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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE CURSO DE DIREITO DAVID FERREIRA SANTANA AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) MACAÉ/RJ 2021 DAVID FERREIRA SANTANA AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito de avaliação para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro MACAÉ/RJ 2021 DAVID FERREIRA SANTANA AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito de avaliação para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro Aprovado em: Macaé, 14 de junho de 2021. BANCA EXAMINADORA ORIENTADOR: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro-UFF Profª. Dr. Saulo Bichara Mendonça Prof. Dr. Heron Abdon Souza MACAÉ/RJ 2021 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à minha família, pai, mãe, Danilo, Diogo, Daniele e Isabel, por darem sempre especial atenção a mim e proporcionarem segurança em todos os momentos que precisei. Agradeço por me permitirem escolher e por aceitarem a pessoa que sou, por serem compreensíveis com minha falta de tempo e com as inúmeras horas sozinho com a porta fechada. Sou grato por me permitirem sentar-se à mesa antes de todos, comer e se levantar antes de todos, por chegar em casa e encontrar tudo pronto, com conforto e segurança, para que pudesse fazer o que quisesse. Sou grato à minha namorada Carolina, por ter sido sempre uma influência positiva, por sempre caminhar ao meu lado, por ter permitido enxergar o mundo com mais clareza, expressividade e sinceridade e por a todo momento falar, agir com o único propósito de me causar alegria, radiação e estímulo. Agradeço também à família de minha namorada, que me considerou durante todo o tempo da faculdade como alguém da família, e por ter posto fotos minhas nos porta-retratos das salas: Rafael, Viviane, Isabela, Mariana, Alessandro, Reinaldo e Maria Adnir. Aos meus amigos, também agradeço especialmente: Lucas, Felipe, Amanda, Júlia, Caio, Luis Eduardo, Giovanna, Laura, Angélica, Davi, Logan, Ramón, Maycon, Luccas, Mattheus, Carla Beatriz e Rafaella. Agradeço pelos inúmeros momentos de diversão e companheirismo. Aos mentores (e amigos) Anderson, Francisco e Gabriel. São pessoas que me incentivaram a olhar mais para cima, bem alto, e que me ensinaram grande parte do pouco que sei. Agradeço aos professores da Universidade Federal Fluminense, que compartilham do entendimento de que Direito não é uma ciência da memorização e da retórica, mas sim a oportunidade de compreender com profundidade as relações sociais e os aspectos normativos decorrentes delas. Em especial, gratidão ao professor Camilo, que demonstrou espantosa flexibilidade nos últimos semestres do curso, possibilitando assim que eu pudesse concretizar mais de um projeto simultaneamente. RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso aborda a Lei nº 13.869/19, denominada Nova Lei de Abuso de Autoridade, visando a análise de seus efeitos sobre o ordenamento jurídico e analisando esses efeitos sob o prisma dos direitos e garantias fundamentais conferidos constitucionalmente. A metodologia empregada consiste, primeiramente, na análise bibliográfica do histórico das normas de responsabilização das autoridades estatais por atos ilícitos cometidos contra particulares e dos diplomas antepassados de responsabilização direta dos agentes públicos por excessos ou desvios ocorridos no exercício de suas atribuições. Posteriormente, é abordado todo o processo legislativo e as discussões em torno da promulgação da lei objeto de estudo. Por fim, são aprofundados, através da pesquisa doutrinária, legal e jurisprudencial, as repercussões causadas no ordenamento jurídico pelo novo diploma normativo, especialmente sob o aspecto das garantias individuais dos investigados e acusados em geral. Palavras-chave: Abuso de Poder. Lei nº 13.869/19. Lei nº 4.898/65. Lei de Abuso de Autoridade. Ministério Público. Persecução Penal. Prerrogativas da Advocacia. ABSTRACT This course conclusion work refers to the Law No. 13.869/19, called the New Law on Abuse of Power, aiming at analyzing its effects on the legal system and analyzing these effects under the prism of civil rights and the guarantees constitutionally conferred. The methodology used consists, firstly, in the bibliographical analysis of the history of the accountability norms of the state authorities for illicit acts committed against private individuals and of the predecessor legislation of direct accountability of public agents for excesses or deviations that occurred in the exercise of their attributions. Subsequently, the entire legislative process and discussions surrounding the enactment of the law under study are addressed. Finally, through doctrinal, legal and jurisprudential research, the repercussions caused in the legal system by the new legislation are deepened, especially under the aspect of the individual guarantees of the investigated and accused in general. Keywords: Abuse of Power. Advocacy prerogatives. Criminal prosecution. Law nº 13.869/19; Law nº 4.898/65. Power abuse. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1: RELAÇÕES DE PODER ENTRE O INDIVÍDUO E O ESTADO – BREVE HISTÓRICO DA RESPONSABILIZAÇÃO DA AUTORIDADE ESTATAL. ........................................................................................................ 10 1.1 Responsabilização estatal na antiguidade ................................................. 10 1.2 Nascimento da limitação dos poderes do Estado na Idade Média e Idade Moderna ........................................................................................................... 11 1.3 Revolução Francesa e as teorias de responsabilidade do estado ............. 13 1.4 A culpabilização do Estado no Direito Brasileiro ........................................ 15 CAPÍTULO 2: PROCESSO LEGISLATIVO DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE ................................................................................................. 20 2.1 Antecedentes, projeto e justificativas ......................................................... 20 2.2 Trâmite na Comissão de Constituição e Justiça, emendas ao projeto e aprovação no Senado Federal ......................................................................... 21 2.3 Revisão e aprovação pela Câmara dos Deputados ................................... 23 2.4 Vetos presidenciais, superação dos vetos e promulgação ......................... 24 3. CAPÍTULO 3: REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE SEGUNDO A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA ............... 27 3.1 Do dolo específico e da dificuldade de caracterização dos crimes de abuso de autoridade: a lei é mais rigorosa na repressão dos abusos? ...................... 28 3.2 Crime de hermenêutica e liberdade de decidir: repercussões na atuação dos magistrados e dos membros do Ministério Público .......................................... 32 3.3 Reflexos na atuação da advocacia: o novo cenário de criminalização das violações das prerrogativas ..............................................................................37 3.4 Efeitos na atuação administrativa: competência para definição do conceito de abuso de autoridade .................................................................................... 42 3.5 Demais efeitos jurídicos gerados por tipos penais específicos .................. 44 3.5.1 Denunciação caluniosa ........................................................................... 44 3.5.2 “Carteirada” ............................................................................................. 44 3.5.3 Atribuição antecipada de culpa ............................................................... 46 3.5.4 Indisponibilidade excessiva de ativos financeiros ................................... 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 48 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 50 7 INTRODUÇÃO Foi publicada em 05 de setembro de 2019 a Lei nº 13.869/19, denominada Nova Lei de Abuso de Autoridade, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade e revoga a lei anterior (Lei nº 4.898/65) que tratava de igual tema. A lei entrou em vigência no dia 03 de janeiro de 2020, após 04 (quatro) meses em vacatio legis. A princípio, seu corpo normativo contém diversos tipos penais relacionados, em sua maioria, com a conduta de autoridades policiais e judiciais que atuam no curso da persecução penal. Por esse motivo, a lei foi intensamente discutida tanto pela sociedade civil quanto pela doutrina nacional. O presente trabalho de conclusão de curso, dessa maneira, objetiva tratar com detalhes quais foram as principais repercussões causadas pela Lei nº 13.869/19. Não se trata de construir uma mera comparação entre a lei anterior e a atual, tampouco em se resumir a comentar os tipos penais, com seus elementos normativos, objetivos e subjetivos, o que seria feito por uma obra destinada especificamente a comentar artigos; o objetivo é justamente apontar e detalhar algumas das principais modificações no cenário jurídico, como unidade, provocadas por essa recente lei ordinária. Entre algumas das discussões relevantes sobre o tema, menciona-se a polêmica envolvendo os crimes inéditos instituídos pela lei e direcionados especificamente para a atuação dos membros do Ministério Público e da magistratura, dando origem ao questionamento sobre se a lei contém regras que afetam, respectivamente, a liberdade de investigar e de decidir, conferidas pela Constituição Federal a esses agentes; ou se, do contrário, houve mera resistência por parte de uma posição doutrinária parcial institucional, sendo as infrações penais concebidas pela inovação legislativa efetivamente capazes de coibir abusos. Outro tópico significativo nessa abordagem é a previsão de um dolo específico no art. 1º, §1º da lei, em que será debatido se essa previsão enfraqueceu a disciplina da representação contra o abuso de poder prevista no artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal de 1988. 8 Além disso, é relevante que sejam explanados os efeitos da criminalização da violação das prerrogativas da advocacia (art. 43 da lei em estudo) na própria atuação desta, sempre à luz da proteção das garantias individuais, que neste caso se relaciona com o livre exercício da profissão (art. 5º, XIII da Constituição Federal). A esse estudo é acrescentada uma investigação sobre o processo histórico de responsabilização dos agentes públicos por ilícitos praticados contra pessoas em geral. Ou seja, é transcorrida uma linha desde a época em que vigorava a absoluta irresponsabilidade do Estado até a previsão dos primeiros mecanismos de punição direta dos agentes que ilicitamente agem em nome do poder estatal, alcançando os diplomas atuais e sua síntese normativa. Por fim, em um fragmento mais expositivo, porém igualmente importante, é demonstrado todo o trâmite legislativo que resultou na publicação da lei, tratando-se de um projeto que sofreu incorporações de outros projetos e que foi processado com em ritmo relativamente ágil. Assim, para a primeira compreensão sobre o tema, é essencial especificar preliminarmente como o poder social central se desenvolveu até a origem do Estado de Direito, com a possibilidade de criação de um diploma destinado a reprimir o abuso de autoridade. 9 CAPÍTULO 1: RELAÇÕES DE PODER ENTRE O INDIVÍDUO E O ESTADO – BREVE HISTÓRICO DA RESPONSABILIZAÇÃO DA AUTORIDADE ESTATAL. 1.1 Responsabilização estatal na Antiguidade. Não havia na Antiguidade um mecanismo sistemático de controle ou limitação da atividade do Estado, mesmo porque a baixa complexidade das primeiras sociedades impedia a manutenção de um sistema de responsabilização de abusos por parte dos agentes detentores de poder. Sabe-se que o poder punitivo, nessa época, era essencialmente eclesiástico, fundamentado na ideia de vingança divina. Ou seja, aqueles que exerciam o poder o faziam proclamando a vontade e a atuação de uma autoridade superior. Se um indivíduo supostamente cometia uma ofensa, essa ofensa não era entendida como ferindo outro indivíduo, mas sim à divindade, e aquele que punia o fazia para desagravar a ira superior, sendo forçoso concluir que era incompatível com tal forma de exercício de poder a possibilidade de o particular se voltar contra a sanção aplicada, muito menos responsabilizar o aplicador. Em suma, não era possível a punição por abuso de autoridade. Todavia, podem ser destacados documentos e fenômenos históricos que se relacionam com o indicativo de respeito à dignidade humana e ao reconhecimento da importância normativa do indivíduo em face do Poder do Estado em algumas hipóteses. Na China Oriental, entre os séculos VI e V a.C., surgiu a Escola dos Eruditos de Confúcio, que, em relação ao poder, objetivava conferir caráter de moralidade aos funcionários do governo e seus respectivos representantes, com base, dentre outros princípios, na Humanidade, Conhecimento e Integridade. O Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) previa a proteção dos homens livres em relação à sua vida e propriedade. Além disso, a aplicação da Lei do Talião traduziu a previsão da proporcionalidade, segundo a qual a punição para quem violasse a lei comum seria feita com semelhança de intensidade. Ou seja, tratava-se de uma limitação à imposição de pena. 10 A Lei de Talião foi repetida no texto bíblico de Levítico por volta no século VIII a.C. Segundo o comando, Se alguém fizer uma ferida ao seu próximo, far-se-á o mesmo a ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; conforme o dano que tiver feito a outro, homem, assim se lhe fará a ele. Quem matar um animal pagá-lo- á, quem matar um homem deverá morrer (Lv 24,19-21). 1.2 Nascimento da limitação formal do Estado na Idade Média e Idade Moderna. No tocante à limitação do poder do Estado, especialmente o punitivo, é comum associar o nascimento dos mecanismos de controle do poder estatal (notadamente o poder repressivo de natureza penal) aos eventos históricos ocorridos na Idade Moderna (com exceção da Magna Carta, que foi publicada em 1215). Quanto à Magna Carta, lançada em 15 de junho de 1215 na Inglaterra e assinada pelo Rei João e barões ingleses, sua principal correlação com a limitação do poder relacionava-se com a necessidade de imposição de obrigações proporcionais. Nesse sentido, seu texto prevê que “a multa a pagar por um homem livre, pela prática de um pequeno delito, será proporcionada à gravidade do delito.” Ainda segundo o texto, “não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pelos pares e de harmonia com a gravidade do delito.”. A Petition of Rights inglesa, de 08 de julho 1628, repetiu o instituto descrito no final do último parágrafo, conhecido como devido processo legal, nosseguintes termos: “nenhum homem livre podia ser detido ou preso ou privado dos seus bens, (...), a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país”. Dentre outros instrumentos, destacam-se o Habeas Corpus Act de 1679, também inglesa, que instituiu um mandado de proteção judicial aos presos injustamente, a Bill of Rights, de 1689, que reduziu o poder do Rei Jaime II, afirmando que era ilegal a suspensão ou execução de leis sem autorização do parlamento, e, ainda, a Constituição Americana de 1787, cuja quarta emenda anuncia “o direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apreensão arbitrárias”. 11 Percebe-se que esses instrumentos estão relacionados, repita-se, com apenas a limitação do poder estatal, mas ainda não dispõem de maneira sistemática sobre a forma de punição das autoridades estatais por violações aos direitos individuais. Isso se deveu ao fato de que durante a Idade Moderna prevaleceu juridicamente a distinção entre a situação jurídica de classes mais favorecidas, como o clero e a nobreza francesa, e as classes socialmente desabastadas, como os servos deste país. Ou seja, prevalecia a irresponsabilidade do Estado. De fato, durante os Estados absolutos consolidou-se a regra da soberania, fundamentada filosoficamente na teoria contratualista de Thomas Hobbes (Leviatã, 1651), segundo a qual impossível haver instrumentos pelos quais os servos, por exemplo, poderiam contestar a autoridade do Estado. Isso porque a autoridade do Estado residiria justamente na confiança depositada, ex ante, na pessoa do soberano. Nesse diapasão, segundo Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, a autoridade estatal é incontestável, pois: É certo que um monarca soberano, ou a maioria de uma assembléia soberana, pode ordenar a realização de muitas coisas seguindo os ditames de suas paixões e contrariamente a sua consciência, e isso constitui uma quebra da confiança e da lei da natureza. Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer súdito a pegar em armas contra seu soberano, ou mesmo a acusá-lo de injustiça, ou a de qualquer modo falar mal dele. Porque os súditos autorizaram todas as suas ações, e ao atribuírem-lhe o poder soberano fizeram-nas suas. Evidentemente que a teoria da irresponsabilidade do Estado fundada na tese acima explicitada (le roi ne peut mal faire) era favorável às classes nobres do leste europeu. Todavia, não se poderia falar em superação dela enquanto não houvesse a instituição de um Estado de Direito, ou seja, enquanto não houvesse um Estafo fundado na legalidade e com objetivo de defender as leis; à época moderna, faltava poder político para que se combatesse os eventuais abusos estatais. Celso Antônio Bandeira de Mello explica, em relação ao próprio Direito Administrativo (que abrange a temática do controle estatal), que: Constitui disciplina própria do Estado Moderno, ou melhor, do chamado Estado de Direito, porque só então se cogitou de 12 normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua ação, estabelecendo balizas às prerrogativas dos governantes, nas suas relações recíprocas, e, outrossim, nas relações com os governados. Na verdade, o Direito Administrativo só se plasmou como disciplina autônoma quando se prescreveu processo jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e comportas na realização das suas funções. Daí por que dizer que o capítulo histórico de maior relevância para a limitação do poder repressivo do Estado é a Revolução Francesa (1789-1799). 1.3 Revolução Francesa e as teorias de responsabilidade do Estado. A Revolução Francesa, cujo texto fundamental, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, anunciou, em seu texto (item 7) que “os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos” estampou no texto revolucionário um mandado de punição reverso, destinado àqueles que aplicam ordens restritivas de maneira arbitrária. Com efeito, o nascimento desse Estado de Direito é pano de fundo para a superação da Teoria da Irresponsabilidade do Estado. Por isso, Di Pietro (2018), a respeito da irresponsabilidade, afirma que Essa teoria logo começou a ser combatida, por sua evidente injustiça; se o Estado deve tutelar o direito, não pode deixar de responder quando, por sua ação ou omissão, causar danos a terceiros, mesmo porque, sendo pessoa jurídica, é titular de direitos e obrigações. Daí porque a Teoria foi inevitavelmente superada no século XIX, notadamente diante das radicais modificações nas estruturas de poder na própria função do Estado. Entretanto, inicialmente, o Estado só poderia ser demandado judicialmente pelos atos de gestão, mas não nos atos de império. Essa distinção fundamenta-se na seguinte ideia: o Estado pode praticar atos agindo em igualdade de condições em relações ao particular, usualmente os atos relacionados à administração da máquina pública; todavia, o Estado também pode praticar atos de império, que são aqueles próprios, exclusivos, imperativos, coercitivos, que só podem ser atribuídos ao poder central. No tocante a esses atos, portanto, não poder-se-ia falar em responsabilidade, pois estar-se-ia interferindo na decisão fundamental do povo que estabeleceu aquele Estado. 13 Importante salientar que essa consolidação da Responsabilidade do Estado se deu primeiramente com a adoção da teoria da responsabilidade subjetiva. Ou seja, além do dano e do nexo causal entre o dano e a conduta do ator público, deveria a eventual vítima comprovar a existência de um desajuste voluntário imprudente ou negligente. São as denominadas teorias civilistas, por meio das quais se aplicam os estatutos do Direito Privado às relações de gestão que envolvem o Estado. Posteriormente, surgiram as teorias publicistas, que se subdividiam na teoria da culpa do serviço, teoria da culpa administrativa e teoria do risco (que se subdivide em risco administrativo e risco integral). Segundo a teoria da culpa do serviço, a vítima deveria argumentar, para obter indenização, em torno da existência de serviço defeituoso; ou seja, deveria comprovar que o serviço público teria sido prestado ou disponibilizado de forma inadequada, atrasada, ou ainda, que ele não tenha sido prestado. Já segundo a teoria do risco administrativo, aqueles que suportam atos excessivamente onerosos teriam direito à indenização porque as despesas da Administração devem ser repartidas por igual entre os indivíduos da sociedade (artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). O argumento, portanto, tem íntima relação com a ideia de seguridade, equilíbrio de despesas e benefícios. Ou seja, a partir da teoria do risco administrativo prevalece a ideia de responsabilidade objetiva do Estado, bastando à vítima comprovar o nexo de causalidade e o dano causado. A Teoria do risco administrativo foi consagrada nos Estados Unidos com a promulgação da Federal Tort Claim Act em 1946, e em seguida na Inglaterra, com a publicação da Crown Proceeding Act, em 1947. Interessante notar que a primeira lei estabeleceu que os Estados Unidos seriam responsáveis pelos atos causados pelos seus agentes com base nos mesmos fundamentos pelos quais se responsabiliza um empregador pelos atos ilícitos praticados pelos empregados. Ainda quanto ao Act de 1946, sua aplicação era ampla, podendo haver responsabilização por atos praticados por todos os poderes, desde que sejam pertinentes à esfera federal. Nesse sentido, o §2671 prevê que 14 The term ‘‘Federal agency’’ includes the executive departments, the judicial and legislative branches, the military departments, independent establishments of the United States, and corporations primarily acting as instrumentalities or agencies of the United States. Na Crown Proceeding Act de 1947,a Coroa Inglesa estaria sujeita a qualquer processo judicial em razão de erro que uma pessoa particular poderia sofrer, caso os atos ilícitos (torts) fossem praticados por seus agentes. Ainda existe a teoria do risco integral, consequência do modelo genérico “teoria do risco”. Diferencia-se a teoria do risco integral por simplesmente não admitir nenhum tipo de excludente de ilicitude. Aqui, a ideia de seguridade é elevada até o máximo: o Estado age assegurando todos os danos sofridos por aquela atividade. É a responsabilidade que prevalece no tocante aos danos nucleares (Art. 21, XXIII, “d” da CRFB/88). 1.4 A culpabilização do Estado no Direito Brasileiro. Na história do Direito Administrativo Brasileiro, jamais houve a consolidação da teoria da irresponsabilidade. Segundo a Constituição Imperial de 1824, ministros de estado, juízes, oficiais de justiça e empregados públicos são pessoalmente responsáveis pelos atos praticados no exercício das funções. São as disposições constitucionais da época: Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis: (..) III. Por abuso do Poder. (...) Art. 156. Todos os Juizes de Direito, e os Officiaes de Justiça são responsaveis pelos abusos de poder, e prevaricações, que commetterem no exercicio de seus Empregos; esta responsabilidade se fará effectiva por Lei regulamentar. (...) Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: (...) XXIX. Os Empregados Publicos são strictamente responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercicio das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsaveis aos seus subalternos.XXIX. Os Empregados Publicos são strictamente responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercicio 15 das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsaveis aos seus subalternos. Logo após o início da vigência da Constituição de 1824, foi decretada a Lei de 15 de outubro de 1827, que dispunha a respeito “Da responsabilidade dos Ministros e Secretarios de Estado e dos Conselheiros de Estado”. Essa lei, juridicamente avançada para sua época, estabelecia a culpa por abuso de poder aos funcionários que menciona, quando desse abuso advenha prejuízo ao Estado ou ao particular, cominando penas de 1 a 3 anos de “remoção para fora da corte”: Artigo 3º: São responsaveis por abuso de poder: § 1º Usando mal da sua autoridade nos actos não especificados na lei, que tenham priduzidos prejuizo, ou damno provado ao Estado, ou a qualquer particular. As penas para os delictos designados neste paragrapho são: Maxima: tres annos de remoção para fóra da Côrte e seu termo. Média: dous annos. Minimo: um anno. A jurisprudência, à época imperial, entendia que a responsabilidade constitucional do Império era solidária com a responsabilidade pessoal dos funcionários. Posteriormente, com a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891, foi mantida a fórmula genérica da responsabilidade dos funcionários públicos pelos abusos cometidos no exercício do cargo. Além disso, havia, desta vez, um direito fundamental de petição aos poderes públicos contra abuso de autoridade, acompanhado do direito de promover a responsabilidade. Nos termos do texto fundamental, Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: § 9º É permittido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos poderes publicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados (...) Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. 16 O art. 80 da Constituição de 1891 dispunha sobre a responsabilidade dos agentes públicos nos casos de estado de defesa. Esse dispositivo era de suma importância, pois, historicamente, são nos períodos de exceção em que se verifica a maior incidência de abusos, como nos casos de guerra declarada. A Teoria Civilista foi adotada no Código Civil de 1916 na seguinte redação: Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo do modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo direito regressivo contra os causadores do dano. Portanto, de maneira inédita foi estabelecida por lei a responsabilidade da própria pessoa jurídica, e não apenas a responsabilidade do funcionário, esta já prevista na Constituição de 1891. Todavia, a vítima deveria comprovar que o ato foi procedido de modo contrário à lei ou com violação de dever; em outras palavras, comprovar a culpa. A Constituição de 1934 também inovou no ordenamento jurídico ao prever não apenas a responsabilidade solidária, mas também a expressa possibilidade de ajuizamento de ação de regresso pela Fazenda Pública contra o agente responsável. Assim, consoante a constituição: Art. 171 - Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos. § 1º - Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte. § 2º - Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário culpado. As Constituições de 1937 e de 1946 possuíam formulas idênticas (artigos 158 e 194, respectivamente), relacionadas à responsabilidade do Estado com possibilidade de ação de regresso contra o particular. O artigo 141, §37 desta última inaugurou o direito de petição, fundamento da primeira lei de abuso de autoridade, segundo a qual: É assegurado a quem quer que seja o direito de representar, mediante petição dirigida aos Poderes Públicos, contra abusos de autoridades, e promover a responsabilidade delas. 17 É na vigência da Constituição de 1946 que foi promulgada a Lei nº 4.898/65, que disciplinou o exercício do direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa por abuso de autoridade, relacionados com atos infringentes à liberdade de locomoção; à inviolabilidade do domicílio; ao sigilo da correspondência; à liberdade de consciência e de crença; ao livre exercício do culto religioso; à liberdade de associação; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade física do indivíduo e aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. Nesse momento, a Lei nº 4.898/65 faz uma íntima relação entre os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente e a disciplina do abuso de poder. Isso significa que, para cada um desses dez direitos fundamentais conferidos constitucionalmente, há um mandado de proteção estabelecido ordinariamente. Faz-se uma relação jurídica entre o direito fundamental e o abuso. Já a Constituição de 1967 estabelecia no artigo 105, parágrafo único, a responsabilidade da Fazenda Pública pelos abusos atos dos funcionários, cabendo ação regressiva em caso de dolo ou culpa. Além disso, o direito de representação foi repetido no artigo 150, §30, consistente na garantia de que qualquer pessoa pudesse representar aos poderes contra abusos de autoridade. A emenda nº 1 de 1969 não alterou o conteúdo deste dispositivo. No panorama atual, a responsabilidade do Estado é regulamentada pelo artigo 37, §6º da ConstituiçãoFederal de 1988, pela qual As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. A responsabilidade objetiva também é complementada pelo artigo 43 do Código Civil, de redação substancialmente idêntica. Evidentemente que há previsão da representação contra o abuso de poder. É o artigo 5º, XXXIV da Constituição Cidadã: São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. 18 Assim, segundo a posição doutrinária atual, as normas de limitação do poder estatal são essenciais à efetiva garantia das liberdades constitucionais consagradas na Carta Magna de 1988. No entanto, parte da doutrina alerta que uma limitação demasiada do poder de atuação dos agentes públicos incumbidos de funções primordiais à garantia da ordem pública pode, ao reverso, afetar o exercício de outros direitos constitucionalmente estabelecidos. No conflito acima mencionado surgiu a Lei nº 13.869/19 (Nova Lei de Abuso de Autoridade), provocando diversos efeitos na atuação de juízes, desembargadores, ministros, promotores de justiça, delegados de polícia e outros agentes cujas atribuições estão relacionadas com a persecução penal. Nesse sentido, é de relevância ímpar compreender as consequências da inovação legislativa na atuação dos referidos agentes, notadamente diante da existência de controvérsia consolidada sobre a moralidade e a constitucionalidade na nova norma. Assim, infere-se que a responsabilidade do Estado e o direito de investir contra as medidas abusivas do poder soberano é fenômeno relativamente recente, fruto da superação da inicial confiança incondicional numa figura central e, outrossim, consequência da instalação de um Estado de Direito e da possibilidade de responsabilização por atos ilícitos e abusivos (também ilícitos) cometidos pelo Estado, sendo certo que, na situação jurídica atual, ganhou contornos complexos em função da edição da Lei nº 13.869/19. 19 CAPÍTULO 2: PROCESSO LEGISLATIVO DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE. 2.1 Antecedentes, projeto e justificativas. A Lei nº 13.869/19 é originária do Projeto de Lei do Senado nº 85/2017, apresentado pelo Senador do partido político REDE Sustentabilidade de Pernambuco Randolfe Rodrigues, e logo despachado pela presidência à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, na forma do artigo 101, I do Regimento Interno do Senado Federal. Segundo a proposta inicial, o projeto “define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências”. O projeto não foi o primeiro a tratar a matéria, no entanto. O Projeto de Lei do Senado nº 280 de 2016, de autoria do Senador Renan Calheiros, também tinha idêntico objetivo: definir os crimes de abuso de autoridade. Todavia, o projeto acabou sendo “absorvido” pelo Projeto nº 85/2017 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, pois, segundo a comissão, este projeto travava de maneira mais adequada a matéria. Essencial observar que o projeto foi submetido a consulta pública realizada no sítio eletrônico do Senado Federal, contando com 34.803 votos, sendo destes 34.235 votos contra o projeto e 568 votos a favor. Antes disso, o próprio Projeto nº 280 fora igualmente submetido a consulta pública no mesmo sítio eletrônico. Dos 282.134 votos contados, 277.463 pessoas se posicionaram contra a tramitação e a promulgação do projeto de lei, enquanto apenas 4.671 pessoas se posicionaram em favor da novidade legislativa. Ainda em caráter preliminar, é essencial observar que o II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, assinado em 13 de abril de 2009 em Brasília pelos à época Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente do Senado Federal Senador José Sarney, Presidente da Câmara dos Deputados Deputado Michel Temer e Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro Gilmar Ferreira Mendes, previa, em seu item “1.2”, a obrigação de atualização legislativa, estabelecendo, quanto ao abuso da autoridade, a obrigatoriedade de 20 Revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais. Ou seja, além da tendência histórica de responsabilização pessoal dos agentes públicos pelos atos praticados durante ou em razão do ofício, influenciou também a elaboração do projeto de lei uma onda renovatória de acesso à justiça (conforme bem aludido por Mauro Cappelletti) ocorrida no início do século XX, conforme o Pacto acima descrito, que tinha propósitos dos mais variados, como a revisão da legislação sobre crime organizado, execução penal e, conforme visto, abuso de autoridade. Quanto à proposta legislativa, o projeto nº 85/2017 continha oito capítulos: Disposições Gerais; Dos Sujeitos do Crime; Da Ação Penal; Dos Efeitos da Condenação e das Penas Restritivas de Direitos; Das Sanções de Natureza Civil e Administrativa; Dos Crimes e das Penas; Do Procedimento e; Das Disposições Finais. Ou seja, o processo continha disposições administrativas, civis, penais e processuais penais. Segundo a justificação apresentada pelo senador que propôs o projeto, o texto buscava aprimorar o conteúdo de um meio legal destinado a coibir abusos por agentes públicos. Ainda segundo ele, o projeto não obstava a regular atividade da administração pública. 2.2 Trâmite na Comissão de Constituição e Justiça, emendas ao projeto e aprovação no Senado Federal Na Comissão de Constituição e Justiça, foi designado como relator o Senador do Paraná Roberto Requião, obtendo aprovação. Foram as palavras do relator: Em face do exposto, o voto é pela aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 85, de 2017, na forma da emenda substitutiva que apresento a seguir, restando prejudicados o Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016, bem como as emendas a ele apresentadas. Nela, também foram apresentadas 43 emendas por diversos senadores, prevalecendo algumas alterações importantes no texto inicial, dentre as quais 21 destacam-se a inserção da finalidade especial de agir no tipo penal descrito no artigo 14 do projeto, que trata da submissão do preso ao uso de algema, indicando que somente caracterizaria crime se a submissão fosse realizada com o intuito de causar vexame; a garantia da entrevista do preso com o advogado de maneira reservada e pessoal; supressão do tipo penal específico para tortura, previsto no artigo 23 do PLS nº 280, tendo em vista que o crime de tortura é suficientemente reprovado na Lei nº 9.455/97, a chamada Lei de Tortura; inserção de um parágrafo no artigo 28 do projeto, fazendo a ressalva de que a instauração de sindicância ou investigação preliminar sumária sem indícios da prática de crime não pode configurar instauração caluniosa; supressão do artigo 36, que tratava do delito de prevaricação, pois os crimes de abuso de autoridade exigem dolo específico de obter vantagem ou prejudicar terceiro, enquanto a prevaricação não se submete a esses elementos subjetivos, portanto inseri-los seria dificultar a punibilidade; Também foram alterações importantes as seguintes: no delito de impedir a reunião de pessoas, foi inserida a expressão “sem justa causa”, elemento normativo que objetivou possibilitar à autoridade o impedimento da reunião quando fosse caracterizado o abuso de direito, como, por exemplo, quando houvesse reunião anteriormente convocada para o mesmo local da reunião pretendida (art. 5º, XVI, partefinal da Constituição Federal de 1988); a exigência de que o crime do art. 38 somente se consumaria após a negação por parte do juiz em corrigir a indisponibilidade excessiva, nos termos do artigo 854, §3º, II do Código de Processo Civil; a alteração na redação do artigo 39 do projeto, para incriminar, em vez de o pedido de vista, a demora injustificada no exame de processo em que se pediu vista, nos termos do artigo 940, §1º do Código de Processo Civil. Foi realizada na Comissão e Constituição e Justiça audiências públicas com a sociedade civil. A primeira foi realizada em 04/04/2017, proposta pela Drª. Ana Cláudia Monteiro, representante Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, e seu objetivo era debater, dentre outros temas, a supressão da expressão “sem justa causa” do artigo 20 do projeto, que dizia respeito ao crime de impedir (sem justa causa, segundo a redação final) a entrevista pessoal e reservada do preso com o advogado. O objetivo do debate era concluir se a 22 supressão da expressão “sem justa causa”, ou seja, não permitindo ao juiz impedir a entrevista com o patrono em qualquer hipótese, não resultaria em um tipo penal mais adequado. O relator do projeto apresentou um novo fundamento para reforçar a necessidade de aprovação do projeto: a exigência jurídica de que seja imediatamente substituído o modelo de capitulação penal previsto no artigo 3º da antiga Lei nº 4.898/1965, que estabelecia configurar abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção; à inviolabilidade do domicílio; ao sigilo da correspondência; à liberdade de consciência e de crença; ao livre exercício do culto religioso; à liberdade de associação; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade física do indivíduo e aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. Ou seja, a legislação anterior violava, segundo o relator, o princípio da legalidade, especificamente no tocante ao subprincípio da taxatividade, pois a legislação não definia tipos penais claros, com definição precisa de elementos subjetivos e normativos, mas apenas se restringia a utilizar a expressão “atentado”. Em outros termos, a própria vigência da Constituição Federal de 1988 impunha um projeto que definisse com precisão os limites específicos dos tipos penais relacionados como o abuso de autoridade, até mesmo para evitar os próprios abusos de quem aplica a lei. Remetido o projeto ao Plenário do Senado Federal, foram apresentadas e rejeitadas as emendas 3-A, 4, 5 e 6, sem importância para a redação final (afinal foram rejeitadas) e, em seguida, aprovado o projeto com o seguinte resultado: 54 votos a favor e 19 votos contra. Assim, foi a proposta aprovada remetida em 10/05/2017 pelo Senador Eunício Oliveira, Presidente do Senado Federal, ao Deputado Federal Fernando Lucio Giacobo, Primeiro-Secretário da Câmara dos Deputados, por intermédio do Ofício nº 368, a fim de que a Câmara procedesse à revisão, na forma do artigo 65 da Constituição Federal de 1988. Na câmara, ganhou uma nova numeração: Projeto de Lei nº 7.596/2017. 2.3 Revisão e aprovação pela Câmara dos Deputados. 23 Nesta casa, inicialmente foi apresentada pelo Deputado Federal Major Olímpio uma proposição no sentido de que fosse realizada a tramitação em conjunto do projeto em questão com o PL nº 6361/2009, de autoria do Senador José Sarney, requerimento que foi logo deferido. O PL nº 6361/2009 apenas derrogava a Lei nº 4.898/65, acrescentando tipos penais específicos, como “impor à pessoa física obrigação inexigível ou cuja cobrança tenha sido declarada inconstitucional”, mas mantendo a lei pré-constitucional nos demais tipos penais abertos. A proposta foi enviada em 10 de outubro de 2017 à Comissão de Combate ao Crime Organizado sob relatoria do Deputado Ricardo Barros (Partido Progressista, Paraná) e à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, sob relatoria do mesmo parlamentar. Na comissão, deputados de diferentes correntes ideológicas participaram do debate, como os Deputados Edmilson Rodrigues, vinculado ao Partido Socialismo e Liberdade, e Coronel Chrisóstomo, do Partido Social Liberal. Também debateu o projeto o jurista e deputado Luiz Flávio Gomes, vinculado ao Partido Socialista Brasileiro. Considerando que houve parecer favorável em ambas as comissões, o projeto foi incluído em pauta para debate e julgamento pelo Plenário em 14 de agosto de 2019, obtendo aprovação por 325 votos a favor e 133 contra, havendo uma abstenção. Ou seja, cerca de 70% (setenta por cento) dos deputados opinaram favoravelmente ao projeto. Conforme artigo 66 da Constituição Federal, tendo em vista a aprovação do projeto de lei ordinária, foi encaminhado pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional Senador Davi Alcolumbre ao Presidente da República Jair Bolsonaro para sanção ou veto em 25 de setembro de 2019. 2.4 Vetos presidenciais, superação dos vetos e promulgação No âmbito presidencial, houve veto parcial do projeto, sendo encaminhada a Mensagem nº 406 de 5 de setembro de 2019 pelo Presidente da República ao Presidente do Senado Federal contendo inteiro teor das partes vetadas. 24 Quando ao conteúdo, foram vetados os artigos 3º; 5º, inciso III; 9º; 11; 13, inciso III; 14; 15; 16; 17; 20, 22, §1º, inciso II; 26; 29; 30; 32; 34; 35; 38 e 43. Ou seja, trata-se de um veto parcial, porém substancial, notadamente considerando que pretendeu a rejeição de diversos tipos penais em sua totalidade. Dentre todas os vetos, destacam-se os seguintes: ao art. 9º, sob fundamento de que criminalizar a conduta do magistrado que “decreta medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, ao em vez de reprimir o abuso de autoridade, gera insegurança jurídica em razão das várias interpretações passíveis de serem atribuídas ao modelo incriminador. Ao art. 11, argumentando-se que o tipo penal “Executar a captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária” é também vago e dá origem a insegurança jurídica no trabalho dos agentes da segurança pública, violando, segundo o Presidente, também o princípio da proporcionalidade em razão da alta pena cominada, qual seja: “1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”. Ao inciso II do artigo 13, que reprime a conduta da autoridade (não necessariamente policial ou judicial) que constrange o preso ou detento, mediante violência ou grave ameaça, a produzir prova contra si mesmo ou terceiro, pois, segundo a autoridade máxima do Poder Executivo Federal, o artigo ignora que a doutrina e a jurisprudência nacionais admitem-se a flexibilização do nemo tenetur se detegere (vedação da autoacusação) nas hipóteses em que se exige do acusado uma cooperação meramente passiva na produção de provas contra si, como nos casos de submissão obrigatória a exame de identificação de perfil genético de condenados (Vide Lei nº 12.037/09). Outros dois importantes vetos ao projeto foram aqueles que alcançaram os artigos 17 e 30. O artigo 17 do projeto previa o crime de “submeter o preso ao uso de algemas quando não houver resistência à prisão ou ameaça a integridade física ou risco de fuga”; para o Chefe de Governo, houve violação do princípio material penal da intervenção mínima, afinal os parâmetros de responsabilização do agente público que utiliza algemas indevidamente já foram devidamente fixados pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante nº 11, súmula esta que previu a responsabilização civil, penal e administrativa e nulidade dos atos coercitivos quando o uso de algemas não fosse estritamente necessário para 25 proteger a integridade física ou amparar fundado receio de fuga. Já o artigo 30 tipificava a condutade “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”. Segundo o Presidente, o defeito do tipo penal estava no fato de que, nesta redação, poderia embaraçar o funcionamento dos sistemas de denúncia anônima dos órgãos da segurança pública, a exemplo do “disque-denúncia”, posto que o termo “sem justa causa” poderia, eventualmente, servir para fundamentar que não se poderia investigar fatos caso a origem da notícia de crime fosse uma denúncia anônima. Posteriormente ao veto parcial, o Congresso Nacional, em sessão conjunta (art. 66, §4º da Constituição Federal), o derrubou também parcialmente. Assim, de todos os vetos, prevaleceram as rejeições dos artigos 5º, inciso III, 11, 14, 17, 22, §1º, inciso II, 26, 29, 34, 35, sendo promulgados os artigos 3º, 9º, 13 (inciso III), 15, 16, 20, 30, 32, 38 e 43 pelo Presidente da República (artigo, 66, § 5º da Constituição Federal) em 27 de setembro de 2019. Dos artigos que foram comentados, o art. 9º, que tratou de criminalizar a decretação da prisão preventiva manifestamente ilegal, prevaleceu em razão da derrubada do veto; o mesmo ocorreu com os artigos 13 e 30. Já as disposições sobre executar prisão em flagrante ilegal ou submeter preso a uso de algemas de maneira ilícita permaneceram vetados. O texto final foi (com promulgação das partes vetadas) publicado em 27 de setembro de 2019, com 120 dias de vacatio legis, entrando em vigor no dia 03 de janeiro de 2020, sexta-feira. 26 CAPÍTULO 3: REFLEXOS JURÍDICOS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE SEGUNDO A DOUTRINA NACIONAL. 3.1 Do dolo específico e da dificuldade de caracterização dos crimes de abuso de autoridade: a lei é mais rigorosa na repressão dos abusos? É comum na história legislativa penal brasileira a promulgação de leis aumentando as penas de crime preexistentes, seja para acrescentar uma carga simbólica na atividade repressiva, seja para conter “surtos” esporádicos na prática de determinado crime, ou ainda, para corrigir uma proteção deficiente de determinados bens jurídicos. Navegando pelo Código Penal, por exemplo, vê-se que a Lei nº 13.142/15 incluiu causa de aumento de pena no crime de Homicídio (previsto no art. 121) para que o quantum da repressão fosse aumentado de 6 a 20 anos para 12 a 30 anos quando o homicídio fosse praticado contra autoridade cujas atribuições estão relacionadas à segurança pública. O mesmo ocorreu com as Leis nº 8.072/90 [que acrescentou pena no delito de extorsão mediante sequestro], nº 13.104/15 [que criou a modalidade qualificada “feminicídio”], nº 13.654/2018 [que criou causas de aumento e modalidades qualificadas relacionadas ao furto e ao roubo com substâncias explosivas], nº 13.964 [que criou causas de aumento de pena no delito roubo com arma de fogo de uso permitido, proibido e restrito] e, mais recentemente, a Lei nº 13.968/2019 [que modificou o art. 122 do Código Penal para acrescentar diversas causas de aumento no delito Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, incluindo também a automutilação]. Ou seja, aquele que acompanha as novidades legislativas se acostuma a noticiar diversos incrementos nas penas de crimes preexistentes. Não é comum que sejam diminuídas as penas privativas de liberdade ou que sejam criados maiores óbices à caracterização dos delitos anteriores. A Lei nº 13.869/19, de fato, alongou em demasia as penas. Se segundo o artigo 6º, §3º, “b” da antiga lei a pena era de 10 (dez) dias a 06 (seis) meses de detenção, a nova lei contém um tipo penal com pena mínima de 03 (três) meses 27 (em seu art. 43), e as demais são punidas, no mínimo, com 06 (seis) meses de reclusão. Todavia, é precipitado concluir que a lei atual é mais severa. Primeiro, porque embora a lei anterior previsse pena mínima de apenas 10 (dez) dias, era posição dominante na jurisprudência que o agente que incidia em abuso respondia pelo crime em concurso material com eventual lesão corporal ou constrangimento ilegal praticado no mesmo contexto fático. Ou seja, àquela pena de 10 (dez) dias poderiam ser somados os 03 (três) meses da lesão corporal (art. 129 do Código Penal) ou do constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal). Em acréscimo, porque a legislação anterior estabelecia tipos penais abertos, sem definição. O artigo 3º, por exemplo, tipificava o “atentado à liberdade de locomoção” como abuso de autoridade. Essa amplitude, até mesmo criticável sob o aspecto da taxatividade, mas nunca declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, gerava maior liberdade ao julgador no enquadramento da conduta daquele do agente a quem era imputada a prática do abuso. Com a nova legislação, ainda que haja maior quantidade de tipos penais, esses são mais precisos no tocante aos verbos (submeter, constranger, impedir, decretar, etc.), o que, por via de consequência, resulta em menor possibilidade de punição. Por fim, a exigência de um elemento subjetivo específico, inexistente na legislação anterior, dificulta em demasia a caracterização atual do crime de abuso de autoridade. Quanto a esse aspecto, devido à sua grande importância, merece explanação mais detalhada em item específico. Ademais, sabe-se que, segundo a classificação doutrinária dos crimes, existem aqueles que são caracterizados pelo dolo genérico, e outros que exigem dolo específico. No dolo genérico, o agente comete o crime desde que pratique o verbo do tipo com a intenção (teoria da vontade) de praticá-lo, ou assumindo o risco (teoria do assentimento) de produzir o resultado previsto no próprio tipo. Já no dolo específico, não basta que o agente incida na conduta descrita no verbo do tipo; exige-se que ele pratique essa conduta com uma finalidade determinada, específica. 28 O artigo 1º, §1º da Nova Lei de Abuso de Autoridade preleciona que somente configura os crimes descritos na lei quando o agente o pratica com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Assim, o dolo específico se refere à finalidade específica da conduta do agente. Na lei em epígrafe, não basta praticar as condutas nela descritas, pois só haverá crime se o infrator o praticar para prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou terceiro, por mero capricho, ou, ainda, por satisfação pessoal. Citando um exemplo, não basta que um Promotor de Justiça proceda à obtenção de prova por meio manifestamente ilícito (art. 25); só haverá abuso de autoridade se ele o fizer com alguma das intenções acima descritas. Essa exigência de um dolo específico, naturalmente, tornou mais difícil a configuração do crime de abuso de autoridade. Conforme mencionado, na legislação anterior bastava a prática das condutas descritas na Lei nº 4.898/65 para que surgisse o abuso; o dolo era meramente genérico. O efeito jurídico do diploma, portanto, é a maior dificuldade de caracterização dos crimes. Essa dificuldade é criticada pela doutrina. Não pelo fato de se exigir o dolo específico. A crítica é direcionada à coerência da lei, pois se a justificativa inicial era criar uma lei mais rigorosa para punir com maior segurança os abusos praticados em investigações e instruções criminais, não há sentido em se exigir uma finalidade tão específica. Nessa linha de raciocínio, Segundo Gabriela Marques e Ivan Marques, Cristalina é a construção da lei para não funcionar, desde a escolha dos complexos elementos subjetivos que dependerão de prova produzida pelo Ministério Público, titular da ação penal pública para todos os tipos penais, até o preceito secundário, com penas baixas e de leve potencial ofensivo. (...) Convenhamos ser muito difícil comprovar tais intenções no plano concreto, pois existe a presunção de que os agentes públicossó podem fazer o que a lei determina (seus atos possuem fé pública). Junto com a dificuldade em comprovar os dolos específicos, há ainda as reais a boas intenções por trás de seus atos (segurança pública, fazer justiça ou busca pela verdade processual). A intenção que move o agente para a prática do ato habita o plano subjetivo, sendo de complexa comprovação. 29 Em idêntico sentido, afirma o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais: Entretanto, a óbvia dificuldade de comprovar esse elemento psíquico tende a excluir a dimensão subjetiva do fato e, portanto, a excluir o próprio tipo de injusto do crime de abuso de autoridade. (...) Os crimes de abuso de autoridade parecem constituir formas ilusórias de criminalização dos agentes do poder estatal, porque os princípios jurídicos aplicáveis são mecanismos de proteção da autoridade pública, formando um estranho direito penal do amigo. Por fim, conforme interpretação de Eduardo Luiz Santos Cabette, Na verdade, embora se tenha criticado a legislação como um imbróglio surgido em meio ao atingimento de uma casta privilegiada de criminosos de colarinho branco, visando à intimidação e engessamento das autoridades estatais, a verdade é que se essa intenção escusa existia (e tudo indica que sim), acabou se tornando uma espécie de “tiro no pé”, já que a comprovação desses elementos subjetivos específicos em todo caso concreto será bastante dificultosa, tornando quase inviável a responsabilização de autoridades pelos crimes da lei, salvo em casos gritantes. Por esses motivos, infere-se que há maior dificuldade no enquadramento dos atos de abuso de autoridade nos modelos estabelecidos nos tipos penais. Daí por ser equivocado afirmar meramente que a lei é mais “severa” do que a legislação anterior. Assim, ao comparar as Leis nº 13.869/19 e 4.898/65, o intérprete conclui que, a depender a situação concreta, uma ou outra é mais gravosa. Nessa comparação, e para encerrar o tema, é interessante construir uma relação entre a possibilidade de uma das leis ser mais gravosa ou branda com o conflito de leis no tempo. Essa comparação servirá para que se depreenda definitivamente que a Nova Lei de Abuso de Autoridade não é, necessariamente, mais severa que a lei anterior. Sem adentrar em explicações aprofundadas sobre a Teoria Geral do Direito Penal, sabe-se que vigora em âmbito criminal material a regra da irretroatividade (na forma do art. 1º do Código Penal), exigindo-se que a lei aplicável ao agente seja anterior ao delito praticado. 30 Essa regra, todavia, é excepcionada pelo art. 2º do próprio Código Penal, que estabelece a possibilidade de a lei penal mais branda ser aplicada aos fatos cometidos anteriormente à sua vigência. Assim, se um tipo penal é inteiramente revogado por outro de equivalente redação, ou contendo os mesmos elementos do tipo, resta ao intérprete saber, quando perguntado sobre qual lei será aplicada aos crimes praticados antes da vigência da nova lei, se esta, a mais nova, e mais grave ou mais branda. Se mais grave, prevalecerá a lei anterior (irretroatividade da lei penal maléfica e ultratividade da lei penal anterior). Se mais branda, prevalecerá a lei nova (retroatividade da lei penal benéfica). Quanto ao conflito havido entre as Leis de nº 13.869/19 e nº4.898/65, é possível que se verifique tanto a ultratividade da lei anterior, quanto a retroatividade da lei penal benéfica. Suponha-se a hipótese em que uma autoridade policial é acusada de ter, no ano de 2018, interrompido violentamente uma manifestação pública assegurada pelo direito de reunião (art. 5º, XVI da Constituição Federal). Sua conduta caracterizaria o delito previsto no art. 3º, “h” da Lei nº 4.898/65, em concurso material com eventual lesão corporal (art. 129 do Código Penal), mas com o advento da Lei nº 13.869/19, que revogou referido tipo penal, mas não reproduziu um tipo semelhante, ocorreria abolitio criminis, e, assim, a conduta da autoridade seria atípica. A ausência de punição também ocorreria caso uma autoridade, antes da vigência da nova lei, tivesse, por exemplo, decretado uma prisão manifestamente ilegal, mas sem qualquer finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro. Na lei anterior, que não exigia esse elemento subjetivo específico, restaria configurado o crime por atentado à liberdade de locomoção (art. 3º, a” da Lei nº 4.898/65) Como no ordenamento atual essa subjetividade é exigida, a conduta do agente, agora, seria atípica, razão pela qual a autoridade seria absolvida em eventual ação penal. Do contrário, caso uma autoridade judicial tivesse decretado a prisão preventiva de um réu antes da vigência da nova lei com o objetivo específico de prejudicá-lo, por ser este um desafeto de sua pessoa, prevaleceria a ultratividade da lei antiga, afinal esta estabelece uma pena de dez (10) dias a 06 (seis) meses 31 (art. 6º, §3º, “b”), enquanto a lei nova prevê uma pena de 01 (um) a 04 (quatro) anos, sendo, portanto, a lei antiga mais branda. Dessa maneira, resta demonstrado que a Nova Lei de Abuso de Autoridade é mais severa em alguns pontos, mas, após a explanação detalhada sobre o novo elemento subjetivo exigido para configuração dos crimes, pode-se afirmar que, em geral, pelas variadas situações em que se verificará a ausência desse dolo, ela é mais amena do que a legislação anterior. 3.2 Crime de hermenêutica e liberdade de decidir: repercussões na atuação dos magistrados e dos membros do Ministério Público. O primeiro paralelo quanto ao cenário jurídico antes/depois da vigência da Lei nº 13.869/19 se refere à independência dos magistrados. Surge a questão em saber se a nova lei contém dispositivos que afetam a liberdade de decidir dos órgãos judiciais. Ou seja, levando-se em consideração o histórico da responsabilização do Estado, e tendo em vista que atualmente os atos praticados pelos agentes públicos podem ser responsabilizados pessoalmente (por via de regresso, na esfera administrativa, e diretamente, na esfera penal), a lei de abuso de autoridade objetivou limitar a ampla liberdade de decidir conferida aos magistrados ou a discricionariedade dos membros do Ministério Público na condução de investigações? Sobre essa temática, é preciso observar primeiramente que diversos posicionamentos envolveram a intensa e recente discussão a respeito do alcance e dos limites dos poderes outorgados aos membros do Ministério Público, da Segurança Pública e do Poder Judiciário na investigação (nos dois primeiros casos) e na colheita de provas com vistas à punição de infrações penais. Como símbolos do movimento de crescimento do poder político atribuído ao Estado para investigar e punir infrações penais, ressalta-se o debate acerca dos poderes investigatórios do Ministério Público, que recebeu pronunciamento vinculante do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 493.727/MG, favorável às investigações ministeriais. Destaca-se, outrossim, a instauração da Operação Lava-Jato, capitaneada pelo Ministério Público Federal 32 e pela Polícia Federal e popularmente caracterizada como a maior operação de combate à corrupção já realizada. Menciona-se, sem prejuízo, a Resolução GPGJ nº 1.570 de 05 de março de 2010 do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que reformulou o Núcleo de Combate ao Crime Organizado e Atividades Ilícitas Especializadas, surgindo, em decorrência, o já aclamado Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO). Por fim, imperioso salientar a promulgação das leis nº 12.850/13 (Lei de Combate ao Crime Organizado), que estabeleceu um rol de nada menos que oito técnicas especiais de investigação e obtenção de provas (vide art. 3º), e nº 12.694/12, que dispôs sobre a criação do julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição. Ou seja,parece ser preocupação do legislador federal e das autoridades administrativas conferir aos membros do Ministério Público maior arcabouço para a condução de investigações. Assim, pergunta-se se a Nova Lei de Abuso de Autoridade, que, segundo interpretação de seu art. 1º, objetiva coibir a atuação dos agentes públicos que, no exercício da função ou a pretexto de exercê-las, abusem do poder que lhes tenha sido atribuído, estabelecendo diversos tipos penais essencialmente relacionados com a atividade investigativa e judiciária, fere esse poder atribuído ao Estado-Juiz e ao promotor da ação penal de movimentar a persecução penal com ampla liberdade. A esse respeito, já se pode asseverar que a redação legal, sob o aspecto puramente jurídico, não conduz à criminalização das interpretações judiciais. Isso porque, previu a lei (art. 1º, §2º) que a mera divergência na interpretação de lei ou avaliação de provas e fatos não constitui abuso de autoridade. Nesse sentido, se num processo penal em que se apura a prática de crime comum de competência dos Juízes dos Estados, caso o magistrado atuante na 1ª instância proceda à condenação do réu por considerar que houve substrato probatório suficiente à procedência da pretensão punitiva, não será ele punido pelo fato de ter sido a condenação revista por julgamento proclamado por órgão revisor, seja na 2ª instância de jurisdição, seja nas instâncias extraordinárias. 33 Esse último dispositivo é de suma relevância e dele já se pode extrair que, juridicamente, não houve qualquer mudança legislativa quanto à autonomia e à independência dos magistrados, que ficam vinculados, evidentemente, à fundamentação de suas decisões judiciais, que exige que seus entendimento e avaliações sejam racional e concretamente fundamentados, ideia que decorrer do princípio processual da publicidade (vide art. 93, inciso IX da Constituição Federal e art. 489, §1º do Código de Processual Civil.). A não criminalização das divergências hermenêuticas ganha também relevo se forem considerados os dados da pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros em novembro de 2018, que comprovou que 52% dos magistrados de primeira instância entendem que “deveriam poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes”, no que resulta dizer que para parcela significativa da magistratura entendem que a livre interpretação da lei é fator relevante para o exercício da atividade jurisdicional. Para refinar o tópico, é interessante notar que, conforme será comentado mais detalhadamente, os delitos de abuso de autoridade são puníveis apenas a título de dolo, e que a possibilidade de responsabilização dos magistrados por atos dolosos não é novidade, encontrando previsão no art. 49 da Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura) e no art. 143 do Código de Processo Civil, ambos tratando, todavia, da responsabilidade civil. Embora não tenha havido mudanças jurídicas sobre a possibilidade de o magistrado realizar a livre interpretação da lei, diversos juristas alegam que a abstração e a dubiedade de alguns elementos normativos contidos nos tipos penais de seus textos podem, faticamente, resultar em uma criminalização da interpretação judicial. O argumento é, portanto, substancialmente diferente: não se trata de falar que a lei instituiu um mecanismo inconstitucional de punição de autoridades judiciais, mas sim, afirmar que, da forma como está escrita, poderá a redação sucumbir às circunstâncias políticas, podendo ser a lei utilizada para constranger ou intimidar os juízes. 34 A respeito desse ponto, logo em 28 de setembro de 2019, ou seja, dois dias após a publicação da lei, a Associação dos Magistrados Brasileiros ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.236, afirmando, dentre outros fundamentos, que: A possibilidade, porém, de que por meio de provas indiciárias -- válidas no processo penal -- vir um magistrado a ter sua conduta qualificada como criminosa, sob a pecha de que teria agido “com a finalidade específica de prejudicar outrem”, ou “de beneficiar a si mesmo ou terceiro” ou ainda “por mero capricho ou satisfação pessoal” torna o exercício da jurisdição uma atividade de risco inaceitável em um Estado Democrático de Direito. (...) Da verificação dessa violação em todos os tipos decorrerá, igualmente, a violação do princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), do ponto de vista subjetivo, relacionado ao princípio da confiança legítima como corolário da expectativa dos magistrados quanto à garantia da imunidade funcional concretizada no art. 41 da LOMAN. A ADI de nº 6.239, por sua vez, foi confeccionada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), que suscita argumentos semelhantes aos da ADI nº 6.236, afirmando, em síntese, que o diploma normativo contém tipos penais que podem gerar a criminalização da atuação dos magistrados federais no exercício regular de suas funções. Até o mês de junho de 2021, o mérito da referida impugnação ainda não foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. Da mesma maneira, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação dos Procuradores da República (ANPR) ajuizaram em conjunto, em 09 de outubro de 2019, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.238, alegando, em suma, que os termos utilizados na Lei de Abuso de Autoridade são vagos, imprecisos e indeterminados, podendo resultar em criminalização das atividades relacionadas à investigação penal. São exemplos de termos criticados as expressões “capricho pessoal” (art. 1º, §1º) “meio manifestamente ilícito” (art. 25) “sem justa causa fundamentada” (art. 30) e “estender injustificadamente” (art. 31). 35 O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em seu sítio eletrônico institucional, também manifestou repúdio à novidade legislativa. Para o Parquet fluminense, A pretexto de punir eventuais abusos, o projeto restringe a autoridade e prejudica a atuação independente do Ministério Público brasileiro, do Poder Judiciário e dos agentes policiais, se opondo ao trabalho de combate à corrupção, às organizações criminosas e a outros crimes, uma vez que torna promotores, procuradores e juízes vulneráveis a processos e outras penalizações pelo exercício legítimo de suas atribuições. O órgão institucional acrescenta outros argumentos, criticando o fato de a lei ter sido aprovada em regime urgência e levantando provocações a respeito da origem da proposição, suscitando injunções como “A quem interessa amordaçar Procuradores e Promotores de Justiça?” ou “A quem interessa restringir a autoridade do Ministério Público?”. O Ministério Público Federal, em nota pública divulgada em 15 de agosto de 2019, argumenta que: Como foi proposto, o PL levará ao enfraquecimento das autoridades dedicadas à fiscalização, à investigação e à persecução de atos ilícitos e na defesa de direitos fundamentais, ferindo a independência dos poderes e permitindo a criminalização de suas funções essenciais. Com base nesse medo, e ainda no período de vacatio legis da Lei, a magistrada Nádia de Mello Ladosky, da 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal, em sede de audiência de custódia, concedeu liberdade provisória a acusado por tráfico de drogas argumentando que o art. 9º da referida norma é aberto no que diz respeito ao que seria “manifestamente descabível”, e, portanto, a regra será a concessão de liberdade provisória até que os contornos do cabimento da prisão preventiva sejam especificamente definidos pelos tribunais superiores.1 A propósito, essa estrutura de argumentação não vem sendo utilizada apenas por membros da magistratura e do Ministério Público. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.234, a ajuizada pela AssociaçãoNacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal, afirma-se que a 1 Processo nº 2019.01.1.016499-2/DF 36 Lei nº 13.869/19 afeta o livre exercício das atividades relacionadas à fiscalização de tributos, podendo obstar a regular fiscalização por parte dos servidores. Destaca-se que a ADI nº 6.234 foi extinta liminarmente por ilegitimidade ativa da referida associação, afinal, segundo o Ministro Relator Celso de Mello, à ANAFISCO careceria pertinência subjetiva, pois só representava uma parte da categoria dos Auditores Fiscais. Evidentemente que há posições em contrário em relação a essa última tese. Para diversos grupos, especialmente no âmbito do Poder Legislativo, a nova lei terá o efeito positivo ao coibir arbitrariedades, sendo as impugnações por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público revestidas de parcialidade. Nesse sentido, o deputado federal Delfim Netto explana que: Em corpos diferenciados do funcionalismo público emerge, naturalmente, um corporativismo construído pelo elitismo do seu ‘espírito de corpo’. Trata-se, de fato, de um anel protetor do bom e do mau uso que seus membros podem fazer de suas prerrogativas. Um exemplo disso é a que o País assiste agora, perplexo: a reação à lei que combate os possíveis abusos de autoridade nos Três Poderes da República. Registre-se interessante reflexão de Lênio Luiz Streck, para quem o medo da nova lei tem relação com a própria desconfiança nas funções públicas: Assusta por quê? Simples: Porque, ao contrário de outros países avançados, aqui cada juiz interpreta a lei ao seu modo. E nisso é que mora o perigo. Isto é, os juízes sabem do que são capazes interpretando as leis. Os membros do ministério público também sabem. E isso lhes causa medo. Ou seja, conclui-se haver insatisfação de parcela significativa dos membros do Ministério Público e da magistratura com a novidade legislativa, pois, segundo eles, a atividade de investigação e de instrução criminal já naturalmente envolve 3.3 Reflexos na atuação da advocacia: o novo cenário de criminalização das violações das prerrogativas. A advocacia foi elencada pela Constituição Federal como função essencial à justiça (art. 133). Daí porque são conferidas diversas prerrogativas pelos arts. 7º e 8º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos 37 Advogados do Brasil) aos advogados. Além disso, o art. 6º da mesma lei preleciona que não há qualquer hierarquia entre essas autoridades e os advogados. Todavia, é comum que na classe da advocacia se perceba a insatisfação de muitos profissionais com o tratamento dispensado à figura do advogado pelas autoridades da persecução penal, especialmente pelos membros da segurança pública, do Ministério Público e da magistratura. Dentre as queixas comuns, destaca-se o frequente protesto contra a negativa de autoridades públicas em franquear ao advogado a consulta a autos de procedimentos investigativos e a provas já colhidas em investigações, o que, inclusive, gerou a edição da Súmula Vinculante nº 14 por parte do Supremo Tribunal Federal e a promulgação da Lei nº 13.245/2016. Como exemplo de casos envolvendo violações de prerrogativas, cite-se aquele ocorrido em 11 de setembro de 2018 no 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias, em que a advogada Valéria dos Santos foi algemada em plena audiência pela juíza leiga Ethel de Vasconcelos ao se recusar a aceitar que a sessão havia terminado sem que pudesse apresentar sua contestação. O fato gerou representação junto ao Conselho Nacional de Justiça por parte da OAB (documento elaborado por Luciano Bandeira, à época presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ), além de desagravo (em relação à advogada) por parte do presidenta da OAB Cláudio Lamachia, que fez discurso no dia 17 de setembro do mesmo ano contra os abusos cometidos contra os advogados. Mais recentemente, tem repercutido o caso da prisão do ativista José Vargas Sobrinho Junior, supostamente preso pelo desaparecimento de Cícero José Rodrigues de Souza, que era candidato a vereador da cidade de Redenção (PA). No caso, a defesa técnica afirma que o Ministério Público ocultou provas de inocência do acusado, procedeu à instauração de investigação mesmo sabendo da inocência desta, e, por fim, obstou o acesso da defesa técnica aos autos da interceptação. Daí a importância de se indagar se a Lei de Abuso de Autoridade instituiu um novo mecanismo de defesa aos advogados para proteger suas prerrogativas. Ou seja, qual foi o efeito da nova lei na defesa das prerrogativas dos advogados? 38 Houve enfraquecimento ou enrijecimento das regras de controle do poder estatal? Quanto a esse tópico, são três os artigos que tratam da temática (20, 32 e 43). A título de curiosidade, observa-se que os artigos 20, 32 e 43, relacionados com as prerrogativas dos advogados, foram todos vetados pela Presidência da República por ocasião do trâmite legislativo, sendo os vetos superados pelo Congresso Nacional. Quanto ao art. 20, embora já tenha sido feita a ressalva quanto à exigência de elemento subjetivo específico, que dificulta em demasia a caracterização do abuso de autoridade, pode-se afirmar que essa regra representa uma efetiva defesa das prerrogativas do advogado. O referido artigo criminaliza a conduta do agente que impede, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com o seu advogado, havendo um tipo equiparado que reprime aquele que impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência. Esse artigo tem ainda relação direta com a prerrogativa prevista no art. 7º, XXI do Estatuto da Advocacia, que, importante observar, foi acrescentada pela justamente pela Lei nº 13.245/2016, mencionada acima como um diploma normativo intimamente relacionado com a coibição dos excessos praticados por autoridades públicas que negavam o acompanhamento do advogado aos atos de investigação. Evidentemente que o artigo 20 do novo diploma não instituiu o direito a sentar-se próximo ao defensor ou entrevistar-se com ele. O artigo 185 do Código de Processo Penal, desde a redação dada pela Lei nº 10.792/03, conferia, durante o interrogatório, o direito do acusado de ser inquirido na presença do defensor. Além disso, a presença do defensor é consequência do próprio direito à defesa técnica, consectário lógico do direito individual à ampla defesa (art. 5º, LV da Constituição Federal). Todavia, o que se pretendeu com a inovação legislativa foi elevar ao status de infração penal a inobservância do respeito a uma das facetas da ampla 39 defesa. Ou seja, elevou-se a proteção ao bem jurídico “direito à defesa”, conduzindo-o a patamares suscetíveis de provocar a mão fragmentária do Direito Penal, daí porque é correto afirmar que houve recrudescimento da proteção e efeito jurídico relevante. Insta observar que o impedimento da reunião entre advogado e cliente fugia à tipificação da Lei nº 4.898/65: não havia dispositivo semelhante, e não se tinha notícias da aplicação do art. 3º, “j” do diploma para a referida hipótese. Em suma, houve verdadeira inovação legislativa conferido maior cobertura à ampla defesa. Sobre o artigo 32, que tipifica a conduta de negar ao defensor ou ao acusado o acesso a procedimentos investigativos, pode-se afirmar didaticamente que se trata de uma “criminalização da desobediência à Súmula Vinculante nº 14”. O artigo amealha elementos objetivos e normativos com maior amplitude do que a Súmula Vinculante nº 14. Esta mencionava o acesso apenas a procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, usualmente a Polícia Federal e a
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