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231 A vida humana como valor ético Qualquer ação humana que tenha algum reflexo sobre as pessoas e seu ambiente deve implicar o reconheci- mento de valores e uma avaliação de como estes poderão ser afetados. O primeiro desses valores é a própria pessoa, com as peculiaridades que são inerentes à sua natureza, inclusive suas necessidades materiais, psíquicas e espirituais. Ignorar essa valoração ao praticar atos que produzam algum efei- to sobre a pessoa humana, seja dire- tamente sobre ela ou através de modi- ficações do meio em que a pessoa exis- te, é reduzir a pessoa à condição de coisa, retirando dela sua dignidade. Isto vale tanto para as ações de gover- no, para as atividades que afetem a natureza, para empreendimentos eco- nômicos, para ações individuais ou coletivas, como também para a cria- ção e aplicação de tecnologia ou para qualquer atividade no campo da ciên- cia. Bioética e Direitos Humanos Dalmo de Abreu Dallari Entre os valores inerentes à con- dição humana está a vida. Embora a sua origem permaneça um mistério, tendo-se conseguido, no máximo, as- sociar elementos que a produzem ou saber que em certas condições ela se produz, o que se tem como certo é que sem ela a pessoa humana não existe como tal, razão pela qual é de primor- dial importância para a humanidade o respeito à origem, à conservação e à extinção da vida. O que hoje pode ser afirmado com argumentos sofisticados, após milênios de reflexões e discussões filo- sóficas, foi pensado ou intuído pela humanidade há milhões de anos e con- tinua presente no modo de ser de to- dos os grupos humanos, tanto naque- les que se consideram mais avançados como nos que vivem em condições julgadas mais rudimentares, como os grupos indígenas que ainda vivem iso- lados nas selvas. Como foi assinalado por Aristóteles e por muitos outros pen- sadores, e as modernas ciências que se ocupam do ser humano e de seu comportamento o confirmam, o ser 232 humano é associativo por natureza. Por necessidade material, psíquica (aqui incluídas as necessidades intelectuais e afetivas), espiritual, todo ser huma- no depende de outros para viver, para desenvolver sua vida e para sobrevi- ver. A percepção desse fato é que faz da vida um valor, tanto nas socieda- des que se consideram mais evoluídas e complexas quanto naquelas julgadas mais simples e rudimentares. Desse modo, reconhecida a vida como um valor, foi que se chegou ao costume de respeitá-la, incorporando- a ao ethos de todos os povos, embora com algumas variações decorrentes de peculiaridades culturais. Assim, inde- pendentemente de crenças religiosas ou de convicções filosóficas ou políticas, a vida é um valor ético. Na convivên- cia necessária com outros seres huma- nos cada pessoa é condicionada por esse valor e pelo dever de respeitá-lo, tenha ou não consciência do mesmo. A par disso, é oportuno lembrar que tanto a Declaração Universal dos Di- reitos Humanos, editada pela ONU em 1948, quanto os Pactos de Direitos Humanos que ela aprovou em 1966 proclamam a existência de uma digni- dade essencial e intrínseca, inerente à condição humana. Portanto, a vida hu- mana é mais do que a simples sobre- vivência física, é a vida com dignida- de, sendo esse o alcance da exigência ética de respeito à vida, que, como ob- serva Cranston, por corresponder, en- tre outras coisas, ao desejo humano de sobrevivência, está presente na éti- ca de todas as sociedades humanas (1). A ética de um povo ou de um gru- po social é um conjunto de costumes consagrados, informados por valores. A partir desses costumes é que se es- tabelece um sistema de normas de comportamento cuja obediência é ge- ralmente reconhecida como necessá- ria ou conveniente para todos os inte- grantes do corpo social. Se alguém, por conveniência ou convicção pessoal, procura contrariar ou efetivamente contraria uma dessas normas tem com- portamento antiético, presumivelmente prejudicial a outras pessoas ou a todo o grupo, quando não a todos os seres humanos. Assim, fica sujeito às san- ções éticas previstas para a desobedi- ência, podendo, pura e simplesmente, ser impedido de prosseguir na prática antiética ou, conforme as circunstân- cias, ser punido pelos danos que te- nha causado ou ser obrigado a repará- los. Todos estes fatorem têm aplicação à proteção da vida no plano da ética, sem prejuízo da proteção resultante de seu reconhecimento como valor jurí- dico. Ciência, tecnologia e Bioética Recentes avanços tecnológicos, como também alguns progressos cientí- ficos, criaram possibilidades novas de interferência na vida humana, que po- dem representar uma vantagem ou, con- trariamente, um risco ou mesmo um gra- ve prejuízo. Pelo fato de que a vida é ge- ralmente reconhecida como um valor humano ou social, muitos sentiram a necessidade de refletir sobre essas ino- vações e seus efeitos, de prever ou, pelo menos, tentar prever, suas conseqüên- cias prováveis, benéficas ou maléficas e, finalmente, de avaliar tais possibilidades à luz de considerações de ordem ética.
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