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1 BASES NEUROLÓGICAS DA PSICOSE E DA NEUROSE - VISÃO PSICANALÍTICA 1 SUMÁRIO NOSSA HISTÓRIA .................................................................................. 2 Introdução ................................................................................................ 3 Psicose e neurose: visão Psicanalítica ................................................ 5 A indeterminação freudiana da noção de neurose ............................. 18 Modelos metapsicológicos e variações narrativas ............................. 26 Adaptação, normatividade e fases do atendimento............................ 40 REFERÊNCIAS ..................................................................................... 44 2 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 Introdução O problema da relação do corpo com a formação de sintomas neuróticos constitui o ponto de partida e a própria base sobre a qual se erigiram as questões fundamentais da metapsicologia freudiana. A sintomatologia da histeria, como é apreendida nos textos iniciais de Freud, não deixa dúvidas a respeito da importância dessa relação. Freud descobriu que os conteúdos subjetivos da vida mental não são facilmente acessíveis à investigação científica. Forças poderosas trabalham para se oporem às tentativas de investigação de conteúdos privados da mente individual. Freud classificou estas forças – que se expressam clinicamente como vergonha, culpa, ansiedade e outros – sob o nome de "resistências". Essas dificuldades ocorrem pelo fato de que as determinantes causais inferidas dos dados observacionais primários (acontecimentos mentais inconscientes que subjazem os processos de pensamento conscientes) não são conscientes por definição. Ele experimentou várias técnicas para vencer tais resistências (por 4 exemplo: hipnotismo e técnica da pressão) e, com base nessas experiências, gradualmente desenvolveu a técnica psicanalítica definitiva da associação livre. Tanto Freud como Luria sempre insistiram que para descobrir a organização neurológica do aparelho mental humano como compreendemos na psicanálise é necessário, em primeiro lugar, dissecar a estrutura interna psicológica das várias mudanças na personalidade, na motivação e na emoção complexa. Assim, os múltiplos fatores subjacentes produzindo esses sintomas e síndromes podem ser identificados, e cada um correlacionado com sua "cena de ação" neuro-anatômica. Entretanto, devido às forças de resistência descritas, esses fatores não podem ser revelados pelas técnicas neuropsicológicas convencionais. Os testes psicométricos e técnicas de comportamento básicos, que os neuropsicólogos usam para acessar o estado mental dos pacientes neurológicos, foram destinados para a investigação das desordens das funções cognitivas de superfície. Para que possamos revelar a estrutura psicológica subjacente, profunda, das desordens da personalidade, motivação e emoção complexa que aflige o paciente neurológico, portanto, a técnica da associação livre deve ser introduzida dentro do método neuropsicológico de Luria. Este tem sido o método neuro-psicanalítico por excelência, que evita as correlações isomórficas da psicanálise com a neurociência, e evita o reducionismo que leva à anulação do que é fundamental no método psicanalítico e do significado mais profundo de seus conceitos. 5 Psicose e neurose: visão Psicanalítica A Psicopatologia Psicanalítica se caracteriza pela compreensão da dinâmica psíquica que fundamenta cada uma das três possíveis estruturas da personalidade e dos conflitos psíquicos decorrentes desta estruturação. O termo nosografia é utilizado para designar a classificação e descrição das doenças. No caso específico da nosografia psicanalítica, os quadros psicogênicos são classificados em neuroses, psicoses, perversões e afecções psicossomáticas (Laplanche e Pontalis, 2001). Freud considera que a personalidade já está bem formada no final do quinto ano de vida e que o desenvolvimento ulterior é essencialmente a elaboração dessa estrutura básica. O modelo psicanalítico propõe que inicialmente a criança não imagina que existam diferenças anatômicas e acredita que homens e mulheres têm anatomias semelhantes. Ao serem defrontadas com as diferenças anatômicas entre os sexos, as crianças criam as chamadas "teorias sexuais infantis", imaginando que as 6 meninas não têm pênis porque este órgão lhe foi arrancado (complexo de castração). As meninas veem-se incompletas (por causa da ausência e consequente inveja do pênis). Neste período surge o complexo de Édipo, no qual o menino passa a apresentar uma atração pela mãe e a se rivalizar com o pai, e na menina ocorre o inverso. A estrutura da personalidade se constitui a partir da solução dada pelo sujeito ao conflito advindo da vivência do Complexo de Édipo e da saída que encontra para lidar com a ansiedade intensa vivenciada frente à constatação da castração. No texto “neurose e psicose” (1925/2006), Freud aponta uma diferença básica entre neurose e psicose: Ao longo do texto, Freud afirma que a neurose se caracteriza pela recusa do ego em aceitar a poderosa pulsão do id, rejeitando a posição de mediador da satisfação pulsional. Ele opera a serviço do superego e da realidade (princípios morais), a partir do mecanismo do recalcamento. O material recalcado insiste em se fazer conhecido, logo, ele escolhe vias substitutas. O sintoma neurótico aparece, então, como sendo uma representação substitutiva. Em “ A Perda da realidade na Neurose e na Psicose”, Freud afirma que tanto na neurose, quanto na psicose existe uma perturbação em relação do sujeito com a realidade: 7 A patologia neurótica se caracteriza pelo recalque do desejo durante o Complexo de Édipo. A somatização de conversão histérica, por exemplo, se fundamenta na presença de um desejo sexual que não foi satisfeito pelas vias normais. O neurótico não tenta abrandar a castração: a castração existe, mas ele tenta fazer com que quem seja castrado seja o outro e não ele. É o outro que fica no lugar da falta. O neurótico está marcado pela castração, investindo grandes quantidades de energia corporal e psíquica para manter inconsciente este conhecimento. O mecanismo da repressão está presente nesta defesa. O sintoma neurótico aparece, então, como sendo uma representação substitutiva, resultado da formação de compromisso entre o ego e o id. Por exemplo, a somatização de conversão histérica se fundamenta na presença de um desejo sexual que não foi satisfeito pelas vias normais. Na patologia psicótica há uma rejeição da realidade e do Complexo de Édipo. Os delírios, alucinações e depressões são uma tentativa frustrada de dar sentido e lógica a uma visão de mundo particular, ocupando o lugar da fissura na relação do eu com o mundo. O sujeito cria uma nova realidade que é constituída de acordo com os impulsos desejosos do id. O ponto central da observação de Freud está na constatação de que, em ambas as estruturas, o mais importante não é a questão relativa à perda da realidade, mas sim os substitutos encontrados frente à castração. Na neurose, o substituto encontrado ocorre via mundo da fantasia; já na psicose, os substitutos são delírio e alucinação. Na patologia perversa o que ocorre é a recusa da Castração Edipiana. O perverso não aceita ser submetido às leis paternas e, em consequência, às leis e normas sociais. Ele não rejeita a realidade e nem recalca os seus desejos. Ele escolhe se manter excluído do Complexo de Édipo e da alteridade e passa a satisfazer sua libido sexual consigo mesmo (narcisismo). Em "Três ensaios sobre a sexualidade" (1905), Freud afirma que "a neurose é o negativo da perversão". Esta frase se refere ao fato de que os sintomas mórbidos do neurótico representam uma conversão das pulsões 8 sexuais que deveriam ser chamadas de perversas, se pudessem encontrar uma expressão em atos imaginários ou reais. As perversões atualizam, na realidade, modos de satisfação sexual recusados na neurose, mas ativamente presentes nelas, sob os disfarces dos sintomas (Kaufmann, 1996). Para se defender da castração, o perverso usa um mecanismo mais poderoso que a repressão (usada com frequência pelo neurótico) que é a recusa. Ele tentará provar o tempo todo que a castração não existe, ou que é ele quem a faz. A recusa é um mecanismo em que uma percepção é substituída por uma crença. Ela vem junto com uma cisão do ego em que parte deste usa a repressão e parte usa a recusa. A elaboração do objeto fetiche é uma formação de compromisso entre duas correntes psíquicas conflitantes: uma sinaliza a ausência do pênis na mãe, a outra lhe atribui imaginariamente o pênis que supostamente falta na formação do objeto fetiche. Enquanto a psicose e a neurose surgem como resultados do conflito intrapsíquico, a perversão se apresenta como uma renegação da castração. Ao recusar a castração, o perverso mantém a crença na onipotência da mãe, na onipotência do desejo, mantém- se acreditando em um atributo fálico onipresente e onipotente. A castração coloca em jogo a percepção de que há um mundo de gozo e desejo entre os pais do qual a criança está excluída. Nas atuações do perverso, há uma encenação da castração. O fetiche é o equivalente ao pênis da mãe; ocorre o uso de uma equação simbólica e não de um símbolo como o histérico é mais capaz de fazer, denunciando uma menor capacidade de simbolização do perverso perante o histérico. Diversos campos do saber têm tentado formular modelos explicativos para o surgimento dos distúrbios de conduta. Por muito tempo a sociologia propôs que jovens socialmente e economicamente desprivilegiados tendiam à criminalidade como forma de obterem sucesso. No entanto, essa teoria foi incapaz de sustentar-se, pois se pode observar frequentemente que a tendência 9 antissocial surge também entre pessoas com grande oferta de recursos financeiros e sociais. Quando estudamos os transtornos de personalidade a partir do referencial da psiquiatria, verificamos que os quadros descritos são apresentados em uma nosologia que independe do modelo estrutural proposto pela psicanálise, mas ainda assim podemos estabelecer correlatos com as três grandes categorias clínicas, que são a (1) neurose histeria e neurose obsessiva; (2) psicose paranoia, esquizofrenia, melancolia e hipocondria; (3) perversão. A partir do referencial psicanalítico, Fenichel, citado por Telles (1999), organizou os transtornos de personalidade em três categorias: Os decorrentes de uma conduta patológica frente ao id (frigidez e pseudoemotividade, defesas contra angústia, racionalização, idealização, traços anais, orais, fálicos, uretrais, castração, caráter fálico e genital); Os decorrentes de uma conduta patológica frente ao superego (defesas contra culpas, masoquismo moral, dom juanismo, falta aparente de sentimento de culpa, criminalidade e má identificação, atuação, neurose de destino); Os decorrentes de uma conduta patológica frente a objetos externos (fixações em etapas prévias do amor, inibições sociais, ciúmes, ambivalência, pseudo sexualidade). 10 Na patologia psicótica há uma rejeição da realidade e do Complexo de Édipo. Os delírios, alucinações e depressões são uma tentativa frustrada de dar sentido e lógica a uma visão de mundo particular, ocupando o lugar da fissura na relação do eu com o mundo. O sujeito cria uma nova realidade que é constituída de acordo com os impulsos desejosos do id. O ponto central da observação de Freud está na constatação de que, em ambas as estruturas, o mais importante não é a questão relativa à perda da realidade, mas sim os substitutos encontrados frente à castração. Na neurose, o substituto encontrado ocorre via mundo da fantasia; já na psicose, os substitutos são delírio e alucinação. A teoria freudiana, baseada no modelo da neurose e concebendo o psiquismo ao modo de um aparelho psíquico animado por pulsões, outorga ao complexo de Édipo e à sexualidade os eixos básicos da vida psíquica e, como consequência, dá ao pai um lugar central na estruturação da personalidade, nas formas e contornos do adoecer psíquico, além de estar na base da moral e da própria vida cultural. Segundo Campanário (2006), foi o trabalho de Lacan que permitiu o estabelecimento rigoroso e sistemático do conceito de estrutura em psicanálise, distinguindo neurose, psicose e perversão como estruturas clínicas. Na neurose estaria em jogo o recalque; na psicose, a forclusão e na perversão, a recusa da lei interditora do pai. Lacan considera a recusa/rejeição da realidade o mecanismo específico da estrutura psicótica, nomeado por ele como a foraclusão do nome-do-pai. A partir da análise de Freud sobre as formações inconscientes (lapsos, sonhos e jogos de palavras), Lacan formulou sua hipótese central de que o inconsciente é estruturado como linguagem. A capacidade humana de atribuir significação ocorre a partir do momento em que o sujeito adentra a função simbólica e esta inserção ocorre por intermédio da vivência do Complexo de Édipo. 11 Durante a estruturação da personalidade, a criança inicialmente não está inserida no simbólico e seu contato com o mundo ocorre por intermédio da mãe, que identifica o filho como objeto de seu desejo e o sujeita às suas escolhas. Existe uma vivência simbiótica, em que a criança tem a experiência de ser cuidada por completo e atendida em suas necessidades por aquela que lhe possibilita uma experiência de completude e onipotência. Este significante inicial atribuído pela mãe vai marcar a identidade do sujeito e seu desenvolvimento mental. No primeiro tempo lógico o Outro é a mãe, pois o agente materno toma o bebê em uma posição de desejante e, ao cuidar dele, faz de si mesma o instrumento da vivência de satisfação do bebê. Este significante inicial atribuído pela mãe vai marcar a identidade do sujeito e seu desenvolvimento mental. O segundo tempo lógico ocorre com a entrada de um terceiro que introduz a lei da interdição, mostrando à criança a existência do Outro e marcando simbolicamente o fim da ilusória relação de completude e onipotência com a mãe. Nesse momento aparece a instância paterna como metáfora do pai o nome-do-pai. Esta instância é marcada pelo discurso da mãe, demonstrando para a criança que o desejo da mãe se encontra em outro lugar e que ela também é submetida a uma lei. A instância paterna não precisa estar associada a um pai concreto, mas a um discurso ou situação que seja capaz de demonstrar simbolicamente à criança que existem outros objetos a serem desejados. O nome-do-pai representa tudo o que marca para a criança a ausência da mãe. Por exemplo, quando a mãe precisa deixar a criança para ir trabalhar. Deste modo, enquanto no primeiro tempo lógico o Outro é a mãe, a instauração do Nome-do-Pai é o que vem barrar o Outro onipotente e absoluto, inaugurando a entrada da criança na ordem simbólica. Por fim, podemos falar da entrada em um terceiro tempo lógico, em que ocorre a dissolução do complexo de Édipo, pois nessa etapa do desenvolvimento a criança não considera mais o pai como seu rival, e sim, como aquele que 12 possui o objeto de desejo de sua mãe, o falo. Essa é a fase das identificações, que acontecem de maneira diferente de acordo com a escolha de objeto da criança. Quando Lacan afirma que a foraclusão é o mecanismo da psicose, o que devemos compreender é que a rejeição do nome-do-pai implica que o sujeito não foi submetido à castração simbólica do processo edipiano. Ou seja, o sujeito psicótico é aquele que durante a vivência do Complexo de Édipo não sofreu a castração simbólica e, portanto, não desenvolveu a capacidade de simbolizar. A não inscrição do significante no Outro resulta nos distúrbios da linguagem e nas alucinações, que marcam a psicose. Na patologia perversa o que ocorre é a recusa da Castração Edipiana. O perverso não aceita ser submetido às leis paternas e, em consequência, às leis e normas sociais. Ele não rejeita a realidade e nem recalca os seus desejos. Ele escolhe se manter excluído do Complexo de Édipo e da alteridade e passa a satisfazer sua libido sexual consigo mesmo (narcisismo). Em "Três ensaios sobre a sexualidade" (1905), Freud afirma que "a neurose é o negativo da perversão". Esta frase se refere ao fato de que os sintomas mórbidos do neurótico representam uma conversão das pulsões sexuais que deveriam ser chamadas de perversas, se pudessem encontrar uma expressão em atos imaginários ou reais. As perversões atualizam, na realidade, modos de satisfação sexual recusados na neurose, mas ativamente presentes nelas, sob os disfarces dos sintomas (Kaufmann, 1996). Para se defender da castração, o perverso usa um mecanismo mais poderoso que a repressão (usada com frequência pelo neurótico) que é a recusa. Ele tentará provar o tempo todo que a castração não existe, ou que é ele quem a faz. A recusa é um mecanismo em que uma percepção é substituída por uma crença. Ela vem junto com uma cisão do ego em que parte deste usa a repressão e parte usa a recusa. 13 A elaboração do objeto fetiche é uma formação de compromisso entre duas correntes psíquicas conflitantes: uma sinaliza a ausência do pênis na mãe, a outra lhe atribui imaginariamente o pênis que supostamente falta na formação do objeto fetiche. Enquanto a psicose e a neurose surgem como resultados do conflito intrapsíquico, a perversão se apresenta como uma renegação da castração. Ao recusar a castração, o perverso mantém a crença na onipotência da mãe, na onipotência do desejo, mantém- se acreditando em um atributo fálico onipresente e onipotente. A castração coloca em jogo a percepção de que há um mundo de gozo e desejo entre os pais do qual a criança está excluída. Nas atuações do perverso, há uma encenação da castração. O fetiche é o equivalente ao pênis da mãe; ocorre o uso de uma equação simbólica e não de um símbolo como o histérico é mais capaz de fazer, denunciando uma menor capacidade de simbolização do perverso perante o histérico. Assim, os mecanismos utilizados por cada uma das estruturas clínicas na Psicanálise são: Neurose mecanismo: repressão da castração. No processo de solução do conflito edipiano, o sujeito rejeitou o conhecimento da existência da castração e, para lidar com a angústia, recalcou este conteúdo. No caso da repressão, o inconsciente sabe da realidade e a consciência, não. A representação reprimida encontra-se no inconsciente e vem à consciência por meio dos sintomas, enquanto substitutos simbólicos. Psicose mecanismo: negação da castração. O psicótico se estrutura afirmando que a castração não existiu e para tanto cria outra realidade, que transparece por meio dos delírios e alucinações. Perversão mecanismo: renegação da castração. O perverso substitui a crença da falta do falo na mãe pela convicção de que esta o possui ou mesmo de que ele é o próprio falo que falta à mãe. Neste mecanismo, a presença de uma crença implica a renegação da outra. A formação de compromisso se expressa na ritualização da castração através do objeto fetiche. A teoria freudiana, baseada no modelo da neurose e concebendo o psiquismo ao modo de um aparelho psíquico animado por pulsões, outorga ao 14 complexo de Édipo e à sexualidade os eixos básicos da vida psíquica e, como consequência, dá ao pai um lugar central na estruturação da personalidade, nas formas e contornos do adoecer psíquico, além de estar na base da moral e da própria vida cultural. E quanto ao autismo? Estaria situado em qual estrutura clínica? Considerando as estruturas clínicas inicialmente propostas pela teoria da libido freudiana, podemos diferenciar dois polos dentro da estrutura psicótica: a esquizofrenia e a paranoia. Contudo, nenhum desses polos contempla claramente o autismo. Existe no interior do campo psicanalítico uma discussão acirrada sobre o lugar do autismo junto às estruturas clínicas. O autismo seria uma faceta da psicose ou outra estrutura? Sabemos que na psicose o mecanismo presente é o da foraclusão do nome-do-pai, ou seja, a negação da castração. Mas quanto ao autismo? Proeminentes psicanalistas que vêm desenvolvendo sua prática junto à clínica do autismo propõem diversas possibilidades psicodinâmicas para explicar a constituição psíquica nos quadros autistas. Autores como Melanie Klein e Jacques Lacan consideram o autismo como uma patologia resultante da estrutura psicótica; enquanto outros psicanalistas como Alfredo Jerusalinsky, Marie-Christine Laznik e Robert Lefort referem-se ao autismo como uma construção fora dos padrões das estruturas clínicas estabelecidas pela psicanálise (Campanário, 2006). Jerusalinsky afirma não ser possível identificar a psicose e o autismo em uma mesma estrutura, pois, na psicose, está presente o mecanismo da forclusão, ao passo que no autismo trata-se da exclusão do campo significante (Campanário, 2006). Conforme vimos, no mecanismo da foraclusão ocorre a rejeição do nome- do-pai, implicando na não submissão do sujeito à castração simbólica do processo edipiano. A não inscrição do significante no Outro resulta nos distúrbios da linguagem e nas alucinações, que marcam a psicose. 15 No caso da exclusão o sujeito não chegou a ser inscrito no significante. O autista seria o sujeito que, por motivos variados, estaria impossibilitado de ser introduzido no campo da linguagem. A falta de alucinações no autismo permite diferenciar psicodinamicamente este quadro da esquizofrenia e fundamenta o argumento de que estes os dois não podem fazer parte de uma mesma estrutura psíquica. Enquanto o autista não compreende o mundo que o rodeia e, para se defender, tende a se isolar dele, o psicótico cria uma compreensão delirante do mundo e espera que todos no mundo se comportem de acordo com seu imaginário. Para entendermos essa discussão, precisamos retomar alguns conceitos fundamentais da Psicanálise. Conforme estudamos, a teoria freudiana concebe que o aparelho psíquico é animado por pulsões e outorga ao complexo de Édipo e à sexualidade os eixos básicos da vida psíquica. A pulsão pode ser compreendida como uma energia potencial e constante, que advêm do próprio organismo e alimenta a psique, realizando a ligação entre o somático e o psíquico. Freud descreveu o trajeto pulsional em três tempos (Sieiro, 2013): Primeiro tempo - o bebê vai em busca de um objeto oral para apoderar-se dele, sendo este considerado um movimento ativo e que pode ser observado no encontro com o seio, com a mamadeira, entre outros. Segundo tempo - o bebê vai em busca de si mesmo e seu próprio corpo passa a ser o objeto. Esse movimento também ativo é nomeado como auto-erotismo e pode ser percebido quando o bebê chupa sua mão, seu dedo, a chupeta, etc.; Terceiro tempo - o bebê se faz objeto de um novo sujeito, ou seja, passa a sujeitar-se a outro. Esse movimento pode facilmente ser nomeado como passivo, mas se sujeitar, oferecer-se ao outro, também é um movimento ativo. Como exemplo dessas ações da criança em busca de fazer-se objeto temos: o ato da criança colocar o dedo na boca da mãe, o olhar da criança em busca do olhar da mãe, o balbuciar na presença do cuidador. 16 Segundo Sieiro (2013), a psicanalista Marie-Christine Laznik considera que o autismo resulta de uma falha de estruturação do aparelho psíquico por conta do fracasso do circuito pulsional, sobretudo no terceiro tempo, podendo levar à constituição de patologias diversas com déficits gravíssimos que fazem lembrar a oligofrenia. Quanto à discussão sobre o lugar do autismo entre as estruturas clínicas propostas pela psicanálise, Laznik afirma que o fracasso do circuito pulsional completo é um aspecto que favorece o diagnóstico diferencial entre psicose e autismo. Conforme vimos, a estruturação da personalidade ocorre a partir da solução dada pelo sujeito ao conflito decorrente da vivência do Complexo de Édipo. No caso da criança que virá a ser psicótica, a sua sujeição ao desejo do outro (mãe) ocorre normalmente, podendo se verificar isto através dos sinais que comprovam uma inserção no terceiro tempo do circuito pulsional. Assim, o desenvolvimento psicossexual ocorre normalmente, possibilitando a vivência do Complexo de Castração. Por esta razão, alguns autores afirmam que o autismo é uma quarta estrutura psíquica, elaborada sem a vivência do Complexo do Édipo; enquanto outros autores afirmam que sem a entrada na linguagem não existe a formação de uma estrutura, sendo o quadro autista uma patologia instalada antes da estruturação psíquica. O autismo representa a não instauração da relação simbólica fundamental e sem o simbólico não existe a subjetividade. No autista, tudo é real e o espaço virtual não existe. 17 Nesta perspectiva, a manifestação da síndrome autística está relacionada à não instauração das estruturas psíquicas, trazendo como consequência déficits no desenvolvimento do bebê (Sieiro, 2013). Vasconcelos (2009), afirma que, tendo em vista que o terceiro tempo do circuito pulsional está ausente nas crianças autistas, é fundamental identificar a presença deste terceiro tempo pulsional no bebê para que se possa fazer um diagnóstico precoce, antes que se instale a síndrome autística. Laznik identificou dois sinais clínicos que podem ser percebidos ainda no primeiro ano de vida da criança e permitem um diagnóstico precoce (Vasconcelos, 2009): 1. O não olhar entre a mãe e seu bebê, sobretudo se a mãe não percebe este fato. Este sinal permite pensar na hipótese de autismo, logo nos primeiros meses de vida. 2. O segundo e mais importante sinal consistiria na não instauração do circuito pulsional completo, quando o terceiro tempo do circuito pulsional não é alcançado. Estes sinais podem ser identificados precocemente se os pediatras estiverem atentos às interações entre bebê-mãe/cuidador durante as consultas no primeiro ano de vida da criança. A falha na instauração do circuito pulsional sinaliza importante impasse na relação mãe-bebê. Este impedimento tanto pode ocorrer devido a limitações orgânicas da própria criança, dificultando que o bebê seja responsivo aos cuidados da mãe; quanto pode ocorrer quando a mãe não consegue responder às investidas da criança, devido a um quadro de comprometimento emocional, tal qual a melancolia. Conforme vimos, o não-olhar entre a mãe/cuidador e o bebê constitui um dos principais sintomas que permitem formular uma hipótese de autismo; por isto, a observação do pediatra e seu questionamento e orientações sobre as interações maternas com a criança podem constituir-se como ferramenta para intervenção precoce, além de possibilitar o encaminhamento para acompanhamento psicológico sempre que necessário. 18 Nesse sentido, o trabalho de prevenção em saúde mental seria facilitado pelos médicos que, ao detectar os sinais precoces de problemas graves com os bebês, poderiam encaminhá-los para as consultas psicológicas especializadas. Laznik ensina que o bebê com risco de autismo é capaz de olhar para a mãe ou para a qual a mãe fala ao seu bebê, com seus picos prosódicos acentuados e prolongamento das vogais (Vasconcelos, 2009). A introdução do terceiro tempo pode instituir outra dinâmica entre o bebê e a mãe, possibilitando o estabelecimento do laço ente eles. Isto significa intervir na relação do Outro com a criança (Vasconcelos, 2009). O terceiro tempo do circuito pulsional pode ser restabelecido por meio da intervenção de um profissional que saiba trabalhar esta relação pais-bebê, e principalmente se for antes dos três anos de idade, que é o período sensível no qual a criança se insere com mais naturalidade no campo dos significantes do Outro. A indeterminação freudiana da noção de neurose Contrariamente à tendência histórica do conceito, que é a de estabilizar a noção genérica de neurose como estrutura da personalidade, das quais as outras formas de personalidade e de patologia seriam dedutíveis ou deficitárias, mostraremos agora como Freud exerceu os critérios de seu método empregando uma noção de neurose muito mais flutuante e narrativa do que estamos acostumados a encontrar. Em outras palavras, a unidade do conceito de neurose, pressionada pela incorporação psiquiátrica da psicanálise, especialmente em solo anglo-saxônico, obscurece a hipótese de que Freud tenha descrito não apenas uma entidade clínica, submetida ao progresso crescente e convergente de suas descobertas, mas que ele tenha se apoiado em diferentes perspectivas definicionais que faziam da neurose um "fato clínico" ligeiramente diferente ao longo do tempo, conforme Freud empregava uma variação de paradigmas narrativos para defini- la. 19 Acompanhamos aqui tanto os estudos de Ramos (2008), que sugere que a histeria no início da pesquisa freudiana era um paradigma diagnóstico muito mais vasto do que aquilo que hoje chamamos de histeria, quanto os argumentos de Van Haute e Geyskens (2010) de que a edipianização do diagnóstico freudiano deu-se muito mais tarde do que se pensa. Ou seja, a confiança na solidez de oposições diagnósticas de primeira ordem, como entre neurose e psicose, ou de segunda ordem, como entre histeria e neurose obsessiva, deve- se muito mais à psiquiatrização da psicanálise, notadamente até os anos 1960, do que à realidade clínica e textual de sua psicopatologia. Uma declaração de Lacan, no final de seu ensino, pode servir para sintetizar este problema que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, embora não sem flutuação. Isso só é certo e transmissível pelo discurso histérico. É nele, inclusive, que se manifesta um real próximo do discurso científico. Convém notar que falei de real, e não da natureza. (Lacan, 1975/2003, p. 554) Ou seja, os tipos clínicos, como a histeria, a neurose obsessiva e a fobia, são dedutíveis de uma estrutura, como a neurose, mas com flutuações. Logo, é possível conceber passagens de um tipo a outro: uma histeria pode formar sintomas obsessivos, uma obsessão pode formar sintomas fóbicos. O mesmo não se aplica à passagem entre neurose e psicose. Tal relação de inclusão do tipo na estrutura ou da espécie ao gênero, além de móvel, só pode formar um consenso se lemos o problema a partir do discurso histérico. Ocorre que o paradigma histérico é vasto e relativamente indeterminado se pensamos na evolução da obra freudiana. 20 É segundo este paradigma da histeria tomada como discurso, e não por outro qualquer, que o real, neste caso o real de pathos, pode se transmitir ao modo aparentado à ciência. Isso significa admitir que a psicopatologia psicanalítica é uma psicopatologia histérica, ou seja, neurótico-cêntrica. E um bom exemplo disso se dá quando identificamos a histeria simultaneamente como um tipo e como uma estrutura clínica. Ela é simultaneamente um tipo de neurose, dividida entre histeria de retenção ou de defesa, e a língua e o caso fundamental da neurose, do qual se deduz o funcionamento da fobia ou da neurose obsessiva. Comecemos por salientar como a noção de neurose sobrepujou suas concorrentes, tornando-se modelo psicopatológico hegemônico dentro da psicologia, já nos anos 1920, e na psiquiatria do DSM-I (1952) e DSM-II (1968) de inspiração psicodinâmica. Mesmo que desaparecida nominalmente no DSM- II (1977), ainda que presente no CID-X até hoje, as principais distinções entre as classes de transtornos: de humor, de ansiedade, os tipos de sintomas e os tipos de personalidade, são de extração psicanalítica. Vejamos agora como o sucesso da noção de neurose, como organizador psicopatológico pode se ligar mais à sua capacidade de flutuação entre diferentes narrativas de sofrimento do que à sua potência de integrar processos em uma causalidade psicológica única. Inicialmente Freud tinha que justificar a pertinência diagnóstica da Neurose Histérica contra a psicastenia de Janet e contra a neurastenia de Beard. Lembrando que Freud era antes de tudo um médico, depois pesquisador em neurologia com uma formação algo rudimentar em psiquiatria, é curioso observar que a teoria freudiana das neuroses, como generalização dos achados sobre a histeria, é uma teoria psicológica que narrativiza as categorias de Cullen. Ainda que definida como uma neurose sem lesão, ou um "trauma dinâmico" (Freud, 1893/1988), a neurose histérica faz convergir as quatro afecções neurológicas, dos movimentos e da sensibilidade, sem febre. Nos casos primários de Freud, observa-se a recorrência de sintomas ligados à perda da consciência, como nos desmaios e estados de ausência (coma), perda do controle voluntário como nos ataques histéricos, (espasmos), alteração da força vital como nas astasias, abasias e nos estados de hiper ou hipossensibilidade corporal (fraqueza-astenia) e modificação da relação de 21 representação para com a realidade (vesânias). Isso foi frequentemente atribuído à herança do trabalho de separação entre histeria e epilepsia, levado a cabo pelos desenvolvimentos semiológicos de Charcot (1887/2003), contudo isso deixa de lado que o próprio Charcot seguia o esquema diagnóstico de Cullen. Ou seja, a categoria de neurose antecede a partição entre neurologia e psiquiatria (Costa Pereira, 2010). Antes de debater-se com a oposição entre o psíquico e orgânico, entre psiquiatria ou neurologia, Freud considerou o discurso sobre as causas do mal- estar, produzido pelo próprio paciente, como parte estrutural dos próprios sintomas, por isso ele precisava incluir todas as classes descritas por Cullen. A neurose não era apenas exteriorizações ou manifestações anódinas a serem remetidas a causas exteriores às suas representações, mas efeitos que devem ser reintegrados às causas estruturais. E causas estruturais exigem a tentativa de apreender a totalidade de um conjunto de possibilidades. Talvez seja isso que Lasègue tenha observado contra o trabalho de Charcot ao afirmar que: "a histeria jamais foi definida e é certo que nunca o será; seus sintomas não chegam a ser constantes, semelhantes ou iguais em duração e intensidade para que um tipo descritivo compreenda todas as suas variedades" (Bercherie, 1983, p. 61). Enquanto a psicastenia de Janet era um quadro restrito à narrativa da alienação da alma e sua consequente divisão da consciência, e enquanto a neurastenia de Beard era um quadro restrito ao excesso de estímulos intrusivos causados pela agitação da vida moderna, a histeria é, ao mesmo tempo, alienação da alma (trauma-divisão subjetiva), efeito da incidência de um objeto intrusivo (recalque da sexualidade infantil), violação de um pacto (o conflito edipiano e a angústia de castração) e perda da unidade do espírito (a repetição e o poder corrosivo da pulsão de morte). Freud teria assim conciliado o paradigma narrativo germânico, absorvido pela fonte de Meynert, segundo o qual o patológico se deduz de um quadro clínico como a amentia, com o paradigma narrativo francês, recebido de Charcot, segundo o qual a histeria é produzida pela intrusão de um "trauma dinâmico", um "trauma sem lesão". Em um segundo momento, está tensão entre hipóteses etiológicas teria sido integrada nas formulações sobre o Édipo, ou seja, em uma espécie de estrutura capaz de reunir tanto a divisão do sujeito, entre a 22 identificação e escolha de objeto, quanto o caráter traumático da sexualidade incestuosa, endogâmica e parricida. A teoria da alienação, estruturalmente ligada à divisão do sujeito, conjuga- se assim com uma teoria da negação do desejo, originando a concepção de que a violação de um pacto simbólico é simultaneamente uma negação do caráter universal da lei do desejo e uma perda que aliena este desejo ao Outro. A ideia de que sofremos como uma reedição da tragédia edipiana, atualizando nossa experiência particular de confronto com a lei com uma experiência universal diante da falta, integra dois paradigmas narrativos mais simples sobre nosso modo de sofrer, ou seja, de que sofremos porque perdemos nossa alma ao nos alienarmos ao desejo do Outro, que se torna desde então nossa lei inconsciente, e também sofremos porque não conseguimos suportar o retorno do estrangeiro que nos habita. A teoria lacaniana da estrutura tem o mérito de retomar tanto os primeiros alienistas, como Pinel, que viam na cura uma espécie de reconciliação da razão do desejo com sua própria alteridade, como incorporar o esquema psicopatológico alemão, de Kraepelin, Kretschmer e Jaspers, que via no processo mórbido a expressão das leis de uma estrutura mais fundamental e estranha à personalidade. É só em um segundo momento que o problema da universalidade da lei será posto em questão, gerando uma revisão tanto da teoria da sexualidade, expressa pela noção de sexuação, quanto uma revisão da teoria do reconhecimento, efetivada na teoria dos quatro discursos. A famosa virada dos anos 1960, representada pela introdução do conceito de objeto a, causa de desejo (Safatle, 2006) pode ser entendida como um correlato da virada freudiana dos anos 1920, com a introdução da pulsão de morte. Ambas levam adiante o problema fundamental da unidade e sua dissolução, assumindo definitivamente uma psicopatologia da não identidade. Esta psicopatologia, que em Freud se mostra pela ideia de fusão e desfusão das pulsões, e em Lacan aparece como a teoria do Real, no fundo compreende uma nova narrativa para fazer reconhecer o sofrimento, uma narrativa da dissolução da unidade do espírito. Como se as partes não encontrassem mais seu lugar ou seu feixe de relações com outras partes, em 23 uma espécie de perda ou anomia da Lei, que confere unidade ao aparelho psíquico, esta nova narrativa não exprime apenas o sofrimento decorrente da ameaça contra a identidade, apresentando soluções de recomposição pela extrusão ou ab-reação do objeto patógeno, nem pela simbolização da diferença negada, ou ainda pelo reconhecimento do caráter simbólico, vale dizer universal da lei edipiana. Agora é a própria identidade, do desejo ou do Outro, que aparece como um sintoma, como uma solução precária a ser defendida inutilmente. Esta experiência de autodissolução ou de não-identidade a si é o que Lacan chamou de gozo, e que exprimia, nos termos da diagnóstica freudiana o fato quantitativo capaz de determinar tanto as expectativas de cura quanto a força gerativa dos sintomas (Dunker, 2002). Um fenômeno homólogo de flutuação narrativa que apresentei anteriormente pode ser encontrado nas formulações de Lacan sobre a histeria. Ela foi sucessivamente descrita como uma questão sobre a feminilidade (Lacan, 1955/1988), um tipo de desejo, o desejo insatisfeito (Lacan, 1958/1988), como uma modalidade de identificação ou de fantasia (Lacan, 1964/1988) e como forma de discurso, o discurso da histeria (Lacan, 1969/1988). Quando Lacan (1955/1988) desenvolve sua hipótese de que a estrutura da neurose é homóloga a um mito individual, ele considera que um mito é uma composição entre pares opostos de questões em si mesmas insolúveis. Baseado no modelo que Lévi-Strauss (1955/1988) desenvolvera para formalizar a estrutura antropológica dos mitos, primeiro a neurose obsessiva do Homem dos Ratos e depois a histeria de Dora são redescritas como uma questão histérica, ou seja, uma geratriz de problemas envolvendo o nexo simbólico de passagem entre gerações (filiação), a definição de si em relação aos seus semelhantes (narcisismo), a assunção de um tipo específico de gozo (masculino ou feminino) e a lei (morte). Ora esta primeira narrativa pensa a histeria como uma questão sobre a feminilidade, e pensa a feminilidade como uma questão sobre a confluência improvável entre o corpo e a reprodução. Neste momento, Lacan (1951/1988) recorre a Hegel para apresentar a histeria como a bela alma, que não consegue reconhecer-se na desordem de sua própria feminilidade. A histeria é então uma alienação redobrada, uma alienação em estado crítico. 24 Percebe-se que já em 1958 a descrição da histeria se altera um pouco. Ela passa a ser definida por um desejo, o desejo insatisfeito (Lacan, 1958/1988). Neste caso, a alienação passa a ser presumida como um atributo do sujeito em geral, sendo específico da histeria a relação privilegiada ao falo. Ser o falo, identificar-se ao falo, fazendo assim que a falta recaia sobre o Outro, assim como a divisão localize-se no sujeito, redefine a histeria como um tipo de desejo e não mais um estado paradigmático e excessivo de alienação do desejo. O falo, como lugar de identificação do sujeito, conduz à hipótese de que a castração paterna é uma condição inarredável para a sustentação do desejo histérico. Ele é, portanto, um desejo estruturado como uma negação, um desejo que se apresenta como sintomático em sua estrutura de condensação ou de metáfora. O que a histeria não consegue elaborar é justamente sua condição de objeto para o desejo do Outro. Este desejo é então significado como intrusivo e indefinidamente metaforizado, ou seja, negado. É neste momento que Lacan insiste na importância do sonho da bela açougueira como exemplo paradigmático de que o que define a histeria é a identificação com o desejo do Outro. Em 1964, Lacan incorporará a teoria da alienação da histeria ao desejo do Outro, cuja máxima kojeviana é o desejo do sujeito é o desejo do Outro, bem como sua releitura estrutural sobre o papel do pai como encruzilhada estruturante do sujeito, em termos de identificação, com um novo entendimento de identificação. A histeria sofre, sobretudo, porque ela encontra-se como causa constante de violação da lei. Ela é uma espécie de exceção permanente, para a qual seu desejo a atrai, e em torno do qual ela investiga o desejo em seu estado nascente. Tudo se passa como se Lacan invertesse a ordem etiológica da histeria. Não é mais que um objeto intrusivo tenha determinado a alienação do desejo do sujeito ao desejo do Outro. Agora a histeria, e a neurose por consequência, é definida pela função de causa assumida por um objeto que é, a um só tempo, no sujeito e no Outro, núcleo máximo da identidade e de sua dissolução, universal da lei de um sujeito e máxima particular que comanda sua fantasia fundamental. No fundo, tanto a castração quanto o incesto são uma fantasia, ou seja, a violação de uma possibilidade imaginária, investida de valor simbólico para o 25 desejo, mas impossível, ou real, do ponto de vista de sua realização empírica. A cura passa a ser a cura ou a travessia desta identificação histérica (Lacan, 1964/1988). Finalmente, entre 1968 e 1970 (Lacan 1968, 1970/2003) a histeria é tratada como um tipo de discurso, o discurso histérico a ser contraposto ao discurso do mestre, ao da universidade e ao do psicanalista. Os discursos são também formas de estrutura, mas estruturas do laço social, deduzidas do mal- estar, da impossibilidade (de governar, de educar, de desejar, de analisar), ou seja, estruturas definidas a partir do real. Aqui a histeria é tomada como paradigma psicopatológico, mas não em relação à psicose ou à perversão, e nem mesmo em relação à neurose obsessiva ou à fobia. Isso permite que ela seja pensada mais além da relação ao Pai, como sucedâneo da lei, e mais além do falo, como coordenador do sistema de identificações do sujeito. A histeria incorpora das definições anteriores a ideia de que sua verdade insuportável é sua condição de objeto a (narrativa do objeto intrusivo), e que, no lugar do agente que comanda seu discurso, encontra-se um sujeito dividido (narrativa da alienação da alma). Mas diferentemente da identificação do Pai ao lugar do Outro, na histeria definida como discurso, no lugar do Outro está o mestre (S1). E é deste mestre que a histeria extrai o seu a-mais-de-gozar que caracteriza sua produção discursiva, como demanda de saber. Se os discursos são formas de laço social e se o laço social é coordenado tanto pela lei que o torna possível quanto pelo gozo impossível, que produz seus efeitos entrópicos, a histeria não é tanto um problema de violação de um pacto quanto de um gozo que corrompe a identidade necessária para todo e qualquer laço social. Isso abrirá caminho para uma definição negativa da histeria em relação à feminilidade, que se desenvolverá em torno da teoria da sexuação e da diferença entre o gozo fálico (presente na histeria) e o gozo feminino (presente na mulher mais além da histeria). Ou seja, também em Lacan cada modelo metapsicológico está condicionado por uma narrativa clínica de referência, e estas estão em contradição relativa entre si. A narrativa da alienação da alma afirma que o mal- 26 estar vem de si enquanto a narrativa do objeto intrusivo afirma que o mal vem do Outro. A localização do sofrimento na violação do pacto simbólico nega e afirma as duas anteriores, afirmando que o mal vem de si e do outro. Finalmente, a narrativa da dissolução da unidade do espírito nega o princípio de identidade que se encontra em vigor nas duas primeiras narrativas, da perda da ama e da intrusão do objeto, ou se apresenta sob forma de contradição ordenada na narrativa edipiana. Agora é a unidade que se encontra sob risco e a indeterminação, da identidade e de sua negação, que é colocada como fator de indução do sofrimento. Em Freud, o apogeu da histeria, depois da neurose obsessiva e finalmente das neuroses narcísicas, não deve ser considerado uma evolução natural com ganhos de generalização crescente. Descrita segundo paradigmas narrativos diferentes, a neurose não é uma mesma "doença" que se exterioriza em variações patoplásticas de suas manifestações, mantendo um núcleo comum em sua estrutura de personalidade. Modelos metapsicológicos e variações narrativas 27 Vejamos agora como certas variações narrativas afetaram os modelos metapsicológicos de Freud e de como estes alteraram sensivelmente a diagnóstica das neuroses ao longo do tempo. A determinação da neurose como estrutura decorrente do trauma-sexual liga-se à neurose como um dispositivo de divisão e alienação do sujeito, particularmente entre os anos 1894 e 1905. Aqui, as Psiconeuroses de Defesa (histeria, neurose obsessiva, fobia e paranoia) opõem-se às Neuroses Atuais (neurastenia, hipocondria e neurose de angústia). Isso sem mencionar a histeria de retenção ou a histeria hipnoide que opunha Freud e Breuer como paradigma para Estudos sobre Histeria (Freud & Breuer, 1893/1988). Contudo, a maior parte dos casos discutidos corresponde aos tipos combinados, ou neuroses mistas. Isso decorria da dificuldade que o modelo apresentava para interpretar a origem do sintoma da angústia. Ou seja, já na primeira partilha diagnóstica freudiana este não consegue estabelecer tipos puros. O ponto de vista que se segue, portanto, parecia ser o mais provável. As neuroses que comumente ocorrem devem ser classificadas, em sua maior parte, de "mistas". A neurastenia e as neuroses de angústia são facilmente encontradas também em formas puras, especialmente em pessoas jovens. As formas puras de histeria e neurose obsessiva são raras; em geral, essas duas neuroses combinam-se com a neurose de angústia. A razão por que as neuroses ocorrem com tanta frequência é que seus fatores etiológicos se acham muitas vezes entremeados, às vezes apenas por acaso, outras vezes como resultado de relações causais entre os processos de que derivam os fatores etiológicos das neuroses. (p. 261) Um trabalho crucial para entender este primeiro modelo metapsicológico das neuroses é Psiconeuroses de Defesa (Abwehr-Neuropsychosen) (Freud, 1894/1988). Seu subtítulo já indica a precariedade da generalização postulada: Ensaio (Versuch) de uma teoria psicológica da histeria adquirida, de muitas fobias (vieler Phobien) e representações obsessivas (Zwangvostellungen) e certas psicoses alucinatórias. Ou seja, tratava-se de apenas uma classe das histerias, as adquiridas, excluindo-se as hereditárias, muitas fobias, mas não todas e muitas das representações obsessivas. Isto é, a neurose obsessiva é 28 tomada aqui por seu sintoma mais significativo, a obsessão, e não como estrutura que agrega todos os sintomas sob uma causa comum. Prova disso é a ostensiva indeterminação da relação entre causa traumático-sexual e efeito - sintomático, uma vez que o mesmo evento levou a várias reações patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma psicose alucinatória. A capacidade de promover um desses estados - que estão todos ligados a uma divisão da consciência - através de um esforço voluntário desse tipo deve ser considerada como manifestação de uma disposição patológica, embora esta não seja necessariamente idêntica à "degeneração" individual ou hereditária. (Freud, 1894/1988, p. 68). Finalmente, incluem-se na classe das psiconeuroses as psicoses alucinatórias, derrogando francamente a oposição, posteriormente consolidada, entre neurose e psicose. A condição de formação de signos patológicos é a divisão da consciência, mas ela mesma não explica porque temos um ou outro tipo de sintoma. Não é a separação da libido ou a formação de um grupo psíquico separado que explica o sintoma, mas o destino da libido, o retorno do que foi apartado. É possível argumentar que neste primeiro momento Freud se utiliza sistematicamente de noções como a etiologia da neurose, o próton-pseudos histérico, o trauma originário, o núcleo patógeno, porque seu paradigma narrativo presume que o sofrimento decorre da aparição de um objeto intrusivo, aqui representado pela sexualidade. Este é o protótipo realista ou fantasiado da fantasia de sedução que constitui falso início (próton pseudos) da histeria - uma 29 situação ou cena que é lembrada posteriormente como um encontro prematuro, em um momento em que o aparelho psíquico ainda não se encontrava "preparado" para tramitar ou simbolizar tamanho montante de intensidade libidinal. Esta sobrecarga, gerada pelo despreparo ou inadvertência do psiquismo histérico, sempre colhe o sujeito em posição passiva, ao contrário da neurose obsessiva, no qual este aparece em posição ativa. As neuroses são um caso ampliado desta intrusão, por isso elas são definidas pela defesa contra ideias inconciliáveis (Unverträglich), que ocasionam uma divisão psíquica (Spaltung), que separa afetos de suas representações, gerando um recalcamento (Verdrängung), cujo retorno deformado, quer no corpo, quer em ideias substitutivas ou objetos, forma sintomas. Acresce este modelo o caso de uma: "modalidade defensiva muito mais enérgica e bem sucedida que consiste na foraclusão (verwerfen) da representação insuportável junto com o afeto e se comporta como se a representação nunca houvera acontecido" (Freud, 1894/1988, p. 69). A afirmação encontra-se em contradição com a afirmação do próprio texto de que o aparelho psíquico não pode tomar qualquer experiência como se tivesse sido "non arrivé". Temos então a seguinte distribuição diagnóstica, na qual se verifica que a grande oposição se dá entre psiconeuroses de defesa e neuroses atuais: Entre 1905-1914 este modelo é substituído pela hipótese de que a neurose pode ser mais bem compreendida como recalque da infância, no interior da qual se dão as experiências traumáticas. Desloca-se a força determinativa do acontecimento para sua lembrança e da sexualidade para sua fantasia. Este período compreende a redescrição das modalidades de organização pulsionais em relação com as possiblidades de desvio de objeto, de objetivo, de fixação ou de regressão da pulsão. A neurose é cada vez mais aproximada de formações narrativas como: teorias sexuais infantis (Freud, 1908), romance familiar do neurótico (1909), práticas religiosas (1907). É assim que a neurose aparece como um dispositivo de defesa contra o desejo inconsciente, uma forma de negação simbólica que se articula com o caráter, como identificações abandonadas bem como na condição de exigências dos sintomas. 30 Na apresentação do caso do Homem dos Ratos encontramos um uso raro da noção de estrutura por Freud: Ou seja, há um discernimento analítico da estrutura, que se pode obter no contexto de uma neurose grave como esta. E este discernimento não se separa das justaposições envolvidas no tratamento. É neste momento que Freud usa a própria metáfora dos usos da linguagem para designar o parentesco entre neurose obsessiva e histeria o meio pelo qual a neurose obsessiva expressa seus pensamentos secretos, a linguagem da neurose obsessiva, é por assim dizer um dialeto da linguagem histérica, mas em relação ao qual se deveria conseguir mais facilmente empatia, pois se aparenta mais com o dialeto histérico do que com nosso pensar consciente. (Freud & Breuer, 1909/1988 a, p. 124) Há então três termos de comparação, o nosso "pensar consciente" ordinário e comum, ao qual a neurose obsessiva se assemelha, e depois há o parentesco que torna a neurose obsessiva um dialeto desta língua fundamental da neurose que seria a histeria. No entanto, com a descoberta do narcisismo, em 1911, e a importância crescente atribuída ao problema da gênese e das perturbações do eu, Freud passa a deslocar-se no pantanoso terreno das psicoses. No período de sua mais estreita colaboração com Jung e Bleuler, no contexto da escola Suíça de psiquiatria, as ideias diagnósticas de Freud, como a noção de divisão (Spaltung), de regressão e de fixação começam a ser importadas para a descrição do quadro esquizofrênico, e do autismo, derivado do autoerotismo. Tal desenvolvimento tem por oposição a escola psiquiátrica de Munique, liderada por Kraepelin, na qual o entendimento das formas psicopatológicas está muito mais perto do conceito de doença do que da noção de estrutura de linguagem. Unindo as duas vertentes encontra-se a noção de defesa (Abwehr), a partir da qual as diferentes patologias poderiam ser comparadas. 31 Alteram-se então as oposições diagnósticas. As neuroses de transferência (histeria de conversão, neurose obsessiva e histeria de angústia), opõem-se às neuroses narcísicas (parafrenia, paranoia, esquizofrenia, melancolia). A primeira acepção enfatiza a neurose como narrativa de alienação, identificação, transferência e repetição ao outro. Já a segunda definição salienta a gênese do eu, suas regressões e fixações, ao modo de defesas evolutivas ou involutivas. Registremos que a primeira acepção ressalta a linguagem e a memória, e a segunda, o tempo e suas modulações. Articulando ambas as versões de neurose encontramos a noção de fantasia. É por isso que uma das definições mais amplas e recorrentes de neurose, neste período, afirmará que: "as neuroses são, pode-se dizer, o negativo das perversões" (Freud & Breuer, 1905/1988, p. 165) A definição da neurose como defesa contra a fantasia perversa traz um sério inconveniente para a própria definição de perversão, uma vez que esta corresponderia a um conjunto de disposições que "realizam" fantasias neuróticas ou a um conjunto de comportamentos que se deduzem da normalidade genital, violando o princípio propriamente diagnóstico da psicanálise. Ora, isso introduz uma disparidade óbvia na noção de estrutura quando aplicada entre neurose e psicose, e quando aplicada entre neurose e perversão. Neste sentido, as narrativas do trauma e da alienação da alma são simplesmente dispensáveis para definir a perversão. Ora, a teoria da defesa é no fundo uma concepção mais genérica do que a ideia de trauma, que depende de uma narrativa ligada à alienação da alma, mas agora conjugada com a concepção que busca uma etiologia dos sintomas baseada no modelo de um elemento intrusivo, uma alteridade que não pode ser reconhecida pelo próprio aparelho psíquico que dele se defende. Por isso ela é pensada segundo atos de negação, de operações de retorno do recalcado, de divisões e recomposições sintomáticas da subjetividade. Temos aqui o cruzamento entre a experiência infantil do drama edipiano e o mito moderno formulado por Freud em Totem e Tabu (1914/1988). O pai aterrador e indutor de angústia confunde-se temporal e narrativamente com o pai ancestral canibalizado e totêmico. Aqui a neurose poderia ser redescrita como uma operação de reconstituição da força simbólica da paternidade, 32 derrogada pela hostilidade produzida pelo drama infantil. Em Análise da Fobia de uma Criança de Cinco Anos, o caso do Pequeno Hans, (Freud, 1909/1988) a função do pai passa a ser decisiva. A teoria de Édipo e seu complexo nuclear de castração nos remete ao conflito cruzado envolvendo atos de escolha de objeto e de reformulação de identificações. Seu referente é a angústia como articulador da falta entre o objeto e identificação, entre imaginário e simbólico. As oposições entre narcisismo e amor de objeto são tematizadas no âmbito da noção de lei simbólica (ofensa corporal, perda de amor, diferença entre os sexos). O esquema etiológico se multiplica. As acepções de neurose variam segundo sua incidência no tempo (fixação, regressão, retenção) e na linguagem (mito, teoria, romance). A neurose infantil é um momento estruturante da experiência infantil associável ao Complexo de Édipo, definida como o negativo da perversão, exprimindo ainda uma ligação regular entre sintomas e fantasias. Esta acepção de neurose deve ser distinguida e conectada com a neurose desencadeada no adulto: produção de novos sintomas a partir da reativação da neurose infantil. Ligando as duas apresentações temporais da neurose, encontramos ainda a neurose de transferência, como reprodução artificial e miniaturizada da neurose no interior do tratamento psicanalítico dos sintomas que assim podem ser tratados. Agora a oposição diagnóstica decisiva passa a ser entre as neuroses que fazem transferência e as neuroses que fracassam em investir objetos substitutivos na fantasia: Entre 1915-1924 a neurose é reconsiderada com a hipótese ascendente da violação do pacto edipiano e correlativa emergência da angústia. A retomada da teoria do trauma e a reconsideração da gênese da angústia levam Freud a redescrever o conflito edipiano agora com a ênfase em um tipo especial de angústia, a neurótica. O processo de indução da culpa e da ampliação da angústia, antes pensada como efeito do fracasso circunstancial do recalcamento é agora reformulada como a causa do recalque. Uma encruzilhada capital para este giro narrativo em Freud é o caso do Homem dos Lobos (Freud, 1918/1988). A investigação cerrada e detalhadamente reconstrutiva sobre sua neurose infantil, de natureza fóbica, contrasta com sintomas de neurose obsessiva na vida adulta e a aparição de uma paranoia hipocondríaca no período pós- tratamento. Nele se cruzam a hipótese da sedução infantil, a fantasia de 33 castração (cena primária) e as vicissitudes da fixação e da regressão ao erotismo anal. O tema do pacto edipiano e de sua violação domina toda a apresentação narrativa do caso. Aqui se multiplicam as imagens sobre as vassalagens do eu (entre realidade, supereu e id), das múltiplas procedências da angústia (perda de amor, ameaça real, castração), das várias procedências da resistência e do compromisso entre exigências múltiplas: A neurose é extraordinariamente rica em seu conteúdo, pois abarca os vínculos possíveis entre o eu e o objeto, tanto aqueles que este conserva, como outros, que ele renuncia ou erige em seu interior, e assim também os vínculos conflitivos entre o eu e seu ideal de eu. (Freud, 1920/1988, p. 136) Na verdade, a violação do pacto edipiano reúne a narrativa da alienação da alma (identificações e escolhas de objeto) com a narrativa da intrusão de objeto mórbido (crise narcísica, angústia de castração) adicionando explicitamente um novo ingrediente: o processo de socialização do sujeito. As duas narrativas anteriores são casos particulares, ou restritos, de um processo mais geral que definiria a neurose como bloqueio de relações de reconhecimento. O ponto chave para esta mudança é a introdução do supereu, em 1920, justamente como este operador da lógica das trocas, dos compromissos, dos dons e dos sacrifícios para o sujeito. Esta ideia da troca, compromisso e substituição será amplamente empregada para definir a neurose em contraste com a psicose: 34 Isso altera substancialmente a economia das oposições diagnósticas. As neuroses de defesa (histeria, neurose obsessiva, fobia) opõem-se externamente às neuroses narcísicas e internamente aos subtipos de neuroses definidas como grupo de sintomas (neurose traumática, neurose de guerra, neurose de destino, neurose de caráter). Aqui as relações comparativas parecem se estabilizar, mas talvez isso ocorra justamente porque Freud procura elementos conceituais que explicam a multiplicação de suas oposições clínicas. Para além das oposições inicialmente descritas entre regressão e fixação ou entre negação-aceitação, agora se incluem as oposições entre masculinidade e feminilidade, atividade e passividade, realidade e fantasia, fálico e castrado, sadismo e masoquismo: "Só se pode apreciar retamente a significatividade do complexo de Édipo [na determinação da neurose], se por sua vez levamos em conta sua gênese da fase do primado do falo" (Freud, 1923/1988, p. 147). As neuroses atuais são integradas ao estatuto de sintomas preferenciais das neuroses estruturais, a histeria com a neurose de angústia, a neurastenia com a neurose obsessiva e a hipocondria é assimilada à paranoia. Novamente é o Complexo de Édipo, entendido como um sistema de trocas e equivalências simbólicas que explica a aptidão para uma ou outra prática sexual no quadro da relação entre frustração, renúncia e castração. Do ponto de vista narrativo a neurose é aproximada da antiga relação religiosa com os demônios. Não precisamos ficar surpresos em descobrir que, ao passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de hoje assumem um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas como enfermidades orgânicas, as neuroses daqueles antigos tempos surgem em trajes demoníacos. (Freud, 1923/1988, p. 73) 35 Esta relação, estudada no artigo acima, é mediada por um pacto. Um contrato no qual o demônio recebe a alma do contratante e em troca lhe oferece serviços para seu desejo. Ganha nova importância a noção de séries complementares, por meio da qual um fator etiológico é compensado pela emergência proporcional de outros. Portanto a narrativa do pacto não se dá apenas intersubjetivamente, mas também intrassubjetivamente. A articulação entre conflitos postos em uma espécie de hierarquia, centralizada pelo Édipo, dentro deste pelo falo e ainda em seu interior pelo complexo de castração explica a profunda afinidade deste momento narrativo com a sedimentação das oposições diagnósticas, principalmente entre neurose e psicose. "A neurose é o resultado de um conflito entre o eu e seu id, enquanto que a psicose é o desenlace análogo de uma similar perturbação nos vínculos entre o eu e o mundo exterior" (Freud, 1924/1988a, p. 125). Do ponto de vista dos tipos interiores à neurose este é também o período em que se multiplicam as formas de neuroses não clássicas, definidas por grupos de sintomas mais ou menos estáveis, mas sem forte correlação estrutural. Isso acontece tanto pela anexação as neuroses atuais às neuroses histérica e obsessiva, e ainda da hipocondria à psicose, quanto pelo uso livre da neurose em qualificativos como: neurose demoníaca, neurose de destino, tipo de escolha de neurose, disposição neurótica, tipos de caráter neuróticos, e assim por diante. Finalmente, no período que vai de 1923 a 1939, o paradigma causal se altera, assumindo o processo de fusão e desfusão das pulsões, com a correlata clivagem do eu, a tarefa de conciliar na estrutura dos sintomas o eu. Aqui a neurose é considerada como repetição, perda e recomposição de unidade. O superego surge de uma identificação com o pai… cuja consequência é a dessexualização ou sublimação da atividade pulsional propiciando uma desfusão. Deste modo, o componente erótico não é capaz de unir a agressividade que anteriormente encontrava-se combinada fazendo com que esta seja liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Esta desfusão seria a fonte do caráter de severidade do superego. (Freud, 1923/1988, p. 67) 36 Lembremos que a partir de Mal-estar na Civilização é a força e severidade do supereu que determinam quantitativamente a força e intensidade dos sintomas e da culpa. Depois do Édipo, a autoridade internalizada forma o supereu, este transforma em consciência ou sentimento de culpa, que surge como uma "permanente infelicidade interna". Culpa e angústia são resultado de uma renúncia (Versagung) pulsional, a mais originária em consequência do medo da agressão externa e posteriormente em virtude do medo da autoridade interna representada pelo supereu. Se a dissolução da unidade é explorada do ponto de vista da pulsão pelas combinações e desfusões, ainda que sublimatórias, entre pulsão de morte e pulsão de vida, o estudo comparativo da neurose desloca-se da psicose para a perversão. E de fato é na perversão que encontramos uma série de fenômenos clínicos ligados à produção de excessiva unidade da meta pulsional (fixação) ou de seu objeto (fetichismo). Os fatos dessa cisão do ego (Ichspaltung), que acabamos de descrever não são tão novos ou estranhos como podem parecer a princípio. Ela é, na verdade, uma característica universal da neurose que está presente na vida mental dos sujeitos, e que se relaciona a um comportamento peculiar, a duas atitudes diferentes, contrárias entre si e independentes uma da outra. (Freud, 1927/1988, p. 151) 37 Trata-se, portanto, de outra narrativa de sofrimento, ou seja, aquela que se organiza em torno da perda da relação entre as partes e a unidade, dissolução da identidade pela diferença, corrupção do espírito e de suas funções. Neste ponto a neurose como estrutura (histeria, neurose obsessiva e fobia) é oposta às psicoses (esquizofrenia, paranoia, melancolia). Contudo, a ênfase é colocada em processos inicialmente descritos para a perversão (Verleugnung) que permitem explicar tanto fenômenos psicóticos (alucinação negativa) quanto sintomas neuróticos (clivagem do eu). A função sintética do eu, que possui uma importância tão extraordinária, tem condições particulares e sucumbe a toda uma série de perturbações. [O fetiche] não contrariou simplesmente sua percepção, ele não alucinou um pênis ali onde não via nenhum, somente empreendeu um deslocamento (descentramento) de valor, transferindo o significado do pênis para outra parte do corpo. (Freud, 1940/1988, p. 277) Portanto, é tanto a síntese do eu quanto a síntese das pulsões, enquanto tendência de Eros a produzir unidades e ligações, que se vê questionada. Já em Inibição, Sintoma e Angústia (Freud, 1926/1988), esta disparidade entre os processos indutores de sintoma e indutores de angústia havia sido verificada. Mas naquela ocasião a solução foi tentar descrever uma espécie de tipologia da angústia. Depois de 1924 parece surgir um novo entendimento etiológico de neurose, agora baseado nas articulações problemáticas entre masoquismo e narcisismo, bem como nas relações de fusão e de desfusão entre as pulsões, notadamente a pulsão de morte. Mas senão, vejamos: não é que a realidade é perdida na psicose e conservada na neurose, sua perda é comum a ambas, ainda que não da mesma forma. Contudo a perda da realidade, antes tratada como um assunto de negociação e substituição, agora é questionada mais radicalmente do ponto de vista de sua suporta e dada unidade. Novamente encontramos a narrativa hobbesiana do choque com o perigo e da lei como proteção contra a dissolução de si: Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda de objeto, até a primeira 38 infância, quando ele ainda se acha na dependência de outros; o perigo de castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o período de latência. Não obstante, todas essas situações de perigo e determinantes de ansiedade podem resistir lado a lado e fazer com que o ego a elas reaja com ansiedade num período ulterior ao apropriado; ou, além disso, várias delas podem entrar em ação ao mesmo tempo. É possível, além disto, que haja uma relação razoavelmente estreita entre a situação de perigo que seja operativa e a forma assumida pela neurose resultante. Quando, numa parte anterior desta apreciação, verificamos que o perigo da castração era de importância em mais de uma doença, ficamos alerta contra uma superestimativa desse fator, visto que ele poderia não ser decisivo para o sexo feminino, que indubitavelmente está mais sujeito a neuroses do que os homens. (Freud, 1926/1988, p. 107) Assim como em Mal-estar na Civilização (1929), a neurose será repensada a partir dos processos de culpa e de masoquismo, internos à disjunção entre a pulsão de morte e de vida e o retorno da agressividade contra o próprio eu o eu defende-se se colocando de forma masoquista como um objeto para o sadismo do supereu. Esta é a fórmula não da indução de sintomas, mas da explicação de por que certos sintomas causam maior ou menor sofrimento. Aparentemente Freud intui a força do mal-estar na civilização como um paradoxo de nomeação, que ao reduzir o sofrimento, permitindo técnicas para mitigá-lo, acaba produzindo novas regras e imposições ao eu, aumentando assim seu sofrimento. Disso decorre que a neurose deixa de ser comparada apenas com outras estruturas clínicas e é abordada também como uma técnica para evitar o sofrimento. Ao lado da solidão dos que se retiram do mundo, daqueles que se organizam em uma comunidade para dominar a natureza, dos que recorrem aos métodos de intoxicação e anestesia, dos que se dedicam à sublimação ou ao cultivo estético da existência, dos que se consagram ao cultivo das ilusões delirantes ou não, dos que buscam a felicidade na realização amorosa, dos que fogem para a realidade do trabalho ou da fantasia, aparecem os neuróticos: "Como última técnica de vida, que lhe promete menos satisfações substitutivas, se lhe oferece o refúgio na neurose, refúgio que na maioria dos casos já se consuma na juventude" (Freud, 1929/1988, p. 84). 39 Portanto, a cada deslocamento da ênfase clínica de fato se correlaciona com uma reformulação da diagnóstica freudiana da neurose. As alterações do tipo de narrativa de sofrimento que Freud adota em cada momento produzem transformações metapsicológicas e ao mesmo tempo são produzidas por estas. Percebe-se assim as profundas reorganizações das relações de ordem e classe atinentes ao uso da noção de neurose em Freud. Elas não são constantes, nem concordantes, variando profundamente sua nomeação conforme o princípio causal que se lhe atribua. Contudo tal variância pode não ser um problema a ser resolvido de forma nominalista pela fixação do sentido convencional de neurose. Esta flutuação é exatamente o que permite entender como diferentes paradigmas narrativos condicionam a diagnóstica freudiana muito além de uma acumulação de resultados. A distinção entre mal-estar e sofrimento, pouco tematizada nos primeiros desenvolvimentos de Freud, e ganha força nos dois últimos paradigmas narrativos: da dissolução do eu e do pacto edipiano. Isso ocorre porque cada qual despsicologiza o sofrimento, tornando-o, no segundo caso, a expressão de suspensão das relações de troca pulsional e desejante e, no primeiro caso, uma decorrência da estrutura ontológica das pulsões. A condição histórico antropológica trazida pelo Complexo de Édipo e a condição existencial que carrega a noção de pulsão de morte convida a uma reformulação diagnóstica que inclua, para além do sintoma, o mal-estar (Unbehagen) e o sofrimento (Leiden). A indeterminação da relação entre os sintomas, em sua suposta identidade diagnóstica, e as narrativas, que lhes conferem articulações de reconhecimento, talvez não seja erradicável. As noções de estrutura em acepção aristotélica e de personalidade, em conotação psicológica, realizam esta função de maneira inadvertida. Isso por si só não justifica a atitude desconexionista da psiquiatria de nossa época, que tende a isolar os sintomas ignorando suas relações de ordenamento temporal e sua potencial contradição como classe. 40 Adaptação, normatividade e fases do atendimento É evidente que a clínica e a pesquisa envolvendo pacientes neurológicos não é nova, embora tenha sido, até recentemente, domínio praticamente exclusivo da neurologia clínica, ocupada com a observação de patologias cerebrais específicas acompanhadas de variações do funcionamento psíquico. Nunca é demais lembrar que Freud formou-se na escola alemã de Neurologia, tendo sido aluno de Brücke e de Meynert e, depois, circulado pela escola francesa, tendo ficado bastante impressionado com Charcot e com as histéricas da Salpetrière. Basicamente, Freud acreditava que: (1) as variações nas faculdades psicológicas seguem leis de funcionamento próprias (e não as da anatomia cerebral): as síndromes psicológicas precisam ser descritas e explicadas em seus próprios termos psicológicos; (2) as faculdades psicológicas não são destruídas por lesões cerebrais localizadas: são distorcidas e modificadas de modo dinâmico, refletindo sua conexão com outras faculdades. Dito de outro modo, os processos psíquicos apresentam leis próprias de funcionamento, são processos complexos derivados da interrelação entre componentes mais elementares. Deste ponto de vista, o psíquico é o produto de sistemas funcionais dinâmicos capazes de se organizarem e de se adaptarem a contextos variáveis e, portanto, deve ser concebido como distribuído entre os 41 elementos estáticos do sistema nervoso (não podendo ser localizado em regiões anatômicas restritas). Com isso, Freud aderia a uma linhagem neurológica diversa daquela na qual fora educado — adesão que lhe permitiu inventar a Psicanálise. É evidente que psicanálise e neurociência cognitiva têm referenciais e modos de abordagem diversos a serem preservados em suas especificidades. Se a psicanálise é uma prática centrada na transferência e na causalidade psíquica inconsciente, a neurociência cognitiva se situa do lado de uma causalidade apoiada no método experimental. A clínica com pacientes neurológicos permite a formulação de novas questões e, consequentemente, o avanço teórico e técnico. Dentre as várias possíveis, podemos destacar, de saída, a problemática da cognição, considerando que as disfunções cognitivas atingem o sujeito em sua sensação de identidade e de existência sustentadas por funções tais como a memória, a espacialidade, a temporalidade e os processos de reconhecimento de si e do outro. Noutros termos, a cognição parece ter a função de apoio interno para o sujeito, permitindo-lhe integrar em seu espaço psíquico as representações de si e do mundo. Neste sentido, pode-se supor que danos cognitivos induzam uma desestabilização do que Dolto (1984) chamou de narcisismo primordial ou sensação de mesmidade do ser. Numa referência a Winnicott, os distúrbios cognitivos poriam o self em perigo e exigiriam a construção de falsos selves, uma vez que o sentimento de integridade se apoia no desenvolvimento de um eu integrado. Formulando de outro modo, o contato clínico com estes casos exige, entre outros, a retomada dos conceitos de ego e de self e a problematização do lugar das funções cognitivas em sua organização e em sua estabilidade. Mas, a experiência subjetiva do adoecimento neurológico não se limita às questões envolvendo os golpes na organização egóica. Trabalhos de neuropsicologia, como os de Antonio Damásio, formulam a hipótese de que certas lesões no córtex préfrontal poderiam engendrar dificuldades de se conduzir de acordo com as regras sociais. Segundo a teoria psicanalítica, não há no sujeito humano primazia da razão e do pensamento: o pulsional e o Princípio do Prazer são primeiros, sendo segundos o Princípio de Realidade e a adaptação à mesma. Daí a adaptação ao 42 outro, ao grupo e às normas terem de ser construídas com o apoio de representações conscientes e inconscientes que o sujeito faz de si mesmo e de sua pertença a um grupo. A adaptação à vida social, às suas regras, ou seja, a sociabilidade, supõe a atualização contínua tanto da consciência das semelhanças que nos unem aos outros homens apesar das diferenças, quanto da consciência de uma reciprocidade possível e necessária. A norma social e comportamental é, portanto, um conteúdo do pensamento que demanda uma construção contínua e permanente. Muitos pacientes neurológicos apresentam dificuldades em pensar e representar tais normas devido aos danos cognitivos e as feridas descritas. Além disso, a reciprocidade social frequentemente não é possível por conta da dependência extrema relativamente ao outro. Nestas condições, os pacientes não conseguem se reconhecer como sujeitos na sociedade, também por não serem mais reconhecidos como atores legítimos nos processos de troca social, sendo a sua substituição pelos outros esperada e até mesmo desejada. Eles são enquadrados, ajudados, mas não considerados como atores sociais. A possibilidade de se pensarem como seres sociais passa, então, por dois elementos básicos: (1) o estabelecimento de novas referências
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