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TEORIA E PRÁTICA EM ANTROPOLOGIA AULA 3 Prof. Everson Araujo Nauroski 2 CONVERSA INICIAL A contribuição da antropologia feita em terras tupiniquins rompe em parte com a visão eurocêntrica do mundo. Mesmo a partir da mesma base epistemológica, o conhecimento produzido acerca dos indígenas, suas culturas e trajetórias trouxeram novos olhares de respeito e valorização. As pesquisas sobre o mundo rural e urbano consolidaram a antropologia brasileira, trazendo à tona tanto a urgência de se pensar seus problemas quanto da necessidade de ir além da teoria e desenvolver políticas para o campo e para cidade. TEMA 1 – O INDÍGENA NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA No princípio do século XVI, ainda sobreviviam 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, apagadas do planeta por obra e graça das armas de fogo e dos micróbios. Violência e doença, batedores da civilização: o contato com o homem branco, para o indígena, continua sendo o contato com a morte. (Galeano, 2010, p. 51) Os diversos casos de independência dos países historicamente invadidos e colonizados pelas potências europeias, como os que ocorreram no continente africano, fizeram com que muitas críticas fossem dirigidas à antropologia, tida como um conjunto de teorias justificadoras da “missão civilizadora”, em face de outros povos tidos como “atrasados” e “primitivos”. Não foi sem razão que a antropologia nascente fosse considerada uma construção teórica oriunda da cultura imperialista. No entanto, é preciso reconhecer que dentro da própria antropologia surge um corpus teórico e crítico em relação ao posicionamento iluminista, evolucionista e positivista. A antropologia pós-colonial emerge em meio a críticas, mas também com renovado vigor intelectual de oferecer ao mundo diversas novas possibilidades de pesquisa e metodologias. Como filha egressa da cultura europeia, as bases epistemológicas da antropologia tiveram poucas modificações, mantendo-se o lastro conceitual já desenvolvido por autores franceses, ingleses e americanos. Contudo, diversas novas reorientações teóricas colocam a alteridade como categoria fundamental. 3 Figura 1 – Indígenas brasileiros Créditos: Alekk Pires/Shutterstock. Novos olhares sobre o universo múltiplo e plural das populações indígenas precisavam surgir. Uma abertura epistemológica bem assinalada por Clifford (1998, p. 19), ao afirmar que o Ocidente não pode mais “se apresentar como o único provedor de conhecimento antropológico sobre o outro, tornou-se necessário imaginar um mundo de etnografia generalizada. Com a expansão da comunicação e da influência intercultural, as pessoas interpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidade de idiomas”. Cada vez mais, um olhar de abertura e acolhimento ao pluralismo cultural dirigiu-se às populações indígenas, principal objeto de estudo no início da antropologia brasileira. Ainda faltava um longo percurso para que o novo saber fosse reconhecido como disciplina científica, como já havia acontecido no velho continente. O fato de os indígenas brasileiros estarem sob a proteção e tutela do Estado trazia elementos diferenciados na condição social e histórica dessas populações, diferente do que havia ocorrido na África. Uma ambiguidade complexa, pois, se por um lado os indígenas brasileiros estavam “mais protegidos”, sua condição de distanciamento e isolamento em seus territórios 4 dificultou que assumissem maior protagonismo como sujeitos de sua própria cultura, inclusive elaborando e participando de estudos sobre sua história e identidades. O olhar que tenta realizar esse projeto científico sobre os índios brasileiros é predominantemente do homem branco. Faltava ocorrer no Brasil uma descolonização efetiva em relação às populações indígenas, um processo ao mesmo tempo social, cultural e epistemológico. Um movimento histórico dessa natureza depende tanto da capacidade de protagonismo dos indígenas brasileiros quanto de políticas públicas que lhes possibilite tal protagonismo. As demandas atuais por parte das populações indígenas indicam que esse processo já está em curso, conforme observado por Fernandes (2019, p. 332): Cada vez mais as comunidades indígenas tomam para si a decisão sobre quem trabalha, realiza pesquisas ou mesmo pode ter acesso às aldeias. A superação da tutela via protagonismo indígena tem gradativamente retirado das mãos da Fundação Nacional do Índio (Funai) a suposta atribuição de emissão de autorizações sobre o ingresso de pessoas e realização de atividades nas aldeias indígenas. No caso dos antropólogos, tomados como parceiros de luta, representam a possibilidade de compreensão “de perto” das questões melindrosas com as quais os povos indígenas se deparam e que exigem, por exemplo, a realização de estudos ou laudos antropológicos. Nesse sentido, a partir da releitura da presença dos antropólogos nas aldeias, os trabalhos a serem realizados passam a ser meticulosamente negociados a partir de critérios próprios de cada povo indígena. As pesquisas antropológicas são negociadas, mesmo quando o antropólogo se apresenta com o objetivo de realizar pesquisas vinculadas aos interesses do Estado. Quando os antropólogos se apresentam vinculados às universidades, a relação pode ser outra, podendo significar a possibilidade de realização de alianças diversas e duradouras, mediadas pela possibilidade de realização de outras parcerias, como a mediação no ingresso de indígenas estudantes nos cursos universitários. A dialética envolvendo mudanças substanciais no campo dos conhecimentos e das culturas envolvendo as populações indígenas é complexa e envolve a atuação de diversos sujeitos, principalmente dos próprios indígenas, assumindo cada vez mais seu protagonismo, bem como da pressão e engajamento da sociedade civil organizada, nacional e internacional em contribuir com a defesa de seus direitos. TEMA 2 – A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL Os incêndios, que abriam a terra para os canaviais, devastaram as matas e com elas a fauna; desapareceram os veados, os javalis, os tapires, os coelhos, as pacas e os tatus. 5 O tapete vegetal, a fauna e a flora foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos (Galeano, 1994, p. 77). Historicamente, é difícil não classificar como um misto de desprezo e preconceito a visão ocidental majoritária em relação aos povos fora de seu quadro cultural de referências. Muito da riqueza construída pelas grandes potências europeias adveio da pilhagem e assassinato, como bem descreveu e historicizou Galeano (1994). Caso no passado colonial a cana tenha representado por um bom tempo o produto primordial da sanha acumuladora, na atualidade são o gado e as monoculturas do agronegócio os principais fatores de desmatamento. Na narrativa econômica antiecológica, os indígenas com suas reservas legais tornaram-se obstáculos ao desenvolvimento econômico. A miopia imediatista da agropecuária exportadora considera mais importante queimar e desmatar do que implementar mecanismos de exploração sustentáveis. O resultado desse embate é o aumento de conflitos e assassinatos de indígenas. Saiba mais O termo monoculturas refere-se à produção agrícola, quando em extensas áreas é cultivado um único tipo de produto, soja, milho, trigo, cana etc. Como decorrência dessa prática, a biodiversidade é afetada e reduzida. Esse tipo de agrossistema traz efeitos em toda cadeia ecológica e é responsável pelo rápido esgotamento do solo cultivado. Talvez possamos compreender melhor os desafios e problemas que vêm afetando os indígenas brasileiros, trazendo algumas das contribuições de Ailton Krenak, considerado um dos mais importantes ambientalistas e líderes indigenistas da atualidade. Sua atuação histórica é reconhecidanacional e internacionalmente. 6 Saiba mais Ailton Krenak – líder indigenista brasileiro. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/jornal/ailton-krenak-a-terra-pode-nos-deixar-para-tras-e- seguir-o-seu-caminho/>. Acesso em: 20 ago. 2021. Ailton Krenak tem vários livros publicados, todos traduzidos em diversas línguas. O tema recorrente em sua obra é a defesa da vida, da biodiversidade e das populações indígenas. Seus textos retomam elementos de uma sabedoria ancestral ao mesmo tempo em que trazem uma expressão poética de força e beleza. Vejamos algumas passagens de seu livro Ideias para evitar o fim do mundo. 1. O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera, onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia, e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades tem de se manter no tempo, dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado. O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa). Falar sobre a relação entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas a partir do exemplo do povo Krenak surgiu como uma inspiração, para contar a quem não sabe o que acontece hoje no Brasil com essas comunidades — estimadas em cerca de 250 povos e aproximadamente 900 mil pessoas, população menor do que a de grandes cidades brasileiras. Na visão de Krenak, existe uma incompatibilidade entre a preservação da biodiversidade e da cultura ancestral dos povos indígenas e o atual modelo de desenvolvimento econômico. Considerando que o progresso material e a exploração predatória dos recursos naturais são os principais inimigos da natureza, o que precisaria ser mudado: o modo de vida dos indígenas ou a cultura do homem branco? 2. Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, 7 vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos. Nesse trecho, Krenak alerta para o fato de que o aprisionamento da vida não envolve somente a cultura econômica, que transforma tudo em mercadoria, mas também aprisiona as subjetividades humanas na mesma lógica binária que opõe as diferenças e causa afastamento. No Brasil, a visão etnocêntrica em relação ao indígena é forte e perniciosa. TEMA 3 – INDIGENAS BRASILEIROS: DO ASSUJEITAMENTO AO PROTAGONISMO Os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens do ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo debaixo d’água, ou lavrando os campos até a exaustão, com as costas dobradas sobre pesados instrumentos de arar trazidos da Espanha. (Galeano, 1994, p. 20) Os estudos mais recentes sobre as questões indígenas como os de Gomes (2002) e Araujo (2006) identificam diversas ações de protagonismo por parte das populações indígenas. Uma maior presença em espaços acadêmicos e apropriação dos códigos da cultura branca, buscando com isso reconstruir e ressignificar o arcabouço teórico a partir de suas trajetórias e identidades. Cada vez mais, buscam se articular em coletivos e demandar o poder público em busca de estabelecer relações menos assimétricas. São movimentos em direção à construção da autonomia e autodeterminação, uma reivindicação antiga e recorrente que integra o centro da agenda do movimento indigenista nacional. 8 Figura 3 – Manifestação de líderes indígenas em Londres em 2019 Créditos: Meandering Images/ Shutterstock. Essa imagem registra a manifestação de lideranças indígenas ocorrida em 2019 em frente à embaixada em Londres com o objetivo de chamar a atenção da opinião pública mundial para as situações de conflitos que resultaram em 2019 na morte 113 lideranças indígenas. Existe uma clara percepção por parte dos coletivos indígenas de que é necessário fazer enfrentamentos em diversos campos da sociedade branca de modo a levantar suas bandeiras, conscientizando e mobilizando a opinião pública para as diversas situações de abuso que diferentes tribos em diferentes regiões do território nacional vêm sofrendo. Para Fernandes (2015, p. 329), trata-se de uma demanda estratégica de inserção indígena nas mais diversas áreas do conhecimento, com atenção especial àquelas consideradas prioritárias, como saúde, educação, direito, entre outras, também é parte das estratégias elaboradas pelos povos indígenas para o exercício do protagonismo nas relações com o Estado brasileiro, que devem ser pautadas em novos paradigmas, onde os indígenas, enquanto sujeitos plenos de direito e conhecimento, sejam também sujeitos na elaboração de suas próprias histórias, situando, desta feita, “os brancos” e suas instituições nas cosmologias e sentidos que são próprios de cada 9 povo indígena, produzindo novas relações políticas, históricas e cosmológicas com vistas à superação do estereótipo de vítimas da história. Não é difícil entender as motivações dessas iniciativas. Ou se organizam e lutam ou serão novamente colonizados e mortos. Os setores predatórios da agropecuária, do agronegócio, das madeireiras e das empresas de mineração só os veem como obstáculos ao avanço e expansão de seus interesses mercadológicos. Desde a década de 1970, quando as populações indígenas ampliaram sua participação social e política na sociedade branca, os esforços coordenados de suas lideranças visam superar de vez aquela visão de vítimas da história. TEMA 4 –ANTROPOLOGIA RURAL E O OLHAR SOBRE O CAMPO Pois para os povos e comunidades tradicionais, os territórios, os recursos que eles contêm e os conhecimentos que a eles se referem constituíram-se historicamente como objeto de disputa frente às forças do mercado de terras, do agronegócio, da mineração ou dos grandes projetos de desenvolvimento. (Acselrad, 2013, p. 6) Após 500 anos de uma história marcada por violência e dominação – não sem resistência –, os povos tradicionais, indígenas e milhões de negros que foram escravizados foram os responsáveis diretos pela geração de riqueza que em boa medida ajudou a constituir o Brasil como nação, além de terem contribuído pela preservação de um rico legado cultural. Ao considerarmos o passado e o presente, verificamos que ainda falta muito para o Brasil avançar em políticas de reconhecimento com garantias de sobrevivência e autonomia dos povos originários e dos trabalhadores do campo. O processo de reforma agrária no Brasil ainda tem muito a avançar,principalmente devido aos interesses do grande latifúndio e seu poder político. Uma efetiva distribuição de terra aos trabalhadores rurais promoveria maior pacificação no campo, aumentaria o potencial de segurança alimentar do país e ainda contribuiria com a preservação do meio ambiente, visto que é comum entre pequenos produtores rurais e na agricultura familiar a diversificação no cultivo e uso de técnicas sustentáveis, como a agroecologia. 10 Figura 4 – Camponeses Crédito: Shutterstock. Em que pese os avanços na última década em relação às condições das populações que tradicionalmente ocupam o espaço rural, os conflitos fundiários ainda são frequentes, e não raro ocasionam a morte de camponeses e seus líderes. Ao buscar explicar as relações entre território, cultura e identidade envolvendo os povos tradicionais, a antropologia rural oferece importantes contribuições. Para Wanderley (2001, p. 32), o mundo rural possui suas próprias especificidades, como um espaço de construção social diferenciado. Faz-se, aqui, referência à construção social do espaço rural, resultante especialmente da ocupação do território, das formas de dominação social que têm como base material a estrutura de posse e uso da terra e outros recursos naturais, como a água, da conservação e uso social das paisagens naturais e construídas e das relações campo-cidade. Em segundo lugar, enquanto um lugar de vida, isto é, lugar onde se vive (particularidades do modo de vida e referência ‘identitária’) e lugar de onde se vê e se vive o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção na sociedade nacional). Dada a grande diversidade de situações encontradas no meio rural, considero de grande necessidade e urgência a elaboração de tipologias que evitem generalizações precipitadas e que, ao mesmo tempo, consiga articular os diversos ‘tipos’ observados em um quadro geral de análise. Além das pesquisas e da elaboração conceitual e analítica, a antropologia rural tem contribuído na elaboração de políticas públicas de desenvolvimento, evidenciando a complexidade que envolve a dinâmica da vida das populações rurais e trabalhadores do campo. Um primeiro pressuposto de qualquer política voltada ao mundo rural é o respeito a suas populações e suas necessidades. As políticas precisam levar em conta os diferentes aspectos que envolvem o perfil social, o potencial produtivo do 11 território, os tipos de cultivo mais adequados, a assessoria técnica. Em uma palavra, é preciso uma atenção sistêmica e integrada, visando contribuir para o desenvolvimento em suas múltiplas dimensões, conforme os itens a seguir: • implementar medidas de aproveitamento sustentável dos recursos; • preservar a natureza e os ecossistemas; • assegurar o acesso à terra e ao trabalho digno e valorizado; • identificar e potencializar a diversidade territorial; • garantir o desenvolvimento integrado do campo, com acesso à tecnologia, infraestrutura, bens e serviços; e • fomentar a qualidade de vida no campo de modo a inibir o êxodo rural. O mote do desenvolvimento no campo precisa ser o da construção da cidadania e o da igualdade. As populações do meio rural precisam contar com o apoio de políticas que possibilitem sua autonomia, independência e valorização. TEMA 5 – UM OLHAR SOBRE A CIDADE No capitalismo atual, o econômico tem se emancipado da submissão ao político e se transformado na instância diretamente dominante que comanda a reprodução e evolução da sociedade. (Santos, 2006, p. 12) Segundo Mendoza (2000), o início dos estudos sobre a realidade urbana do ponto de vista antropológico se deu a partir do avanço da urbanização e industrialização do Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960, um fenômeno complexo com diversas implicações sociais e culturais. A complexidade que envolvia o crescimento e transformações das cidades aumentou o interesse de mais pesquisadores em compreender seus problemas. Autores como Florestan Fernandes e Otávio Velho deram importantes contribuições para que as ciências sociais pudessem ampliar seus objetos de estudo. Na década de 1970, a inovação metodológica trazida pela etnologia amplamente desenvolvida no contexto dos estudos indígenas possibilitou problematizar diversos aspectos da realidade urbana e temas como industrialização, pobreza, desemprego e violência ocupam a agenda da pesquisa antropológica. Mais do que produzir conceitos e teorias, existe um componente de engajamento nesse período, em parte explicado pelo contexto 12 da Ditadura Militar e a repressão contra a intelectualidade. O esforço também era produzir conhecimentos que pudessem ajudar a melhorar a sociedade. Figura 5 – Representação da realidade urbana Créditos: Vectormine/ Shutterstock. Essa imagem poderia ser interpretada como um alerta sobre os impactos que o modo de vida urbano advindo das sociedades industriais tem provocado no meio ambiente, o que levanta a indagação de que se haveria tempo de reverter os danos causados e encontrar possibilidades sustentáveis de viver e trabalhar nas cidades. A partir da década de 1980, a antropologia urbana vai ganhando cada vez mais espaço e reconhecimento dentro das ciências sociais. Ampliam-se as pesquisas sobre o fenômeno urbano e diversos programas de pós-graduação são criados. Em diversas universidades surgem grupos de pesquisa com foco na vida urbana. A antropologia urbana chega à atualidade consolidada como área de pesquisa que consegue incorporar a complexidade e heterogeneidade da vida nas cidades. Isso nos leva ao desafio de situar alguns campos de estudos, como a seguir. • Processos migratórios e trabalho: como vimos no tópico anterior, existem diversos desafios e problemas em relação ao desenvolvimento da vida no campo. As adversidades enfrentadas por milhares de trabalhadores rurais têm forçado a fuga para as cidades. Diante de 13 crises econômicas, desemprego e baixa escolarização, são poucas as possibilidades de sobreviver com dignidade nos espaços urbanos. • Degradação da sociabilidade urbana: a competição e o individualismo, mais que valores da cultura capitalista, tornaram-se formas de sobreviver frente à escassez generalizada da vida na cidade. A mercantilização geral do mundo da vida exige que se pague por tudo. Embora existam iniciativas de cooperação e redes de solidariedade, na selva de pedra ainda predomina um estado de “guerra de todos contra todos”. • Violência urbana: sem infraestrutura e proteção, a humanidade que existe em nós pode regredir, fazendo surgir diferentes formas de violência. Pobreza, fome, miséria e abandono favorecem tanto a vulnerabilidade social como o aumento da delinquência e criminalidade. Trouxemos três grandes problemas da vida urbana, e certamente existem muitos mais. Em geral, as pesquisas da antropologia seguem cada vez mais um diálogo interdisciplinar para explicar as causas mais profundas dos males da vida moderna nas cidades. Se esses problemas persistem e se agravam, como estamos testemunhando horrorizados em tempos de pandemia, não é por carência de estudos. Muitas das causas profundas dos males que afetam a humanidade, seja no campo ou na cidade, estão localizadas nas esferas política e econômica, nos centros de poder e de governo, que deliberam desconsiderando de seus cálculos a preservação da natureza e o bem-estar da maioria das pessoas. NA PRÁTICA Com base nos estudos realizados, assista ao filme/documentário A servidão moderna. Em seguida, trace um perfil do homem urbano moderno, caracterizando seus valores e comportamentos. Embora não se trate de uma observação participante, busque utilizar dos recursos do método etnográfico de observação, descrição e anotação para produzir seu estudo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ybp5s9ElmcY>. Acesso em: 20 ago. 2021.14 FINALIZANDO Ao longo dessa aula, buscamos apresentar algumas das contribuições da antropologia brasileira. Foi possível perceber que diferentes frentes de pesquisa foram sendo construídas a partir das mudanças na própria sociedade brasileira. Se num primeiro momento o tema central dos estudos antropológicos foram as populações indígenas, com o avanço dos processos de industrialização e urbanização, o interesse dos pesquisadores volta-se ao mundo rural e urbano. Na sequência, mesmo que de maneira introdutória, foi possível tocar em questões importantes como êxodo rural e reforma agrária, além de alguns dos problemas da vida urbana como processos migratórios e trabalho, violência e sociabilidade. 15 REFERÊNCIAS FERNANDES, R. de F. Povos indígenas e antropologia: novos paradigmas e demandas políticas. Espaço Ameríndio. Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 322-354, jan./jun. 2015. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/53317/34379>. Acesso em: 20 ago. 2021. GALEANO, E. As veias abertas da América latina. São Paulo: L&PM, 2010. Tradução: Sérgio Faraco. Disponível em <http://www.lpm.com.br/livros/Imagens/veiascon.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2021. GOMES, M. P. O índio na história: o povo Tenetehara em busca da liberdade. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. MENDOZA, E. S. G. Sociologia da Antropologia urbana no Brasil: a década de 70. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2000. SANTOS, M. et al. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1998. WANDERLEY, M. N. B. A ruralidade no Brasil moderno. Por um pacto social pelo desenvolvimento rural. In: Giarraca, n. 1, Una nueva ruralidad en América Latina? Buenos Aires: Clacso, 2001. p. 31–44.
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