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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE BIOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOBIOLOGIA LABORATÓRIO DE EVOLUÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO LUCAS EMANUEL FERREIRA O cabo de guerra entre a evitação de patógenos e o comportamento sexual em um cenário pandêmico Natal/2023 Lucas Emanuel Ferreira O cabo de guerra entre a evitação de patógenos e o comportamento sexual em um cenário pandêmico Dissertação desenvolvida no Laboratório de Evolução do Comportamento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da Prof. Dra. Fívia Araújo Lopes, como etapa de formação de Mestre em Psicobiologia. Natal/2023 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Leopoldo Nelson - -Centro de Biociências - CB Elaborado por KATIA REJANE DA SILVA - CRB-15/351 Ferreira, Lucas Emanuel. O cabo de guerra entre a evitação de patógenos e o comportamento sexual em um cenário pandêmico / Lucas Emanuel Ferreira. - 2023. 137 f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências, Programa de Pós-graduação em Psicobiologia. Natal,RN, 2023. Orientadora: Profa. Dra. Fívia de Araújo Lopes. 1. COVID-19 - Dissertação. 2. Sistema imunológico comportamental - Dissertação. 3. Aversão a patógenos - Dissertação. 4. Comportamento sexual - Dissertação. I. Lopes, Fívia de Araújo. II. Título. RN/UF/BSCB CDU 616-036.21 Título: O cabo de guerra entre a evitação de patógenos e o comportamento sexual em um cenário pandêmico Autor: Lucas Emanuel Ferreira Data da defesa: 10 de fevereiro de 2023 – 14h Banca Examinadora: Professora Doutora Rovena Clara Galvão Januário Engelberth Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Professora Doutora Anthonieta Looman Mafra Faculdade de Medicina – Instituto de Psiquiatria – USP Professora Doutora Fívia de Araújo Lopes (Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN AGRADECIMENTOS Primeiramente ao meu pai, José Ferreira e a minha tia, Lourdes Ferreira, pois sem o apoio deles durante toda minha trajetória acadêmica eu não teria conseguido e também a minha avó Francisca Maria da Conceição (in memoriam) que apesar de todos os meus defeitos sempre me apoiou em todas as minhas escolhas. A doutora Fívia de Araújo Lopes por sua orientação, pelo auxílio e amizade durante a elaboração deste trabalho e por permitir o desenvolvimento desta dissertação. Ao Laborátorio de Evolução do Comportamento Humano (LECH) e ao professor Dr. Felipe Nalon Castro que foi fundamental nas análises estatísticas. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia e a todos os professores que dele fazem parte, aprendi e aprendo muito com todos vocês, obrigada por tudo. Obrigado também ao CNPq por fomentar minha pesquisa, bem como toda a ciência feita neste país. A tantos outros que direta e indiretamente ajudaram principalmente aqueles que se disponibilizarem em responder os questionários, permitindo que este trabalho pudesse ser concluído. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO Uma vez que a defesa imunológica contra patógenos é dispendiosa e meramente reativa, a defesa antipatógena humana também é caracterizada por mecanismos comportamentais pró-ativos que inibem o contato com patógenos. Esse sistema imunológico comportamental (SIC) compreende processos psicológicos que reduzem o risco de contágio a partir da resposta a pistas ambientais por meio da ativação de comportamentos aversivos. Esses processos têm efeitos importantes para a cognição social humana e o comportamento social, incluindo implicações no comportamento sexual, sobretudo na sociossexualidade. Isto é particularmente importante quando novas doenças infecciosas (por exemplo, a COVID-19) se espalham pela população. Em nosso trabalho, apresentamos os conceitos teóricos sobre SIC, sociossexualidade e diferenças individuais. Empiricamente, buscamos compreender, a partir de uma perspectiva evolucionista, se o SIC tem relação com a resposta sociossexual e a ansiedade e se essas variáveis se manifestam de formas diferentes, de acordo com o sexo e a orientação sexual dos indivíduos. A pesquisa utilizou um conjunto de questionários online: questionário sociodemográfico, Escala de Transtorno de Ansiedade Generalizada, Questionário de Vulnerabilidade Percebida à Doença, Subescala de repulsa de patógenos, e Versão reduzida do inventário de sociossexualidade. Participaram 274 voluntários, de todas as regiões do país, com idade entre 18 e 64 anos, heterossexuais e não heterossexuais. No estudo 1, os homens tiveram níveis mais altos de sociossexualidade, sobretudo nos domínios de comportamento e desejo, mas não em atitude; já as mulheres apresentaram níveis mais significativos de aversão a patógenos e em ansiedade. Encontramos correlações negativas entre SIC e sociossexualidade e correlação positiva entre SIC e ansiedade. Somente o domínio comportamento da sociossexualidade se correlacionou com ansiedade. No estudo 2, paricipantes não-heterossexuais pontuaram mais no questionário de sociossexualidade, sendo caracterizados como mais irretristos sexualmente, enquanto o público heterossexual pontuou mais nas escalas de aversão moral e aversão germinativa, embora não tenham sido encontradas diferenças gerais na escala total do SIC. Nossos dados revelam que há uma tensão entre o comportamento sexual e a tendência em evitar pistas consideradas potencialmente patogênicas, indicando que esses dois aspectos estão em constante interação ou conflito. Palavras-chave: COVID-19, Sistema Imunológico Comportamental, aversão a patógenos, comportamento sexual. 6 ABSTRACT Since the immune defense against pathogens is expensive and merely reactive, human anti- pathogen defense is also characterized by proactive behavioral mechanisms that inhibit contact with pathogens. This behavioral immune system (BIS) comprises psychological processes that reduce the risk of contagion by responding to environmental cues through the activation of aversive behaviors. These processes have important effects on human social cognition and social behavior, including implications for sexual behavior, especially sociosexuality. This is particularly important when new infectious diseases (eg. COVID-19) spread through the population. In our work, we present theoretical concepts about the behavioral immune system, sociosexuality and individual differences. Empirically, we seek to understand, from an evolutionary perspective, whether SBS is related to sociosexual response and anxiety and whether these variables manifest themselves in different ways, according to the sex and sexual orientation of individuals. The research used a set of online questionnaires: sociodemographic questionnaire, Generalized Anxiety Disorder Scale, Perceived Vulnerability to Illness Questionnaire, Pathogen Disgust Subscale, and Short Version of the Sociosexuality Inventory. We had the participation of 274 volunteers, from all regions of the country, aged between 18 and 64, heterosexual and non-heterosexual. In study 1, men had higher levels of sociosexuality, especially in the domains of behavior and desire, but not in attitude; women, on the other hand, showed more significant levels of aversion to pathogens andanxiety. We found negative correlations between BIS and sociosexuality and a positive correlation between BIS and anxiety. Only the behavior domain of sociosexuality was correlated with anxiety. In study 2, non-heterosexual participants scored higher on the sociosexuality questionnaire, being characterized as more sexually unrestrained, while the heterosexual audience scored higher on the moral aversion and germinal aversion scales, although no general differences were found on the total BIS scale. Our data reveal a tension between sexual behavior and the tendency to avoid cues considered potentially pathogenic, indicating that these two aspects are in constant interaction or conflict. Keywords: COVID-19, Behavioral Immune System, aversion to pathogens, sexual behavior. 7 “Você nunca sabe a força que tem. Até que a sua única alternativa é ser forte” (Johnny Depp). 8 APRESENTAÇÃO A presente dissertação possui a seguinte estruturação: primeiramente, será apresentada uma introdução geral, seguida por dois capítulos, em que o primeiro está em formato de capítulo de livro (já publicado) e o segundo subdividido em dois artigos empíricos, seguido por uma seção de considerações finais, referências bibliográficas e apêndices/anexos. A introdução geral apresentará o contexto geral do trabalho, introduzindo alguns conceitos-chave essenciais na subárea e que serão explorados no capítulo teórico e nos artigos empíricos. Nela também estarão contidas as hipóteses e predições que foram analisadas nos capítulos empíricos. No primeiro capítulo, escrito em formato de capítulo de livro, publicado na obra Temas em evolução do comportamento humano II (ISBN: 978-85-8333-276-3), está contida a base teórica da dissertação, trazendo conceitos e explicações indispensáveis para compreensão do leitor acerca da temática geral abordada na dissertação. Em seguida, teremos o segundo capítulo, apresentado em formato de dois artigos científicos, que foram construídos a partir da coleta de dados durante o mestrado. Seu conteúdo contempla resultados e discussão quanto às hipóteses e predições que foram apresentadas na introdução geral. As considerações finais apresentarão o contexto em que a coleta de dados foi feita, o resumo dos principais pontos discutidos no trabalho, conclusão sobre os objetivos propostos na introdução, reflexão sobre a contribuição do estudo para a área de pesquisa e limitações do estudo e sugestões para pesquisas futuras. Além disso, também terá um quadro resumindo as hipóteses, predições e resultados encontrados nesta pesquisa. Por fim, estarão apresentadas as referências bibliográficas e anexados os instrumentos utilizados na coleta de dados e outros documentos relacionados a esta pesquisa. 9 Sumário INTRODUÇÃO GERAL ...................................................................................................... 12 Impactos da pandemia COVID-19 na saúde mental .......................................................14 Como a Psicologia Evolucionista explica nossas reações diante de patógenos? .............15 Sistema imunológico comportamental ............................................................................15 Sistema imunológico comportamental e comportamento social ......................................17 Sistema imunológico comportamental e comportamento sexual .....................................18 JUSTIFICATIVA ................................................................................................................. 19 OBJETIVO GERAL............................................................................................................. 20 Objetivos específicos .....................................................................................................20 Capítulo 1 ............................................................................................................................ 22 CAPÍTULO TEÓRICO ........................................................................................................ 24 Intolerância, repulsa, sensibilidade: o sistema imune comportamental e suas implicações à saúde humana .............................................................................................................24 1 Impacto sobre o comportamento sexual ...............................................................29 2 Aversão à doenças e ideologia política .................................................................33 3 Estereótipo e preconceito .....................................................................................35 4 Qual a relação entre o SIC e a pandemia da COVID-19? ......................................38 5 Considerações finais ............................................................................................42 Referências .......................................................................................................................... 43 Capítulo 2 ............................................................................................................................ 51 ARTIGO EMPÍRICO 1 ........................................................................................................ 52 Sensibilidade ao nojo, ansiedade e sociossexualidade na pandemia da COVID-19 .........52 Resumo .........................................................................................................................52 Introdução .....................................................................................................................53 Método ..........................................................................................................................57 Participantes ..........................................................................................................57 10 Procedimento de coleta de dados ...........................................................................58 Instrumentos ...........................................................................................................58 Análise de dados ....................................................................................................59 Resultados .....................................................................................................................60 Discussão ......................................................................................................................63 Referências ....................................................................................................................72 ARTIGO EMPÍRICO 2 ........................................................................................................82 Sociossexualidade durante a pandemia da COVID-19: comparações entre o público heterossexual e não-heterossexual ..................................................................................82 RESUMO......................................................................................................................82 Introdução ............................................................................................................................83 Método ..........................................................................................................................87 Participantes ..........................................................................................................87 Procedimento de coleta de dados ...........................................................................88 Instrumentos ...........................................................................................................88 Análise de dados ....................................................................................................89Resultados .....................................................................................................................90 Discussão ......................................................................................................................92 Considerações finais ......................................................................................................95 Referências ....................................................................................................................97 LIMITAÇÕES GERAIS ..................................................................................................... 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 106 REFERÊNCIAS GERAIS .................................................................................................. 110 Apêndice A – TCLE ........................................................................................................... 115 Apêndice B - Questionário Sociodemográfico ..................................................................... 118 Apêndice C – Convite à pesquisa ........................................................................................ 122 Anexo A - Questionário GAD-7 ......................................................................................... 123 11 Anexo B - Questionário de Vulnerabilidade Percebida à Doença (Marques, 2016) .............. 125 Anexo C – Subescala de repulsa de patógenos .................................................................... 126 Anexo D - SOI-R Brasil ..................................................................................................... 127 Anexo E – Parecer consubstanciado do CEP ....................................................................... 129 12 INTRODUÇÃO GERAL O sexo, quando buscado de forma livre e por prazer, é uma popular forma de lazer que proporciona múltiplos benefícios tanto físicos quanto psicológicos (Berdychevsky & Carr, 2020). A pandemia do coronavírus, causada pelo vírus SARS-CoV-2, causou mudanças radicais nas relações sexuais de grande parte das pessoas em todo o planeta (Ludwick & Zarbock, 2020). Com o intuito de evitar o avanço da doença através da diminuição da curva de contágio, a maior parte dos governos impuseram às suas populações sérias medidas de restrição. Ordens de bloqueio e diretrizes de distanciamento social geraram mudanças significativas no cotidiano das populações, influenciando diretamente nas atividades sociais e de lazer, sobretudo o sexo. Além disso, o medo do contágio também foi um impeditivo para a concretização do contato sexual corpo-a-corpo. A situação é ainda mais delicada para aqueles que moram sozinhos e sob “lockdown” se viram obrigados a passar por um período de celibato para conter o avanço da pandemia. É importante salientar que até mesmo coabitados tiveram suas vidas sexuais diretamente afetadas. Esses casais ficaram suscetíveis a certo desconforto, pois a pandemia exacerbou o incômodo natural de se viver confinado com outra pessoa durante todo o dia, a limitação do próprio espaço e o fato de compartilhar todos os momentos diários, propiciando a ocorrência de brigas e deixando vir à tona conflitos e problemas típicos da vida a dois, intensificando esses problemas e pondo em risco a própria relação (Ibarra et al., 2020). Durante o confinamento, os casais não conseguiam se afastar quando começaram uma discussão. Devido ao momento de isolamento e constante paralisação social, eles se viram impossibilitados de se afastarem momentaneamente um do outro em momentos de estresse e desgaste na relação. Isso pode aumentar a atenção dada ao argumento e, assim, pode prolongar ou intensificar o conflito. Toda essa carga emocional afeta negativamente a vida sexual, pois 13 fatores psicológicos, como estados de humor específicos podem inibir o desejo sexual, tais como nas condições de depressão e ansiedade, associadas a um baixo desejo sexual (Mieras, 2018; Nimbi et al., 2018). Com muitos países em lockdown, os hábitos sexuais sofreram, consequentemente, mudanças profundas (Cocci et al., 2020). Além disso, a presença contínua dos filhos em casa, devido ao fechamento das escolas, prejudicou significativamente a vida sexual de coabitados, pois os momentos de intimidade consequentemente diminuíram (Ibarra, 2020). O efeito foi tão relevante na vida familiar que, em 2020 no Brasil, houve um crescimento de 177% nas procuras por advogados especializados em Direito Familiar e divórcios, em comparação com o ano anterior (Neves, 2020). Além disso, o Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF) apontou, no segundo semestre de 2020, uma turgência de 43,8 mil processos de divórcio, sendo este o maior número já registrado no Brasil, totalizando um acréscimo de 15% em relação ao ano anterior (Souza, 2020). A organização indicou um aumento de 4% em 2021 nos casos de divórcio em comparação a 2020. Especialistas em relacionamentos acreditam que os estressores externos, como a COVID-19, juntamente com problemas preexistentes, como problemas financeiros e depressão, podem impor tensão nos relacionamentos, levando até mesmo casais fortes a enfrentar tensões (Pietromonaco & Overall, 2020) Aqueles que estavam engajados em uma relação estável, porém sem viver junto, ao contrário, tinham um forte desejo pelo outro, mas não podiam expressar esse desejo em uma relação sexual por causa do distanciamento físico e social e a impossibilidade de aproximação devido às medidas restritivas impostas pelos governos (Ibarra et al., 2020). Já em relação aos solteiros tornou-se praticamente impossível manter relações sexuais casuais, visto que não havia (caso fossem seguidas as orientações de distanciamentos social) oportunidade de conhecer novos parceiros. Apesar disso, a sexualidade pode ser exercida de maneira alternativa 14 graças ao uso da Internet, apesar de nem todos os indivíduos estarem dispostos a fazer sexo online. O sentimento de aflição com a situação mundial, acompanhado com a exposição constante de notícias que veiculam imagens de doença e morte, comprometeu fortemente a estabilidade emocional dos indivíduos. Na literatura, pesquisas investigaram as respostas psicossociais da população em geral à epidemia de síndrome respiratória aguda grave (Cao et al., 2020; Taylor, 2019; Wang et al., 2019). Os itens incluídos nas respostas psicológicas foram ansiedade, medo, depressão, raiva, culpa, dor e perda, estresse pós-traumático e estigma (Chew et al., 2020). Baseado nos dados anteriormente citados fica evidente que as consequências psicológicas foram e têm sido avassaladoras e o comportamento sexual tem sido uma das esferas mais afetadas. Impactos da pandemia COVID-19 na saúde mental Ao longo do período pandêmico, houve uma deterioração gradual na saúde mental, à medida que as restrições governamentais de mitigação da pandemia se prolongaram (Murphy & Elliot, 2022). A maioria das pessoas demonstrou resiliência, mas uma minoria considerável foi afetada emocionalmente (Prati & Mancini, 2021). A deterioração da saúde mental envolve principalmente o aumento da depressão, mas também o aumento da ansiedade, insônia e abuso de substâncias (Prati & Mancini 2021). Estudos longitudinais durante a COVID-19 revelaram que o humor deprimido tende a persistir ou piorar progressivamente, enquanto os níveis de ansiedade tendiam a flutuar; por exemplo, a ansiedade aumentou à medida que os casos de infecção aumentaram e diminuíram à medida que as taxas de infecção e as restrições de distanciamento social diminuiram (Yarrington et al. 2021). Depois que as comunidades foram liberadas do confinamento, a saúde mental tendeu a melhorar em média, mesmo quando outras restrições pandêmicas (por exemplo,prevenção de reuniões sociais) ainda estavam em vigor e 15 as vacinas ainda não estavam disponíveis (Lego et al., 2022). No entanto, é provável que nem todas as pessoas conseguiram se recuperar do estresse ocasionado durante a pandemia. Como a Psicologia Evolucionista explica nossas reações diante de patógenos? A Psicologia Evolucionista traz uma hipótese que pode contribuir para explicar a relutância das pessoas realizarem contato social e, consequentemente, sexual. Ser morto por uma doença contagiosa era uma grande ameaça para os nossos ancestrais. Isso significa que certos comportamentos para evitar doenças foram selecionados evolutivamente (Griskevicius & Kenrick, 2013). Comportamentos que têm como objetivo evitar doenças fundamentam-se na ideia de um sistema imunológico comportamental, que é complementar ao sistema imunológico fisiológico, e visa prevenir os indivíduos de contrair doenças (Griskevicius & Kenrick, 2013; Schaller & Park, 2011). As pistas ambientais podem sinalizar uma ameaça vinda de algum patógeno (Tybur & Lieberman, 2016), como tosse, espirro, sujeira, cheiros desagradáveis, deformidade ou todos os tipos de objetos transmissores de patógenos (por exemplo, fezes, sangue, comida estragada). A ativação desse sistema é feita por meio da experiência da emoção nojo e predispõe as pessoas a se envolverem em uma ampla variedade de comportamentos de evitação de doenças (Griskevicius & Kenrick, 2013). No caso do sistema imunológico comportamental, o custo de contrair uma doença infecciosa é muito maior do que um possível custo acarretado pela evitação de algo ou alguém que não represente risco real (um erro denominado falso positivo). Isso significa que a tendência a interpretar situações ou pessoas como portadoras de doenças infecciosas, mesmo que elas não sejam de fato portadoras, pode ser um viés adaptativo (Haselton et al., 2016). Sistema imunológico comportamental O sistema imunológico comportamental (SIC) pode afetar diretamente a cognição e o afeto, e tem sido utilizado para explicar vários comportamentos a nível grupal e também 16 individual (Kock et al., 2020). O aumento da rejeição em relação a pessoas que fogem dos padrões físicos e comportamentais socialmente estabelecidos como, por exemplo, deficientes físicos, idosos e indivíduos com sobrepeso tem sido associado com a hipótese do sistema imunológico comportamental, pois estes indivíduos são inconscientemente considerados como portadores de patógenos, uma vez que eles não estão dentro dos padrões médios da população (Schaller & Neuberg, 2012). Porém, é importante deixar claro que o sistema imunológico comportamental não diz respeito apenas a uma questão de aparência física do outro, mas também está ligado a uma maior preocupação com a autoimagem devido ao potencial de ser visto negativamente pelos outros (Ackerman et al., 2018). Além das questões apresentadas anteriormente, o sistema imunológico comportamental tem implicações para traços e valores de personalidade. Por exemplo, pessoas que vivem em regiões historicamente caracterizadas pela presença elevada de ameaça por patógenos tendem a pontuar menos em extroversão, sociossexualidade e abertura a experiências (Schaller & Murray, 2008). Igualmente, a ameaça de patógenos tem sido associada ao aumento do conservadorismo político, religiosidade e forte apego a laços familiares (Beall et al., 2016; Fincher & Thornhill, 2012; Murray & Schaller, 2012). Outro estudo, conduzido por Shook e colaboradores (2020), examinou se as diferenças individuais na reatividade do sistema imunológico comportamental (aversão a germes e patógenos, sensibilidade ao nojo) foram associadas à preocupação com a COVID-19 e ao envolvimento em comportamentos de saúde preventivos recomendados (distanciamento social, lavar as mãos, limpar/ desinfetar, evitar tocar o rosto, usar máscaras). A aversão a germes e a sensibilidade ao nojo de patógenos foram as duas variáveis mais consistentemente associadas à preocupação com a COVID-19 e aos comportamentos preventivos de saúde, enquanto representam covariáveis demográficas, de saúde e psicossociais. Os resultados têm implicações para o desenvolvimento de intervenções destinadas a aumentar os comportamentos preventivos de saúde. 17 Sistema imunológico comportamental e comportamento social Dado que o SIC tem sido consistentemente associado a valores socialmente conservadores, alguns estudos sugeriram que tais valores podem funcionar como estratégias de prevenção de doenças (Terrizzi et al., 2013). Entretanto, valores conservadores e atitudes de evitação de doenças e patógenos se correlacionaram de forma contrária a algumas predições. No Brasil, indivíduos que se identificam com ideologias mais progressistas como a esquerda e a centro-esquerda demonstraram maior probabilidade de responder “Sim” ao uso de vacinas, sendo 12,39% e 8,9%, respectivamente. Essas diferenças entre grupos foram consideradas significativas. Ou seja, há diferenças entre grupos condicionados a sua ideologia em tomar a vacina. Em contrapartida, pessoas à direita (24,2%) e centro-direita (11%) apresentam maior probabilidade de escolher a resposta “Depende da vacina” (Barberia et al, 2021). Os resultados têm implicações para o desenvolvimento das intervenções pretendidas para aumentar os comportamentos preventivos de saúde. Porém, é importante deixar claro que como em outros comportamentos adaptativos, o sistema imunológico comportamental não é perfeito em sua capacidade de detecção e resposta a ameaças. Erros de generalização e falsos positivos não podem ser descartados. A teoria do gerenciamento de erros explica esse fenômeno observando que a direção de um viés depende dos custos relativos de erros de falso positivo a falso negativo (Haselton et al., 2016). Esse viés é particularmente forte quando os benefícios de evitar a doença claramente superam os custos, como quando uma pessoa é, ou se sente particularmente vulnerável à doença (Faulkner et al 2004; Schaller & Park, 2011). Portanto, esse pode ser o caso durante surtos de doenças regionais ou globais (Kim et al., 2016). 18 Sistema imunológico comportamental e comportamento sexual Diante do exposto, é importante dizer que o sistema imunológico comportamental e o comportamento sexual são dois instintos presentes no reino animal, inclusive em seres humanos, que atuam conjuntamente, embora aparentemente possam entrar em conflito. A atividade sexual envolve contato interpessoal próximo que traz consigo um risco aumentado de transmissão de doenças. Consequentemente, assim como o despertar de uma motivação de acasalamento pode levar as pessoas a se sentirem menos enojadas por atos sexuais que normalmente provocam nojo (Stevenson et al., 2011), a ativação do sistema imunológico comportamental pode levar as pessoas a serem mais cautelosas em termos comportamentais no contexto das relações sexuais. Uma manifestação desse cuidado comportamental foi documentada em um estudo que impregnou o odor ambiente de fezes humanas para ativar o sistema imunológico comportamental e, em seguida, avaliou as intenções dos indivíduos de comprar e usar preservativos (Tybur et al., 2011). Os resultados revelaram que, em comparação com uma condição de controle sem odor, a sugestão olfativa que desencadeia nojo levou ao aumento da intenção de usar preservativos. Estudos recentes identificaram um fenômeno ligeiramente inusitado ligando a ameaça da doença aos comportamentos sexuais das mulheres. Fundamentada na premissa de que a aptidão reprodutiva feminina pode ser aprimorada pela produção de descendentes geneticamente diversos, e que este benefício de aptidão de longo prazo pode ocorrer especialmente em ecologias caracterizadas por altas densidades de patógenos, Hill et al. (2015) previram que quandoas mulheres antecipam um futuro a longo prazo caracterizado por ameaças crescentes de uma variedade de doenças, elas irão, consequentemente, desejar uma maior variedade de futuros parceiros sexuais. Hill et al. (2015) relataram resultados de cinco estudos que apoiaram essa hipótese. Em relação às condições de controle (por exemplo, uma condição que ressaltou uma previsão para dificuldades econômicas futuras), mulheres 19 relataram um desejo maior de variedade sexual sob condições que tornaram destacadas uma previsão de ameaças crescentes de doenças múltiplas. Estes efeitos ocorreram principalmente entre mulheres que se autopercebiam como mais propensas a contrair infecções. Tais efeitos não generalizaram as preferências de variedade em domínios não sexuais, e os efeitos foram específicos para as atitudes sexuais femininas (nenhum desses efeitos foi encontrado para homens) (Hill et al, 2015). Considerados em conjunto, esses estudos sugerem uma variedade de fenômenos distintos ligando a ameaça da doença às atitudes sexuais, e ainda sugeriram que a natureza dessas relações pode depender crucialmente se as pessoas - talvez especialmente as mulheres - estão respondendo a preocupações sobre a ameaça imediata de infecção (do tipo que muitas vezes desperta nojo), ou uma preocupação mais orientada para o futuro com as implicações para a saúde e a forma física da prole. JUSTIFICATIVA Os estudos anteriormente apresentados fornecem alguns dados introdutórios sobre a atividade sexual da população em geral. Porém, não foram capazes de fornecer uma compreensão mais detalhada dos fatores que explicam a atividade sexual relatada e nem como o sistema imunológico comportamental atua nos indivíduos e como ele pode afetar o comportamento sexual. A qualidade do relacionamento e o estado de humor foram duas variáveis não avaliadas nesses estudos, limitando o entendimento. Porém, é pertinente supor que o papel de tais fatores foram moderadores na influência da pandemia na atividade e comportamento sexual durante esse período. Nesse sentido, estudos referentes ao comportamento sexual e como ele está imbricado ao emocional em contextos hostis como no da pandemia, pela lente evolutiva expandem a compreensão e propiciam efeitos positivos a partir de uma educação sexual mais abrangente, 20 inclusive aumentando o conhecimento dos jovens e melhorando suas atitudes relacionadas à saúde mental e comportamentos sexuais e reprodutivos. Uma educação sexual de qualidade – dentro ou fora das escolas – pode ajudar a diminuir o comportamento sexual de risco ou as taxas de infecção por DST/HIV. Além disso, a sexualidade e a vida sexual são experiências altamente individuais e se expressam pelo bem-estar físico e mental. Uma vez que a saúde sexual e reprodutiva está fortemente ligada ao bem-estar psicológico, emocional e social e o atual aumento de doenças psicológicas provavelmente a afetou gravemente, estudos a respeito dessas relações constituem uma rica fonte de dados para o conhecimento acerca do comportamento humano. OBJETIVO GERAL Compreender, a partir de uma perspectiva evolucionista, a magnitude da ansiedade acarretada pelo distanciamento social e isolamento social durante a pandemia da COVID-19 no comportamento sociossexual de adultos bem como a relação e do sistema imunológico comportamental na manifestação do comportamento sexual durante o período histórico analisado. Objetivos específicos ● Investigar se há diferenças de sexo nas estratégias de sociossexualidade mediante estresse psicológico pandêmico; ● Identificar se homens e mulheres pontuam de modo diferente em relação à sensibilidade ao nojo (sistema imunológico comportamental) durante o período pandêmico; ● Observar como as variáveis sociossexualidade, ansiedade e sensibilidade ou repulsa a patógenos se interrelacionam durante a pandemia da COVID-19. https://www.sciencedirect.com/topics/medicine-and-dentistry/reproductive-public-health 21 ● Identificar se há diferença entre a população heterossexual e não-heterossexual na medida de sistema imunológico comportamental e sociossexualidade. HIPÓTESES E PREDIÇÕES As hipóteses e predições são as seguintes: Hipótese 1: Há diferenças entre os sexos quanto à percepção ao nojo e sociossexualidade durante o período pandêmico. Predição 1.1: Mulheres relatarão maior sensibilidade geral ao nojo e menor pontuação em todos os três domínios da sociossexualidade; Predição 1.2: Os homens pontuam menos no escore geral do sistema imunológico comportamental ao mesmo tempo em que pontuam mais alto do que as mulheres em todos os três domínios da sociossexualidade. Hipótese 2: Há uma relação entre ansiedade e sociossexualidade durante a pandemia de COVID-19. Predição 2.1: Mulheres que relatam níveis mais altos de ansiedade, apresentam menor desejo sexual e menor pontuação no domínio comportamento da sociossexualidade; Predição 2.2: Homens apresentam menor restrição sociossexual tendo pontuações maiores nos três domínios da sociossexualidade ao mesmo tempo em que apresentam menores níveis de ansiedade; Hipótese 3: Há uma relação entre ansiedade e sistema imunológico comportamental (SIC) durante a pandemia da COVID-19: Predição 3.1: Mulheres relatam um SIC mais ativo e níveis mais altos de ansiedade em comparação com os homens, durante a pandemia da COVID-19; Hipótese 4: Há diferenças na sociossexualidade em função da orientação sexual no período pandêmico: 22 Predição 4.1: Durante a pandemia, heterossexuais apresentaram sociossexualidade mais restrita que não-heterossexuais, independente do sexo; Hipótese 5: Há diferenças na expressão do sistema imunológico comportamental (SIC) em função da orientação sexual, durante o período pandêmico: Predição 5.1: O público heterossexual possui maior sensibilidade em todos os domínios da escala de SIC do que os indivíduos não heterossexuais. Capítulo 1 23 Status: Publicado Ferreira, L. E. (2022). Intolerância, repulsa, sensibilidade: o sistema imune comportamental e suas implicações à saúde humana. In Lopes, F. A., Castro, F. N. e Santos, D. B. (Orgs.), Temas em evolução do comportamento humano II (pp. 63-98). Natal: IFRN. [ISBN: 978- 85-8333-276-3] 24 CAPÍTULO TEÓRICO Intolerância, repulsa, sensibilidade: o sistema imune comportamental e suas implicações à saúde humana Lucas Emanuel Ferreira ¹Programa de Pós-graduação em Psicobiologia, Laboratório de Evolução do Comportamento Humano - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil Quem diria que temos uma defesa imunológica comportamental? Ou que, quando ativada, ela pode diminuir nossa motivação para nos conectarmos socialmente com nossos amigos? Embora as doenças infecciosas tenham representado uma ameaça significativa e persistente à sobrevivência e ao bem-estar humanos ao longo da história, apenas recentemente as implicações psicológicas e comportamentais de ameaça de doenças se tornaram um tópico de pesquisa nas ciências do comportamento. Buscando esclarecer essa questão, apresentamos neste capítulo o conceito de sistema imune comportamental – série de mecanismos psicológicos que permitem que organismos detectem a presença de agentes infecciosos (patógenos) em seu ambiente externo, tomando atitudes preventivas para se defender desses agentes - e suas implicações sociais e comportamentais no que diz respeito à ameaça percebida à doença nos processos de julgamento e tomada de decisão e como isso impacta nas normas culturais. É provável que a ameaça representada por doenças infecciosas ao longo da evolução humana tenha causado mais mortesdo que todas as outras causas de mortalidade combinadas (INHORN; BROWN, 1990). Entretanto, essa ameaça não impacta a vida de apenas seres humanos; os cientistas caracterizam a evolução de todas as espécies animais como tendo sido 25 impulsionada substancialmente por uma corrida armamentista evolucionária de um bilhão de anos entre os parasitas e seus hospedeiros (MURRAY; PROKOSCH; AIRINGTON, 2019; ZUK, 1992, 2007), com apenas os vírus sendo responsáveis por 33% das adaptações genéticas de mamíferos (ENARD et al., 2016). O resultado dessa corrida armamentista em humanos e demais vertebrados é o sistema imunológico, que é composto por um conjunto de mecanismos extraordinariamente complexos que derrotam infecções de forma reativa quando elas ocorrem, possuindo a capacidade de gerar bilhões de anticorpos únicos (FANNING; CONNOR; WU, 1996; MURRAY; PROKOSCH; AIRINGTON, 2019). Protegendo o hospedeiro de agentes químicos e de microrganismos, o sistema imune fisiológico está presente desde bactérias a mamíferos e tem sido um sucesso em termos evolutivos. Esse sistema é capaz de responder adequadamente às mudanças que ocorrem no ambiente externo dos organismos (NICHOLSON, 2016; SHAKHAR, 2019). É também evidente que todos os seres vivos se mantêm interligados por uma gigante e complexa rede de contato. Isso é ainda mais notório para as espécies que desenvolveram o gregarismo (tendência a viver em grupos/bando). Porém, apesar do surgimento e manutenção da existência de grupos sociais terem trazido uma série de benefícios há também, em especial, o custo do aumento de doenças transmissíveis. (SHAKHAR, 2019). Os seres humanos, além de outros animais, ao longo de sua história evolutiva têm tido contato com diversos organismos patogênicos como bactérias, vírus, fungos, protozoários e helmintos (SCHALLER, 2011). As populações ancestrais que tiveram proximidade com esses organismos desenvolveram, por pressão seletiva, adaptações que diminuíram os custos impostos por esses patógenos (SHELDON; VERHULST, 1996). Essas adaptações nada mais são que os mecanismos fisiológicos de defesa que detectam a presença de patógenos e, caso detectados dentro do corpo do indivíduo infectado, acionam respostas que em última instância eliminam o organismo invasor (SCHALLER; PARK, 2011). Existem várias linhas de defesa 26 que evoluíram para nos proteger contra infecções. Esses mecanismos de defesa interagem entre si e atuam de forma colaborativa, mas também serial. Por exemplo, as barreiras químicas e físicas bloqueiam a entrada de patógenos nos tecidos. Inclui a pele que serve como uma barreira física e as membranas mucosas do estômago que secretam suco gástrico e moléculas que encapsulam e destroem muitos patógenos (SHAKHAR, 2019). Se os patógenos ultrapassarem a primeira linha de defesa e invadirem o potencial hospedeiro, o sistema imunológico será ativado (KELLEY; DE BONO; TROWSDALE, 2005). Porém, se os patógenos ultrapassarem a primeira linha de defesa e invadirem o corpo, o sistema imunológico fisiológico será ativado. Este é o mecanismo de defesa mais conhecido. As proteínas por ele utilizadas são codificadas por mais de 7% do nosso genoma (KELLEY et al., 2005), refletindo a forte pressão seletiva ocasionada por patógenos. É importante destacar que a defesa imunológica fisiológica é energeticamente custosa. Em primeiro lugar, ela consome recursos calóricos que poderiam ser direcionados para outras atividades como busca por parceiros, acasalamento e procura por alimentos. Além disso, essa primeira linha de defesa produz algumas reações a presença de invasores como fadiga, febre e outras respostas fisiológicas debilitantes e fisiologicamente agressivas. Em terceiro, a resposta fisiológica é meramente reativa, ou seja, ela só é acionada quando o patógeno já está instalado no corpo do hospedeiro (SCHALLER; PARK, 2011; SHELDON; VERHULST, 1996). Devido a esses custos ligados à defesa imunológica contra patógenos, Schaller, em 2007, conceituou um sistema de defesa adicional e complementar – o sistema imunológico comportamental (SIC). O SIC é tido como um sistema motivacional que modifica o comportamento e através de pistas perceptuais é capaz de induzir a redução de contato com agentes infecciosos (Fig. 1). É a partir dele que os indivíduos acionam mecanismos emocionais e cognitivos que identificam ameaças potenciais a partir de pistas, consequentemente 27 interpretando-as e respondendo-as de maneira evasiva e se distanciando da possível fonte contagiosa (SCHALLER; PARK, 2011). Figura 1: modelo ilustrativo sobre o mecanismo de ativação do sistema imune comportamental e como ele reverbera sobre o sistema motivacional (tomada de decisão). O SIC foi observado em várias espécies animais, como em girinos, chimpanzés e morcegos (HART, 1990; WISENDEN; GOATER; JAMES, 2009). O tipo de defesa comportamental pode ser classificado como defesa pró-ativa (de caráter antecipatório) ou reativa. A automedicação e o comportamento de nojo foram algumas das maneiras de defesa comportamental reativas já observadas (DANTZER; KELLEY, 2007; LARSON; DUNN, 2001; SINGER; MACE; BERNAYS, 2009). Porém, também há evidências de defesa comportamental proativa como no caso de espécies de girinos que evitam nadar próximos a girinos doentes (KIESECKER et al., 1999), fêmeas de camundongo que apresentam aversão a odores de camundongos machos infectados por nematódeos (KAVALIERS; COLWELL, 1995); chimpanzés que respondem agressivamente a outros chimpanzés infectados pelo vírus causador da poliomielite (GOODALL, 1986); e morcegos que adotaram um padrão solitário 28 de hibernação como estratégia de distanciamento para evitar vizinhos infectados por uma doença fúngica (LANGWIG et al., 2012). Nos humanos, as principais evidências que apoiam a presença do SIC se concentram em estudos que apontam na capacidade de detectar doentes por meio de alguns indícios. Por exemplo, através do odor presente em peças de roupa, foi possível detectar indivíduos que tiveram seu sistema imunológico ativado, indicando que possivelmente essas pessoas tiveram seu organismo invadido por algum patógeno (OLSSON et al., 2014; REGENBOGEN et al., 2017). Além disso, a aparência física e o modo de caminhar foram percebidos como menos saudáveis (SUNDELIN et al., 2015) e desejáveis (REGENBOGEN et al., 2017). Há também vários estudos que mostram que o SIC tem implicações sociais referente a falsos positivos como no caso do preconceito, xenofobia, categorias sociais e diferenças interculturais (FAULKNER et al., 2004a; MILLER; MANER, 2012; PARK, 2003; PARK; SCHALLER; CRANDALL, 2007). Nos próximos parágrafos iremos explorar os impactos do SIC no comportamento social (Fig. 2) e consequentemente à saúde humana. 29 Figura 2: imagem ilustrativa que representa as muitas maneiras pelas quais a ameaça de infecção molda o comportamento social. (Imagem adaptada) Direitos autorais da imagem por Paola Bressan e Peter Kramer (2021). 1 Impacto sobre o comportamento sexual O SIC é capaz de afetar diretamente o comportamento sexual. Isso é explicado porque as relações sexuais podem ser a porta de entrada para infecções sexualmente transmissíveis (IST). Como os micróbios infecciosos são muito pequenos para serem vistos diretamente, o sistema imunológico comportamental foi moldado para monitorar e responder a sinais que se correlacionam de forma confiável com a presença de patógenos (SCHALLER; PARK, 2011). Várias linhas de pesquisa têm se concentrado em compreender melhor o que leva a 30 comportamentos que evitam IST, incluindo o uso de preservativo (ALBARRACÍN et al., 2001; BRYAN; AIKEN; WEST, 1996) e medidas profiláticas pós-coito sexual, como tentativas de rastreio de IST’s (LORENC et al., 2011; MEVISSENet al., 2011). Muitas das pesquisas sobre prevenção de IST’s são conduzidas por teorias sociais cognitivas, como a teoria do comportamento planejado (AJZEN, 1985, 1991; GODIN; KOK, 1996) e o modelo de crença na saúde (JANZ; BECKER, 1984; ROSENSTOCK, 1974). A teoria do comportamento planejado (TPB) propõe que a decisão de um indivíduo de se envolver em um comportamento específico, como fazer ou não sexo, pode ser baseada em sua intenção de se envolver nesse comportamento (AJZEN, 1985). Pressupõe-se que os fatores motivacionais estão sujeitos as intenções internas que influenciam um comportamento; indicam o quão as pessoas estão dispostas a tentar, de quanto esforço planejam exercer para executar o comportamento. Como regra geral, quanto mais forte a intenção de se envolver em um comportamento, mais provável deve ser seu desempenho (AJZEN, 1991). Já o modelo de crença em saúde tenta prever o comportamento relacionado à saúde em termos de certos padrões de crenças. A motivação de uma pessoa para assumir um comportamento de saúde pode ser dividida em três categorias: percepções individuais, fatores modificadores e probabilidade de ação. As percepções individuais são fatores que afetam a percepção da doença e da importância da saúde para o indivíduo, a suscetibilidade percebida e a gravidade percebida. Os fatores de modificação incluem variáveis demográficas, ameaça percebida e pistas para ação. A probabilidade de ação são os benefícios percebidos menos as barreiras percebidas de tomar a ação de saúde recomendada. A combinação desses fatores causa uma resposta que muitas vezes se manifesta na probabilidade desse comportamento ocorrer (JANZ; BECKER, 1984; ROSENSTOCK, & STRECHER, 1988). Esses modelos propõem que as crenças pessoais (por exemplo, aquelas relacionadas à avaliação de risco e habilidades pessoais) são os principais determinantes do comportamento de saúde. 31 A suposição de que as pessoas têm acesso consciente a esses fatores psicológicos anteriormente citados que influenciam o comportamento de saúde está subentendida em tais modelos. Embora essas abordagens para o comportamento de proteção à saúde tenham sido úteis na previsão do comportamento e na identificação de alvos para intervenções, uma série de processos motivacionais adicionais e menos examinados (o próprio SIC) também pode estar associados ao comportamento de saúde (GRUIJTERS et al., 2016). Mas como o SIC impacta as relações sexuais? Um estudo conduzido por Oaten em 2019 observou que a excitação sexual diminui a aversão a IST’s em potencial e aumenta a disposição para fazer sexo. Além disso, foi identificado que indivíduos que apresentaram tolerância maior ao nojo estiveram positivamente predispostos a se envolverem em relações sexuais. Obviamente, há muitos benefícios para o comportamento sexual, como a procriação e a experiência de prazer e intimidade - benefícios que geram fortes motivações para envolvimentoem comportamento sexual (HILL; PRESTON, 1996). Na verdade, a motivação sexual e a evitação a patógenos estão provavelmente relacionados de forma antagônica entre si. Ou seja, estados objetivos relevantes, como evitar patógenos e o desejo de experimentar prazer sexual, podem atuar como forças psicológicas opostas ao motivar o comportamento. Portanto, o estudo supracitado evidencia o cabo de guerra entre o sistema de motivação sexual e o SIC, ambos modulando de modo oposto o controle de tomada de decisão sexual. Do mesmo modo, indivíduos do sexo masculino demonstraram redução nos julgamentos negativos acerca do risco de contaminação por ISTs graças à excitação sexual (BLANTON; GERRARD, 1997). Posteriormente, estudos confirmaram que o comportamento de risco assumido tanto por homens quanto por mulheres é intensificado pelo grau de excitação sexual e em consequência, os sentimentos de autocontrole são reduzidos (SKAKOON-SPARLING; CRAMER, 2016; SKAKOON- SPARLING; CRAMER; SHUPER, 2016). 32 Para além da excitação sexual anteriormente citada, a atratividade física também é um fator importante. Indivíduos independente da orientação sexual e da identidade de gênero apresentam maior disposição em fazer sexo desprotegido com um parceiro atraente em relação a um menos atraente (EPSTEIN et al., 2007; SHUPER; FISHER, 2008). Baseado nisso é importante se perguntar: se um estado de excitação sexual e um parceiro potencial atraente aumentam a probabilidade de tomar uma decisão sexual arriscada, como fazer sexo sem proteção, por que isso ocorre? Uma hipótese plausível pode ser a emoção de nojo. Quando a excitação sexual é alta, as respostas de nojo relacionadas à ameaça do patógeno podem diminuir (BORG; DE JONG, 2012). Com efeito, indivíduos com nível de evitação de patógenos mais elevados são menos inclinados a fazer sexo com múltiplos parceiros, o que é um fator-chave para adquiri uma doença infecciosa (JOFFE et al., 1992). As pessoas com um SIC mais ativo podem julgar os custos do sexo casual como maiores que os benefícios, portanto fariam menos sexo casual e perceberiam uma maior necessidade de manterem um comportamento de proteção á saúde (por exemplo, fazerem teste de HIV após sexo desprotegido). Portanto, uma motivação básica para evitar patógenos pode influenciar a atitude e a intenção em relação ao comportamento de proteção à saúde (GRUIJTERS et al., 2016). A pista sensorial olfativa é uma forte preditora na identificação de possíveis riscos de infecção. Tybur e colaboradores (2011) convidaram os participantes para um laboratório que foi pulverizado com um odor semelhante aos associados a fontes de patógenos. Os autores levantaram a hipótese de que esta pista olfativa para patógenos motivaria inconscientemente o comportamento preventivo - aumentando a intenção dos participantes de usar, comprar e discutir o uso de preservativos em futuros encontros sexuais. Os resultados foram consistentes com esta hipótese: os participantes que foram expostos a patógenos relataram maiores intenções de uso de preservativo do que os participantes em uma condição controle. Outra 33 evidência foi apresentada por Meertens e seus colaboradores, em 2013: foi demonstrado que os participantes que se imaginaram acordando em um quarto sujo depois de um encontro sexual passaram a se considerar mais suscetíveis a ISTs em comparação aos participantes que se imaginaram acordando em um ambiente limpo depois de uma relação amorosa à noite. Os participantes que idealizaram a sala suja também consideraram as chances de se envolverem em sexo casual inseguro significativamente menor no futuro. 2 Aversão à doenças e ideologia política A orientação política é uma forma consciente de pensamento presente em um indivíduo ou em um grupo, incluindo uma ideologia (por exemplo, esquerda ou direita) e/ou preferência partidária. Os cientistas sociais normalmente se debruçam sobre o que pode influenciar a orientação política. Já os psicólogos questionam quais fatores inconscientes podem moldar a nossa opinião política. Nesse sentido, os sistemas que abordam traços neurofisiológicos, como o SIC, são cruciais para a compreensão dessas preferências (HOLMES, 2016). O SIC pode induzir as atitudes políticas adotadas pelas pessoas, em especial aquelas que reduzem a probabilidade de contato com patógenos, reais ou fictícios, mesmo que esses indivíduos não tenham a mínima consciência dos mecanismos psicológicos que podem estar por trás de tais inclinações. (BILLINGSLEY; LIEBERMAN; TYBUR, 2018). A atitude favorável dos governos a respeito de uma maior abertura a entrada de imigrantes é um notório exemplo de política vista com considerável resistência por aqueles que se consideram mais conservadores no campo político. A Ciência Política demonstra que são duas as razões que contribuem para a oposição à entrada de um indivíduo em um território que não sejao de origem: (a) o desejo de conservar as normas e valores culturais vigentes, especialmente por aqueles indivíduos com menor grau de instrução e menos abertos a visões de mundo, progressistas (WRIGHT; CITRIN; WAND, 2012) e (b) preocupações com a 34 competição econômica e a instabilidade no emprego, com indivíduos de baixa renda e baixa qualificação sendo que mais se opõem (HAINMUELLER; HISCOX, 2010). Mas qual razão psicológica subjacente poderia estar influenciando tamanha repulsa a essa política? Pense bem: você já sabe que o SIC é um sistema adaptativo comportamental que previne o contato contra possíveis fontes de infecção. Agora imagine a seguinte situação: seria desastroso para nossos ancestrais se aproximarem indiscriminadamente de tudo e todos que estavam presentes no ambiente, pois não se sabia o risco que aquela interação poderia ocasionar. Porém, igualmente desvantajoso seria evitar a formação de novos vínculos potencialmente benéficos. Com base nisso, é razoável pensar que os indivíduos deveriam negociar o custo e a probabilidade de serem infectados com o custo e a probabilidade de renunciar à cooperação (AARØE; OSMUNDSEN; PETERSEN, 2016; TYBUR; LIEBERMAN, 2016). Essas perdas e possibilidades mudam de acordo com o contexto e também de pessoa para pessoa (AL- SHAWAF; LEWIS, 2013; FESSLER; ENG; NAVARRETE, 2005; FESSLER; NAVARRETE, 2003). Desse modo, o SIC possui uma flexibilidade que ajusta sua resposta à ameaça representada pelo meio ambiente (CURTIS; DE BARRA; AUNGER, 2011) e a capacidade do indivíduo lidar com isso (SCHALLER; DUNCAN, 2007). Buscando elucidar os fatores acerca da rejeição às políticas de imigração, a psicologia evolucionista, através do SIC, vem reunindo um corpo de evidências que apontam que a oposição à imigração também surge de inclinações psicológicas mais profundas. Por esse viés, os pesquisadores propõem que os imigrantes podem desencadear reações de repulsa que motivam sentimentos anti-imigração (FAULKNER et al., 2004b). A primeira possibilidade é a de que os humanos desenvolveram uma mecanismo psicológico adaptativo que provoca hostilidade contra grupos externos desconhecidos, porque indivíduos de outros grupos e regiões carregaram diferentes patógenos potencialmente perigosos durante sua história 35 evolutiva (FINCHER; THORNHILL, 2012). A segunda hipótese é que a tendência de perceber outros indivíduos como vetores de patógenos é um subproduto, em vez de predisposição adaptativa, de uma tendência de hipervigilância contra tudo e qualquer coisa que pareça desconhecida (AARØE; OSMUNDSEN; PETERSEN, 2016). Por exemplo, os indivíduos tendem a tratar muitos desvios físicos do fenótipo médio no interior de seu grupo interno como um sinal de risco potencial de patógenos, especialmente desvios que são semelhantes aos sintomas reais de doença, como erupções cutâneas, inchaço e descoloração da pele. A hipervigilância pode até ir além de sinais de anormalidade física. Ela também pode ser ativada por práticas comportamentais desconhecidas que podem sugerir um risco de patógenos (por exemplo, má higiene ou hábitos alimentares incomuns) (FESSLER; NAVARRETE, 2003). Tanto diferenças físicas quanto culturais podem ser mentalmente interpretadas, a partir do SIC como pistas que indicam presença de patógenos, causando estranhamento e fazendo com que as pessoas evitem o contato com indivíduos etnicamente diferentes, consequentemente despertando a preferência por políticas de imigração mais restritivas. É importante salientar que os indivíduos com maior sensibilidade imunológica comportamental são mais inclinados a reagir defensivamente a fontes percebidas de patógenos, incluindo imigrantes (FAULKNER et al., 2004a). Esta área de pesquisa tem implicações importantes para descobrir o que motiva as crenças políticas das pessoas, mas tem recebido relativamente pouca atenção até agora. Eventos políticos e sociais atuais são lembretes de que é imperativo continuar a descobrir o que desperta as pessoas a tomarem certas decisões dessa natureza. 3 Estereótipo e preconceito Há dentro da hipótese do SIC uma abordagem sociofuncional que tenta explicar o preconceito baseado na ameaça por patógenos (COTTRELL; NEUBERG, 2005). Eles sugerem 36 que o preconceito intergrupal se caracteriza por reações afetivas específicas que são evocadas em resposta à percepção de ameaças (à saúde grupal, liberdade individual, integridade física e recursos econômicos) advindas de grupos externos que supostamente colocam em risco a vida em grupo. Em outras palavras, a sensibilidade ao nojo, que evoluiu como proteção contra ameaças de patógenos, também desencadeia reações a pistas que não são visceralmente nojentas, como pessoas com características raras ou que fogem aos padrões majoritariamente aceitos, e, portanto, podem explicar o preconceito em relação aos membros desses grupos. No contexto das reações emocionais, o preconceito refere-se a crenças negativas sobre os outros que podem ou não ser baseadas em dados da realidade (ALLPORT, 1954). Ameaças percebidas a segurança intergrupal predizem o medo e a evitação como estratégia de proteção; quando relativas à saúde do grupo, predizem reações de nojo para minimizar o risco de contaminação; quando interpretadas como direcionadas aos valores internos de um grupo, a resposta se traduz em repulsa moral e em tentativas de manter os sistemas de valores dentro do grupo por meio da limitação de influências do grupo tido como perigoso; e obstáculos percebidos em relação ao funcionamento dentro do grupo (como ameaças aos recursos econômicos, propriedade, liberdades e direitos individuais, e cooperação social) predizem respostas comportamentais de raiva para recuperar os recursos e restaurar a dinâmica tradicional do grupo que se sente ameaçado (COTTRELL; NEUBERG, 2005). Um exemplo clássico de uma forma de preconceito ainda muito presente ao redor do mundo é a rejeição a pessoas não heterossexuais (especialmente gays e lésbicas). Os comportamentos negativos dirigidos a homossexuais variam de agressão física violenta a votar contra o casamento gay (FILIP-CRAWFORD; NEUBERG, 2016). Estereótipos, preconceitos 37 e comportamentos discriminatórios dirigidos às pessoas com base na orientação sexual variam amplamente. As perspectivas existentes sobre o preconceito sexual defendem diferentes causas subjacentes, às vezes fornecem evidências díspares ou conflitantes para suas raízes e, normalmente, não levam em conta variações observadas nos estudos (PIRLOTT; COOK, 2018). Um número considerável de estudos demonstrou relação entre a sensação de nojo de pessoas heterossexuais e preconceito em relação aos gays (ou seja, homofobia) (KISS; MORRISON; MORRISON, 2020). A literatura científica a respeito do assunto ainda é incipiente, com poucos estudos buscando explicar por que ocorrem sentimentos de nojo de indivíduos heterossexuais para com gays, lésbicas e bissexuais. No entanto, uma revisão da literatura existente sobre homonegatividade (preconceito e discriminação dirigidos a indivíduos considerados gays ou lésbicas) (MORRISON; MORRISON, 2003) sugerem que certas crenças amplamente aceitas podem ser responsáveis pela capacidade dos membros da comunidade LGBT+ de desencadear um estado afetivo negativo em pessoas que não se sentem pertencentes a essas minorias sexuais. São elas: (1) estigma de “sodomia”; (2) homens homossexuais como vetores de doenças; (3) homens gays como desestabilizadores de valores heteronormativos; e (4) rejeição (percebida) dos gays em relação a práticas religiosas tradicionais (KISS; MORRISON; MORRISON, 2020). A repugnância de cunho sexual, moral e relativa ao medo de contaminação são preocupações significativas para a compreensão de comportamentos homonegativos. As percepções de anormalidadesão um indicativo para a presença de patógenos (SCHALLER; NEUBERG, 2012). O contato sexual com indivíduos do mesmo sexo é inerentemente não reprodutivo; assim, a ideia de tal contato pode provocar repulsa sexual, particularmente em resposta a percepções de interesse sexual indesejado. PIRLOTT; NEUBERG (2014) 38 demonstraram que homens e mulheres heterossexuais percebem gays e lésbicas, respectivamente, como ameaças de interesse sexual indesejado, e estas ameaças percebidas predizem atitudes homofóbicas. Como a pressão seletiva desencadeou a repulsa como uma adaptação filogenética, a evitação de patógenos continua a desempenhar um papel fundamental na psicologia de enfrentamento a contaminantes e contágios. Portanto, compreender a psicologia de rejeição a patógenos é útil para elucidar os mecanismos que provocam a reação de nojo. Nesse sentido, é importante salientar que gays e lésbicas não são o único grupo que provoca reações de repulsa. Pesquisas indicam que o nojo é uma reação comum contra portadores de obesidade (LIEBERMAN; TYBUR; LATNER, 2012), a pessoas com deficiências físicas, anomalias faciais e outras anormalidades corporais (FAULKNER et al., 2004a), como também contra indivíduos que não compartilham as mesmas crenças religiosas hegemônicas, como no caso dos ateus (COOK; COTTRELL; WEBSTER, 2015), entre outros. Dessa forma, entende-se que os novos modelos evolutivos baseados na tese do sistema imunológico comportamental podem impulsionar uma melhor compreensão da diversidade de comportamentos anti-homossexuais e fatores pessoais e situacionais que induzem e moderam sua ocorrência, bem como ajudam a elucidar outras formas de preconceito presentes em nossa sociedade, ajudando a quebrar crenças equivocadas sobre indivíduos que não fazem parte do grupo hegemônico. 4 Qual a relação entre o SIC e a pandemia da COVID-19? No final de 2019, o mundo inteiro foi pego de surpresa por uma doença que redefiniu os padrões da sociabilidade humana. Quase 2 anos depois, a COVID-19 ainda representa uma séria ameaça à saúde global. O vírus SARS-CoV-2 se espalhou tão rapidamente que em março de 2020 a Organização Mundial de Saúde decretou status de pandemia ao surto (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020). A fim de diminuir a transmissão do vírus, os governos e as organizações de saúde recomendaram uma série de comportamentos preventivos, como 39 aumento de frequência da lavagem de mãos, evitar tocar o rosto, aumentar a frequência da limpeza e desinfecção de superfícies, distanciamento social para evitar contato muito próximo com outras pessoas e utilização de máscaras (CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION., 2020; WORLD HEALTH ORGANIZATION., 2020). Desta maneira, apesar do sucesso da produção de vacinas e sua respectiva aplicação, a pandemia impôs a todos mudanças de comportamento que ainda persistem como um possível meio de reduzir a transmissão de doenças. Nesse sentido, diferenças individuais na reatividade do SIC (aversão a germes, sensibilidade a repulsa por patógenos) estão associadas à preocupação com COVID-19 e ao envolvimento em comportamentos de saúde preventivos recomendados anteriormente destacados (SHOOK et al., 2020). Embora as pessoas encontrem patógenos diariamente, a ameaça dos patógenos é realçada por situações como uma temporada de gripe ou resfriado, ou no caso de uma epidemia ou doença de propagação global. Para desacelerar o surto de novas doenças infecciosas como COVID-19, é crucial envolver-se em comportamentos preventivos, como distanciamento social e práticas rígidas de higiene pessoal. No entanto, muitos menosprezam essas recomendações nos estágios iniciais e críticos porque os sinais de doença não são imediatamente evidentes. Portanto, o SIC é fundamental para compreender os fatores que predizem as percepções da ameaça de pandemia e a importância dos comportamentos preventivos. Um desses fatores pode ser a evitação de patógenos característicos das pessoas (MAKHANOVA; SHEPHERD, 2020). Os indivíduos variam quanto à sensibilidade ao nojo, ou na facilidade com que um fica enojado e também na intensidade de sua resposta de nojo (HAIDT; MCCAULEY; ROZIN, 1994; TYBUR; LIEBERMAN; GRISKEVICIUS, 2009). Aqueles que manifestam maior reatividade do SIC devem ser mais sensíveis às ameaças de patógenos e tendem a evitar mais 40 situações ou coisas que as exponham a ameaças potenciais. Como tal, os indivíduos com maior sensibilidade ao nojo e aversão aos germes devem estar mais preocupados com a pandemia de COVID-19 e mais propensos a adotar comportamentos preventivos de saúde para evitar a doença. Algumas evidências dão suporte a essa proposição, de modo que a maior reatividade do SIC foi associada a intenções comportamentais e esforços anteriores para seguir as diretrizes de saúde do COVID-19 (DÍAZ; COVA, 2021). Em dois estudos conduzidos por Makhanova e Sheperd em 2020, o traço relativo à evitação de patógenos foi associado a reações mais fortes a uma ameaça real de patógenos e a uma maior predisposição a se engajarem em comportamento preventivos que protegem o indivíduo do contágio e diminuem a propagação do vírus. No Estudo 1, a vulnerabilidade percebida a doença foi positivamente associada a reações mais fortes à ameaça de COVID-19, incluindo aumento da ansiedade, percepções de que as pessoas devem alterar seu comportamento bem como a importância relatada de que os indivíduos tomem atitudes cuidadosas e de distanciamento social. No Estudo 2, a vulnerabilidade percebida a doença foi mais uma vez correlacionada ao aumento da ansiedade, bem como a um comportamento mais precavido ao fazer compras no mercado, como diminuição a idas à loja e menos interações face a face. Embora as duas subescalas utilizadas nesses estudos de vulnerabilidade a ameaça percebida (aversão ao germe e infectabilidade percebida) fossem frequentemente preditores paralelos, surgiram várias diferenças entre as subescalas. A aversão aos germes pode estar mais associada a comportamentos, enquanto a infectabilidade percebida relacionada à vigilância. Esses dados são consistentes com pesquisas anteriores, sugerindo que a psicologia de prevenção de patógenos das pessoas reage às ameaças reais de doenças (BEALL; HOFER; SCHALLER, 2016). O SIC pode influenciar até mesmo nas intenções de vacinação. Três estudos investigaram e demonstraram que em contraste com pesquisas anteriores, aqueles com maior 41 aversão aos germes durante a pandemia perceberam que as vacinas eram mais seguras e tinham maiores intenções de aceitar a vacinação. A aversão aos germes antes da pandemia não estava associada às intenções de vacinação. Indivíduos que se consideravam mais suscetíveis à doença mostraram-se um pouco mais dispostos a aceitar a vacinação (KARLSSON et al., 2021). Entretanto, paradoxalmente, vários estudos mostram que os indivíduos com maior sensibilidade à repulsa por patógenos e mais aversão a germes têm atitudes mais negativas com relação à vacina (CLAY, 2017; CLIFFORD; WENDELL, 2016; LUZ; BROWN; STRUCHINER, 2019; REUBEN et al., 2020). Maior sensibilidade à repulsa e aversão a germes prediz positivamente atitudes mais negativas em relação a vacinação, pois as vacinas são administradas de maneiras que, por si mesmas, indicam presença de contaminantes ao perfurarem a pele ou pressupõem a inalação ou ingestão de substâncias desconhecidas (CLAY, 2017). Para que essa explicação tenha suporte, os indivíduos que são mais avessos a patógenos devem reagir à vacinação mais repulsivamente pois têm a percepção de que isso representa uma contaminação em potencial. Essa reação, por sua vez, levaria a atitudes mais negativas em relação às vacinas. Essa noção deriva de evidências que demonstram que indivíduos com maior aversão a agulhas e sangue têm atitudes mais desfavoráveis em relação àsegurança e eficácia das vacinas (HORNSEY; HARRIS; FIELDING, 2018). Indivíduos com medo de injeção também se mostraram menos dispostos a aceitar a vacinação contra COVID-19 (FREEMAN et al., 2021). Além disso, pessoas pertencentes a movimentos antivacina comumente as descrevem como "não naturais", contendo substâncias tóxicas e causando doenças (KATA, 2010; MORAN et al., 2016). As preocupações sobre a segurança da vacina estão entre as razões mais comuns para a dificuldade em aceitar a vacinação contra a COVID-19 (KARLSSON et al., 2021; NEUMANN-BÖHME et al., 2020; TAYLOR et al., 2020). Nessa perspectiva, uma maior aversão a germes poderia, 42 de modo contra intuitivo, diminuir a aceitação e o engajamento das pessoas em aderirem à vacinação. 5 Considerações finais O sistema imunológico comportamental é uma recente concepção utilizada para explicar e descrever comportamentos anti-patogênicos (sensibilidade, aversão/repulsa e nojo) que foram selecionados em nossa história evolutiva, uma vez que reduzem o risco de contaminação por agentes infecciosos. Esse sistema possivelmente surgiu porque foi capaz de aumentar o sucesso reprodutivo (aptidão). O sistema imunológico comportamental é capaz de oferecer explicações plausíveis acerca da relação entre sociabilidade e doenças infecciosas sobretudo acerca da imunidade, personalidade, comportamento sexual, diferenças culturais, moralidade, visão política, estereótipos e preconceitos, teorias conspiratórias e uma série de outros assuntos de interesse social não abordados nesse capítulo. A integração de materiais tão diversos em uma narrativa coerente tem o potencial de produzir novas compreensões. Os processos evolutivos de prevenção de patógenos podem fornecer um novo ângulo para o entendimento dos comportamentos de proteção à saúde e podem complementar as abordagens existentes da psicologia da saúde na previsão e mudança do comportamento em saúde. Para melhorar ainda mais os mecanismos de promoção à saúde, compreender quando e como a motivação para evitar patógenos afeta o comportamento profilático pode contribuir para o desenvolvimento de intervenções mais eficazes. E, de forma mais geral, a exploração adicional de sistemas motivacionais fundamentais, como aqueles pertencentes à prevenção de patógenos, pode fornecer táticas novas e promissoras para aumentar a eficácia das intervenções, além de promover um ambiente social mais coeso, pacífico e tolerante. 43 Referências 44 AARØE, L.; OSMUNDSEN, M.; PETERSEN, M. B. 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