois aceitou embarcar na aventura da elaboração desta pesquisa, obrigado maraca! RESUMO Essa pesquisa busca evidenciar que a política de combate às drogas é permeada pela necropolítica e que essa prática resulta, na maioria das vezes, em mortes de corpos negros. Para o embasamento da discussão, trago conceitos como a necropolítica, a construção social do negro brasileiro, proibicionismo e valor das drogas que ajudam a compreender e expandir os conhecimentos acerca do tema. A análise sobre a questão é importante pois mostra que a história econômica brasileira atua na perpetuação do negro como classe subalterna na sociedade. Nesse sentido, as matérias do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) também fomentam o debate. Palavras-chave: Necropolítica. Drogas. Mercadorias. Economia Brasileira. ABSTRACT This research seeks to highlight that the policy to combat drugs is permeated by necropolitics and that this practice results, most of the time, in deaths of black bodies. To support the discussion, I bring concepts such as necropolitics, the social construction of black Brazilians, prohibitionism and the value of drugs that help to understand and expand knowledge on the topic. The analysis of the issue is important because it shows that Brazilian economic history acts in the perpetuation of black people as a subordinate class in society. In this sense, articles from the Institute of Applied Economic Research (IPEA) also encourage debate. Keywords: Necropolitics. Drugs. Goods. . Brazilian economy. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 2 NECROPOLÍTICA ........................................................................................................... 134 2.1 A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA E MORTE ............................................................. 15 2. 2 TERROR MODERNO .................................................................................................... 18 3 CONSTRUÇÃO SOCIAL E DO SER NEGRO NO BRASIL ........................................ 22 3.1 PÓS ABOLIÇÃO .............................................................................................................. 23 3. 2 CONJUNTO DE LEIS, A PERPETUAÇÃO DO NEGRO COMO SUBHUMANO 25 3. 2. 1 Pito do Pango ................................................................................................................. 27 3. 2. 2 Lei da Vadiagem ............................................................................................................ 28 4 O PROIBICIONISMO E O USO DAS DROGAS ............................................................ 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 39 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 44 10 1 INTRODUÇÃO A ação de combate às drogas implica uma série de decisões políticas e econômicas que afetam diretamente o cotidiano da sociedade, seja individualmente ou na maneira conjunta que vivemos. No Brasil, em especial no estado do Rio de Janeiro, só cresce o número de vítimas. A necropolítica é o principal aparato que explica a soberania Estatal no direito de fazer morrer, definindo assim, quem deve morrer e quem deve viver. Este trabalho tem por objetivos destacar a relevância e fazer com que cada vez mais economistas discutam acerca do tema, pois há uma relação direta com a economia brasileira, tanto no passado quanto nos dias atuais. Além de evidenciar as frequentese graves “falhas” do Estado que implicam no genocídio da população pobre, em especial os negros e negras. Necropolítica, que é definido como ato soberano de categorizar as pessoas entre quem deve morrer e viver, segundo o próprio autor, se caracteriza pela união de 3 estruturas de poder (a biopolítica somado ao estado sítio e estado exceção) em que a raça é o principal elo de ligação entre eles. Achile Mbembe, criador da teoria, diz que a primeira forma dessa nova forma de horror é vista nos regimes coloniais e também apartheid. Uma das ações que legitima a dominação europeia é a definição de uma ordem jurídica. Esta ordem é ancorada por postular a igualdade jurídica e a territorialização do Estado soberano. A igualdade jurídica entre os terrenos se trata sobre o “direito de fazer guerra” , já a territorialização vem para determinar as fronteiras disponíveis para apropriação cultural. Fazendo uma correlação entre o que representa o direito de fazer guerra e a territorialização, temos que qualquer Estado tem a função de matar ou negociar a paz dentro do território estabelecido globalmente, ou seja, ele define seus próprios campos de batalha. Nesse contexto, a ordem jurídica europeia atua na distinção das regiões do mundo disponíveis para apropriação colonial. O Brasil, a partir da dominação europeia, está fadado a ser vítima da necropolítica e desde que iniciou-se a política do combate às drogas, essa relação só tende a aumentar. Daniela Ferrugem, autora do livro“Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial” é muito assertiva ao falar que a política de combate às drogas é a única no mundo que busca um objetivo inalcançável. Pois as substâncias psicoativas estão presentes na sociedade desde sempre. O uso e a relação com as drogas são proporcionais ao tempo em que se vive, cada sociedade em sua determinada época usa de forma única. No capitalismo, vivemos a base do consumo, é o que dita a forma como usamos, ou seja, consumimos drogas. A relação do consumo como se dá nos dias atuais tem muito a ver com que Marx discute com o conceito de fetiche da mercadoria. 11 Uma vez que as mercadorias refletem a relação social dos produtores com o trabalho total, através disso que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, o fetichismo é o produto da mão humana ao se apresentar no mundo das mercadorias, advindo do caráter social do trabalho que produz mercadorias. Dessa forma, consumir drogas se associa com o fetichismo, porque é a partir dele que as relações sociais passam a existir no consumo da mercadoria, trazendo esse cunho do excesso e depois atua também como afirmação social, prazer proibido, sensação de acesso. O caráter adoecedor desse sistema se mostra também no consumismo desenfreado que desumaniza cada vez mais a vida e as relações sociais existentes, resultando em privações básicas daquilo que é essencial, viver! Antes de debatermos sobre vícios em substâncias, devemos atentar para a discussão do vício em consumo, o que faremos a partir da importante discussão de Henrique Carneiro a respeito desse tópico. Ele ressalta que o ato de consumir drogas é uma condição eterna e foi potencializada na era mercantil e industrial, nos dias atuais tomou dimensões gigantescas. “Drogas para trabalhar, para dormir, para fazer sexo, para vencer a tristeza, o cansaço, o tédio, o esquecimento, a desmotivação.” (Carneiro, 2019, n.p). Somos todos drogados, mas se define pouco explicitamente a natureza comum de se tomar remédios psicoativos, bebidas alcoólicas, tabaco, café e substâncias ilícitas, separados por cargas simbólicas altamente significativas decorrentes de seus diferentes regimes de normatização. (CARNEIRO, 2019, n.p). As possíveis doenças causadas pelo uso das drogas seriam justificativas para um regimento diferente, porém a ciência mostra o contrário. Os países centrais, desde o fim do século XIX, estabeleceram um estatuto e imputaram às drogas uma separação em três categorias distintas: as substâncias ilícitas, lícitas medicinais e as lícitas recreativas. Se tratando especificamente do Brasil, que é o primeiro país do mundo a ter uma lei que criminaliza o uso da maconha, o pito do pango1. A lei foi responsável pela criminalização da maconha no estado do Rio de Janeiro, em 1830. E a forma que era consumida por pessoas negras, sendo vista como crime fumar em cachimbos de barro, evidenciando cada vez mais o racismo. O pito do pango, como passou a ser chamada a maconha, justamente por consumida em cachimbos pelos negros dos Palmares. Isso faz do país um exemplo muito específico e único e nos remete a pensar a construção da sociedade brasileira, em especial a sociedade 1O pito do pango era um dos nomes dados à maconha, assim como Fumo de Angola. O primeiro lugar do mundo a criminalizar a maconha foi o Rio de Janeiro, através da Lei do Pito do Pango, de 4 de outubro de 1830 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 12 negra brasileira. Verifica-se que desde o princípio negros e brancos são tratados de formas diferentes perante a justiça legal. Verifica-se nas posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão de 4 de outubro de 1830, na Seção Primeira Saúde Pública, Título 2º, Sobre a Venda de Gêneros e Remédios, e sobre Boticário, entrou em vigor o seguinte § 7 É proibida a venda e o uso do “Pito do Pango”, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia. A história do capitalismo europeu por muito tempo foi sobre a busca por substâncias psicoativas e especiarias, se tornando um dos principais fatores da expansão do mercado mundial. Assim, Carneiro mais uma vez traz algo bastante assertivo. “A história das drogas é, assim, antes de tudo, a história de suas regulações, da construção de seus regimes de circulação e das consequentes representações culturais e políticas de repressão, incitação ou tolerância.” (Carneiro, 2019, n.p). A modernidade está diretamente ligada com a produção da subjetividade e inserção das drogas de maneira global, fazendo parte até do desempenho fabril e militar, mais que isso, elas constituem uma demanda burguesa de instigação intelectual. Na obra de Abdias Nascimento, é ressaltada a construção social do negro brasileiro e como diversas políticas no âmbito social e econômico atuaram na manutenção de pessoas negras em classes subalternas. Destacando o mito da “democracia racial” como mecanismo de genocídio que ainda nos dias atuais acontece. E os processos de escravidão, a exploração sexual da mulher negra africana, o mito do “africano livre” e o embranquecimento da raça são componentes dessa estratégia claramente orquestrada pelas classes dominantes. Os avanços tecnológicos somados ao avanço do liberalismo e neoliberalismo trazem uma dualidade que é vista no sentido de ampliar desigualdades, e, ao mesmo tempo, mudam as relações sociais com as várias inovações tecnológicas. Estes avanços influenciam as decisões políticas sobre o consumo e relação com as drogas, de modo geral. Além disso, a ideia de reduzir a participação do Estado na economia a fim de gerar divisas é mexer diretamente na capacidade de arrecadação e, consequentemente, na oferta de políticas públicas que visam reduzir as desigualdades latentes, dadas desde a invasão europeia com o objetivo de estabelecer colônias. A ideia liberal, diferente daquela presente na época dos fisiocratas, aqui e em qualquer lugar, até mesmo nos “países desenvolvidos", faz com que a desigualdade passe a ser uma forma de política pública, aumentando ainda mais a dependência do colonizador, no que tange a uma balança comercial desfavorável e em muitos momentos superavitária. As crescentes disparidades podem ser e são produzidas com o aval do Estado, explicadopelo conceito de 13 necropolítica de Achille Mbembe. Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror,faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? A guerra, afinal, é tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. (MBEMBE, 2018, p. 7) Desde a Primeira Guerra Mundial, os países hegemônicos perceberam o quanto é lucrativo promover guerras. Não é por acaso que logo após a Segunda Guerra Mundial, com objetivo claro de se consolidarem no poder, deflagraram novamente um conflito, dessa vez, sem enfrentamento direto, dando origem à Guerra Fria. O liberalismo, assim como todas as relações políticas modernas que se conhece hoje, é baseado na soberania e poder. Assim, o liberalismo age no sentido de retirar direitos, a partir da redução dos gastos sociais mais que compensados com aumentos de gastos para arcar com os “serviços da dívida” resultando em crise sucessiva no balanço de pagamento por meio de menor participação do governo e geração de divisas. O capital externo que entrou no Brasil sempre foi recompensado de forma demasiadamente satisfatória, principalmente pelo fato de usarem um sistema que por muitas vezes se baseia na exploração de uma determinada raça ou classe de pessoas. 14 2 NECROPOLÍTICA Este capítulo propõe mostrar e introduzir o conceito de necropolítica, pois acredito que é impossível definir algo tão rico e complexo que envolve, senão todas as áreas das ciências humanas, quase todas. Baseado no conceito de biopoder investigando conhecimento de soberania e estado de exceção. A compreensão desse tema ajuda a entender todo processo de “guerra as drogas” e a morte de corpos negros, muitas vezes aparado pelo sistema penal legal em todas as épocas pós transação transatlântica. Partindo do ponto em que a expressão máxima da soberania é o poder e capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer e assim definindo como soberano quem exerce controle da mortalidade, como traz o autor. O ensaio procura entender as interpelações que surgem após o conceito de biopoder. [...] quais condições práticas se exerce o poder de matar deixar viver ou expor à morte? Quem é o sujeito dessa lei ? O que a implementação de tal direito nos diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada à morte e sobre a relação que opõe essa pessoa a seu ou sua assassino/a? Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? (MBEMBE, 2018, p. 6) Para Foucault, segundo Mbembe, o conceito de biopoder se refere ao domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle. Biopoder contabiliza as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto. Destacando a função da modernidade como um fator presente na origem de vários conceitos de soberania. A construção social moderna de que a razão age no sentido de ser como a verdade do sujeito e a política é o exercício da razão na esfera pública, tem -se que exercer a razão e exercer a liberdade é elemento chave para autonomia individual. Por meio da modernidade, se ignora e generaliza alguns fatores essenciais para o entendimento detalhado, pois a política contemporânea reforçou as teorias normativas da democracia. Com isso, pressupõe-se que a produção de normas gerais sociais seja feita por povo em que homens e mulheres sejam livres e iguais. Ainda, que estes homens e mulheres sejam sujeitos completos, capazes de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação. A soberania passa a ser um duplo processo de “auto instituição” e “autolimitação”. A necropolítica está relacionada com as soberanias cujo projeto central é a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações. Mostrando como a relação entre política e morte, e, também o terror 15 moderno elucidam como a necropolítica age. Dessa forma, Mbembe (2018) concluiu que o direito de matar com o estado exceção e estado de sítio são bases normativas do direito de matar e articulam a necropolítica definitivamente. 2.1 A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA E MORTE Para falar dessa relação, é preciso antes compreender o que Mbembe aponta o trabalho da morte, que, por sua vez, tem papel fundamental no exercício da soberania. Ele destaca primeiro a soberania relacionada ao estado de exceção. A definição da palavra “exceção” segundo o dicionário2 refere-se a “aquele que se desvia ou exclui de regras e padrões”. Assim, as ações policiais que visam o combate às drogas que acontece no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, em dias atuais, por ter suas ações de repressão majoritariamente nas periferias, sendo estas, território à margem da sociedade, por isso ausentes de atenção e cuidado do Estado estão diretamente ligadas a necropolítica. Num ponto em que a soberania é também exercida na capacidade da sociedade do desenvolvimento ou formação das instituições dentro das definições sociais e imaginárias oriundas de uma expressão de autonomia, a soberania da qual a necropolítica traz é referente a instrumentalização generalizada existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações. Categorizando a morte e a vida, é possível uma análise para além da modernidade, dado esse objetivo, Mbembe traz as contribuições hegelianas acerca da relação da morte com o “devir sujeito”. Ele entende que a concepção de morte, na visão de Hegel, parte de um duplo entendimento da negatividade. Por um lado, nega a natureza ( mostrada no esforço para reduzir a natureza a suas próprias necessidades) e por outro, a transformação da negatividade por meio do trabalho e da luta. Esse processo é o enfrentamento da morte por meio da luta e do trabalho. Ao mesmo tempo em que se “cria um mundo” esse movimento expõe o ser humano a sua própria negatividade. Ainda, no modelo hegeliano, a morte é essencialmente voluntária. “É o resultado de riscos conscientemente assumidos pelo sujeito” (MBEMBE, 2018, p.11). É nesse paralelo com a morte que o ser humano se torna sujeito em que a transposição significa suportar o trabalho da morte e tal suporte se traduz na definição de Hegel da vida do espírito. Tal vida, é a ciência da morte e conviver com ela. Logo, o exercício do espírito só se dá no desprender 2Oxford Languages 16 absoluto de si. A política, assim posta, é a morte que vive um humano. Mbembe afirma que isso também é a definição de soberania, pois arrisca a totalidade de uma vida. Continuando a ideia de que morte estrutura a ideia de soberania, política e sujeito são usadas as contribuições de Georges Bataille para elucidar o pensamento de Mbembe. Bataille se diferencia de Hegel em três pontos: 1) a morte e a soberania como momento de maior intensidade de troca e superabundância; 2) sustenta a morte como prejuízo absoluto e 3) correlaciona morte, soberania e sexualidade. No primeiro ponto, ele destaca que a morte representa a redução do indivíduo a nada, porém não se define, estritamente, ao aniquilamento do ser. O argumento dele difere do Hegel, pois o caráter significativo da morte deixa de ser principal, eliminando a ideia de “meio para a verdade”. Já no segundo, a diferença está presente na medida em que o modelo hegeliano mantém a morte no campo da economia do conhecimento absoluto e da significação. Bataille diz que a morte é antieconômica, pois é o próprio princípio do excesso, irreversível e sem reservas. Por último, a sexualidade associadaà violência e a quebra dos limites de si e do corpo através do acesso orgíaco e excremental. Com isso, a perda dos limites que distinguem fatos e fantasias revelam os atributos mortais associadas ao sexo. Em linhas expressas, a soberania é a supressão do medo da morte impelida ao sujeito. Assim, a soberania se define em demandar o risco de morte. Mbembe ressalta que a modulação de Bataille se relaciona com política, pois se trata da insubordinação de proibições. A política não trata mais do avanço dialético da razão e sim a disparidade posta em prática na violação de um tabu. Mbembe deduz, a partir disso, que a política é o trabalho da morte. A soberania manifestando-se exclusivamente no direito de matar é descrita na união da teoria foucaultiana com estado exceção e sítio. Mbembe investiga a base normativa do direito de matar por intermédio do estado de exceção relacionada à inimizade. Aqui o poder recorre perenemente à exceção, à emergência e à ideia falsa de um inimigo. Nas próprias palavras do autor “Em outras palavras, a questão é: qual é, nesses sistemas, a relação entre política e morte que só pode funcionar em um estado de emergência?”. (Mbembe, 2018, p.17). A investigação parte do ponto que a teoria foucaultiana atua com base numa divisão vivos e mortos, configurando-se a definição de poder relacionada a um campo biológico. Agindo como filtro da vida e da morte, o controle, quando num campo biológico, se exerce na divisão da espécie humana em grupos, e, desses, subgrupos. Para Foucault a censura biológica entre “uns e outros” é o racismo. E destaca que a “raça” está intrínseco ao conceito de biopoder porque as políticas ocidentais, em sua maioria, são baseadas em conceitos de raça, 17 principalmente no sentido de desumanização de povos estrangeiros. Podendo-se assim, definir o racismo como a tecnologia que permite o exercício do biopoder. Ressalta a importância que Arendt dá ao relacionar que a política de raça está diretamente ligada com a política de morte. “Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado” (Mbembe, 2018, p.18). Na visão de Mbembe, essa é a condição que normaliza o fazer morrer da teoria foucaultiana. O autor diz também que a soberania, na modernidade, se trata também do ponto em que se admite que outro oferece perigo a minha vida. Para Foucault fica evidente que todos os Estados modernos agem sob o direito de matar e mecanismos de biopoder. Tendo em vista, que Foucault caracteriza o Estado Nazista como o precurssor na consolidação do direito de matar, se tornando um conglomerado de racismo, assassinato e suicídio. Mbembe relaciona a forma de extermínio nazista com o imperialismo colonial, justamente pela “serialização de mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte” e no fato de eleger o outro como um atentado a minha vida, em que, só a morte deste corrobora o potencial da minha vida e segurança. Analisando brevemente um pouco da história conhecida e tida como aceita, na época do imperialismo colonial, diversas formas de extermínio se mostram a partir da serialização de mecanismos desenvolvidos entre Revolução Industrial e a Primeira Guerra Mundial para conduzir as pessoas à morte. “As “inovações” nas tecnologias de assassinato visam não só “civilizar” as maneiras de matar e também eliminar um grande número de vítimas em um espaço relativamente curto de tempo”. (Mbembe, 2018, p.22). Mbembe destaca que o papel destas, é de fazer surgir essa vontade social de querer matar o inimigo do Estado. Se outrora, o povo era a realidade concreta, agora é figura retórica, enquanto categoria política. De acordo com os teóricos do terror, como cita o autor, é possível a distinção entre o “erro” do cidadão e o “crime” do contra revolucionário dentro da política. O terror se converte em um modo de determinar o absurdo no corpo político, a política se torna a força móvel da razão e também a tentativa falha de criar um espaço em que o “erro” seria reduzido, a verdade, reforçada, e o inimigo, exterminado. As diversas teorias sobre a dominação e a emancipação baseadas em concepções sobre a verdade e o erro se interligam por meio do terror. Mbembe aponta que quando Marx fala de trabalho e obra, há um equívoco. Veja, partindo do ponto em que ele é o ciclo interminável de produção e consumo necessário à manutenção da vida humana, ao passo que, a obra é a criação de artefatos duráveis que se somam ao mundo das coisas. A busca pela liberdade e acesso ao real, por si só torna o 18 processo violento. No marxismo clássico, as relações sociais devem ser desmercantilizadas pela força. Ele argumenta que o trabalho é a autocriação histórica da humanidade, segundo as teorias marxianas, conflito sobre os caminhos que levam à verdade da História, e assim, superam o capitalismo, sua forma mercadoria e as contradições que coligam ambas. Ainda, o pensamento marxista, traz que o advento do comunismo e a abolição das relações de troca mostraria as coisas como são, excluindo a diferença entre sujeito e objeto, o ser e a consciência. Logo, a verdadeira liberdade humana é a extinção da produção de mercadorias. Observa-se que o movimento de desmercantilização procedeu na militarização do trabalho, ausência de distinção entre sociedade e Estado, e, por assim, sociedade e o terror revolucionário. Essa busca pela humanidade também é excluir a pluralidade social, para além disso, é apontar que assim como no capitalismo a generalização das relações sociais é o que impede a verdadeira liberdade! O que nos remete às soluções generalizadas mundiais na política de guerra às drogas. A pluralidade social é o motivo pela qual a superação das divisões de classe, o fim do Estado e a prática da tão ansiada “humanidade” não se tornam concretas. “A configuração atual das políticas de álcool e drogas no Brasil se origina do paradigma proibicionista que data da virada do século e teve seus parâmetros desenhados na década de 1980 quando passa a se basear em uma lógica explicitamente belicista. A Ditadura militar foi um período de forte endurecimento nas políticas antidrogas no Brasil, contribuindo para a acentuação da violência policial.” (POLITIZE, 2022) Por fim, tem-se que o sujeito marxiano moderno tenta até a morte praticar sua soberania. Situação semelhante acontece nos pensamentos hegelianos, pois dominação e emancipação é a busca pela verdade e a morte. Ao realizar essas duas inferências sobre Hegel e Marx, a perspectiva que se estabelece é a do terror e morte para a realização do telos da história. 2. 2 TERROR MODERNO Mbembe diz que em qualquer relato histórico a escravidão expressa o terror moderno. A escravidão transatlântica é o primeiro estado de biopolítica conhecido, a forma plantation se trata de um estado de exceção. Sob esse estado, o humano, na condição de escravo, é meramente mercadoria, dessa forma, tem um preço e como propriedade tem um valor. A partir disso, é importante refletir a 19 condição mercadoria citada, pois assim como no caso das drogas, essa atribuição reflete o caráter da relação social na sua forma comércio. Neste subtópico se faz uma correlação entre entre mercadorias (droga e escravizado) a fim de mostrar que a narrativa do terror moderno sempre encontra um jeito de se fazer presente quando falamos de necropolítica e suas implicações sociais de uma maneira geral. A vontade geral de eliminar o inimigo do Estado e a produção do terror de forma estruturada, uma vez que se define as drogas como as substâncias usadas pelo inimigo e, a partir disso, todo e qualquer usuário de droga oferece perigo à vida do Estado. As drogas se destacam entre o conjunto dos bens consumíveis e entre os não-duráveis que são absorvidos pelo corpo, tal como os alimentos, porpossuírem uma peculiar condição exacerbada a partir do século XX: uma inflação de valor. (CARNEIRO, 2019, n. p). Carneiro, explora quais demandas específicas as drogas possuem que as diferencia dos alimentos, por meio da reflexão do valor. Para ele, o valor contemporâneo se dá na união de três subtópicos próprios: 1) valor de uso; 2) valor de troca e 3) valor de signo. Como explicitado, na era moderna e contemporânea, essas formas têm um caráter sempre excessivo. Assim, o uso acompanha o mesmo ritmo da expansão das tecnologias de si e da autonomia subjetiva, condicionada fortemente a um fetichismo da mercadoria. Veja, a expansão das tecnologias de si e a autonomia subjetiva agem no sentido de cada vez mais debatermos o controle dos corpos junto com a capacidade de saber difinir individualmente o que me faz bem ou não. O que torna esse uso um “excesso autodestrutivo”. Ele aponta que o valor de troca é dependente não só da demanda crescente, mas do mecanismo do proibicionismo que é responsável por criar uma especulação de rentabilidade financeira de extrema desregulamentação e ligados ao circuito de tráficos ilícitos em geral. Muito além do que pode estar inscrito no produto como lucro potencial entre o diferencial do preço do produto e do custo de produção, ele absorve um custo da proibição, que remunera a ilicitude com monopólio, imposição de preços, ausência de controles, adulteração, extorsão e violência como regras da desregulação. (CARNEIRO, 2019, n.p.) Dessa forma, ele conclui que o valor das drogas é também determinado por ser fruto da proibição, pois o preço, além da cifra monetária, tem externalidade. Na economia a externalidade é atribuída ao custo indireto em perdas humanas ou sociais que venham a surgir. E disserta mais: “mais do que do uso abusivo, do sistema da proibição e de sua imposição em escala global − o law and enforcement estadunidense em aplicação planetária”. (Carneiro, 20 2019, n.p). O valor de signo atua na bipolaridade do prazer e da dor. Devido seu duplo caráter permite uma única relação em que o ato libidinal de desejo e paixão se confunda com seu estigma e outras definições pejorativas dotadas de preconceitos sociais. Nas próprias palavras de Carneiro: “Seu maior valor de signo é a proibição, no que se refere às drogas “ilícitas”. A proibição confere um valor de tabu!”. (Carneiro, 2019, n.p). Para Mbembe (2018), a condição de escravizado significa a dominação absoluta, alienação de nascença e morte social e isso implica numa tripla perda, em que: 1) perda do lar; 2) perda de direitos sobre seu corpo; 3) perda do estatuto político. Assim como o valor das drogas, essa condição também é oriunda da aglutinação entre 3 pontos, com uma diferença relacionada ao proibicionismo, mas da mesma forma que se dão as condições de valor de uso e de troca no caráter excessivo. O contexto político-jurídico da plantation é absolutamente o lugar onde o escravo pertence ao senhor, dessa forma, não é uma comunidade, pois, numa comunidade, todos têm direito de fala e pensamento e devem exercer tal direito. A biopolítica nesse caso, é reforçada pelo fato do escravo ser mantido vivo, que segundo o autor, se refere a um “estado de injúria". Assim, é mantido vivo, porém, numa condição de violência extrema e na ausência da humanidade. Violência torna-se etiqueta e caracteriza essa época. Ele ressalta ainda que nas colônias e sob regime do apartheid que surge essa forma peculiar de terror, pois a condição de escravizado elabora diferentes óticas “sobre o tempo, o trabalho e sobre si mesmo” (Mbembe, 2018, p.30). Na plantation, as relações entre vida e morte se cruzam. Esse terror é a definição de necropolítica, pois aglutina o biopoder, estado exceção e estado de sítio. A raça é o que une esses três conceitos. A partir dessas diferentes óticas é que reside o “segundo elemento paradoxal do mundo da plantation como manifestação do estado de exceção” (Mbembe, 2018, p.30). Esse segundo elemento se trata justamente na capacidade do escravizado, ao mesmo tempo que se restringe a ferramenta ou objeto, extrair da maioria dos objetos uma representação e aprimorar, destacando papel do escravo como ser detentor de demonstrar as relações humanas sociais por meio de outro. A conquista colonial mostrou uma capacidade de violência desconhecida do mundo. Fazendo uma analogia com que Foucault considera o nazismo, em que acredita-se como a extensão dos métodos violentos condicionados aos “selvagens” para manutenção da vida dos povos “civilizados” da Europa. Contudo, fica evidente que tanto na filosofia moderna quanto na política europeia, a colônia é onde a soberania consiste no exercício de um poder à margem da lei e no qual a 21 “paz” só se alcança por meio da guerra. Na colônia, através da dominação, estabeleceu-se a criação de uma ordem jurídica europeia baseada no princípio de postular a igualdade jurídica de todos os Estados. A igualdade aqui trata-se do direito e manutenção de “fazer guerra”. Isso é assegurar que qualquer Estado tem a função de matar ou negociar a paz proeminentemente. Outro ponto em que se baseia a ordem é a territorialização do Estado soberano, nessas condições, a determinação de fronteiras age na distinção das regiões do mundo disponíveis para a apropriação colonial. Esse processo é essencial para a validação da colônia como território de terror, a guerra passa a ser entre Estados “civilizados”. Mbembe ainda coloca que o Estado é central na guerra, pois, antes de tudo, é uma organização política e um símbolo de moralidade. Logo, verifica-se a situação das colônias como fronteiras que, por sua vez, são selvagens que ali habitam. Nesse território não existe a organização estatal. A diferença entre inimigos e criminosos deixa de existir, a colônia é o local que controle e garantia da ordem judicial pode ser suspenso. A afirmação racial que inferioriza os originários e a ausência de vínculo entre conquistador e nativos fomentam a ideia de que as colônias podem ser governadas sem lei nenhuma. Na visão europeia, os ditos “selvagens” eram animais, pois se viam como componentes da natureza, assim, seres que carecem do caráter específico humano. Ironicamente, nos dias atuais, se discute sobre condições climáticas, ao mesmo passo que não se consideram como parte da natureza. Por tudo explicitado, o direito soberano de matar não tem nenhuma regra nas colônias. O terror colonial, se entrelaça, constantemente, com um imaginário colonialista, caracterizado por terras selvagens, em que morte e ficções criam o efeito de verdade. Numa guerra colonial, a paz não é a consequência natural. 22 3 CONSTRUÇÃO SOCIAL E DO SER NEGRO NO BRASIL Este capítulo visa mostrar como o processo de construção social brasileiro foi pautado na “superiodade” que o europeu acredita ter, constantes covardias e violências contra os povos negro e indígena e uma “falsa liberdade”. Uma análise feita sobre o período de terror (período colonial) e o pós. Como isso desencadeou diversas outras atrocidades que fazem parte da formação do Estado nação. A construção da sociedade brasileira é um conjunto de processos, muitas vezes violentos, que refletem a falsa democracia que se observa nos dias atuais. A ideia de uma democracia racial, que nunca existiu por aqui, contribuiu para inferencias que fogem a realidade e atuam na perpetuação do negro como subhumano, assim nos mostra Abdias Nascimento. O que se verifica desde a invasão europeia é uma frequente desvalorização do negro como humano e execução de políticas higienistas. Abdias parte do princípio da unidade do negro e não considera as diversas formas que o europeu tende a subclassificar os negros entre pardos, mestiços, mulatos etc. Com isso, faz uma crítica ao conceito de morenidade de Freyre, pois é altamente tendencioso e tem umobjetivo velado, um embranquecimento da pele e da cultura do negro através do total desaparecimento do descendente de África num sentido físico e espiritual. No Brasil, é a escravidão que define a qualidade, a extensão, e a intensidade da relação fisica e espiritual dos filhos de três continentes que se encontraram: confrontando um ao outro no esforço épico de edificar um novo país, com suas características próprias, tanto na composição étnica do seu povo quanto na especificidade do seu espírito - quer dizer, uma cultura e uma civilização com seu próprio ritmo e identidade. (NASCIMENTO, 1978, p.48) Ao longo da escravização, a capacidade de violência do europeu ficou evidente. Porém, o pós também mostrou uma violência ímpar, seja no descarte de pessoas quando deixavam de ser úteis nas atividades impostas ou mesmo na “liberdade do negro”. Quando não tinham mais serventias ou eram abarcados por algum tipo de enfermidade, os negros escravizados eram descartados como lixo contando com a própria sorte. Abdias destaca que desde 1530 já existia a raça negra brasileira exercendo seu papel como força de trabalho e que 5 anos mais tarde já havia regulação do comércio de escravos. Para ele, os ciclos econômicos do açúcar, a mineração e o café foram fundamentais no processo distribuição dos negros ao longo do território. A partir disso, define que sem o negro escravizado jamais existiria estrutura econômica, pois o país foi fundado sob signo parasita do imperialismo, e assim, os negros sustentaram as classes dirigentes. 23 Maringoni (2011. ANO 8. EDIÇÃO) diz num relato ao IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que a campanha abolicionista organizada acontece no fim do século XIX, mesmo com rebeliões e a organização de quilombos desde o século XVI. A Sociedade Brasileira Contra a Escravidão3 (SBCE) foi fundada no fim de agosto de 1880, a partir disso, começa a se debater no parlamento sobre o projeto de libertação geral, puxado por Joaquim Nabuco (1849-1910). Ele relata que em 1884, na província do Ceará já havia movimentação popular pela libertação dos negros e que isso foi possibilitado por forte seca que atingiu a regiao por volta de 1877, crise na lavoura e ação libertária de grupos urbanos. A partir disso, diversas províncias do Brasil aderiram ao abolicionismo. Mesmo com a revolta da elite cafeeira que aumentou a repressão a aqueles que fugiam, principalmente na província do Rio de Janeiro, o movimento de libertação rapidamente ganhou força no Brasil. Veja, quando se retira o poder de uma pessoa de exercer sua força de trabalho por meio de um processo extremamente violento e depois o “solta” na sociedade sem nenhum tipo de apoio político ou recurso, nada mais é que assassinato legalizado direto e indireto. Agora, fazendo uma reflexão sobre a abolição, em que surgiu a ideia de “liberdade” do negro, observa-se mais uma vez mal caratismo e covardia. Pois é extremamente fácil conceder liberdade a um povo sem nenhuma condição de ser livre e depois ainda lhe oferecer uma vaga num exército ofertando liberdade para lutar as guerras da época, guerras estas feitas pelos próprios colonizadores, ou seja, os negros deixaram de ser escravos para serem escudo humano. Essa abolição retira a responsabilidade dos senhores; do Estado e da igreja sobre o genocídio que o negro brasileiro sofre até hoje na tão famosa terra brasilis. 3.1 PÓS ABOLIÇÃO Logo após se declarar o fim da escravidão, o Estado começou, em 1870, um programa de trazer europeus para fazer o trabalho que outrora era do povo de África, porém nada se assemelhava ao processo anterior que tinha na sua base uma grande desumanização. Os europeus, aqui chegados, vieram para trabalhar nas lavouras e tinham direitos, ao passo que a população negra não tinha acesso à educação, direitos ou mercado de trabalho. O que fica evidente é o ódio do europeu ao negro, pois ao negar as condições de inserção social 3A Sociedade Brasileira Contra a Escravidão (SBCE) foi uma instituição brasileira criada pelo engenheiro André Rebouças em parceria com o parlamentar e escritor Joaquim Nabuco, e o advogado e jornalista José do Patrocínio em 7 de setembro de 1880, com o propósito de lutar contra a escravidão no Brasil. A escravatura foi abolida no país em 1888. 24 de um novo povo proclamado como parte da sociedade que literalmente sugou seu sangue, os condiciona a um novo estado econômico, político e cultural de “escravidão-em-liberdade” como nos explicita o grande Abdias Nascimento. Este novo estado que a população negra é submetida, antes de tudo, mostra que determinado povo específico está fadado a pobreza e desigualdade, além de ajudar na compreensão do que ocorre nos dias atuais. Em novembro de 2022 o site de notícias da rede globo, G1, publicou uma reportagem baseada numa pesquisa do IBGE de 2021 em que a proporção de pretos e pardos entre os pobres chegou ao dobro em relação aos brancos, como apontou a pesquisa4 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “Pesquisa do IBGE divulgada nesta sexta-feira (11) mostra que, em 2021, considerando-se a linha de pobreza monetária proposta pelo Banco Mundial, a proporção de pessoas pobres no país era de 18,6% entre os brancos e praticamente o dobro entre os pretos (34,5%) e entre os pardos (38,4%). Os dados são do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil.” (G1, 2022) Segundo o próprio Abdias, o branqueamento da raça no Brasil é uma estratégia de genocídio, uma vez que uma das operações deste lamentável processo era o estupro da mulher negra feito pela classe dominante e se estendeu por décadas e décadas. Os mulatos, oriundos do abuso dos europeus, foram bastante importantes para consolidar a teoria da “democracia racial” que supostamente ocorria. Mais que isso, os mulatos representam o fim da “ameaça racial” e ponto que começa a se eliminar a raça negra do país, sendo assim o primeiro passo da “branquificação sistemática do povo brasileiro”.(Nascimento, 1978, p.69). O mulato mesmo tendo funções diferentes do negros no período da escraviza gução, como capitão do mato, por exemplo, ainda ocupava o mesmo lugar social no sentido de desprezo, preconceito e discriminação pois se tratava de uma sociedade brasileira institucionalmente branca. Assim, o genocídio se dá, na forma mais pura e simples, por meio da aglutinação da mulatarização com o abuso das mulheres negras. A mestiçagem representa a inviabilização de crescimento da população negra e também indício de discriminação, já que é resultado de estupros e amancebamento. O outro pilar do embranquecimento foi a imigração, que, por sua vez, se fazia valer tendo em vista que a população brasileira era considerada feia e inferior geneticamente devido 4Dados disponíveis em https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/11/proporcao-de-pobres-pretos-e-pardos- chega-ao-dobro-em-relacao-aos-brancos-mostra-o-ibge.ghtml 25 a presença do negro africano. Dessa forma, era necessário que os valores mais fortes das raças europeias se fizessem presentes. A vontade de acabar com o negro era tão grande que se criou diversas teorias racistas disfarçadas de ciencia para justificar. Nas palavras de Abdias: “Desde o fim do século XIX, o objetivo estabelecido pela política imigratória foi o desapericimento do negro através da ‘salvação’ do sangue europeu, e este alvo permanaceu como ponto central da política nacional durante o século XX”. (Nascimento, 1978, p.71). Como se pode notar, o negro sempre ocupou o lugar do “indesejável” no imaginário do ser brasileiro, sempre fizeram tudo para causar seu fim. Outra reflexão que se pode tirar é que o negro é, em primeiro lugar, resistência. Ser negro no Brasil é saber que sempre tentarão te eliminar de todas as formas possíveis. 3. 2CONJUNTO DE LEIS, A PERPETUAÇÃO DO NEGRO COMO SUBHUMANO Já foi mostrado nesse trabalho que após a abolição, os negros não tinham nenhuma garantia de seus direitos, na verdade tinham leis que proibiam acessos das pessoas negras em determinados espaços institucionais, como saúde e educação. Gilberto Maringoni destaca que o processo abolicionista foi importante pela mobilização que gerou nas classes sociais e que mesmo assim era um projeto de caráter soberano a fim da manutenção da hierarquia racial percebida nos dias atuais. A campanha abolicionista, em fins do século XIX, mobilizou vastos setores da sociedade brasileira. No entanto, passado o 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, sem a realização de reformas que os integrassem socialmente. Por trás disso, havia um projeto de modernização conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de discriminação. (MARINGONI 2011. ANO 8. EDIÇÃO 70) E também Florestan Fernandes (2008), no seu clássico livro A integração do negro na sociedade de classes mostra que A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...) Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”. (FERNANDES, 2008, p.462-463) Para Maringoni, Florestan é assertivo, pois a maneira como se deu o processo de libertação não considerou fatores essenciais à integração de fato. Ele parte do pressuposto que o que permitiu o escravismo no Brasil foi o avanço do capitalismo. 26 Umas das formas mercadológicas desse sistema reside na presença de um mercado consumidor e que estes, cada vez mais, tenham condições de consumir. O escravizado, assim acabava sendo antieconômico e contrário ao desenvolvimento econômico. Maringoni também traz que a acelerada transformação pela qual o país passava nas três décadas finais do século XIX, impulsionada pelo ciclo econômico do café, consolidou o setor exportador como principal polo econômico e responsável pela ligação do país com o mercado mundial. Nessa época de supremacia do império britânico, fica também marcada a expansão da economia internacional e a busca de matérias primas que alimentaram a Segunda Revolução Industrial. Esses dois processos levaram a uma série de investimentos nos países invadidos. A grande verdade desse processo todo de libertação é que em nenhum momento se pensou na humanização do povo africano. Pensou-se na liberação das forças produtivas dos custos de manutenção de um grande contingente de força de trabalho confinada, assim, a escravidão era um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Não é à toa que a proclamação da república veio apenas 16 meses depois da Lei Áurea. Devido a quantidade exorbitante de imigrantes, os ex-escravos tornaram-se um exército industrial suplente e descartável, sem força política na nova forma de governo republicano. Maringoni destaca que ex escravos, se tornaram os “indesejados dos novos tempos” após se juntarem aos pobres, sem contar toda a discriminação racial. Para exemplificar a situação da época, o relato do historiador Luiz Edmundo (1878-1961) em seu livro O Rio de Janeiro do meu tempo, no trecho referente ao morro de Santo Antônio e as miseráveis moradias e vielas: “Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio a gente válida, porém o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus...(...) No morro, os sem- -trabalho surgem a cada canto”. Com o fim da guerra do Paraguai (1864-1870) a agricultura de exportação vivia, na época, seu auge. O que atraiu o interesse inglês, que, por sua vez, injetou um grande fluxo de capitais a fim de desenvolver a infraestrutura de transportes (ferrovias, construção de estradas e companhias de bonde) e práticas ligadas à exportação (bancos,armazéns e beneficiamento). Nesse período, o império britânico era supremo e a demanda crescente de matérias primas junto com a expansão da economia internacional resultou num ciclo de investimentos nos países explorados. O historiador Eric Hobsbawm assinala em A era dos impeŕios: “O 27 investimento estrangeiro na América Latina atingiu níveis assombrosos nos anos 1880, quando a extensão da rede ferroviária argentina foi quintuplicada, e tanto a Argentina como o Brasil atraíram até 200 mil imigrantes por ano”. A partir de 1870, com incentivo da entrada de imigrantes, escravos e assalariados convivem num mesmo ambiente.Segundo o IBGE, entre 1871 e 1880, chegam ao Brasil 219 mil imigrantes. Na década seguinte, o número saltou para 525 mil. E, no último decênio do século XIX, após a Abolição, o total soma 1,13 milhão. A oligarquia agrária de outrora passou a ser a burguesia florescente, com isso, novas relações sociais foram estabelecidas e, consequentemente, mudando o funcionamento do Estado e as características do mercado de trabalho. Os ex-escravos ficam obsoletos a partir disso, correspondendo a um capital fixo em que o ciclo dura exatamente a vida útil deste indivíduo, dessa forma, estabelece-se uma carga de sobre trabalho a ser produzido. Ao passo que o assalariado providencia o sobretrabalho sem adiantamento ou risco, tornando assim, o capitalismo incompatível com a escravidão. A origem das favelas é consequência natural de um processo desumano fantasiado de libertação dos escravizados. Elas se constituem, dessa forma, como um estado exceção pós abolicionista onde a ausência de leis e condições de se viver são características marcantes. O novo regime imprimia a falsa ideia de mudança com o novo tempo, porém a democratização social e possíveis mobilidades de classe não faziam parte da oligarquia, pois é assim que a estrutura elitista e excludente se consolida. O Estado cumprindo seu papel opressor, por meio das autoridades que agem como literalmente como força, se mostrou impiedoso na perseguição dos capoeiras, negros e pobres majoritariamente, que praticavam a dança pelas ruas do Rio de janeiro. 3. 2. 1 Pito do Pango Todo esse processo de emancipação mostrado e com as devidas análises feitas, deixa claro o verdadeiro objetivo da abolição no qual o negro sempre foi visto como a força passiva incapaz de lutar pelos seus direitos, assim o movimento contra o sistema opressor não vinha das ruas ou do desejo de um povo de ser livre, mas sim de um acordo entre fazendeiros e Estado. O Estado é peça fundamental na subalternização do negro por meio da legislação e na forma de operá-los, a primeira lei que deixa claro isso é a PITO DO PANGO (1830). A maconha, que por ser consumida em cachimbos de barro, pelos negros dos Palmares, foi batizada dessa forma PITO DO PANGO, passou a ser demonizada pela forma 28 que era fumada pelas pessoas negras escravizadas, criminaliza-se por se fumar em cachimbos de barro. O Brasil, foi o primeiro lugar no mundo a criminalizar a maconha, mostrando sua forte ligação com o racismo. Um trecho de um jornal da época traz Verifica-se nas posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão de 4 de outubro de 1830, na Seção Primeira Saúde Pública, Título 2º, Sobre a Venda de Gêneros e Remédios, e sobre Boticário, entrou em vigor o seguinte § 7 É proibida a venda e o uso do “Pito do Pango”, bem como aconservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia. A diferença de punição entre pretos e brancos escancara o projeto racista de encarceramento em massa já naquela época, isso é o que muitos anos mais tarde Silvio de Almeida, hoje ministro dos direitos humanos, viria a definir como racismo estrutural. Nesta dimensão, as instituições são racistas pois a sociedade corrobora em suas estruturas jurídicas, políticas e econômicas a autopreservação dos brancos com a manutenção de seus privilégios. Para Silvio Almeida, existem dois tipos de discriminação, enviesados do ponto de vista econômico e estrutural, traduzindo-se em: 1. Políticas econômicas estabelecem privilégios para o grupo racial dominante ou prejudicam as minorias; 2. O Racismo faz com que a pobreza seja ideologicamente incorporada quase que como uma condição biológica de negros e indígenas, naturalizando a inserção no mercado de trabalho de grande parte das pessoas identificadas com esses grupos sociais. 3. 2. 2 Lei da Vadiagem Durante o período colonial e imperial no Brasil, existiam leis que tratavam da chamada "ociosidade" ou "vadiagem". Uma das mais conhecidas foi a Lei de Terras de 1850, que tinha como objetivo regularizar a posse de terras no país, mas também continha disposições relacionadas à mão de obra. A Lei de Terras de 1850 estabelecia que terras devolutas (terras não ocupadas ou utilizadas) poderiam ser apropriadas por qualquer cidadão que as tornasse produtivas. No entanto, essa lei também tinha disposições sobre a ocupação da terra para evitar a vadiagem, exigindo que as terras fossem utilizadas de forma produtiva. Isso visava incentivar a colonização e a produção agrícola. Em relação à vadiagem, outras leis e decretos do período imperial também tratavam do assunto. O Código Criminal de 1830, por exemplo, estabelecia penas para vadios e mendigos, com o objetivo de forçar a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Essas leis refletiam o contexto social e econômico da época, marcado pela transição do sistema 29 escravista para o trabalho livre e assalariado. A ideia por trás dessas leis era garantir a ordem social, incentivar a produção e evitar a ociosidade. É importante observar que o conceito de vadiagem nessas leis muitas vezes refletia preconceitos e discriminações sociais da época. A aplicação dessas leis resultou em injustiças e impactos desproporcionais sobre determinados grupos sociais, como a população negra e os mais pobres. O Código Criminal de 1830, também conhecido como Código do Império, foi uma legislação penal promulgada durante o período imperial brasileiro. Ele tinha como objetivo estabelecer normas e penas para crimes diversos. No contexto da vadiagem, o Código Criminal de 1830 continha disposições específicas relacionadas a vadios e mendigos. De acordo com esse código, consideravam-se vadios aqueles que não tinham ocupação lícita e não podiam comprovar meios de subsistência. Os mendigos, por sua vez, eram definidos como aqueles que pediam esmolas sem razão justificável. Ambos eram considerados passíveis de punição. As penas para vadios e mendigos eram diversas e incluíam prisão, trabalho forçado e outras formas de coerção. Essa abordagem refletia a preocupação do Estado em garantir a ordem social e estimular a produtividade da população. Isso fica evidente ao atinar ao fato que havia a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, por isso, muitas vezes, foram aplicadas de maneiras discriminatórias e afetaram de maneira desproporcional os negros e pobres. O processo de favelização5 no Rio de Janeiro tem raízes históricas complexas que estão relacionadas a uma série de fatores, incluindo a urbanização acelerada, migrações internas, pobreza, falta de políticas habitacionais adequadas e desigualdades socioeconômicas. Embora o Código Criminal de 1830 não seja diretamente responsável pelo fenômeno da favelização, algumas dinâmicas históricas e políticas relacionadas à vadiagem e ao controle social podem ter influenciado indiretamente o desenvolvimento das favelas. Durante o processo de urbanização acelerada no século XX, o Rio de Janeiro passou por um intenso êxodo rural, com muitas pessoas migrando para a cidade em busca de trabalho e melhores condições de vida. A falta de políticas habitacionais adequadas resultou na formação de assentamentos informais, que posteriormente se tornaram favelas. 5 "O processo de favelização no Brasil teve início no final do século XIX, quando aconteceu a abolição da escravidão. A falta de renda das pessoas ex-escravizadas e a discriminação para com elas fizeram com que se deslocassem para áreas mais afastadas dos centros das cidades e construíssem habitações de mais baixo custo." Veja mais sobre "Favelização" em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/favelizacao-segregacao-urbana.htm 30 Ao longo do século XX, o Estado brasileiro, em diferentes momentos, adotou medidas repressivas em relação às favelas. Durante períodos de autoritarismo, como durante a ditadura militar (1964-1985), houve ações de remoção forçada de favelas em nome de projetos de modernização urbana. A repressão estatal incluiu demolições de casas, remoção de moradores e ações que muitas vezes violavam os direitos humanos. A estigmatização histórica associada às áreas de favelas contribuiu para a marginalização social e econômica de seus habitantes. A visão estigmatizada dos residentes das favelas muitas vezes levou a abordagens policiais mais agressivas, alimentando um ciclo de pobreza, estigmatização e repressão. As dinâmicas econômicas, sociais e políticas ao longo do tempo desempenharam papéis significativos na formação e evolução das favelas no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras. 31 4 O PROIBICIONISMO E O USO DAS DROGAS Neste capítulo tem a intenção de relacionar o proibicionismo e uso de drogas, trazendo contribuições de dois autores, de áreas diferentes do conhecimento que de certa forma se complementam muito, são eles: Henrique Carneiro e Daniela Ferrugem. Como já mencionado, por muito tempo a história do capitalismo se confunde com a busca por especiarias e o uso das drogas está tão intrínseco na humanidade quanto o hábito de beber água. Assim Carneiro mostra que “Há cerca de 400 anos, começava essa revolução na economia, nos costumes, na vida cotidiana, o advento do consumo de massas do álcool destilado, do tabaco, do chocolate, do café e do chá, acompanhados, é claro,pelo consumo crescente do açúcar”.(Carneiro, 2019, p.187). Henrique Carneiro analisa criticamente o proibicionismo, examinando como as políticas de controle de drogas evoluíram ao longo do tempo e como essas políticas impactam as sociedades. Ele questiona as motivações por trás do proibicionismo e destaca suas consequências sociais, econômicas e de saúde pública. E argumenta que interesses econômicos desempenham um papel significativo no proibicionismo. A criminalização das drogas, por toda a relação já mostrada, serve a interesses de setores industriais e econômicos, muitas vezes vinculados à produção de substâncias farmacêuticas e à manutenção de certos mercados. O proibicionismo também é visto por ele como uma ferramenta de controle social e manutenção da ordem, dessa forma, se mostrando também mais um aparato do Estado no exercício da soberania. Ao criminalizar o consumo de drogas, o Estado busca impor normas sociais e controlar comportamentos considerados indesejáveis, muitas vezes associando o uso de drogas a ameaças à ordem pública. Destacando o viés racial e social nas políticas proibicionistas, argumenta que essas políticas frequentemente recaem de maneira desproporcional sobrecomunidades marginalizadas. A criminalização do uso de drogas pode, segundo ele, perpetuar desigualdades sociais e raciais. O moralismo e o conservadorismo também são identificados como motivações por trás do proibicionismo. Crenças culturais e morais arraigadas, muitas vezes ligadas a valores tradicionais, influenciam a adoção e a manutenção de políticas que criminalizam o uso de drogas. O autor observa que a influência de organizações internacionais, como as Nações Unidas, e acordos internacionais sobre drogas, pode motivar os Estados em desenvolvimento 32 a adotarem políticas proibicionistas para se adequarem a padrões internacionais, mesmo que essas políticas possam não ser as mais eficazes ou justas. Para falar sobre uso de drogas é necessário saber quem usa, quais os riscos de usar, o motivo do uso e diversas outras questões que advém do hábito. Por isso, contribuições como as de Ferrugem, são essenciais para o objetivo proposto. No âmbito dos usos de drogas, este saber da experiência individual e coletiva não só é desvalorizado como é criminalizado, exige-se a abstinência do uso para um cuidado ofertado. Solicita-se que a pessoa que está atrapalhada com seu uso, deixe de usar, para só depois ter ajuda. Um contrassenso, além do que a pessoa que usa drogas é a única que pode dizer como usa, em que condições e quais as estratégias que ela adota para se cuidar. Cabe ao profissional auxiliar a ressignificar estes usos e ampliar as estratégias de cuidado, qualificando-as, diversificando-as e ofertando outras. (FERRUGEM, 2018, p.19) Aqui ela discute a abordagem tradicional em relação ao uso de drogas destacando a desvalorização e criminalização da experiência individual e coletiva associada a esses contextos. O trecho argumenta contra a abordagem de exigir abstinência imediata como condição para receber ajuda, apontando que a pessoa que usa drogas é a única que pode verdadeiramente relatar como, quando e em que condições ela faz uso, assim como as estratégias que adota para se cuidar. Sugere uma abordagem mais compreensiva, na qual os profissionais devem trabalhar em conjunto com as pessoas que usam drogas, ajudando a ressignificar esses comportamentos e ampliando as estratégias de cuidado. Isso implica reconhecer a autonomia da pessoa, entender suas necessidades individuais e oferecer uma gama de opções de suporte, em vez de impor abordagens padronizadas. Ferrugem destaca o papel das substâncias psicoativas nas relações que nós humanos criamos, assim “E o que isso tem a ver com Substâncias Psicoativas? Tudo, diz de nossa humanidade, da relação que estabelecemos com as palavras, com as pessoas e com as substâncias”. (Ferrugem, 2018, p.19) O trecho citado diretamente destaca a conexão profunda entre o uso de substâncias psicoativas e a natureza humana. A autora menciona que a relação com substâncias psicoativas não é apenas sobre os efeitos físicos ou psicológicos dessas substâncias, mas é uma parte intrínseca da experiência humana. Há uma reflexão sobre a relação entre as palavras, as pessoas e as substâncias, sugerindo que o uso de drogas não pode ser compreendido isoladamente, mas sim como parte integrante da complexidade da condição humana. 33 Ao citar o psiquiatra e professor universitário Antônio Nery Filho, que afirma que os humanos usam drogas porque se tornaram humanos, sugere que o uso de substâncias psicoativas está enraizado em aspectos fundamentais da experiência humana, possivelmente relacionados a busca por alterações de consciência, prazer, autodescoberta ou outros motivos. Isso destaca a importância de uma compreensão mais ampla e humanizada do uso de substâncias, afastando-se de estigmatizações simplistas. Por isso destaca também que a guerra às drogas tem um caráter único e inatingível. Assim, ainda traz as seguintes sentenças “Na guerra às drogas, as substâncias outrora plantas e sementes, assumem o protagonismo, a centralidade no debate. Quando decretamos guerra e as combatemos, são às substâncias que decretamos guerra?”. (Ferrugem, 2018, p.20). Abordando a ideia de como, na chamada "guerra às drogas", as substâncias em si assumem um papel central e de destaque no debate. A expressão "guerra às drogas" refere-se às políticas e estratégias governamentais voltadas para a repressão do tráfico e consumo de substâncias psicoativas ilegais. A pergunta levantada propõe uma reflexão crítica sobre a abordagem tradicional na guerra às drogas. Ao declarar guerra às substâncias, a abordagem foca nas plantas e sementes que contêm os compostos químicos proibidos, muitas vezes criminalizando tanto os usuários quanto os produtores dessas substâncias. Essa abordagem deve e merece ser alvo de críticas, pois não considera os fatores sociais, econômicos e de saúde envolvidos no uso de drogas. A pergunta sugere a necessidade de uma análise mais ampla, que leve em conta não apenas as substâncias em si, mas também os contextos sociais, as razões individuais para o uso e as implicações mais amplas das políticas de combate às drogas. Ao afirmar que “Na sociedade capitalista somos condicionados ao consumo, vamos moldando nossas relações com família, amigos, amores, sexo, comida e drogas a partir desta modulação” (Ferrugem, 2018, p.21) encontra os pensamentos de Carneiro. Há uma reflexão sobre como, na sociedade capitalista contemporânea, as relações são moldadas em grande parte pelo consumo. O consumo não se limita apenas a bens materiais, mas também afeta a forma como as pessoas se relacionam com aspectos importantes de suas vidas, como família, amigos, amores, sexo, comida e drogas. Na sociedade capitalista contemporânea, as relações sociais, em geral, são influenciadas e moldadas pelo consumo. Isso significa que a cultura do consumo vai além da simples aquisição de bens materiais; ela permeia vários aspectos da vida cotidiana, incluindo 34 as relações interpessoais e a forma como as pessoas se relacionam com diferentes esferas de suas vidas. O consumo, nesse contexto, não se restringe apenas à compra de produtos tangíveis. Ele também se estende a experiências, ideias, imagens e estilos de vida. O que as pessoas consomem não é apenas um objeto físico, mas também conceitos, narrativas e símbolos que moldam a maneira como elas se vêem e interagem com o mundo ao seu redor. Consumir tem um impacto significativo nas relações interpessoais. Por exemplo, as interações familiares podem ser influenciadas pelo tipo de estilo de vida que a sociedade de consumo promove. As expectativas em torno do que é considerado "bem-sucedido" ou "desejável" podem moldar as dinâmicas familiares, criando pressões e aspirações específicas. A menção a "drogas" no contexto do consumo destaca como até mesmo as relações com substâncias psicoativas podem ser moldadas pelo consumo. O uso pode ser influenciado por fatores culturais e sociais, e o consumismo pode desempenhar um papel na busca por experiências que proporcionem satisfação instantânea ou escapismo. Quando Ferrugem faz referência à citação de Alves sobre o consumismo como "via grotesca de escape do vazio existencial" destaca a ideia de que, em uma sociedade orientada para o consumo, as pessoas podem recorrer ao ato de consumir como uma tentativa de preencher lacunas emocionais ou encontrar significado. Essa busca incessante por novas experiências ou bens pode refletir um vazio existencial mais profundo. Cada uma dessas afirmações destaca como a sociedade de consumo não é apenas sobre aquisição material, mas também sobre como essa mentalidade permeia e influencia aspectos fundamentais da vida cotidiana e das relações interpessoais. Essa perspectiva destaca a necessidade de uma análise crítica das dinâmicas sociais e culturais para compreendermos como o consumo molda a experiência humana. A análise crítica das dinâmicas sociais e culturais que moldam a experiência humanaatravés do consumo revela uma série de aspectos complexos e, muitas vezes, problemáticos. O consumo está vinculado à criação de padrões de valor e autoestima. Em sociedades de consumo, a posse de determinados bens ou a adesão a estilos de vida específicos pode ser associada ao sucesso pessoal. Isso cria pressões sociais para se conformar a esses padrões, levando a uma busca incessante por validação externa através do consumo. As dinâmicas de consumo perpetuam desigualdades sociais. A capacidade de participar plenamente da sociedade de consumo pode depender de fatores econômicos, criando divisões entre aqueles que podem acessar determinados bens e serviços e aqueles que 35 não podem. Isso contribui para a exclusão social e para a ampliação das disparidades econômicas. Logo, a sociedade do consumo é definitivamente soberana e excludente. O modelo de consumo desenfreado frequentemente ignora as preocupações ambientais e de sustentabilidade. A produção em massa e o descarte de bens têm consequências significativas para o meio ambiente. A exploração de recursos naturais e a produção de resíduos contribuem para problemas como a poluição, as mudanças climáticas e a degradação do ecossistema. A cultura do consumo promove a obsolescência planejada, onde produtos são projetados para terem uma vida útil limitada, incentivando a substituição constante. Isso não apenas contribui para o desperdício, mas também perpetua um ciclo de consumo insustentável, onde a novidade e a substituição contínua são valorizadas em detrimento da durabilidade e qualidade. A busca incessante por mais, muitas vezes impulsionada pela publicidade e pelas mídias sociais, pode ter impactos significativos na saúde mental. A comparação constante com os outros em termos de posses materiais e estilo de vida pode levar a sentimentos de inadequação, ansiedade e insatisfação, contribuindo para problemas de saúde mental. A sociedade de consumo tende a commodificar não apenas bens tangíveis, mas também experiências e relacionamentos. A busca por experiências "instagramáveis" ou a valorização de relacionamentos com base em critérios superficiais podem levar a uma superficialidade nas interações humanas e na busca por satisfação momentânea em detrimento de conexões significativas. O consumo excessivo pode levar a uma identidade superficial baseada no que uma pessoa possui, usa ou faz, em vez de quem ela é intrinsecamente. Isso cria uma narrativa em que o valor pessoal está diretamente ligado à capacidade de consumir, dificultando o desenvolvimento de uma identidade autêntica e independente do consumo. A análise crítica dessas dinâmicas destaca a necessidade de repensar os modelos de consumo e buscar alternativas que promovam a equidade, a sustentabilidade e a autenticidade, ou seja, devemos repensar a maneira como vivemos. Neste contexto a droga, todas elas, as prescritas com a finalidade de apaziguar sofrimentos ou as proscritas utilizadas com a mesma finalidade ou como dispositivo de prazer, se inserem como mais uma substância a ser consumida. E neste bojo, algumas pessoas podem estabelecer relações de abuso e prejuízo com substâncias psicoativas. (FERRUGEM, 2018, p.22) Esse trecho destaca a inclusão das drogas, tanto as prescritas para aliviar sofrimentos quanto as proscritas usadas para prazer ou outros propósitos, como mais uma categoria de 36 substância consumida na sociedade de consumo. Reconhecendo que, dentro desse contexto, algumas pessoas podem desenvolver relações problemáticas, caracterizadas por abuso e prejuízo, com substâncias psicoativas.Essa perspectiva alinha-se com a compreensão de que o uso de substâncias psicoativas não ocorre em um vácuo, mas é influenciado por fatores sociais, culturais e individuais. A menção a drogas prescritas destinadas a apaziguar sofrimentos sugere a medicalização de certos comportamentos ou estados mentais. Ao mesmo tempo, a referência a drogas proscritas usadas para prazer aponta para o aspecto recreativo ou hedonístico do consumo de substâncias. Ambos os usos podem coexistir e são influenciados por normas sociais e culturais. A inserção das drogas como mais uma categoria de substância consumida destaca como as pessoas podem recorrer a diferentes formas de consumo para lidar com necessidades psicológicas, sejam elas relacionadas ao alívio do sofrimento, à busca de prazer ou a outros propósitos. Isso sugere a complexidade das motivações por trás do uso de substâncias. Ao reconhecer que algumas pessoas podem estabelecer relações de abuso e prejuízo com substâncias psicoativas, o trecho destaca os riscos associados ao consumo. O abuso pode levar a consequências adversas para a saúde mental, física, social e econômica, sublinhando a importância de abordagens de saúde pública que considerem a prevenção e o tratamento de problemas relacionados ao uso de substâncias. A inclusão da análise dentro do contexto social e cultural enfatiza que as relações com as drogas não são uniformes, variando de acordo com normas, valores e práticas em diferentes comunidades e momentos históricos. Isso destaca a necessidade de abordagens flexíveis e culturalmente sensíveis na compreensão e abordagem das questões relacionadas ao uso de substâncias. A observação sobre relações de abuso e prejuízo também destaca a importância de uma abordagem holística ao lidar com problemas de substâncias. Isso envolve não apenas tratar os sintomas do abuso, mas também abordar fatores subjacentes, como contextos sociais, emocionais e psicológicos, para promover uma recuperação mais eficaz. Temos vivenciado no Brasil um processo que tenta construir no imaginário social uma imagem – conceito de usuários de drogas, que não corresponde ao real. Ao extrair a autonomia e a capacidade de decisão das pessoas que fazem uso de drogas e, na mesma esteira, atribuírem o estereótipo de zumbis incontroláveis e temíveis. Incapazes de controlar seus impulsos, ou seria a sociedade incapaz de lidar com pessoas que assumem seus desejos e suas subjetividades desviantes? (FERRUGEM, 2018, p.25) 37 Este trecho destaca uma preocupação sobre a construção de uma imagem estigmatizada e distorcida dos usuários de drogas no Brasil. Como a construção de estereótipos em torno dos usuários de drogas, argumentando que essa representação não corresponde à realidade. A descrição de "zumbis incontroláveis e temíveis" sugere a criação de uma imagem que desumaniza e demoniza essas pessoas, retirando-lhes sua autonomia e capacidade de tomar decisões. A observação de que a sociedade tenta extrair a autonomia e a capacidade de decisão das pessoas que usam drogas destaca uma narrativa que desconsidera a diversidade de experiências e contextos individuais. Isso contribui para práticas discriminatórias e políticas públicas que não são baseadas em uma compreensão realista dos desafios enfrentados pelos usuários de drogas. A pergunta final levanta uma reflexão sobre se a sociedade é incapaz de lidar com pessoas que assumem seus desejos e subjetividades desviantes. Aqui, há uma provocação sobre a capacidade da sociedade em aceitar e compreender a diversidade de experiências humanas, especialmente aquelas que não se enquadram nas normas sociais tradicionais. Estigmatizar os usuários de drogas pode ter sérias consequências, incluindo a criação de barreiras ao tratamento e à busca de ajuda. O estigma impede que as pessoas procurem assistência devido ao medo de julgamento, marginalização ou represálias. Ao questionar a construção estigmatizada dos usuários de drogas, destaca a importância da empatia e compreensão na abordagem dessas questões. Uma abordagem mais humanizada e informada poderia levar a políticas públicas e práticas que respeitem a dignidade e os direitos das pessoas que usam drogas. Esse trecho reflete uma preocupação com a narrativa estigmatizante que muitas vezes envolveusuários de drogas, chamando a atenção para a necessidade de uma abordagem mais realista, empática e centrada nos direitos humanos ao lidar com questões relacionadas ao uso de substâncias. A fim de materializar e dar razão a tudo explicitado anteriormente, destaco mais um caso absurdo que ocorreu na cidade maravilhosa, Rio de Janeiro. O caso do menino João Pedro, morto em 19/05/2020 mostra como age a força policial nos ambientes periféricos, como a necropolítica e a ação do combate às drogas impactam a vida nas periferias. “O adolescente João Pedro Matos Pinto, 14 anos, foi morto com um tiro na barriga após uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Resgatado por um helicóptero do Corpo de 38 Bombeiros, o jovem desapareceu por horas e foi encontrado apenas na manhã desta terça-feira (19/5) pela família no Instituto Médico Legal de Tribobó, na mesma cidade.” (El País, 2020). A necropolítica, conceito cunhado por Achille Mbembe, refere-se ao exercício do poder político por meio do controle da vida e da morte. No contexto da morte de João Pedro, a ação policial no Complexo do Salgueiro é uma das mais diversas formas de manifestação de necropolítica. Operações de segurança que resultam em mortes, especialmente de jovens em comunidades marginalizadas, ilustram como algumas vidas são consideradas dispensáveis ou descartáveis pelo aparato estatal. A valorização desigual das vidas é evidenciada pela vulnerabilidade de jovens como João Pedro diante da presença policial em suas comunidades. A falta de cuidado com a vida desses indivíduos revela dinâmicas sociais e políticas que perpetuam desigualdades e injustiças. A guerra às drogas muitas vezes leva a abordagens policiais agressivas, especialmente em comunidades urbanas. A proibição das drogas contribui para a militarização da polícia, aumentando a probabilidade de confrontos violentos durante operações. A morte de João Pedro é uma consequência trágica dessa abordagem, destacando como políticas proibicionistas podem resultar em impactos devastadores para a juventude, particularmente em comunidades carentes. Além disso, a criminalização das drogas frequentemente afeta de maneira desproporcional comunidades marginalizadas, contribuindo para a estigmatização e ações violentas por parte das forças de segurança. A violência policial, em muitos casos, é uma expressão da necropolítica, pois implica no uso excessivo da força que pode resultar em mortes injustificadas. No caso de João Pedro, sua morte é um exemplo gritante de como a violência policial pode ceifar vidas jovens, muitas vezes baseada em estereótipos raciais e socioeconômicos. A morte de João Pedro destaca a necessidade urgente de repensar as práticas policiais, promover uma abordagem mais centrada nos direitos humanos e buscar soluções para questões sociais, como a desigualdade e o acesso precário a oportunidades para jovens em comunidades vulneráveis. 39 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando Ferrugem afirma que “São os negros que se encontram em situação de maior vulnerabilidade quando em uso de drogas” (Ferrugem, 2018, p.28) deixa clara a relação com a necropolítica nos tempos modernos. Destacando uma preocupação adicional com as disparidades e desigualdades que permeiam as questões relacionadas ao uso de drogas. A observação ressalta as disparidades raciais no contexto do uso de drogas. Isso mostra que, dentro da sociedade brasileira, os indivíduos negros enfrentam desafios e vulnerabilidades específicas quando se trata de questões relacionadas a substâncias psicoativas. A população negra enfrenta estigma e discriminação adicionais, que são agravados quando se trata de uso de drogas. As políticas de drogas historicamente se concentraram em práticas de criminalização, e isso afeta desproporcionalmente as comunidades negras, levando a uma maior vulnerabilidade. A afirmação sugere que os negros podem enfrentar dificuldades específicas no acesso a recursos e tratamento para questões relacionadas ao uso de drogas. Isso pode ser atribuído a uma série de fatores, incluindo desigualdades econômicas, falta de acesso a serviços de saúde mental e barreiras estruturais que impactam as comunidades negras de maneira desproporcional. Ressalta a importância de considerar o impacto do racismo estrutural nas dinâmicas relacionadas ao uso de drogas. Questões como a criminalização do uso de drogas e a seletividade do sistema de justiça criminal têm efeitos adversos sobre as comunidades negras, exacerbando a vulnerabilidade social.A interseção de raça, classe social e gênero cria experiências únicas de vulnerabilidade que exigem intervenções específicas e sensíveis às diferenças. Por fim, a autora escancara a necessidade de políticas mais antirracistas e equitativas no campo das políticas de drogas. Isso inclui não apenas a reforma das leis relacionadas às drogas, mas também a abordagem de fatores sociais mais amplos que contribuem para as disparidades observadas. Achille Mbembe propõe o termo "necropolítica" para descrever o uso político do poder de vida e morte. Ele examina como certas populações são submetidas a condições de vida que implicam uma forma de morte social e política, muitas vezes através de práticas como a violência estatal, o genocídio e a marginalização sistemática. A percepção da existência do Outro como um atentado contra minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria meu 40 potencial de vida e segurança, é este, penso eu, um dos muitos imaginários de soberania, característico tanto da primeira quanto da última modernidade.(MBEMBE, 2018, p.19-20) A passagem ressalta que a percepção do "Outro" como uma ameaça mortal é característica da imaginação de soberania. Essa percepção é usada para justificar ações violentas do Estado contra grupos considerados perigosos, subversivos ou inimigos, resultando em violência estatal. A ideia de que a eliminação biofísica do "Outro" reforçaria o potencial de vida e segurança é uma lógica que usa-se para revelar a violência estatal. O Estado, percebendo uma ameaça à sua soberania ou estabilidade, recorre à repressão violenta como meio de eliminar a suposta ameaça. O genocídio, que é a tentativa deliberada e sistemática de destruir um grupo étnico, racial, religioso ou nacional, é visto como o extremo dessa lógica de soberania. A ideia de que a eliminação física do "Outro" reforça a segurança e a vitalidade do grupo dominante leva a práticas genocidas, onde a aniquilação de comunidades inteiras é justificada em nome da preservação da ordem e do poder. Mbembe menciona que esse imaginário de soberania é característico tanto da primeira quanto da última modernidade. Isso reflete uma continuidade de padrões de pensamento que persistem ao longo do tempo, adaptando-se a diferentes contextos históricos. Em diferentes momentos da história moderna, vimos exemplos de violência estatal e genocídio, justificados por essa lógica de soberania e percepção do "Outro" como ameaça existencial. A relação entre a passagem de Achille Mbembe e a situação nas favelas do Rio de Janeiro, especialmente em relação ao termo "traficante" e às ações policiais, pode ser analisada sob a ótica da percepção do "Outro" como uma ameaça à vida, contribuindo para a manutenção da hierarquia social. O termo "traficante" é associado, nas representações sociais, a uma ameaça à ordem pública e à segurança. Essa percepção do "traficante" como um elemento perigoso contribui para a construção de uma narrativa em que a presença dessas figuras é vista como uma ameaça existencial, refletindo a ideia presente na passagem de Mbembe. A percepção do "traficante" como uma ameaça é usada para justificar ações policiais intensivas nas favelas. Operações policiais visam a eliminação do queé considerado ameaça, e essa lógica leva a práticas violentas que têm um impacto desproporcional sobre comunidades inteiras. 41 A ideia de que a eliminação biofísica do "traficante" reforçaria a segurança e a vitalidade do Estado está alinhada com o imaginário de soberania estatal. O Estado, ao lidar com grupos considerados ameaçadores, evidencia as ações violentas em nome da preservação da ordem e da autoridade. As ações policiais frequentemente afetam desproporcionalmente os residentes das favelas, levando a violações dos direitos humanos e contribuindo para a vulnerabilidade dessas comunidades. Perpetuando um ciclo de desconfiança nas instituições estatais e reforçar a marginalização social e econômica dessas áreas. A associação do termo "traficante" com ameaças à segurança e a subsequente justificação de ações policiais contribuem para a manutenção da hierarquia social. Isso porque tais práticas atingem grupos já marginalizados, reforçando a desigualdade social e econômica existente. A análise dessa relação destaca a necessidade de uma abordagem mais justa e equitativa nas políticas de segurança, evitando a estigmatização generalizada e promovendo práticas que abordem as raízes estruturais dos problemas sociais. O caso da morte de João Pedro6, um menino de 14 anos morto a tiros durante uma operação policial, pode ser relacionado com as discussões anteriores sobre a percepção do "Outro" como uma ameaça, o termo "traficante", ações policiais em favelas do Rio de Janeiro e a manutenção da hierarquia social. O caso de João Pedro destaca como a percepção do "Outro" como ameaça tem consequências devastadoras, especialmente quando essa percepção é aplicada indiscriminadamente a pessoas em comunidades marginalizadas. João Pedro, um adolescente inocente, foi vítima dessa percepção errônea. O termo "traficante" é associado a estigmatização e pode ser usado como justificativa para ações policiais agressivas. No entanto, casos como o de João Pedro evidenciam os perigos dessa estigmatização, pois indivíduos inocentes podem ser prejudicados devido a generalizações prejudiciais. A morte desse menino destaca os impactos negativos das ações policiais desproporcionais em comunidades vulneráveis. Essas ações resultam em mortes injustificadas, traumatizando famílias e comunidades inteiras, enquanto o objetivo declarado de promover segurança se perde. 6informações detalhadas sobre o caso disponíveis em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57121830 42 A tragédia envolvendo João Pedro também ilustra como a violência estatal, quando direcionada a certas comunidades, contribui para a manutenção da hierarquia social. Comunidades marginalizadas, frequentemente associadas a termos como "traficantes", enfrentam não apenas desafios sociais e econômicos, mas também a ameaça constante de violência estatal. O caso de João Pedro destaca a necessidade urgente de uma mudança estrutural nas políticas de segurança, com foco em abordagens mais justas, transparentes e sensíveis às comunidades. Isso inclui revisão de práticas policiais, políticas de segurança pública e uma avaliação crítica da percepção do “Outro”. “Incidentes” como esse catalisam a mobilização social e a conscientização sobre as questões relacionadas à violência estatal. É fundamental que a sociedade exija prestação de contas, transparência e reformas substanciais nas instituições policiais para que tragédias semelhantes ocorram. Em resumo, esse caso destaca as consequências trágicas da percepção equivocada do "Outro" como ameaça, reforçando a necessidade de uma análise crítica das práticas policiais, políticas de segurança e da hierarquia social que perpetua desigualdades e injustiças. Essa pesquisa é introdutória no tema e deixa evidente a necessidade de que haja cada vez mais debates por parte dos economistas e até da sociedade brasileira, de modo geral. Foi mostrado que o Estado brasileiro é, no mínimo, omisso no que tange a diminuição das desigualdades sociais e raciais, dessa forma, tal qual como a “democracia racial” a democracia atual também é um mito baseado em falsos pressupostos. O caso do menino João Pedro é um exemplo que elucida as graves e constantes falhas do país, além de fomentar o argumento de todos os autores citados. Se relaciona com a necropolítica quando analisamos as considerações de Mbembe (2018) acerca da condição de escravizado. Sendo resultado de uma tripla perda, em que: 1) perda do lar; 2) perda de direitos sobre seu corpo; 3) perda do estatuto político. Veja, o menino foi morto a tiros de policiais que invadiram sua casa. Partindo disso, convido o leitor a fazer uma breve análise dessa correlação. É sabido que a polícia não pode entrar em nenhum domicílio sem que haja um mandato judicial, a perda do lar se dá justamente no momento que a polícia invade a casa dele. Perda de direitos sobre seu corpo é referente ao fato que depois de morto, ele sumiu por horas e os pais só souberam notícia do corpo na manhã seguinte do ocorrido. Assim, a perda do estatuto político se nota quando uma criança de 14 anos é submetida a ataques policiais extremamente violentos a ponto de usarem granadas. Vale lembrar que todo cidadão tem o direito de ir e vir, mas principalmente todo 43 cidadão tem o direito de permanecer no seu próprio lar e não sofrer repressão de quem deve te proteger. A violência extrema da força estatal evidencia também o ódio ao “inimigo”. Tendo em vista que ação policial buscava prender traficantes, não conseguiu e resultou na morte de um pré adolescente inocente, nos remete ao apontamento de Daniela Ferrugem: “a guerra às drogas, além de irracional, uma vez que busca um objetivo inatingível, é letal”. (Ferrugem, 2018, p.10). Infelizmente a ausência de políticas públicas a fim de cessar essa condição genocida da qual o negro brasileiro está fadado a ser vítima, só faz aumentar o número de corpos negros mortos com aval do Estado. Georges Bataille afirma que a morte é antieconômica e contra o desenvolvimento, o Brasil, enquanto “produtor de morte”, seria o inimigo da economia e do desenvolvimento? De certa forma, faz muito sentido se afirmar como inimigo da economia e do desenvolvimento, pois, assim, a elite brasileira se mantém no poder a fim de dar continuidade na perpetuação do horror e na marginalização das minorias, deixando claro o ato soberano de definir quem deve morrer e quem deve viver. As políticas realmente eficazes no combate às drogas não são mirabolantes ou requerem gasto excessivo de dinheiro, são as mesmas necessárias para que um cidadão exerça seu direito. Elas estão no âmbito social, como saneamento básico, acesso a cultura e educação, transporte de qualidade e segurança. 44 REFERÊNCIAS CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia literária, 2019. CAVALLINI, Marta. Proporção de pretos e pardos entre os pobres chega ao dobro em relação aos brancos, mostra o IBGE: Levantamento mostra ainda que, em 2021, a taxa de desocupação também era maior entre pretos e pardos. Enquanto entre a população branca era de 11,3 %, para a preta ficou em 16,5 % e para a parda, em 16,2 %,Rio de Janeiro:G1, 11 nov. 2022. Economia. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/11/proporcao-de-pobres-pretos-e-pardos- chega-ao-dobro-em-relacao-aos-brancos-mostra-o-ibge.ghtml. Acesso em: 17 out. 2023. COELHO, Leonardo. João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro. Ponte Jornalismo, In: El País, 19 maio 2020. Disponível em: FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2008. GUIMARÃES, Ligia. Quando o Estado mata nossos filhos a Justiça não acontece, diz mãe de João Pedro, um ano após o crime: Investigações estão paradasdesde outubro do ano passado, e policiais investigados seguem na atividade. ‘A impunidade está, sim, descarada’, afirma Rafaela, que fala sobre o desafio de seguir em frente sem respostas sobre o assassinato.São Paulo: BBCNewsBrasil, 14 maio 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57121830.https://g1.globo.com/rj/rio-de- janeiro/noticia/2021/05/14/quando-o-estado-mata-nossos-filhos-a-justica-nao-acontece-diz- mae-de-joao-pedro-um-ano-apos-o-crime.ghtml. Acesso em: 29 nov. 2023. GUITARRARA, Paloma. Favelização. Brasil Escola. Geografia.Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/favelizacao-segregacao-urbana.htm. Acesso em 30 de nov. 2023. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-19/jovem-de-14- anos-e-morto-durante-acao-policial-no-rio-e-familia-fica-horas-sem-saber-seu-paradeiro.html. 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