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AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE LEI N 13 869 -19

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE 
CURSO DE DIREITO 
 
 
 
DAVID FERREIRA SANTANA 
 
 
 
 
 
 
 
AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MACAÉ/RJ 
2021 
DAVID FERREIRA SANTANA 
 
 
 
 
 
 
AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) 
 
 
 
 
 
 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à 
Faculdade de Direito da Universidade Federal 
Fluminense como requisito de avaliação para 
obtenção do grau de Bacharel em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
MACAÉ/RJ 
2021 
DAVID FERREIRA SANTANA 
 
 
AS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA NOVA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE (LEI Nº 13.869/19) 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à 
Faculdade de Direito da Universidade Federal 
Fluminense como requisito de avaliação para 
obtenção do grau de Bacharel em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro 
 
 
Aprovado em: Macaé, 14 de junho de 2021. 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
ORIENTADOR: Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro-UFF 
 
 
Profª. Dr. Saulo Bichara Mendonça 
 
 
Prof. Dr. Heron Abdon Souza 
 
 
 
MACAÉ/RJ 
2021 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço primeiramente à minha família, pai, mãe, Danilo, Diogo, Daniele 
e Isabel, por darem sempre especial atenção a mim e proporcionarem segurança 
em todos os momentos que precisei. Agradeço por me permitirem escolher e por 
aceitarem a pessoa que sou, por serem compreensíveis com minha falta de 
tempo e com as inúmeras horas sozinho com a porta fechada. Sou grato por me 
permitirem sentar-se à mesa antes de todos, comer e se levantar antes de todos, 
por chegar em casa e encontrar tudo pronto, com conforto e segurança, para 
que pudesse fazer o que quisesse. 
Sou grato à minha namorada Carolina, por ter sido sempre uma influência 
positiva, por sempre caminhar ao meu lado, por ter permitido enxergar o mundo 
com mais clareza, expressividade e sinceridade e por a todo momento falar, agir 
com o único propósito de me causar alegria, radiação e estímulo. 
Agradeço também à família de minha namorada, que me considerou 
durante todo o tempo da faculdade como alguém da família, e por ter posto fotos 
minhas nos porta-retratos das salas: Rafael, Viviane, Isabela, Mariana, 
Alessandro, Reinaldo e Maria Adnir. 
Aos meus amigos, também agradeço especialmente: Lucas, Felipe, 
Amanda, Júlia, Caio, Luis Eduardo, Giovanna, Laura, Angélica, Davi, Logan, 
Ramón, Maycon, Luccas, Mattheus, Carla Beatriz e Rafaella. Agradeço pelos 
inúmeros momentos de diversão e companheirismo. 
Aos mentores (e amigos) Anderson, Francisco e Gabriel. São pessoas 
que me incentivaram a olhar mais para cima, bem alto, e que me ensinaram 
grande parte do pouco que sei. 
Agradeço aos professores da Universidade Federal Fluminense, que 
compartilham do entendimento de que Direito não é uma ciência da 
memorização e da retórica, mas sim a oportunidade de compreender com 
profundidade as relações sociais e os aspectos normativos decorrentes delas. 
Em especial, gratidão ao professor Camilo, que demonstrou espantosa 
flexibilidade nos últimos semestres do curso, possibilitando assim que eu 
pudesse concretizar mais de um projeto simultaneamente. 
 
RESUMO 
O presente trabalho de conclusão de curso aborda a Lei nº 13.869/19, 
denominada Nova Lei de Abuso de Autoridade, visando a análise de seus efeitos 
sobre o ordenamento jurídico e analisando esses efeitos sob o prisma dos 
direitos e garantias fundamentais conferidos constitucionalmente. A metodologia 
empregada consiste, primeiramente, na análise bibliográfica do histórico das 
normas de responsabilização das autoridades estatais por atos ilícitos cometidos 
contra particulares e dos diplomas antepassados de responsabilização direta 
dos agentes públicos por excessos ou desvios ocorridos no exercício de suas 
atribuições. Posteriormente, é abordado todo o processo legislativo e as 
discussões em torno da promulgação da lei objeto de estudo. Por fim, são 
aprofundados, através da pesquisa doutrinária, legal e jurisprudencial, as 
repercussões causadas no ordenamento jurídico pelo novo diploma normativo, 
especialmente sob o aspecto das garantias individuais dos investigados e 
acusados em geral. 
 
Palavras-chave: Abuso de Poder. Lei nº 13.869/19. Lei nº 4.898/65. Lei de Abuso 
de Autoridade. Ministério Público. Persecução Penal. Prerrogativas da 
Advocacia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
This course conclusion work refers to the Law No. 13.869/19, called the New Law 
on Abuse of Power, aiming at analyzing its effects on the legal system and 
analyzing these effects under the prism of civil rights and the guarantees 
constitutionally conferred. The methodology used consists, firstly, in the 
bibliographical analysis of the history of the accountability norms of the state 
authorities for illicit acts committed against private individuals and of the 
predecessor legislation of direct accountability of public agents for excesses or 
deviations that occurred in the exercise of their attributions. Subsequently, the 
entire legislative process and discussions surrounding the enactment of the law 
under study are addressed. Finally, through doctrinal, legal and jurisprudential 
research, the repercussions caused in the legal system by the new legislation are 
deepened, especially under the aspect of the individual guarantees of the 
investigated and accused in general. 
 
Keywords: Abuse of Power. Advocacy prerogatives. Criminal prosecution. Law 
nº 13.869/19; Law nº 4.898/65. Power abuse. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 8 
CAPÍTULO 1: RELAÇÕES DE PODER ENTRE O INDIVÍDUO E O ESTADO – 
BREVE HISTÓRICO DA RESPONSABILIZAÇÃO DA AUTORIDADE 
ESTATAL. ........................................................................................................ 10 
1.1 Responsabilização estatal na antiguidade ................................................. 10 
1.2 Nascimento da limitação dos poderes do Estado na Idade Média e Idade 
Moderna ........................................................................................................... 11 
1.3 Revolução Francesa e as teorias de responsabilidade do estado ............. 13 
1.4 A culpabilização do Estado no Direito Brasileiro ........................................ 15 
 
CAPÍTULO 2: PROCESSO LEGISLATIVO DA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE ................................................................................................. 20 
2.1 Antecedentes, projeto e justificativas ......................................................... 20 
2.2 Trâmite na Comissão de Constituição e Justiça, emendas ao projeto e 
aprovação no Senado Federal ......................................................................... 21 
2.3 Revisão e aprovação pela Câmara dos Deputados ................................... 23 
2.4 Vetos presidenciais, superação dos vetos e promulgação ......................... 24 
 
3. CAPÍTULO 3: REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE SEGUNDO A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA ............... 27 
3.1 Do dolo específico e da dificuldade de caracterização dos crimes de abuso 
de autoridade: a lei é mais rigorosa na repressão dos abusos? ...................... 28 
3.2 Crime de hermenêutica e liberdade de decidir: repercussões na atuação dos 
magistrados e dos membros do Ministério Público .......................................... 32 
3.3 Reflexos na atuação da advocacia: o novo cenário de criminalização das 
violações das prerrogativas ..............................................................................37 
3.4 Efeitos na atuação administrativa: competência para definição do conceito 
de abuso de autoridade .................................................................................... 42 
3.5 Demais efeitos jurídicos gerados por tipos penais específicos .................. 44 
3.5.1 Denunciação caluniosa ........................................................................... 44 
3.5.2 “Carteirada” ............................................................................................. 44 
3.5.3 Atribuição antecipada de culpa ............................................................... 46 
3.5.4 Indisponibilidade excessiva de ativos financeiros ................................... 46 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 48 
 
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 50 
 
7 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Foi publicada em 05 de setembro de 2019 a Lei nº 13.869/19, denominada 
Nova Lei de Abuso de Autoridade, que dispõe sobre os crimes de abuso de 
autoridade e revoga a lei anterior (Lei nº 4.898/65) que tratava de igual tema. A 
lei entrou em vigência no dia 03 de janeiro de 2020, após 04 (quatro) meses em 
vacatio legis. 
A princípio, seu corpo normativo contém diversos tipos penais 
relacionados, em sua maioria, com a conduta de autoridades policiais e judiciais 
que atuam no curso da persecução penal. Por esse motivo, a lei foi intensamente 
discutida tanto pela sociedade civil quanto pela doutrina nacional. 
O presente trabalho de conclusão de curso, dessa maneira, objetiva tratar 
com detalhes quais foram as principais repercussões causadas pela Lei nº 
13.869/19. Não se trata de construir uma mera comparação entre a lei anterior e 
a atual, tampouco em se resumir a comentar os tipos penais, com seus 
elementos normativos, objetivos e subjetivos, o que seria feito por uma obra 
destinada especificamente a comentar artigos; o objetivo é justamente apontar 
e detalhar algumas das principais modificações no cenário jurídico, como 
unidade, provocadas por essa recente lei ordinária. 
Entre algumas das discussões relevantes sobre o tema, menciona-se a 
polêmica envolvendo os crimes inéditos instituídos pela lei e direcionados 
especificamente para a atuação dos membros do Ministério Público e da 
magistratura, dando origem ao questionamento sobre se a lei contém regras que 
afetam, respectivamente, a liberdade de investigar e de decidir, conferidas pela 
Constituição Federal a esses agentes; ou se, do contrário, houve mera 
resistência por parte de uma posição doutrinária parcial institucional, sendo as 
infrações penais concebidas pela inovação legislativa efetivamente capazes de 
coibir abusos. 
Outro tópico significativo nessa abordagem é a previsão de um dolo 
específico no art. 1º, §1º da lei, em que será debatido se essa previsão 
enfraqueceu a disciplina da representação contra o abuso de poder prevista no 
artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal de 1988. 
 
8 
 
 
 
Além disso, é relevante que sejam explanados os efeitos da 
criminalização da violação das prerrogativas da advocacia (art. 43 da lei em 
estudo) na própria atuação desta, sempre à luz da proteção das garantias 
individuais, que neste caso se relaciona com o livre exercício da profissão (art. 
5º, XIII da Constituição Federal). 
A esse estudo é acrescentada uma investigação sobre o processo 
histórico de responsabilização dos agentes públicos por ilícitos praticados contra 
pessoas em geral. Ou seja, é transcorrida uma linha desde a época em que 
vigorava a absoluta irresponsabilidade do Estado até a previsão dos primeiros 
mecanismos de punição direta dos agentes que ilicitamente agem em nome do 
poder estatal, alcançando os diplomas atuais e sua síntese normativa. 
Por fim, em um fragmento mais expositivo, porém igualmente importante, 
é demonstrado todo o trâmite legislativo que resultou na publicação da lei, 
tratando-se de um projeto que sofreu incorporações de outros projetos e que foi 
processado com em ritmo relativamente ágil. 
Assim, para a primeira compreensão sobre o tema, é essencial especificar 
preliminarmente como o poder social central se desenvolveu até a origem do 
Estado de Direito, com a possibilidade de criação de um diploma destinado a 
reprimir o abuso de autoridade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
 
 
CAPÍTULO 1: RELAÇÕES DE PODER ENTRE O INDIVÍDUO E O ESTADO – 
BREVE HISTÓRICO DA RESPONSABILIZAÇÃO DA AUTORIDADE 
ESTATAL. 
 
1.1 Responsabilização estatal na Antiguidade. 
Não havia na Antiguidade um mecanismo sistemático de controle ou 
limitação da atividade do Estado, mesmo porque a baixa complexidade das 
primeiras sociedades impedia a manutenção de um sistema de 
responsabilização de abusos por parte dos agentes detentores de poder. 
Sabe-se que o poder punitivo, nessa época, era essencialmente 
eclesiástico, fundamentado na ideia de vingança divina. Ou seja, aqueles que 
exerciam o poder o faziam proclamando a vontade e a atuação de uma 
autoridade superior. Se um indivíduo supostamente cometia uma ofensa, essa 
ofensa não era entendida como ferindo outro indivíduo, mas sim à divindade, e 
aquele que punia o fazia para desagravar a ira superior, sendo forçoso concluir 
que era incompatível com tal forma de exercício de poder a possibilidade de o 
particular se voltar contra a sanção aplicada, muito menos responsabilizar o 
aplicador. 
Em suma, não era possível a punição por abuso de autoridade. 
Todavia, podem ser destacados documentos e fenômenos históricos que 
se relacionam com o indicativo de respeito à dignidade humana e ao 
reconhecimento da importância normativa do indivíduo em face do Poder do 
Estado em algumas hipóteses. 
Na China Oriental, entre os séculos VI e V a.C., surgiu a Escola dos 
Eruditos de Confúcio, que, em relação ao poder, objetivava conferir caráter de 
moralidade aos funcionários do governo e seus respectivos representantes, com 
base, dentre outros princípios, na Humanidade, Conhecimento e Integridade. 
 O Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) previa a proteção dos homens 
livres em relação à sua vida e propriedade. Além disso, a aplicação da Lei do 
Talião traduziu a previsão da proporcionalidade, segundo a qual a punição para 
quem violasse a lei comum seria feita com semelhança de intensidade. Ou seja, 
tratava-se de uma limitação à imposição de pena. 
10 
 
 
 
A Lei de Talião foi repetida no texto bíblico de Levítico por volta no século 
VIII a.C. Segundo o comando, 
Se alguém fizer uma ferida ao seu próximo, far-se-á o mesmo a 
ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; conforme 
o dano que tiver feito a outro, homem, assim se lhe fará a ele. 
Quem matar um animal pagá-lo- á, quem matar um homem 
deverá morrer (Lv 24,19-21). 
 
1.2 Nascimento da limitação formal do Estado na Idade Média e Idade 
Moderna. 
No tocante à limitação do poder do Estado, especialmente o punitivo, é 
comum associar o nascimento dos mecanismos de controle do poder estatal 
(notadamente o poder repressivo de natureza penal) aos eventos históricos 
ocorridos na Idade Moderna (com exceção da Magna Carta, que foi publicada 
em 1215). 
Quanto à Magna Carta, lançada em 15 de junho de 1215 na Inglaterra e 
assinada pelo Rei João e barões ingleses, sua principal correlação com a 
limitação do poder relacionava-se com a necessidade de imposição de 
obrigações proporcionais. Nesse sentido, seu texto prevê que “a multa a pagar 
por um homem livre, pela prática de um pequeno delito, será proporcionada à 
gravidade do delito.” Ainda segundo o texto, “não serão aplicadas multas aos 
condes e barões senão pelos pares e de harmonia com a gravidade do delito.”. 
 A Petition of Rights inglesa, de 08 de julho 1628, repetiu o instituto 
descrito no final do último parágrafo, conhecido como devido processo legal, nosseguintes termos: “nenhum homem livre podia ser detido ou preso ou privado 
dos seus bens, (...), a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou 
da lei do país”. 
Dentre outros instrumentos, destacam-se o Habeas Corpus Act de 1679, 
também inglesa, que instituiu um mandado de proteção judicial aos presos 
injustamente, a Bill of Rights, de 1689, que reduziu o poder do Rei Jaime II, 
afirmando que era ilegal a suspensão ou execução de leis sem autorização do 
parlamento, e, ainda, a Constituição Americana de 1787, cuja quarta emenda 
anuncia “o direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e 
haveres contra busca e apreensão arbitrárias”. 
11 
 
 
 
Percebe-se que esses instrumentos estão relacionados, repita-se, com 
apenas a limitação do poder estatal, mas ainda não dispõem de maneira 
sistemática sobre a forma de punição das autoridades estatais por violações aos 
direitos individuais. Isso se deveu ao fato de que durante a Idade Moderna 
prevaleceu juridicamente a distinção entre a situação jurídica de classes mais 
favorecidas, como o clero e a nobreza francesa, e as classes socialmente 
desabastadas, como os servos deste país. Ou seja, prevalecia a 
irresponsabilidade do Estado. 
De fato, durante os Estados absolutos consolidou-se a regra da 
soberania, fundamentada filosoficamente na teoria contratualista de Thomas 
Hobbes (Leviatã, 1651), segundo a qual impossível haver instrumentos pelos 
quais os servos, por exemplo, poderiam contestar a autoridade do Estado. Isso 
porque a autoridade do Estado residiria justamente na confiança depositada, ex 
ante, na pessoa do soberano. 
Nesse diapasão, segundo Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, a autoridade 
estatal é incontestável, pois: 
É certo que um monarca soberano, ou a maioria de uma 
assembléia soberana, pode ordenar a realização de muitas 
coisas seguindo os ditames de suas paixões e contrariamente a 
sua consciência, e isso constitui uma quebra da confiança e da 
lei da natureza. Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer 
súdito a pegar em armas contra seu soberano, ou mesmo a 
acusá-lo de injustiça, ou a de qualquer modo falar mal dele. 
Porque os súditos autorizaram todas as suas ações, e ao 
atribuírem-lhe o poder soberano fizeram-nas suas. 
 
Evidentemente que a teoria da irresponsabilidade do Estado fundada na 
tese acima explicitada (le roi ne peut mal faire) era favorável às classes nobres 
do leste europeu. Todavia, não se poderia falar em superação dela enquanto 
não houvesse a instituição de um Estado de Direito, ou seja, enquanto não 
houvesse um Estafo fundado na legalidade e com objetivo de defender as leis; 
à época moderna, faltava poder político para que se combatesse os eventuais 
abusos estatais. 
Celso Antônio Bandeira de Mello explica, em relação ao próprio Direito 
Administrativo (que abrange a temática do controle estatal), que: 
Constitui disciplina própria do Estado Moderno, ou melhor, do 
chamado Estado de Direito, porque só então se cogitou de 
12 
 
 
 
normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua 
ação, estabelecendo balizas às prerrogativas dos governantes, 
nas suas relações recíprocas, e, outrossim, nas relações com os 
governados. Na verdade, o Direito Administrativo só se plasmou 
como disciplina autônoma quando se prescreveu processo 
jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e 
comportas na realização das suas funções. 
 
Daí por que dizer que o capítulo histórico de maior relevância para a 
limitação do poder repressivo do Estado é a Revolução Francesa (1789-1799). 
 
1.3 Revolução Francesa e as teorias de responsabilidade do Estado. 
A Revolução Francesa, cujo texto fundamental, a Declaração dos Direitos 
do Homem e do Cidadão de 1789, anunciou, em seu texto (item 7) que “os que 
solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem 
ser punidos” estampou no texto revolucionário um mandado de punição reverso, 
destinado àqueles que aplicam ordens restritivas de maneira arbitrária. 
Com efeito, o nascimento desse Estado de Direito é pano de fundo para 
a superação da Teoria da Irresponsabilidade do Estado. Por isso, Di Pietro 
(2018), a respeito da irresponsabilidade, afirma que 
Essa teoria logo começou a ser combatida, por sua evidente 
injustiça; se o Estado deve tutelar o direito, não pode deixar de 
responder quando, por sua ação ou omissão, causar danos a 
terceiros, mesmo porque, sendo pessoa jurídica, é titular de 
direitos e obrigações. 
 
Daí porque a Teoria foi inevitavelmente superada no século XIX, 
notadamente diante das radicais modificações nas estruturas de poder na 
própria função do Estado. Entretanto, inicialmente, o Estado só poderia ser 
demandado judicialmente pelos atos de gestão, mas não nos atos de império. 
Essa distinção fundamenta-se na seguinte ideia: o Estado pode praticar 
atos agindo em igualdade de condições em relações ao particular, usualmente 
os atos relacionados à administração da máquina pública; todavia, o Estado 
também pode praticar atos de império, que são aqueles próprios, exclusivos, 
imperativos, coercitivos, que só podem ser atribuídos ao poder central. No 
tocante a esses atos, portanto, não poder-se-ia falar em responsabilidade, pois 
estar-se-ia interferindo na decisão fundamental do povo que estabeleceu aquele 
Estado. 
13 
 
 
 
Importante salientar que essa consolidação da Responsabilidade do 
Estado se deu primeiramente com a adoção da teoria da responsabilidade 
subjetiva. Ou seja, além do dano e do nexo causal entre o dano e a conduta do 
ator público, deveria a eventual vítima comprovar a existência de um desajuste 
voluntário imprudente ou negligente. São as denominadas teorias civilistas, por 
meio das quais se aplicam os estatutos do Direito Privado às relações de gestão 
que envolvem o Estado. 
Posteriormente, surgiram as teorias publicistas, que se subdividiam na 
teoria da culpa do serviço, teoria da culpa administrativa e teoria do risco (que 
se subdivide em risco administrativo e risco integral). 
Segundo a teoria da culpa do serviço, a vítima deveria argumentar, para 
obter indenização, em torno da existência de serviço defeituoso; ou seja, deveria 
comprovar que o serviço público teria sido prestado ou disponibilizado de forma 
inadequada, atrasada, ou ainda, que ele não tenha sido prestado. 
Já segundo a teoria do risco administrativo, aqueles que suportam atos 
excessivamente onerosos teriam direito à indenização porque as despesas da 
Administração devem ser repartidas por igual entre os indivíduos da sociedade 
(artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). O argumento, 
portanto, tem íntima relação com a ideia de seguridade, equilíbrio de despesas 
e benefícios. 
Ou seja, a partir da teoria do risco administrativo prevalece a ideia de 
responsabilidade objetiva do Estado, bastando à vítima comprovar o nexo de 
causalidade e o dano causado. 
A Teoria do risco administrativo foi consagrada nos Estados Unidos com 
a promulgação da Federal Tort Claim Act em 1946, e em seguida na Inglaterra, 
com a publicação da Crown Proceeding Act, em 1947. 
Interessante notar que a primeira lei estabeleceu que os Estados Unidos 
seriam responsáveis pelos atos causados pelos seus agentes com base nos 
mesmos fundamentos pelos quais se responsabiliza um empregador pelos atos 
ilícitos praticados pelos empregados. 
Ainda quanto ao Act de 1946, sua aplicação era ampla, podendo haver 
responsabilização por atos praticados por todos os poderes, desde que sejam 
pertinentes à esfera federal. Nesse sentido, o §2671 prevê que 
14 
 
 
 
The term ‘‘Federal agency’’ includes the executive departments, 
the judicial and legislative branches, the military departments, 
independent establishments of the United States, and 
corporations primarily acting as instrumentalities or agencies of 
the United States. 
Na Crown Proceeding Act de 1947,a Coroa Inglesa estaria sujeita a 
qualquer processo judicial em razão de erro que uma pessoa particular poderia 
sofrer, caso os atos ilícitos (torts) fossem praticados por seus agentes. 
Ainda existe a teoria do risco integral, consequência do modelo genérico 
“teoria do risco”. Diferencia-se a teoria do risco integral por simplesmente não 
admitir nenhum tipo de excludente de ilicitude. Aqui, a ideia de seguridade é 
elevada até o máximo: o Estado age assegurando todos os danos sofridos por 
aquela atividade. É a responsabilidade que prevalece no tocante aos danos 
nucleares (Art. 21, XXIII, “d” da CRFB/88). 
 
1.4 A culpabilização do Estado no Direito Brasileiro. 
Na história do Direito Administrativo Brasileiro, jamais houve a 
consolidação da teoria da irresponsabilidade. 
Segundo a Constituição Imperial de 1824, ministros de estado, juízes, 
oficiais de justiça e empregados públicos são pessoalmente responsáveis pelos 
atos praticados no exercício das funções. São as disposições constitucionais da 
época: 
Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis: (..) III. Por 
abuso do Poder. 
(...) 
Art. 156. Todos os Juizes de Direito, e os Officiaes de Justiça 
são responsaveis pelos abusos de poder, e prevaricações, que 
commetterem no exercicio de seus Empregos; esta 
responsabilidade se fará effectiva por Lei regulamentar. 
(...) 
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos 
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança 
individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do 
Imperio, pela maneira seguinte: (...) XXIX. Os Empregados 
Publicos são strictamente responsaveis pelos abusos, e 
omissões praticadas no exercicio das suas funcções, e por não 
fazerem effectivamente responsaveis aos seus 
subalternos.XXIX. Os Empregados Publicos são strictamente 
responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercicio 
15 
 
 
 
das suas funcções, e por não fazerem effectivamente 
responsaveis aos seus subalternos. 
 
Logo após o início da vigência da Constituição de 1824, foi decretada a 
Lei de 15 de outubro de 1827, que dispunha a respeito “Da responsabilidade dos 
Ministros e Secretarios de Estado e dos Conselheiros de Estado”. Essa lei, 
juridicamente avançada para sua época, estabelecia a culpa por abuso de poder 
aos funcionários que menciona, quando desse abuso advenha prejuízo ao 
Estado ou ao particular, cominando penas de 1 a 3 anos de “remoção para fora 
da corte”: 
Artigo 3º: São responsaveis por abuso de poder: 
§ 1º Usando mal da sua autoridade nos actos não especificados 
na lei, que tenham priduzidos prejuizo, ou damno provado ao 
Estado, ou a qualquer particular. 
As penas para os delictos designados neste paragrapho são: 
Maxima: tres annos de remoção para fóra da Côrte e seu termo. 
Média: dous annos. 
Minimo: um anno. 
 
A jurisprudência, à época imperial, entendia que a responsabilidade 
constitucional do Império era solidária com a responsabilidade pessoal dos 
funcionários. 
Posteriormente, com a promulgação da Constituição da República dos 
Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891, foi mantida a fórmula 
genérica da responsabilidade dos funcionários públicos pelos abusos cometidos 
no exercício do cargo. Além disso, havia, desta vez, um direito fundamental de 
petição aos poderes públicos contra abuso de autoridade, acompanhado do 
direito de promover a responsabilidade. Nos termos do texto fundamental, 
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros 
residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á 
liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos 
seguintes: § 9º É permittido a quem quer que seja representar, 
mediante petição, aos poderes publicos, denunciar abusos das 
autoridades e promover a responsabilidade dos culpados 
(...) 
Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis 
pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de 
seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em 
não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. 
 
16 
 
 
 
O art. 80 da Constituição de 1891 dispunha sobre a responsabilidade dos 
agentes públicos nos casos de estado de defesa. Esse dispositivo era de suma 
importância, pois, historicamente, são nos períodos de exceção em que se 
verifica a maior incidência de abusos, como nos casos de guerra declarada. 
A Teoria Civilista foi adotada no Código Civil de 1916 na seguinte redação: 
Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente 
responsáveis por atos dos seus representantes que nessa 
qualidade causem danos a terceiros, procedendo do modo 
contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo 
direito regressivo contra os causadores do dano. 
 
Portanto, de maneira inédita foi estabelecida por lei a responsabilidade da 
própria pessoa jurídica, e não apenas a responsabilidade do funcionário, esta já 
prevista na Constituição de 1891. Todavia, a vítima deveria comprovar que o ato 
foi procedido de modo contrário à lei ou com violação de dever; em outras 
palavras, comprovar a culpa. 
A Constituição de 1934 também inovou no ordenamento jurídico ao prever 
não apenas a responsabilidade solidária, mas também a expressa possibilidade 
de ajuizamento de ação de regresso pela Fazenda Pública contra o agente 
responsável. Assim, consoante a constituição: 
Art. 171 - Os funcionários públicos são responsáveis 
solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, 
por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou 
abuso no exercício dos seus cargos. 
§ 1º - Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em 
lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como 
litisconsorte. 
§ 2º - Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá 
execução contra o funcionário culpado. 
 
As Constituições de 1937 e de 1946 possuíam formulas idênticas (artigos 
158 e 194, respectivamente), relacionadas à responsabilidade do Estado com 
possibilidade de ação de regresso contra o particular. 
O artigo 141, §37 desta última inaugurou o direito de petição, fundamento 
da primeira lei de abuso de autoridade, segundo a qual: 
É assegurado a quem quer que seja o direito de representar, 
mediante petição dirigida aos Poderes Públicos, contra abusos 
de autoridades, e promover a responsabilidade delas. 
 
17 
 
 
 
É na vigência da Constituição de 1946 que foi promulgada a Lei nº 
4.898/65, que disciplinou o exercício do direito de representação e o processo 
de responsabilidade administrativa por abuso de autoridade, relacionados com 
atos infringentes à liberdade de locomoção; à inviolabilidade do domicílio; ao 
sigilo da correspondência; à liberdade de consciência e de crença; ao livre 
exercício do culto religioso; à liberdade de associação; aos direitos e garantias 
legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade 
física do indivíduo e aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício 
profissional. 
Nesse momento, a Lei nº 4.898/65 faz uma íntima relação entre os direitos 
fundamentais assegurados constitucionalmente e a disciplina do abuso de 
poder. Isso significa que, para cada um desses dez direitos fundamentais 
conferidos constitucionalmente, há um mandado de proteção estabelecido 
ordinariamente. Faz-se uma relação jurídica entre o direito fundamental e o 
abuso. 
Já a Constituição de 1967 estabelecia no artigo 105, parágrafo único, a 
responsabilidade da Fazenda Pública pelos abusos atos dos funcionários, 
cabendo ação regressiva em caso de dolo ou culpa. Além disso, o direito de 
representação foi repetido no artigo 150, §30, consistente na garantia de que 
qualquer pessoa pudesse representar aos poderes contra abusos de autoridade. 
A emenda nº 1 de 1969 não alterou o conteúdo deste dispositivo. 
No panorama atual, a responsabilidade do Estado é regulamentada pelo 
artigo 37, §6º da ConstituiçãoFederal de 1988, pela qual 
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado 
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que 
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, 
assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos 
de dolo ou culpa. 
 
A responsabilidade objetiva também é complementada pelo artigo 43 do 
Código Civil, de redação substancialmente idêntica. 
Evidentemente que há previsão da representação contra o abuso de 
poder. É o artigo 5º, XXXIV da Constituição Cidadã: 
São a todos assegurados, independentemente do pagamento de 
taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa 
de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. 
18 
 
 
 
 
Assim, segundo a posição doutrinária atual, as normas de limitação do 
poder estatal são essenciais à efetiva garantia das liberdades constitucionais 
consagradas na Carta Magna de 1988. No entanto, parte da doutrina alerta que 
uma limitação demasiada do poder de atuação dos agentes públicos incumbidos 
de funções primordiais à garantia da ordem pública pode, ao reverso, afetar o 
exercício de outros direitos constitucionalmente estabelecidos. 
No conflito acima mencionado surgiu a Lei nº 13.869/19 (Nova Lei de 
Abuso de Autoridade), provocando diversos efeitos na atuação de juízes, 
desembargadores, ministros, promotores de justiça, delegados de polícia e 
outros agentes cujas atribuições estão relacionadas com a persecução penal. 
Nesse sentido, é de relevância ímpar compreender as consequências da 
inovação legislativa na atuação dos referidos agentes, notadamente diante da 
existência de controvérsia consolidada sobre a moralidade e a 
constitucionalidade na nova norma. 
Assim, infere-se que a responsabilidade do Estado e o direito de investir 
contra as medidas abusivas do poder soberano é fenômeno relativamente 
recente, fruto da superação da inicial confiança incondicional numa figura central 
e, outrossim, consequência da instalação de um Estado de Direito e da 
possibilidade de responsabilização por atos ilícitos e abusivos (também ilícitos) 
cometidos pelo Estado, sendo certo que, na situação jurídica atual, ganhou 
contornos complexos em função da edição da Lei nº 13.869/19. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
19 
 
 
 
CAPÍTULO 2: PROCESSO LEGISLATIVO DA LEI DE ABUSO DE 
AUTORIDADE. 
 
2.1 Antecedentes, projeto e justificativas. 
A Lei nº 13.869/19 é originária do Projeto de Lei do Senado nº 85/2017, 
apresentado pelo Senador do partido político REDE Sustentabilidade de 
Pernambuco Randolfe Rodrigues, e logo despachado pela presidência à 
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, na forma do artigo 101, I do 
Regimento Interno do Senado Federal. Segundo a proposta inicial, o projeto 
“define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências”. 
O projeto não foi o primeiro a tratar a matéria, no entanto. O Projeto de 
Lei do Senado nº 280 de 2016, de autoria do Senador Renan Calheiros, também 
tinha idêntico objetivo: definir os crimes de abuso de autoridade. Todavia, o 
projeto acabou sendo “absorvido” pelo Projeto nº 85/2017 na Comissão de 
Constituição, Justiça e Cidadania, pois, segundo a comissão, este projeto 
travava de maneira mais adequada a matéria. 
Essencial observar que o projeto foi submetido a consulta pública 
realizada no sítio eletrônico do Senado Federal, contando com 34.803 votos, 
sendo destes 34.235 votos contra o projeto e 568 votos a favor. 
Antes disso, o próprio Projeto nº 280 fora igualmente submetido a consulta 
pública no mesmo sítio eletrônico. Dos 282.134 votos contados, 277.463 
pessoas se posicionaram contra a tramitação e a promulgação do projeto de lei, 
enquanto apenas 4.671 pessoas se posicionaram em favor da novidade 
legislativa. 
Ainda em caráter preliminar, é essencial observar que o II Pacto 
Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, 
assinado em 13 de abril de 2009 em Brasília pelos à época Presidente da 
República Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente do Senado Federal Senador José 
Sarney, Presidente da Câmara dos Deputados Deputado Michel Temer e 
Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro Gilmar Ferreira Mendes, 
previa, em seu item “1.2”, a obrigação de atualização legislativa, estabelecendo, 
quanto ao abuso da autoridade, a obrigatoriedade de 
20 
 
 
 
Revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de 
incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e 
responsabilização administrativa e penal dos agentes e 
servidores públicos em eventuais violações aos direitos 
fundamentais. 
 
Ou seja, além da tendência histórica de responsabilização pessoal dos 
agentes públicos pelos atos praticados durante ou em razão do ofício, influenciou 
também a elaboração do projeto de lei uma onda renovatória de acesso à justiça 
(conforme bem aludido por Mauro Cappelletti) ocorrida no início do século XX, 
conforme o Pacto acima descrito, que tinha propósitos dos mais variados, como 
a revisão da legislação sobre crime organizado, execução penal e, conforme 
visto, abuso de autoridade. 
Quanto à proposta legislativa, o projeto nº 85/2017 continha oito capítulos: 
Disposições Gerais; Dos Sujeitos do Crime; Da Ação Penal; Dos Efeitos da 
Condenação e das Penas Restritivas de Direitos; Das Sanções de Natureza Civil 
e Administrativa; Dos Crimes e das Penas; Do Procedimento e; Das Disposições 
Finais. Ou seja, o processo continha disposições administrativas, civis, penais e 
processuais penais. 
Segundo a justificação apresentada pelo senador que propôs o projeto, o 
texto buscava aprimorar o conteúdo de um meio legal destinado a coibir abusos 
por agentes públicos. Ainda segundo ele, o projeto não obstava a regular 
atividade da administração pública. 
 
2.2 Trâmite na Comissão de Constituição e Justiça, emendas ao projeto e 
aprovação no Senado Federal 
Na Comissão de Constituição e Justiça, foi designado como relator o 
Senador do Paraná Roberto Requião, obtendo aprovação. Foram as palavras do 
relator: 
Em face do exposto, o voto é pela aprovação do Projeto de Lei 
do Senado nº 85, de 2017, na forma da emenda substitutiva que 
apresento a seguir, restando prejudicados o Projeto de Lei do 
Senado nº 280, de 2016, bem como as emendas a ele 
apresentadas. 
 
Nela, também foram apresentadas 43 emendas por diversos senadores, 
prevalecendo algumas alterações importantes no texto inicial, dentre as quais 
21 
 
 
 
destacam-se a inserção da finalidade especial de agir no tipo penal descrito no 
artigo 14 do projeto, que trata da submissão do preso ao uso de algema, 
indicando que somente caracterizaria crime se a submissão fosse realizada com 
o intuito de causar vexame; a garantia da entrevista do preso com o advogado 
de maneira reservada e pessoal; supressão do tipo penal específico para tortura, 
previsto no artigo 23 do PLS nº 280, tendo em vista que o crime de tortura é 
suficientemente reprovado na Lei nº 9.455/97, a chamada Lei de Tortura; 
inserção de um parágrafo no artigo 28 do projeto, fazendo a ressalva de que a 
instauração de sindicância ou investigação preliminar sumária sem indícios da 
prática de crime não pode configurar instauração caluniosa; supressão do artigo 
36, que tratava do delito de prevaricação, pois os crimes de abuso de autoridade 
exigem dolo específico de obter vantagem ou prejudicar terceiro, enquanto a 
prevaricação não se submete a esses elementos subjetivos, portanto inseri-los 
seria dificultar a punibilidade; 
Também foram alterações importantes as seguintes: no delito de impedir 
a reunião de pessoas, foi inserida a expressão “sem justa causa”, elemento 
normativo que objetivou possibilitar à autoridade o impedimento da reunião 
quando fosse caracterizado o abuso de direito, como, por exemplo, quando 
houvesse reunião anteriormente convocada para o mesmo local da reunião 
pretendida (art. 5º, XVI, partefinal da Constituição Federal de 1988); a exigência 
de que o crime do art. 38 somente se consumaria após a negação por parte do 
juiz em corrigir a indisponibilidade excessiva, nos termos do artigo 854, §3º, II do 
Código de Processo Civil; a alteração na redação do artigo 39 do projeto, para 
incriminar, em vez de o pedido de vista, a demora injustificada no exame de 
processo em que se pediu vista, nos termos do artigo 940, §1º do Código de 
Processo Civil. 
Foi realizada na Comissão e Constituição e Justiça audiências públicas 
com a sociedade civil. A primeira foi realizada em 04/04/2017, proposta pela Drª. 
Ana Cláudia Monteiro, representante Associação Nacional dos Procuradores do 
Trabalho, e seu objetivo era debater, dentre outros temas, a supressão da 
expressão “sem justa causa” do artigo 20 do projeto, que dizia respeito ao crime 
de impedir (sem justa causa, segundo a redação final) a entrevista pessoal e 
reservada do preso com o advogado. O objetivo do debate era concluir se a 
22 
 
 
 
supressão da expressão “sem justa causa”, ou seja, não permitindo ao juiz 
impedir a entrevista com o patrono em qualquer hipótese, não resultaria em um 
tipo penal mais adequado. 
O relator do projeto apresentou um novo fundamento para reforçar a 
necessidade de aprovação do projeto: a exigência jurídica de que seja 
imediatamente substituído o modelo de capitulação penal previsto no artigo 3º 
da antiga Lei nº 4.898/1965, que estabelecia configurar abuso de autoridade 
qualquer atentado à liberdade de locomoção; à inviolabilidade do domicílio; ao 
sigilo da correspondência; à liberdade de consciência e de crença; ao livre 
exercício do culto religioso; à liberdade de associação; aos direitos e garantias 
legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade 
física do indivíduo e aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício 
profissional. 
Ou seja, a legislação anterior violava, segundo o relator, o princípio da 
legalidade, especificamente no tocante ao subprincípio da taxatividade, pois a 
legislação não definia tipos penais claros, com definição precisa de elementos 
subjetivos e normativos, mas apenas se restringia a utilizar a expressão 
“atentado”. Em outros termos, a própria vigência da Constituição Federal de 1988 
impunha um projeto que definisse com precisão os limites específicos dos tipos 
penais relacionados como o abuso de autoridade, até mesmo para evitar os 
próprios abusos de quem aplica a lei. 
Remetido o projeto ao Plenário do Senado Federal, foram apresentadas 
e rejeitadas as emendas 3-A, 4, 5 e 6, sem importância para a redação final 
(afinal foram rejeitadas) e, em seguida, aprovado o projeto com o seguinte 
resultado: 54 votos a favor e 19 votos contra. 
Assim, foi a proposta aprovada remetida em 10/05/2017 pelo Senador 
Eunício Oliveira, Presidente do Senado Federal, ao Deputado Federal Fernando 
Lucio Giacobo, Primeiro-Secretário da Câmara dos Deputados, por intermédio 
do Ofício nº 368, a fim de que a Câmara procedesse à revisão, na forma do artigo 
65 da Constituição Federal de 1988. 
Na câmara, ganhou uma nova numeração: Projeto de Lei nº 7.596/2017. 
 
2.3 Revisão e aprovação pela Câmara dos Deputados. 
23 
 
 
 
 
Nesta casa, inicialmente foi apresentada pelo Deputado Federal Major 
Olímpio uma proposição no sentido de que fosse realizada a tramitação em 
conjunto do projeto em questão com o PL nº 6361/2009, de autoria do Senador 
José Sarney, requerimento que foi logo deferido. O PL nº 6361/2009 apenas 
derrogava a Lei nº 4.898/65, acrescentando tipos penais específicos, como 
“impor à pessoa física obrigação inexigível ou cuja cobrança tenha sido 
declarada inconstitucional”, mas mantendo a lei pré-constitucional nos demais 
tipos penais abertos. 
A proposta foi enviada em 10 de outubro de 2017 à Comissão de Combate 
ao Crime Organizado sob relatoria do Deputado Ricardo Barros (Partido 
Progressista, Paraná) e à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, 
sob relatoria do mesmo parlamentar. Na comissão, deputados de diferentes 
correntes ideológicas participaram do debate, como os Deputados Edmilson 
Rodrigues, vinculado ao Partido Socialismo e Liberdade, e Coronel Chrisóstomo, 
do Partido Social Liberal. Também debateu o projeto o jurista e deputado Luiz 
Flávio Gomes, vinculado ao Partido Socialista Brasileiro. 
Considerando que houve parecer favorável em ambas as comissões, o 
projeto foi incluído em pauta para debate e julgamento pelo Plenário em 14 de 
agosto de 2019, obtendo aprovação por 325 votos a favor e 133 contra, havendo 
uma abstenção. Ou seja, cerca de 70% (setenta por cento) dos deputados 
opinaram favoravelmente ao projeto. 
Conforme artigo 66 da Constituição Federal, tendo em vista a aprovação 
do projeto de lei ordinária, foi encaminhado pelo Presidente da Mesa do 
Congresso Nacional Senador Davi Alcolumbre ao Presidente da República Jair 
Bolsonaro para sanção ou veto em 25 de setembro de 2019. 
 
2.4 Vetos presidenciais, superação dos vetos e promulgação 
No âmbito presidencial, houve veto parcial do projeto, sendo 
encaminhada a Mensagem nº 406 de 5 de setembro de 2019 pelo Presidente da 
República ao Presidente do Senado Federal contendo inteiro teor das partes 
vetadas. 
24 
 
 
 
Quando ao conteúdo, foram vetados os artigos 3º; 5º, inciso III; 9º; 11; 13, 
inciso III; 14; 15; 16; 17; 20, 22, §1º, inciso II; 26; 29; 30; 32; 34; 35; 38 e 43. Ou 
seja, trata-se de um veto parcial, porém substancial, notadamente considerando 
que pretendeu a rejeição de diversos tipos penais em sua totalidade. 
Dentre todas os vetos, destacam-se os seguintes: ao art. 9º, sob 
fundamento de que criminalizar a conduta do magistrado que “decreta medida 
de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses 
legais”, ao em vez de reprimir o abuso de autoridade, gera insegurança jurídica 
em razão das várias interpretações passíveis de serem atribuídas ao modelo 
incriminador. Ao art. 11, argumentando-se que o tipo penal “Executar a captura, 
prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante 
delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária” é também vago e dá origem 
a insegurança jurídica no trabalho dos agentes da segurança pública, violando, 
segundo o Presidente, também o princípio da proporcionalidade em razão da 
alta pena cominada, qual seja: “1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”. Ao inciso II 
do artigo 13, que reprime a conduta da autoridade (não necessariamente policial 
ou judicial) que constrange o preso ou detento, mediante violência ou grave 
ameaça, a produzir prova contra si mesmo ou terceiro, pois, segundo a 
autoridade máxima do Poder Executivo Federal, o artigo ignora que a doutrina e 
a jurisprudência nacionais admitem-se a flexibilização do nemo tenetur se 
detegere (vedação da autoacusação) nas hipóteses em que se exige do acusado 
uma cooperação meramente passiva na produção de provas contra si, como nos 
casos de submissão obrigatória a exame de identificação de perfil genético de 
condenados (Vide Lei nº 12.037/09). 
Outros dois importantes vetos ao projeto foram aqueles que alcançaram 
os artigos 17 e 30. O artigo 17 do projeto previa o crime de “submeter o preso ao 
uso de algemas quando não houver resistência à prisão ou ameaça a integridade 
física ou risco de fuga”; para o Chefe de Governo, houve violação do princípio 
material penal da intervenção mínima, afinal os parâmetros de responsabilização 
do agente público que utiliza algemas indevidamente já foram devidamente 
fixados pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante nº 11, súmula esta 
que previu a responsabilização civil, penal e administrativa e nulidade dos atos 
coercitivos quando o uso de algemas não fosse estritamente necessário para 
25 
 
 
 
proteger a integridade física ou amparar fundado receio de fuga. Já o artigo 30 
tipificava a condutade “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou 
administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”. 
Segundo o Presidente, o defeito do tipo penal estava no fato de que, nesta 
redação, poderia embaraçar o funcionamento dos sistemas de denúncia 
anônima dos órgãos da segurança pública, a exemplo do “disque-denúncia”, 
posto que o termo “sem justa causa” poderia, eventualmente, servir para 
fundamentar que não se poderia investigar fatos caso a origem da notícia de 
crime fosse uma denúncia anônima. 
Posteriormente ao veto parcial, o Congresso Nacional, em sessão 
conjunta (art. 66, §4º da Constituição Federal), o derrubou também parcialmente. 
Assim, de todos os vetos, prevaleceram as rejeições dos artigos 5º, inciso III, 11, 
14, 17, 22, §1º, inciso II, 26, 29, 34, 35, sendo promulgados os artigos 3º, 9º, 13 
(inciso III), 15, 16, 20, 30, 32, 38 e 43 pelo Presidente da República (artigo, 66, 
§ 5º da Constituição Federal) em 27 de setembro de 2019. 
Dos artigos que foram comentados, o art. 9º, que tratou de criminalizar a 
decretação da prisão preventiva manifestamente ilegal, prevaleceu em razão da 
derrubada do veto; o mesmo ocorreu com os artigos 13 e 30. Já as disposições 
sobre executar prisão em flagrante ilegal ou submeter preso a uso de algemas 
de maneira ilícita permaneceram vetados. 
O texto final foi (com promulgação das partes vetadas) publicado em 27 
de setembro de 2019, com 120 dias de vacatio legis, entrando em vigor no dia 
03 de janeiro de 2020, sexta-feira. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
26 
 
 
 
 
CAPÍTULO 3: REFLEXOS JURÍDICOS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE 
SEGUNDO A DOUTRINA NACIONAL. 
 
3.1 Do dolo específico e da dificuldade de caracterização dos crimes de 
abuso de autoridade: a lei é mais rigorosa na repressão dos abusos? 
É comum na história legislativa penal brasileira a promulgação de leis 
aumentando as penas de crime preexistentes, seja para acrescentar uma carga 
simbólica na atividade repressiva, seja para conter “surtos” esporádicos na 
prática de determinado crime, ou ainda, para corrigir uma proteção deficiente de 
determinados bens jurídicos. 
Navegando pelo Código Penal, por exemplo, vê-se que a Lei nº 13.142/15 
incluiu causa de aumento de pena no crime de Homicídio (previsto no art. 121) 
para que o quantum da repressão fosse aumentado de 6 a 20 anos para 12 a 30 
anos quando o homicídio fosse praticado contra autoridade cujas atribuições 
estão relacionadas à segurança pública. 
O mesmo ocorreu com as Leis nº 8.072/90 [que acrescentou pena no 
delito de extorsão mediante sequestro], nº 13.104/15 [que criou a modalidade 
qualificada “feminicídio”], nº 13.654/2018 [que criou causas de aumento e 
modalidades qualificadas relacionadas ao furto e ao roubo com substâncias 
explosivas], nº 13.964 [que criou causas de aumento de pena no delito roubo 
com arma de fogo de uso permitido, proibido e restrito] e, mais recentemente, a 
Lei nº 13.968/2019 [que modificou o art. 122 do Código Penal para acrescentar 
diversas causas de aumento no delito Induzimento, instigação ou auxílio a 
suicídio, incluindo também a automutilação]. 
Ou seja, aquele que acompanha as novidades legislativas se acostuma a 
noticiar diversos incrementos nas penas de crimes preexistentes. Não é comum 
que sejam diminuídas as penas privativas de liberdade ou que sejam criados 
maiores óbices à caracterização dos delitos anteriores. 
A Lei nº 13.869/19, de fato, alongou em demasia as penas. Se segundo o 
artigo 6º, §3º, “b” da antiga lei a pena era de 10 (dez) dias a 06 (seis) meses de 
detenção, a nova lei contém um tipo penal com pena mínima de 03 (três) meses 
27 
 
 
 
(em seu art. 43), e as demais são punidas, no mínimo, com 06 (seis) meses de 
reclusão. 
Todavia, é precipitado concluir que a lei atual é mais severa. 
Primeiro, porque embora a lei anterior previsse pena mínima de apenas 
10 (dez) dias, era posição dominante na jurisprudência que o agente que incidia 
em abuso respondia pelo crime em concurso material com eventual lesão 
corporal ou constrangimento ilegal praticado no mesmo contexto fático. Ou seja, 
àquela pena de 10 (dez) dias poderiam ser somados os 03 (três) meses da lesão 
corporal (art. 129 do Código Penal) ou do constrangimento ilegal (art. 146 do 
Código Penal). 
Em acréscimo, porque a legislação anterior estabelecia tipos penais 
abertos, sem definição. O artigo 3º, por exemplo, tipificava o “atentado à 
liberdade de locomoção” como abuso de autoridade. Essa amplitude, até mesmo 
criticável sob o aspecto da taxatividade, mas nunca declarada inconstitucional 
pelo Supremo Tribunal Federal, gerava maior liberdade ao julgador no 
enquadramento da conduta daquele do agente a quem era imputada a prática 
do abuso. Com a nova legislação, ainda que haja maior quantidade de tipos 
penais, esses são mais precisos no tocante aos verbos (submeter, constranger, 
impedir, decretar, etc.), o que, por via de consequência, resulta em menor 
possibilidade de punição. 
Por fim, a exigência de um elemento subjetivo específico, inexistente na 
legislação anterior, dificulta em demasia a caracterização atual do crime de 
abuso de autoridade. Quanto a esse aspecto, devido à sua grande importância, 
merece explanação mais detalhada em item específico. 
Ademais, sabe-se que, segundo a classificação doutrinária dos crimes, 
existem aqueles que são caracterizados pelo dolo genérico, e outros que exigem 
dolo específico. No dolo genérico, o agente comete o crime desde que pratique 
o verbo do tipo com a intenção (teoria da vontade) de praticá-lo, ou assumindo 
o risco (teoria do assentimento) de produzir o resultado previsto no próprio tipo. 
Já no dolo específico, não basta que o agente incida na conduta descrita no 
verbo do tipo; exige-se que ele pratique essa conduta com uma finalidade 
determinada, específica. 
28 
 
 
 
O artigo 1º, §1º da Nova Lei de Abuso de Autoridade preleciona que 
somente configura os crimes descritos na lei quando o agente o pratica com a 
finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, 
ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. 
Assim, o dolo específico se refere à finalidade específica da conduta do 
agente. Na lei em epígrafe, não basta praticar as condutas nela descritas, pois 
só haverá crime se o infrator o praticar para prejudicar outrem, beneficiar a si 
mesmo ou terceiro, por mero capricho, ou, ainda, por satisfação pessoal. 
Citando um exemplo, não basta que um Promotor de Justiça proceda à obtenção 
de prova por meio manifestamente ilícito (art. 25); só haverá abuso de autoridade 
se ele o fizer com alguma das intenções acima descritas. 
Essa exigência de um dolo específico, naturalmente, tornou mais difícil a 
configuração do crime de abuso de autoridade. Conforme mencionado, na 
legislação anterior bastava a prática das condutas descritas na Lei nº 4.898/65 
para que surgisse o abuso; o dolo era meramente genérico. 
O efeito jurídico do diploma, portanto, é a maior dificuldade de 
caracterização dos crimes. 
Essa dificuldade é criticada pela doutrina. Não pelo fato de se exigir o dolo 
específico. A crítica é direcionada à coerência da lei, pois se a justificativa inicial 
era criar uma lei mais rigorosa para punir com maior segurança os abusos 
praticados em investigações e instruções criminais, não há sentido em se exigir 
uma finalidade tão específica. 
Nessa linha de raciocínio, Segundo Gabriela Marques e Ivan Marques, 
Cristalina é a construção da lei para não funcionar, desde a 
escolha dos complexos elementos subjetivos que dependerão 
de prova produzida pelo Ministério Público, titular da ação penal 
pública para todos os tipos penais, até o preceito secundário, 
com penas baixas e de leve potencial ofensivo. 
(...) 
Convenhamos ser muito difícil comprovar tais intenções no 
plano concreto, pois existe a presunção de que os agentes 
públicossó podem fazer o que a lei determina (seus atos 
possuem fé pública). Junto com a dificuldade em comprovar os 
dolos específicos, há ainda as reais a boas intenções por trás de 
seus atos (segurança pública, fazer justiça ou busca pela 
verdade processual). A intenção que move o agente para a 
prática do ato habita o plano subjetivo, sendo de complexa 
comprovação. 
29 
 
 
 
 
Em idêntico sentido, afirma o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais: 
Entretanto, a óbvia dificuldade de comprovar esse elemento 
psíquico tende a excluir a dimensão subjetiva do fato e, portanto, 
a excluir o próprio tipo de injusto do crime de abuso de 
autoridade. (...) 
Os crimes de abuso de autoridade parecem constituir formas 
ilusórias de criminalização dos agentes do poder estatal, porque 
os princípios jurídicos aplicáveis são mecanismos de proteção 
da autoridade pública, formando um estranho direito penal do 
amigo. 
 
Por fim, conforme interpretação de Eduardo Luiz Santos Cabette, 
Na verdade, embora se tenha criticado a legislação como um 
imbróglio surgido em meio ao atingimento de uma casta 
privilegiada de criminosos de colarinho branco, visando à 
intimidação e engessamento das autoridades estatais, a 
verdade é que se essa intenção escusa existia (e tudo indica que 
sim), acabou se tornando uma espécie de “tiro no pé”, já que a 
comprovação desses elementos subjetivos específicos em todo 
caso concreto será bastante dificultosa, tornando quase inviável 
a responsabilização de autoridades pelos crimes da lei, salvo em 
casos gritantes. 
 
Por esses motivos, infere-se que há maior dificuldade no enquadramento 
dos atos de abuso de autoridade nos modelos estabelecidos nos tipos penais. 
Daí por ser equivocado afirmar meramente que a lei é mais “severa” do que a 
legislação anterior. 
Assim, ao comparar as Leis nº 13.869/19 e 4.898/65, o intérprete conclui 
que, a depender a situação concreta, uma ou outra é mais gravosa. 
Nessa comparação, e para encerrar o tema, é interessante construir uma 
relação entre a possibilidade de uma das leis ser mais gravosa ou branda com o 
conflito de leis no tempo. Essa comparação servirá para que se depreenda 
definitivamente que a Nova Lei de Abuso de Autoridade não é, necessariamente, 
mais severa que a lei anterior. 
Sem adentrar em explicações aprofundadas sobre a Teoria Geral do 
Direito Penal, sabe-se que vigora em âmbito criminal material a regra da 
irretroatividade (na forma do art. 1º do Código Penal), exigindo-se que a lei 
aplicável ao agente seja anterior ao delito praticado. 
30 
 
 
 
Essa regra, todavia, é excepcionada pelo art. 2º do próprio Código Penal, 
que estabelece a possibilidade de a lei penal mais branda ser aplicada aos fatos 
cometidos anteriormente à sua vigência. 
Assim, se um tipo penal é inteiramente revogado por outro de equivalente 
redação, ou contendo os mesmos elementos do tipo, resta ao intérprete saber, 
quando perguntado sobre qual lei será aplicada aos crimes praticados antes da 
vigência da nova lei, se esta, a mais nova, e mais grave ou mais branda. Se mais 
grave, prevalecerá a lei anterior (irretroatividade da lei penal maléfica e 
ultratividade da lei penal anterior). Se mais branda, prevalecerá a lei nova 
(retroatividade da lei penal benéfica). 
Quanto ao conflito havido entre as Leis de nº 13.869/19 e nº4.898/65, é 
possível que se verifique tanto a ultratividade da lei anterior, quanto a 
retroatividade da lei penal benéfica. 
Suponha-se a hipótese em que uma autoridade policial é acusada de ter, 
no ano de 2018, interrompido violentamente uma manifestação pública 
assegurada pelo direito de reunião (art. 5º, XVI da Constituição Federal). Sua 
conduta caracterizaria o delito previsto no art. 3º, “h” da Lei nº 4.898/65, em 
concurso material com eventual lesão corporal (art. 129 do Código Penal), mas 
com o advento da Lei nº 13.869/19, que revogou referido tipo penal, mas não 
reproduziu um tipo semelhante, ocorreria abolitio criminis, e, assim, a conduta 
da autoridade seria atípica. 
A ausência de punição também ocorreria caso uma autoridade, antes da 
vigência da nova lei, tivesse, por exemplo, decretado uma prisão 
manifestamente ilegal, mas sem qualquer finalidade de prejudicar outrem ou 
beneficiar a si mesmo ou a terceiro. Na lei anterior, que não exigia esse elemento 
subjetivo específico, restaria configurado o crime por atentado à liberdade de 
locomoção (art. 3º, a” da Lei nº 4.898/65) Como no ordenamento atual essa 
subjetividade é exigida, a conduta do agente, agora, seria atípica, razão pela 
qual a autoridade seria absolvida em eventual ação penal. 
Do contrário, caso uma autoridade judicial tivesse decretado a prisão 
preventiva de um réu antes da vigência da nova lei com o objetivo específico de 
prejudicá-lo, por ser este um desafeto de sua pessoa, prevaleceria a ultratividade 
da lei antiga, afinal esta estabelece uma pena de dez (10) dias a 06 (seis) meses 
31 
 
 
 
(art. 6º, §3º, “b”), enquanto a lei nova prevê uma pena de 01 (um) a 04 (quatro) 
anos, sendo, portanto, a lei antiga mais branda. 
Dessa maneira, resta demonstrado que a Nova Lei de Abuso de 
Autoridade é mais severa em alguns pontos, mas, após a explanação detalhada 
sobre o novo elemento subjetivo exigido para configuração dos crimes, pode-se 
afirmar que, em geral, pelas variadas situações em que se verificará a ausência 
desse dolo, ela é mais amena do que a legislação anterior. 
 
3.2 Crime de hermenêutica e liberdade de decidir: repercussões na atuação 
dos magistrados e dos membros do Ministério Público. 
O primeiro paralelo quanto ao cenário jurídico antes/depois da vigência da 
Lei nº 13.869/19 se refere à independência dos magistrados. Surge a questão 
em saber se a nova lei contém dispositivos que afetam a liberdade de decidir dos 
órgãos judiciais. Ou seja, levando-se em consideração o histórico da 
responsabilização do Estado, e tendo em vista que atualmente os atos 
praticados pelos agentes públicos podem ser responsabilizados pessoalmente 
(por via de regresso, na esfera administrativa, e diretamente, na esfera penal), a 
lei de abuso de autoridade objetivou limitar a ampla liberdade de decidir conferida 
aos magistrados ou a discricionariedade dos membros do Ministério Público na 
condução de investigações? 
Sobre essa temática, é preciso observar primeiramente que diversos 
posicionamentos envolveram a intensa e recente discussão a respeito do 
alcance e dos limites dos poderes outorgados aos membros do Ministério 
Público, da Segurança Pública e do Poder Judiciário na investigação (nos dois 
primeiros casos) e na colheita de provas com vistas à punição de infrações 
penais. 
Como símbolos do movimento de crescimento do poder político atribuído 
ao Estado para investigar e punir infrações penais, ressalta-se o debate acerca 
dos poderes investigatórios do Ministério Público, que recebeu pronunciamento 
vinculante do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 
493.727/MG, favorável às investigações ministeriais. Destaca-se, outrossim, a 
instauração da Operação Lava-Jato, capitaneada pelo Ministério Público Federal 
32 
 
 
 
e pela Polícia Federal e popularmente caracterizada como a maior operação de 
combate à corrupção já realizada. 
Menciona-se, sem prejuízo, a Resolução GPGJ nº 1.570 de 05 de março 
de 2010 do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que reformulou o 
Núcleo de Combate ao Crime Organizado e Atividades Ilícitas Especializadas, 
surgindo, em decorrência, o já aclamado Grupo de Atuação Especial de 
Combate ao Crime Organizado (GAECO). 
Por fim, imperioso salientar a promulgação das leis nº 12.850/13 (Lei de 
Combate ao Crime Organizado), que estabeleceu um rol de nada menos que 
oito técnicas especiais de investigação e obtenção de provas (vide art. 3º), e nº 
12.694/12, que dispôs sobre a criação do julgamento colegiado em primeiro grau 
de jurisdição. 
Ou seja,parece ser preocupação do legislador federal e das autoridades 
administrativas conferir aos membros do Ministério Público maior arcabouço 
para a condução de investigações. Assim, pergunta-se se a Nova Lei de Abuso 
de Autoridade, que, segundo interpretação de seu art. 1º, objetiva coibir a 
atuação dos agentes públicos que, no exercício da função ou a pretexto de 
exercê-las, abusem do poder que lhes tenha sido atribuído, estabelecendo 
diversos tipos penais essencialmente relacionados com a atividade investigativa 
e judiciária, fere esse poder atribuído ao Estado-Juiz e ao promotor da ação 
penal de movimentar a persecução penal com ampla liberdade. 
A esse respeito, já se pode asseverar que a redação legal, sob o aspecto 
puramente jurídico, não conduz à criminalização das interpretações judiciais. 
Isso porque, previu a lei (art. 1º, §2º) que a mera divergência na interpretação de 
lei ou avaliação de provas e fatos não constitui abuso de autoridade. Nesse 
sentido, se num processo penal em que se apura a prática de crime comum de 
competência dos Juízes dos Estados, caso o magistrado atuante na 1ª instância 
proceda à condenação do réu por considerar que houve substrato probatório 
suficiente à procedência da pretensão punitiva, não será ele punido pelo fato de 
ter sido a condenação revista por julgamento proclamado por órgão revisor, seja 
na 2ª instância de jurisdição, seja nas instâncias extraordinárias. 
33 
 
 
 
Esse último dispositivo é de suma relevância e dele já se pode extrair que, 
juridicamente, não houve qualquer mudança legislativa quanto à autonomia e à 
independência dos magistrados, que ficam vinculados, evidentemente, à 
fundamentação de suas decisões judiciais, que exige que seus entendimento e 
avaliações sejam racional e concretamente fundamentados, ideia que decorrer 
do princípio processual da publicidade (vide art. 93, inciso IX da Constituição 
Federal e art. 489, §1º do Código de Processual Civil.). 
A não criminalização das divergências hermenêuticas ganha também 
relevo se forem considerados os dados da pesquisa realizada pela Associação 
dos Magistrados Brasileiros em novembro de 2018, que comprovou que 52% 
dos magistrados de primeira instância entendem que “deveriam poder decidir 
sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes 
vinculantes”, no que resulta dizer que para parcela significativa da magistratura 
entendem que a livre interpretação da lei é fator relevante para o exercício da 
atividade jurisdicional. 
Para refinar o tópico, é interessante notar que, conforme será comentado 
mais detalhadamente, os delitos de abuso de autoridade são puníveis apenas a 
título de dolo, e que a possibilidade de responsabilização dos magistrados por 
atos dolosos não é novidade, encontrando previsão no art. 49 da Lei 
Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura) e no art. 143 do Código 
de Processo Civil, ambos tratando, todavia, da responsabilidade civil. 
Embora não tenha havido mudanças jurídicas sobre a possibilidade de o 
magistrado realizar a livre interpretação da lei, diversos juristas alegam que a 
abstração e a dubiedade de alguns elementos normativos contidos nos tipos 
penais de seus textos podem, faticamente, resultar em uma criminalização da 
interpretação judicial. 
O argumento é, portanto, substancialmente diferente: não se trata de falar 
que a lei instituiu um mecanismo inconstitucional de punição de autoridades 
judiciais, mas sim, afirmar que, da forma como está escrita, poderá a redação 
sucumbir às circunstâncias políticas, podendo ser a lei utilizada para constranger 
ou intimidar os juízes. 
34 
 
 
 
A respeito desse ponto, logo em 28 de setembro de 2019, ou seja, dois 
dias após a publicação da lei, a Associação dos Magistrados Brasileiros ajuizou 
a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.236, afirmando, dentre outros 
fundamentos, que: 
A possibilidade, porém, de que por meio de provas indiciárias -- 
válidas no processo penal -- vir um magistrado a ter sua conduta 
qualificada como criminosa, sob a pecha de que teria agido “com 
a finalidade específica de prejudicar outrem”, ou “de beneficiar a 
si mesmo ou terceiro” ou ainda “por mero capricho ou satisfação 
pessoal” torna o exercício da jurisdição uma atividade de risco 
inaceitável em um Estado Democrático de Direito. 
(...) 
Da verificação dessa violação em todos os tipos decorrerá, 
igualmente, a violação do princípio da segurança jurídica (CF, 
art. 5º, caput), do ponto de vista subjetivo, relacionado ao 
princípio da confiança legítima como corolário da expectativa 
dos magistrados quanto à garantia da imunidade funcional 
concretizada no art. 41 da LOMAN. 
 
A ADI de nº 6.239, por sua vez, foi confeccionada pela Associação dos 
Juízes Federais do Brasil (AJUFE), que suscita argumentos semelhantes aos da 
ADI nº 6.236, afirmando, em síntese, que o diploma normativo contém tipos 
penais que podem gerar a criminalização da atuação dos magistrados federais 
no exercício regular de suas funções. 
Até o mês de junho de 2021, o mérito da referida impugnação ainda não 
foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. 
Da mesma maneira, a Associação Nacional dos Membros do Ministério 
Público (Conamp), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho 
(ANPT) e a Associação dos Procuradores da República (ANPR) ajuizaram em 
conjunto, em 09 de outubro de 2019, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 
6.238, alegando, em suma, que os termos utilizados na Lei de Abuso de 
Autoridade são vagos, imprecisos e indeterminados, podendo resultar em 
criminalização das atividades relacionadas à investigação penal. São exemplos 
de termos criticados as expressões “capricho pessoal” (art. 1º, §1º) “meio 
manifestamente ilícito” (art. 25) “sem justa causa fundamentada” (art. 30) e 
“estender injustificadamente” (art. 31). 
35 
 
 
 
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em seu sítio eletrônico 
institucional, também manifestou repúdio à novidade legislativa. Para o Parquet 
fluminense, 
A pretexto de punir eventuais abusos, o projeto restringe a 
autoridade e prejudica a atuação independente do Ministério 
Público brasileiro, do Poder Judiciário e dos agentes policiais, se 
opondo ao trabalho de combate à corrupção, às organizações 
criminosas e a outros crimes, uma vez que torna promotores, 
procuradores e juízes vulneráveis a processos e outras 
penalizações pelo exercício legítimo de suas atribuições. 
 
O órgão institucional acrescenta outros argumentos, criticando o fato de a 
lei ter sido aprovada em regime urgência e levantando provocações a respeito 
da origem da proposição, suscitando injunções como “A quem interessa 
amordaçar Procuradores e Promotores de Justiça?” ou “A quem interessa 
restringir a autoridade do Ministério Público?”. 
O Ministério Público Federal, em nota pública divulgada em 15 de agosto 
de 2019, argumenta que: 
Como foi proposto, o PL levará ao enfraquecimento das 
autoridades dedicadas à fiscalização, à investigação e à 
persecução de atos ilícitos e na defesa de direitos fundamentais, 
ferindo a independência dos poderes e permitindo a 
criminalização de suas funções essenciais. 
 
Com base nesse medo, e ainda no período de vacatio legis da Lei, a 
magistrada Nádia de Mello Ladosky, da 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito 
Federal, em sede de audiência de custódia, concedeu liberdade provisória a 
acusado por tráfico de drogas argumentando que o art. 9º da referida norma é 
aberto no que diz respeito ao que seria “manifestamente descabível”, e, portanto, 
a regra será a concessão de liberdade provisória até que os contornos do 
cabimento da prisão preventiva sejam especificamente definidos pelos tribunais 
superiores.1 
A propósito, essa estrutura de argumentação não vem sendo utilizada 
apenas por membros da magistratura e do Ministério Público. Na Ação Direta de 
Inconstitucionalidade nº 6.234, a ajuizada pela AssociaçãoNacional dos 
Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal, afirma-se que a 
 
1 Processo nº 2019.01.1.016499-2/DF 
36 
 
 
 
Lei nº 13.869/19 afeta o livre exercício das atividades relacionadas à fiscalização 
de tributos, podendo obstar a regular fiscalização por parte dos servidores. 
Destaca-se que a ADI nº 6.234 foi extinta liminarmente por ilegitimidade 
ativa da referida associação, afinal, segundo o Ministro Relator Celso de Mello, 
à ANAFISCO careceria pertinência subjetiva, pois só representava uma parte da 
categoria dos Auditores Fiscais. 
Evidentemente que há posições em contrário em relação a essa última 
tese. Para diversos grupos, especialmente no âmbito do Poder Legislativo, a 
nova lei terá o efeito positivo ao coibir arbitrariedades, sendo as impugnações 
por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público revestidas de parcialidade. 
Nesse sentido, o deputado federal Delfim Netto explana que: 
Em corpos diferenciados do funcionalismo público emerge, 
naturalmente, um corporativismo construído pelo elitismo do seu 
‘espírito de corpo’. Trata-se, de fato, de um anel protetor do bom 
e do mau uso que seus membros podem fazer de suas 
prerrogativas. Um exemplo disso é a que o País assiste agora, 
perplexo: a reação à lei que combate os possíveis abusos de 
autoridade nos Três Poderes da República. 
 
 Registre-se interessante reflexão de Lênio Luiz Streck, para quem o 
medo da nova lei tem relação com a própria desconfiança nas funções públicas: 
Assusta por quê? Simples: Porque, ao contrário de outros países 
avançados, aqui cada juiz interpreta a lei ao seu modo. E nisso 
é que mora o perigo. Isto é, os juízes sabem do que são capazes 
interpretando as leis. Os membros do ministério público também 
sabem. E isso lhes causa medo. 
 
Ou seja, conclui-se haver insatisfação de parcela significativa dos 
membros do Ministério Público e da magistratura com a novidade legislativa, 
pois, segundo eles, a atividade de investigação e de instrução criminal já 
naturalmente envolve 
 
3.3 Reflexos na atuação da advocacia: o novo cenário de criminalização 
das violações das prerrogativas. 
A advocacia foi elencada pela Constituição Federal como função 
essencial à justiça (art. 133). Daí porque são conferidas diversas prerrogativas 
pelos arts. 7º e 8º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos 
37 
 
 
 
Advogados do Brasil) aos advogados. Além disso, o art. 6º da mesma lei 
preleciona que não há qualquer hierarquia entre essas autoridades e os 
advogados. 
Todavia, é comum que na classe da advocacia se perceba a insatisfação 
de muitos profissionais com o tratamento dispensado à figura do advogado pelas 
autoridades da persecução penal, especialmente pelos membros da segurança 
pública, do Ministério Público e da magistratura. 
Dentre as queixas comuns, destaca-se o frequente protesto contra a 
negativa de autoridades públicas em franquear ao advogado a consulta a autos 
de procedimentos investigativos e a provas já colhidas em investigações, o que, 
inclusive, gerou a edição da Súmula Vinculante nº 14 por parte do Supremo 
Tribunal Federal e a promulgação da Lei nº 13.245/2016. 
Como exemplo de casos envolvendo violações de prerrogativas, cite-se 
aquele ocorrido em 11 de setembro de 2018 no 3º Juizado Especial Cível de 
Duque de Caxias, em que a advogada Valéria dos Santos foi algemada em plena 
audiência pela juíza leiga Ethel de Vasconcelos ao se recusar a aceitar que a 
sessão havia terminado sem que pudesse apresentar sua contestação. O fato 
gerou representação junto ao Conselho Nacional de Justiça por parte da OAB 
(documento elaborado por Luciano Bandeira, à época presidente da Comissão 
de Prerrogativas da OAB/RJ), além de desagravo (em relação à advogada) por 
parte do presidenta da OAB Cláudio Lamachia, que fez discurso no dia 17 de 
setembro do mesmo ano contra os abusos cometidos contra os advogados. 
Mais recentemente, tem repercutido o caso da prisão do ativista José 
Vargas Sobrinho Junior, supostamente preso pelo desaparecimento de Cícero 
José Rodrigues de Souza, que era candidato a vereador da cidade de Redenção 
(PA). No caso, a defesa técnica afirma que o Ministério Público ocultou provas 
de inocência do acusado, procedeu à instauração de investigação mesmo 
sabendo da inocência desta, e, por fim, obstou o acesso da defesa técnica aos 
autos da interceptação. 
Daí a importância de se indagar se a Lei de Abuso de Autoridade instituiu 
um novo mecanismo de defesa aos advogados para proteger suas prerrogativas. 
Ou seja, qual foi o efeito da nova lei na defesa das prerrogativas dos advogados? 
38 
 
 
 
Houve enfraquecimento ou enrijecimento das regras de controle do poder 
estatal? 
Quanto a esse tópico, são três os artigos que tratam da temática (20, 32 
e 43). 
A título de curiosidade, observa-se que os artigos 20, 32 e 43, 
relacionados com as prerrogativas dos advogados, foram todos vetados pela 
Presidência da República por ocasião do trâmite legislativo, sendo os vetos 
superados pelo Congresso Nacional. 
Quanto ao art. 20, embora já tenha sido feita a ressalva quanto à exigência 
de elemento subjetivo específico, que dificulta em demasia a caracterização do 
abuso de autoridade, pode-se afirmar que essa regra representa uma efetiva 
defesa das prerrogativas do advogado. 
O referido artigo criminaliza a conduta do agente que impede, sem justa 
causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com o seu advogado, havendo 
um tipo equiparado que reprime aquele que impede o preso, o réu solto ou o 
investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou 
defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu 
lado e com ele comunicar-se durante a audiência. 
Esse artigo tem ainda relação direta com a prerrogativa prevista no art. 
7º, XXI do Estatuto da Advocacia, que, importante observar, foi acrescentada 
pela justamente pela Lei nº 13.245/2016, mencionada acima como um diploma 
normativo intimamente relacionado com a coibição dos excessos praticados por 
autoridades públicas que negavam o acompanhamento do advogado aos atos 
de investigação. 
Evidentemente que o artigo 20 do novo diploma não instituiu o direito a 
sentar-se próximo ao defensor ou entrevistar-se com ele. O artigo 185 do Código 
de Processo Penal, desde a redação dada pela Lei nº 10.792/03, conferia, 
durante o interrogatório, o direito do acusado de ser inquirido na presença do 
defensor. Além disso, a presença do defensor é consequência do próprio direito 
à defesa técnica, consectário lógico do direito individual à ampla defesa (art. 5º, 
LV da Constituição Federal). 
Todavia, o que se pretendeu com a inovação legislativa foi elevar ao 
status de infração penal a inobservância do respeito a uma das facetas da ampla 
39 
 
 
 
defesa. Ou seja, elevou-se a proteção ao bem jurídico “direito à defesa”, 
conduzindo-o a patamares suscetíveis de provocar a mão fragmentária do 
Direito Penal, daí porque é correto afirmar que houve recrudescimento da 
proteção e efeito jurídico relevante. 
Insta observar que o impedimento da reunião entre advogado e cliente 
fugia à tipificação da Lei nº 4.898/65: não havia dispositivo semelhante, e não se 
tinha notícias da aplicação do art. 3º, “j” do diploma para a referida hipótese. Em 
suma, houve verdadeira inovação legislativa conferido maior cobertura à ampla 
defesa. 
Sobre o artigo 32, que tipifica a conduta de negar ao defensor ou ao 
acusado o acesso a procedimentos investigativos, pode-se afirmar 
didaticamente que se trata de uma “criminalização da desobediência à Súmula 
Vinculante nº 14”. 
O artigo amealha elementos objetivos e normativos com maior amplitude 
do que a Súmula Vinculante nº 14. Esta mencionava o acesso apenas a 
procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia 
judiciária, usualmente a Polícia Federal e a

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