Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – SANTA RITA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – DCJ CURSO DE DIREITO DISCIPLINA: Direito dos Grupos Socialmente Vulneráveis PROFESSORA: Gilmara Joane de Medeiros Aline Duarte Barbosa dos Santos Gregoriev Aldano de França Fernandes Laryssa Sherydha Marinho Almeida Gomes Marcelo de Souza Dionízio Priscila Varela de Aquino Albuquerque RESENHA CRÍTICA: QUARTO DE DESPEJO DE CAROLINA MARIA DE JESUS E OS DIREITOS DAS MULHERES O livro Quarto de Despejo foi o maior sucesso da escritora Carolina Maria de Jesus, foi lançado pela primeira vez em 1960 e teve mais de 30 mil exemplares vendidos apenas nesta primeira edição. O livro foi traduzido para treze idiomas e distribuído em mais de quarenta países, sendo uma obra em formato de diário pessoal onde a autora narra em primeira pessoa seu cotidiano. Na obra, Carolina utiliza uma linguagem coloquial, mantendo assim sua autenticidade e incorporando uma licença poética. Após Quarto de despejo, a escritora publicou Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1982) e Antologia pessoal (1997) — estes dois últimos livros foram publicados postumamente.1 1 https://www.historiasemmim.com.br/2020/02/04/resenha-quarto-de-despejo/ Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe-solo, moradora da periferia e catadora de papéis, era natural de Minas Gerais e mudou-se para São Paulo em 1947, época em que a urbanização desordenada estava em ascensão, resultando na formação de favelas. Nessa época, a autora iniciou a prática de escrever diários sobre sua vida e experiências nos cadernos que encontrava, onde retratou vividamente a vida na favela, incluindo suas características únicas e desafiadoras.2 Morando com seus três filhos (João José, José Carlos e Vera Eunice) em São Paulo, na favela de Canindé, Carolina destacou a miséria e a marginalização que enfrentava no contexto de uma das maiores e mais desiguais metrópoles industriais do Brasil. Devido a pouca escolaridade, várias editoras, inclusive editoras internacionais, se recusaram a publicar seus manuscritos. Em 1958, o jornalista Audálio Dantas descobriu os manuscritos da autora enquanto fazia uma reportagem na favela e se tornou o responsável por publicar matérias com trechos dos diários da Carolina na Folha da Noite, em 1958, e na revista O Cruzeiro, em 1959. Foi o próprio jornalista quem leu os diários e trabalhou na edição do livro, optando por manter a forma de escrita da autora, mesmo quando contrariava as normas ortográficas e gramaticais da época, ajustando apenas o necessário à compreensão do texto. Assim, é possível ver maior veracidade nos escritos e conhecer um pouco da identidade da escritora.3 O livro retrata acontecimentos de julho de 1955 e do período entre maio de 1958 e 1° de janeiro de 1960 e segue o formato de um diário, dividido por datas, cada um com suas características únicas, evitando repetições exceto em relação à sua ocupação como catadora de papéis. Essa abordagem singular, incomum em outras obras renomadas da literatura brasileira, é um dos aspectos que mais cativa durante a leitura. A escrita informal e coloquial de Carolina Maria de Jesus, mantendo-se fiel à sua própria voz, cria uma conexão íntima com o leitor, imergindo-os em seu mundo. A obra, também conhecida como "Diário de uma Favelada", tornou-se atemporal, refletindo sobre questões políticas e sociais do Brasil. No contexto do livro, a fome emerge como um ponto crucial e impactante, afetando não apenas o corpo de Carolina, mas também sua moral e sua saúde mental. Em diversos trechos, ela descreve a fome como uma das formas mais brutais e desumanas de expressão social. A necessidade de 2 https://www.portugues.com.br/literatura/carolina-maria-de-jesus.html 3 https://medium.com/@leticiacaned0/resenha-cr%C3%ADtica-quarto-de-despejo-de-carolina-maria-de- jesus-7d3ee7df734d procurar alimentos nos restos jogados no lixo para si e para seus filhos quando não conseguia encontrar materiais recicláveis para sustentá-los mostra a luta constante da catadora contra a fome. Carolina é obrigada a buscar algo menos deteriorado e podre para enganar a sensação de vazio no estômago, evidenciando a angústia e a desesperança causadas por essa privação básica. Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. (...) A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. (...) Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: — Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! (JESUS, 2014, p. 53). Carolina Maria de Jesus expressa de maneira pontual e intensa a experiência da fome ao longo de sua obra, associando-a à cor amarela, como a bile vomitada quando o estômago está vazio, simbolizando a dor aguda e persistente que a acompanha. Essa metáfora visualiza o sofrimento físico e psicológico causado pela privação alimentar, tornando a fome uma das expressões mais impactantes da questão social abordada por Carolina. Embora não seja o único tema tratado, é aquele que ressoa com maior intensidade, tanto para ela quanto para o leitor, pela sua universalidade e brutalidade. A expressão da fome na obra é tão contundente que nos leva a refletir sobre a relevância de políticas públicas eficazes para combater a miséria e a insegurança alimentar. Lamentavelmente, a fome no Brasil continua sendo uma questão complexa. Apesar do país ser uma das maiores economias do mundo, a fome e a insegurança alimentar persistem, especialmente entre os pobres e desempregados. Políticas como o Programa Bolsa Família têm sido implementadas, mas a fome ainda é uma realidade em algumas regiões, agravada recentemente pela pandemia de COVID-19. Dessa forma, a luta contra a fome requer esforços contínuos e coordenados de diferentes setores da sociedade. Além da fome, que é uma das questões mais marcantes abordadas no livro, Carolina relata diversas situações do cotidiano dentro e fora da favela. Essa riqueza de perspectivas contribui para a perenidade da obra, tornando sua leitura essencial para compreender as mudanças nas expressões sociais, políticas, econômicas, raciais e culturais contemporâneas. Ao longo da narrativa, a escritora faz menção a figuras proeminentes da política brasileira da época, como Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e Jânio Quadros. Sua insatisfação em viver na favela do Canindé também transparece em suas palavras “Eu não estou descontente com a profissão eu exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela” (p. 18). Carolina também denuncia a violência que permeia seu cotidiano, narrando casos de conflitos familiares e vizinhos hostis que chegam ao extremo de lançar fezes em suas crianças. O livro retrata essas situações recorrentes, típicas de um diário, e expressa o anseio de Carolina em viver na cidade e escapar da dura realidade da favela, que ela compara a um "quarto de despejo". Na obra, Carolina Maria de Jesus aborda ainda a politicagem presente na relação entre políticos e favelados revela uma profunda compreensão das dinâmicas políticas e sociais que permeiam sua comunidade. A autora expõe de maneira clara e incisiva como os políticos muitas vezes exploram a vulnerabilidade dos moradores das favelas durante períodos eleitorais, fazendo promessas vazias que são esquecidas logo após as eleições. Carolina descreve como os políticos se aproximam da comunidade em busca de votos, prometendo melhoriase soluções para os problemas enfrentados pelos moradores, mas uma vez eleitos, ignoram completamente as necessidades reais da população favelada. A escritora destaca como essa prática é injusta e desumana, deixando o povo esquecido e marginalizado, sem acesso aos serviços básicos e infraestrutura adequada. Quando um politico diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo (JESUS, 2014, p. 33). As discussões trazidas por Carolina Maria de Jesus ao longo de sua obra abordam ainda uma ampla gama de temas para além da favelização descontrolada em São Paulo, incluindo questões raciais e de gênero e violência contra a mulher. Ao longo de Quarto de Despejo, a escritora expõe de forma contundente a naturalização da violência contra as mulheres e os estereótipos de gênero arraigados na sociedade. Ela descreve situações em que mulheres, especialmente as negras e pobres, são vítimas de abusos físicos e emocionais, muitas vezes aceitos como parte da ordem social estabelecida. Carolina destaca como essa violência é perpetuada pela cultura patriarcal, que normaliza a subjugação das mulheres e as coloca em situações de vulnerabilidade e desvantagem. Era 19 horas quando o senhor Alexandre começou a brigar com a sua esposa. Dizia que ela havia deixado seu relogio cair no chão e quebrar-se. Foi alterando a voz e começou a espancá-la. Ela pedia socorro. Eu não imprecionei, porque já estou acostumada com os espetáculos que ele representa. A Dona Rosa correu para socorrer. Em um minuto, a noticia circulou que um homem estava matando a mulher. Ele deu-lhe com um ferro na cabeça. O sangue jorrava (2014, p. 160). Essa cena retrata a naturalização da violência contra as mulheres e a falta de intervenção por parte da comunidade, evidenciando a necessidade urgente de mudança cultural e de políticas eficazes para proteger os direitos das mulheres. Quase meio século após a publicação da primeira edição de Quarto de Despejo, em um marco que assinala 46 anos, foi promulgada a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Essa legislação, batizada em homenagem a uma mulher que sobreviveu a anos de violência doméstica, representa um avanço fundamental na luta contra a violência de gênero no Brasil. A Lei nº 11.340/2006, estabelece medidas de proteção para mulheres em situação de violência doméstica e familiar, além de criar mecanismos para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres. A promulgação da Lei Maria da Penha foi um passo significativo na busca pela garantia dos direitos das mulheres no país. Além disso, Carolina aborda os desafios enfrentados por pessoas negras, em especial as mulheres, em uma sociedade onde o racismo estrutural impõe barreiras significativas ao seu progresso. Mesmo diante este cenário, a escritora expõe o orgulho que possui em sua identidade negra, destacando a sua valorização pessoal e a resistência contra este racismo estrutural. Em seus escritos, ela expressa uma forte consciência racial e uma rejeição às noções de superioridade branca, evidenciando a igualdade fundamental entre todos os seres humanos. Ao afirmar que: "O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? (...) A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém", Carolina desafia as narrativas de inferioridade atribuídas às pessoas negras. Dessa forma, ela argumenta que, na realidade, não há diferenças fundamentais entre brancos e negros em termos de necessidades humanas básicas, desmistificando assim as justificativas para a opressão racial. Para além disso, Carolina expressa sua admiração por sua própria herança e características físicas, afirmando: Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. E indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta (2014, p. 55). Essas passagens revelam não apenas o orgulho de Carolina em sua negritude, mas também sua rejeição aos padrões de beleza eurocêntricos que desvalorizam as características naturais dos cabelos e da pele negra. Sua afirmação de desejar sempre retornar como uma pessoa negra em possíveis reencarnações reflete seu profundo apreço por sua identidade racial e sua resistência contra a opressão sistêmica que tenta desvalorizá-la. Na contemporaneidade, e voltando nosso olhar para o âmbito legislativo, a Lei nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro- brasileira e africana nas escolas brasileiras, está em sintonia com a mensagem de Carolina Maria de Jesus. Essa legislação busca especificamente promover o reconhecimento e a valorização da contribuição dos povos africanos e afrodescendentes para a formação da sociedade brasileira, combatendo assim o racismo estrutural ao incentivar a desconstrução de estereótipos e a promoção da igualdade racial no país. Como uma mulher negra e pobre, Carolina enfrentou uma série de desafios enquanto criava seus três filhos, sem a presença de um parceiro ou apoio familiar significativo. Ao longo de seu diário, Carolina compartilha os altos e baixos de sua jornada como mãe solteira. Ela descreve as lutas diárias para garantir que seus filhos tivessem comida suficiente para comer e um teto sobre suas cabeças: “Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna.”, declara a autora. Além das dificuldades econômicas, Carolina também enfrentou desafios sociais e emocionais como mãe solo. A escritora narra os momentos de solidão e desespero, bem como os momentos de alegria e orgulho ao ver seus filhos crescerem apesar das adversidades. A história de Carolina Maria de Jesus como mãe solo ressoa até os dias de hoje, destacando a resiliência e a força das mulheres que enfrentam a maternidade sem o apoio de um parceiro. Sua narrativa oferece um retrato vívido e comovente das lutas e triunfos que acompanham essa jornada singular, ao mesmo tempo que destaca a importância de garantir os direitos e apoio adequado para as mães solteiras enfrentarem os desafios da vida moderna. Outra característica marcante da Carolina Maria de Jesus é sua profissão de catadora de papel, retratada como uma parte essencial de sua rotina diária na favela de Canindé. Carolina descreve a dura realidade de vasculhar as ruas em busca de papelão, jornais e outros materiais recicláveis para vender, visando garantir a sobrevivência própria e de seus três filhos. Sua narrativa oferece um vislumbre vívido da luta constante pela subsistência em meio à pobreza e à falta de oportunidades. Através das frases: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.” e “Ela perguntou-me se catar papel ganha dinheiro. Afirmei que sim.”, podemos perceber a dualidade de sentimentos da Carolina em relação à sua profissão de catadora de papel. Por um lado, ela reconhece a necessidade de realizar essa atividade árdua para garantir o sustento próprio e de seus filhos. Por outro lado, ela revela sua aversão à tarefa e sua busca por escapismo mental através da fantasia e do sonho. Essa frase ilustra a difícil realidade enfrentada por Carolina e sua tentativa de encontrar algum conforto ou alívio em meio às adversidades. Atualmente, medidas estão sendo implementadas no Brasil para ajudar os catadores de papel e promover a inclusão socioeconômica desses trabalhadores. Programas governamentais, cooperativase organizações não governamentais oferecem capacitação profissional, acesso a equipamentos de segurança e incentivos financeiros para os catadores, visando melhorar suas condições de trabalho e promover a reciclagem de resíduos, à exemplo da Cooperativa de Catadores de Reciclagem de Marcos Moura (COOREMM) em Santa Rita/PB, constituída por um grupo de catadores organizados que vivem exclusivamente da reciclagem. Iniciativas como esta, são fundamentais para proporcionar uma fonte de renda mais estável e digna aos catadores de papel, além de contribuir para a preservação do meio ambiente e a redução dos impactos ambientais causados pelo descarte inadequado de resíduos. Por fim, conclui-se que a obra de Carolina Maria de Jesus ressoa como um eco poderoso das lutas enfrentadas pelas mulheres, particularmente as mulheres negras e pobres, em uma sociedade que muitas vezes as marginaliza e as oprime. Ao longo de suas páginas, Carolina não apenas expõe as realidades cruéis da violência, da pobreza e da discriminação racial, mas também celebra o aspecto feminino de sua própria identidade. Como mãe solo e catadora de papel, Carolina personifica a resiliência e a determinação das mulheres que enfrentam desafios inimagináveis para garantir o bem-estar de suas famílias. Sua voz é uma lembrança contundente da força intrínseca das mulheres e de sua capacidade de superar as adversidades mais difíceis. Ademais, a história de Carolina destaca a importância da solidariedade entre as mulheres e da defesa de seus direitos fundamentais. Suas palavras ecoam como um chamado à ação, lembrando-nos da urgência de combater a violência de gênero, promover a igualdade salarial e garantir o acesso das mulheres à educação, saúde e oportunidades econômicas. Portanto, ao celebrarmos a vida e obra de Carolina Maria de Jesus, devemos nos comprometer a continuar sua luta pelos direitos das mulheres, reconhecendo e valorizando o aspecto feminino de nossa própria humanidade. Somente através da solidariedade e do empoderamento das mulheres podemos construir um mundo verdadeiramente igualitário e justo para todos. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. Disponível em: https://dpid.cidadaopg.sp.gov.br/pde/arquivos/1623677495235~Quarto%20de%20Desp ejo%20-%20Maria%20Carolina%20de%20Jesus.pdf.pdf. Acesso em: 09 abr. 2024.
Compartilhar