Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
TEORIA E PRÁTICA EM ANTROPOLOGIA AULA 5 Prof. Everson Araujo Nauroski 2 CONVERSA INICIAL Os estudos antropológicos a partir do final do século XIX manifestam maior interesse em compreender os processos de construção das identidades nacionais. Diversos países mobilizaram seus intelectuais e movimentos nacionais para buscar em sua cultura popular elementos unificadores, símbolos e crenças em torno de uma identidade nacional. Ao longo desta aula, veremos como isso aconteceu no Brasil. Estudaremos também os limites da democracia liberal e sua concepção formalista de igualdade. Avançando, discutiremos o chamado “jeitinho brasileiro”, que, para alguns, nada mais é que a corrupção culturalizada e, para outros, uma forma de resistência da população mais pobre. Por fim, iremos compreender o fenômeno do patrimonialismo e alguns de seus efeitos, bem como apresentar contribuições de Roberto DaMatta sobre os significados culturais das festividades populares como o carnaval. TEMA 1 – A ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E BRASILIDADE A contribuição de Roberto DaMatta é importante para compreendermos a cultura brasileira em suas conformações. Conceitos como brasilidade e jeitinho são aprofundados e explicados histórica e socialmente. Outras características que fazem da cultura brasileira um desafio de compreensão interdisciplinar também são abordadas pelo autor. DaMatta nasceu no ano de 1936 na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Estudou história, sociologia e antropologia cultural. O contexto do início de seus estudos é marcado pela Ditadura Militar, e o próprio DaMatta reconhece que sua trajetória inicial é a de um jovem despolitizado e alienado, o que ele vê como positivo: com poucas ambições literárias ou políticas, mas foi precisamente isso que me permitiu abraçar a antropologia cultural como um instrumento tão poderoso quanto apaixonante de entendimento do mundo social e dedicar-me a ela com a cabeça aberta e limpa dos preconceitos formais e dogmas políticos. (DaMatta, 1987, p. 175) Com certo descolamento do que seriam as perspectivas canônicas em relação à análise social desse período, DaMatta entende como positivo poder iniciar sua trajetória intelectual sem a tutela epistemológica que vigorava mais à esquerda-marxista. O avanço de suas pesquisas sobre os povos indígenas fez com que a abordagem etnográfica fosse uma característica marcante de seu 3 olhar como antropólogo. Esse olhar esteve presente em seus inúmeros estudos posteriores sobre a realidade urbana e industrial do Brasil, incluindo temas como as festividades populares do carnaval e futebol. Figura 1 – Carnaval brasileiro (Rio 2017) Crédito: Gustavo Ardila/Shutterstock. Em sua obra Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979, DaMatta mergulha na relação existe entre a realidade social dura e cinza da sobrevivência e os significados sociais do carnaval, do jogo do bicho e do futebol. Para o autor, a tensão da vida social, do trabalho e do cotidiano nas cidades encontra alívio na dimensão lúdica e até catártica que envolve as diversas festas populares com seus rituais e significados, propiciando aos seus participantes um alento da dura labuta pela sobrevivência, uma fuga da realidade muitas vezes cruel e sem sentido. Será no conjunto de várias iniciativas populares, muitas envolvidas no véu do religioso e do espetáculo, Sendo necessário para isso situar essas procissões, paradas e carnavais como modos fundamentais por meio das quais a chamada realidade brasileira se desdobra diante dela mesma, mira-se no seu próprio espelho social e, projetando múltiplas imagens de si mesma, engendra-se como uma medusa, na luta e dilema entre permanecer e mudar. (DaMatta, 1997, p. 45) 4 De fato, a explicação de DaMatta encontra fundamento nos diversos relatos de pessoas pobres, de vida humilde e cercada de dificuldades, como a maioria dos moradores das comunidades e favelas, que se preparam o ano inteiro para poder desfilar em suas escolas de samba, e, por alguns minutos, realizarem um sonho, um desejo profundo de fazer parte de algo maior, de se sentirem especiais, sendo, de alguma maneira, o centro das atenções. Existe uma forte ambiguidade que acompanha o comportamento social do povo brasileiro. Essa ambuiguidade é analisada por DaMatta para além da ótica da oposição de classe, não sendo uma exigência necessária partir da epistemologia marxista para compreender e explicar a sociedade brasileira. Uma sociedade que, em sua complexidade e multiplicidade, nos convida a indagar sobre como podemos de pronto tornar o limem e o paradoxal como negativos em sistemas relacionais, como o Brasil, uma sociedade feita de espaços múltiplos, na qual uma verdadeira institucionalização do intermediário como um modo fundamental e ainda incompreendido de sociabilidade é um fato social corriqueiro? Como ter horror ao intermediário e ao misturado, se pontos críticos de nossa sociabilidade são constituídos por tipos liminares como o mulato, o cafuzo e o mameluco (no nosso sistema de classificação racial); o despachante (no sistema burocrático); a(o) amante (no sistema amoroso); o(a) santo(a), o orixá, o “espírito” e o purgatório (no sistema religioso); a reza, o pedido, a cantada, a música popular, a serenata (no sistema de mediação que permeia o cotidiano); a varanda, o quintal, a praça, o adro e a praia (no sistema espacial); o “jeitinho”, o “sabe com quem está falando?” e o “pistolão” (nos modos de lidar com o conflito engendrado pelo encontro de leis impessoais com o prestígio e o poder pessoal); a feijoada, a peixada e o cozido, comidas rigorosamente intermediárias (entre o sólido e o líquido) no sistema culinário; a bolina e a “sacanagem” (no sistema sexual). Isso para não falar das celebridades inter, trans, homo ou pansexuais, que, entre nós, não são objeto de horror ou abominação (como ocorre nos Estados Unidos), mas de desejo, curiosidade, fascinação e admiração. Tudo isto me levou a repensar o ambíguo como um estado axiomaticamente negativo (DaMatta, 2000, p. 14-15) A vida social ganha fluidez e a incompletude numa dualidade que se desdobra entre permanecer e mudar, o rir e o sofrer, o ser e não ser. Na dimensão da festa e do lúdico que envolve esses eventos, materializa-se ao mesmo tempo na riqueza e grandiosidade dos elementos da identidade nacional, mas também da miséria que os acompanha. TEMA 2 – DEMOCRACIA LIBERAL E CIDADANIA FORMALISTA A democracia moderna, mesmo como seus limites e imperfeições, é tida pela tradição da filosofia e da ciência política como a maior das conquistas das 5 sociedades ocidentais. Por limites e imperfeições, podemos citar a questão da representatividade política, muito mais próxima das elites econômicas e seus interesses que das necessidades do povo em geral. São fortes os indícios de que o Estado, no contexto do capitalismo global, sofre forte influência de diferentes lobbys, fazendo com que o interesse público não seja sempre a principal prioridade dos governos (Nauroski, 2017). Segundo Bobbio (1980), talvez o principal fator de sucesso de democracia liberal moderna seja a liberdade individual tida como valor fundamental. Desde as Revoluções Francesa e Industrial, liberdade e economia fundiram-se fazendo nascer o liberalismo econômico. A força dessa doutrina está em sua materialização nas instituições do Estado e na defesa da livre iniciativa econômica na indústria, no comércio, serviços e finanças. Figura 2 – Dinheiro Crédito: Dean Drobot/Shutterstock. Quando pensamos a democracia no bojo do liberalismo econômico, algumas contradições são difíceis de serem superadas, entre elas a questão da igualdade, pois conforme Goyard (2003, p. 214): Por um lado, ela é a promoção do eu e corresponde à descoberta metafísica do homem de que se orgulha Descartes: todo homem pode dizer “Eu”.Todavia, por outro lado, ela rompe a longa cadeia que ligava os homens no Tempo e no Espaço: o pontilhismo das mônadas humanas embriagadas com sua autosuficiência prevaleceu, no mundo democrático, sobre o grande Todo da humanidade. O individualismo democrático só faz com que os homens não se aproximem de seus semelhantes e se deleitem com seu “eu”, mas também as revoluções 6 democráticas – a exemplo da França revolucionária – os dispõem a se evitarem até a morte. Assim, o legado da Revolução Francesa responsável pela transformação mais importante da sociedade moderna permanece como horizonte inalcançável. A liberdade foi reduzida à liberdade econômica da empresa, a igualdade a uma condição formal perante as leis, e a fraternidade a uma palavra sem efetividade no campo das relações socais. No contexto da democracia liberal surge oposição entre liberdade e igualdade, quando esta for coletiva e representar interesses para além dos objetivos econômicos. Diante disso, Berlin (1981, p. 137) assim se posiciona: Cada coisa é o que é: liberdade, e não igualdade, imparcialidade, justiça, cultura, felicidade humana ou uma consciência tranquila. Se a liberdade de mim mesmo, de minha classe ou de meu país depende da infelicidade de um grande número de outros seres humanos, então o sistema que promove tal situação é injusto e imoral. Mas se eu mutilo ou perco minha liberdade individual, de forma a reduzir o opróbio de tal desigualdade e, desse modo, não amplio substancialmente a liberdade individual de outros, ocorre uma perda de liberdade. A tensão que marca liberdade e igualdade coletiva tende a ser mitigada pela ordem constitucional, na figura do Estado Democrático de Direito, que idealmente é baseada na soberania popular com atuação na mediação dos conflitos e manutenção da ordem social. O aparato constitucional materializado no ordenamento jurídico nacional em diferente níveis e esferas deveria, em tese, estabelecer os direitos e deveres de todos os cidadãos. Falamos em tese, pois sendo a sociedade um espaço de tensões e embates, nem sempre a aprovação de uma lei representa a manifestação da justiça ou do progresso social. Em face da discussão apresentada, a cidadania que emerge no contexto das democracias liberais está muito mais voltada ao consumo que a formação cultural. A ideia de direitos ligados à dignidade humana passa a ser vinculada à realidade de mercado. O espaço da cidadania é principalmente o espaço do mercado, da compra e da venda de mercadorias, de serviços, de sonhos e ilusões. Um sem número de estratégias buscam reforçar mais que comportamentos, ideias, símbolos e crenças nesse direcionamento, associando ao ato do consumo a afirmação do eu como entidade livre e soberana. Aspectos que configuram uma noção apequenada e restritiva de cidadania, bem diferente de uma noção ampliada e substantiva sobre os direitos e a dignidade humana, assemelham-se a algo apresentado por Dimenstein 7 (2005, p. 10-11), para quem ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos, civis, políticos e sociais. Na verdade, uma noção ampliada de cidadania é em si um obstáculo, um problema para a própria lógica do liberalismo econômico. Um cidadão pleno é, por certo, uma pessoa com capacidade de reflexão, de crítica e de participação social e política, atributos que nem sempre se coadunam com os interesses dominantes. TEMA 3 – O PÚBLICO E O PRIVADO: ELEMENTOS ANTROPOLÓGICOS DO COTIDIANO A abordagem de DaMatta busca compreender a realidade social muito mais por suas manifestações culturais que pela análise de suas clássicas contradições, como a luta de classes. Nesse aspecto, a teoria antropológica desse autor apresenta uma inovação, pois sua análise segue uma lógica estruturalista, dado que os fenômenos culturais diversos (carnaval, futebol, jogo do bicho, festas populares etc.) representam a manifestação da sociedade em sua pluralidade com diferentes aspectos a serem analisados no campo linguístico, simbólico ou axiológico, sem que seja necessário passar pelo crivo da análise das classes sociais e dos fatores econômicos. Outro elemento da abordagem relacional desse autor, a dualidade casa e rua, consiste em uma dicotomia entre o público e o privado, diferenciação de valores e de comportamentos em relação aos dois espaços. Figura 2 – Rua: espaço público 8 Crédito: Dirk Hudson/Shutterstock. Na rua, a sobrevivência, o “jeitinho”, a indiferença; na casa, a vida íntima, o pessoal, a proximidade. De certa forma, os espaços da rua e da casa existem como continuidade e descontinuidade da ação de diferentes sujeitos que se complementam, algo próprio e original do jeito do brasileiro viver: e às vezes, sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito e, sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres. Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem e o jeitinho promovem uma esperança de juntar numa totalidade harmoniosa e concreta. Essa é a sua importância, esse é o seu aceno. Aí está a sua razão de existir como valor social. (Damatta, 1986, p. 107) O espaço da rua é, por excelência, o da manifestação do jeitinho. Em sentido estrito, o jeitinho poderia ser visto como a corrupção no plano individual e generalizada, contudo, DaMatta reconhece nesse comportamento um expediente daqueles que estão fora das posições de poder, ou gozam de algum status mais elevado de reconhecimento. A rua e o jeitinho integram a estratégia popular de lidar com os conflitos da vida social cotidiana. Trata-se tanto do arranjo negocial e cordial quanto da carteirada (você sabe com quem está falando?). O jeitinho tem essa dupla manifestação, de modo que todos têm o direito de se utilizar da carteirada. Além disso, sempre haverá alguém no sistema pronto para recebê-lo (porque é 9 inferior) e pronto a usá-lo (porque é superior). Aliás, tudo indica que uma das razões sociais do ritual de separação em estudo é precisamente o de permitir e legitimar a existência de um nível de relações sociais com foco na pessoa e nos eixos e dimensões deixados necessariamente de lado pela universalidade classificatória da economia, dos decretos e dos regulamentos (DaMatta, 1997, p. 195) A dinâmica de funcionamento da sociedade brasileira extrapola esquemas burocráticos, racionais e impessoais. Existe uma fronteira fluida entre o público e o privado, algo que estudaremos mais adiante quando discutirmos as noções de patrimonialismo. No entanto, como explica Lima (2011, p. 53), “o público” para nós está associado a uma interação social indiscriminada: se é público, é ou do Estado – da “viúva” – ou “de todos”; se é de todos, é “geral”, não é de ninguém em particular e, por isso, pode ser apropriado particularizadamente por qualquer um... É o lugar da ausência da regra de aplicação universal. Essa fronteira borrada entre o público e o privado remonta ao Brasil Colônia e à herança da cultura lusitana na formação da sociedade brasileira, aspectos que estudaremos a seguir. TEMA 4 – EISTES, POVO E PATRIMONIALISMO Um dos primeiros autores a tratar do assunto, Max Weber (1864-1920), formulou o conceito de patrimonialismo para explicar o processo de formação política e econômica de sociedades anteriores à racionalidade técnica e burocráticado Estado Moderno. Para Weber, existia uma clara relação entre patriarcalismo e patrimonialismo na forma de exercer o poder político e econômico, sem muita distinção e distanciamento entre as esferas públicas e privadas. Como forma de exemplificar, podemos pensar na eleição de um político (prefeito, governador, presidente) que usa seu cargo de modo a instrumentalizar o aparato estatal (município, estado ou país) para satisfazer seus interesses e ambições pessoais. Essa quase indistinção entre o público e o privado demarca a diferença em relação à cultura política ateniense no seu período clássico entre os séculos IV e V a.C. A ideia de corrupção como uma conduta criminosa tem origem nessa distinção que faziam os atenienses entre a vida familiar e privada e a esfera da vida pública, na qual se discutiam as demandas coletivas. Quando essa fronteira se rompe, fazendo com que os interesses privados adentrem a esfera pública, ocorre uma clássica situação de corrupção. 10 Associados ao patrimonialismo, temos, ainda, outros fenômenos igualmente danosos ao interesse público, como o nepotismo, que consiste em empregar familiares de políticos com cargos públicos. O nepotismo pode ser direto, quando um prefeito nomeia seu filho ou esposa para um cargo público qualquer, ou nepotismo cruzado, quando há um jogo combinado de políticos para nomear parentes – não seus, mas de outros políticos e apoiadores – buscando, dessa forma, disfarçar tal prática. Figura 3 – Corrupção Crédito: Freedomz/Shutterstock. Atualmente no Brasil, o nepotismo é vedado pela legislação. A Constituição Federal (CF) de 1988, em seu art. 37, discorre: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência […]. Ainda com base na CF, o Supremo Federal, em 2008, aprovou a súmula n. 13, que traz de maneira expressa: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, 11 compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. A prática do nepotismo costuma ser danosa, pois acaba por priorizar os laços de parentesco e amizade sobre a carreira e a competência técnica. Trata- se de situação que, via de regra, acarreta malfeitos e prejuízos ao erário público e, consequentemente, ao povo como um todo. A prática do nepotismo tem íntima relação com situações de corrupção com fartos registros e processos legais envolvendo irregularidades, tráfico de influências, improbidade administrativa e pagamento de propinas. TEMA 5 – AS FESTIVIDADES NACIONAIS E A CATARSE BRASILEIRA A abordagem de DaMatta sobre sua compreensão da sociedade brasileira apresenta a situação de dilema em que vive a cultura popular na oscilação entre as unidades sociais, ora como indivíduo e destinatário da modernidade legal e coletiva, ora como pessoa submetida às diferentes hierarquias das relações sociais. De um lado, há a dualidade entre espaço público da rua, com suas determinações sociais e, de outro, a casa como espaço da vida privada, da intimidade própria de cada um. Figura 4 – Ilustração do malandro brasileiro Crédito: Beto Chagas/Shutterstock. 12 A figura do malandro analisada por DaMatta se situa entre essas duas realidades, na zona cinzenta entre o ser e o dever, entre a regra e a vontade, entre a norma e o desejo. Essa situação dilemática é caracterizada por DaMatta ao comprar a normatividade de alguns países como Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para citar três bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem. Nessas sociedades, não há nenhum prazer em escrever normas que aviltam o bom senso e as práticas sociais estabelecidas, abrindo caminhos para a corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público. Em face da expectativa de coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de uma placa de trânsito que diz “parar”, o que – para nós –, parece um absurdo mágico. Ficamos sempre confundidos e fascinados com a chamada disciplina existente nesses países. (DaMatta, 2004, p. 46) A curiosidade e a admiração em relação à moralidade e à normatividade de outros povos reconhece a disciplina como valor, no entanto, para DaMatta, essa admiração parece não ser suficiente para provocar mudanças na cultura social do brasileiro. Em geral, o brasileiro lida com a lei questionando-a, ou burlando-a sempre que possível. Parece existir um estado de suspeição em relação aos regramentos em geral, sendo o “jeitinho” a forma “natural” de lidar com conflitos, bem como entre a lei e o interesse pessoal. DaMatta criou a teoria do triângulo ritual onde distribui os ritos da ordem, da desordem e os cerimoniais neutros das religiões nos espaços da casa, rua e outro mundo. Porque a sociedade brasileira é mestre em transições equilibradas e em conciliações, estabeleceu-se no Brasil a lógica relacional, cuja principal característica é a capacidade de inventar pontes e formas de passagens entre esses espaços estabelecendo as relações. Como esses espaços são segregados e afastados uns dos outros, as festas são momentos importantes para a sociedade brasileira, pois por meio delas se pode relacionar os espaços reunindo-os para a vivência da totalidade. Assim, o carnaval – a festa da inversão – encontra nessa sociedade relacional um espaço ideal para manifestar-se. [...] O universo carnavalesco é um espaço onde os múltiplos da realidade brasileira acontecem. É onde a dialética ORDEM x DESORDEM formaliza alguns aspectos da formação da sociedade brasileira. O antropólogo explica ainda que é no ritual, em especial os coletivos, que a sociedade se manifesta autenticamente. O universo do carnaval é um espaço e um tempo diferente do cotidiano e possui suas próprias regras, as quais organizam uma nova lógica (Pokulat, p. 1091) As festividades populares, assim como o carnaval, possuem elementos que envolvem o corpo, as emoções, a fantasia e os desejos. Uma confusão de sentimentos em que reina a ambuiguidade social com a mistura e até a inversão de papéis sociais e de gênero. Em alguma medida, fundem-se rua e casa, indivíduo e coletividade, sagrado e profano. Ocorre uma profusão da subjetividade sem regramento, um fluir que permite, pelo menos naqueles 13 momentos, extravasar a frustração, a disciplina e o medo. São momentos sui generis que possibilitam o alívio das tensões num movimento catártico lúdico e de forte intensidade. NA PRÁTICA Com base nos estudos realizados, faça a leitura do capitulo 6, O mito da concórdia: o jeito que consta, no Livro Crítica da razão tupiniquim (1982), de Roberto Gomes. O livro pode ser lido pelo link: <https://www.academia.edu/5729641/Roberto_Gomes_- _Critica_da_Razao_Tupiniquim>. Após a leitura, responda à seguinte questão: O que é o jeitinho brasileiro? FINALIZANDO Ao longo desta aula, foi possível compreender fenômenos culturais como a construção da identidade nacional no Brasil por meio de elementos da cultura popular; os limites da democracia liberal; e o fenômeno do “jeitinho brasileiro”. Além disso, abordamos as raízes históricas e culturais do patrimonialismo. Por fim, trouxemos a contribuição de Roberto DaMatta para explicar o processo catártico que envolve a participação do povo nas festividades populares, como o carnaval e o futebol.14 REFERÊNCIAS BERLIN, I. Quatro ensaios sobre a liberdade. Tradução de Wamberto Hudson Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. BOBBIO, N. A teoria das formas de governo na história do pensamento político. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. DAMATTA, R. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, UFRJ/PPGAS/Museu Nacional, v. 6, n. 1, p. 7-29, , 2000. ______. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ______. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. GOMES, R. Crítica da razão tupiniquim. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1982. GOYARD-FABRE, S. O que é democracia? Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. NAUROSKI, E. A. Teorias sociológicas e problemas sociais contemporâneos. Curitiba: InterSaberes, 2017. POKULAT, L. F. Um olhar sobre o romance malando. Disponível em: <https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/Ebooks/Web/978-85-397-0198- 8/Trabalhos/61.pdf>. Acesso em: 8 set. 2021.
Compartilhar