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iniciao biotica-110

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humanos, que implica em utilizar or-
ganismos para prover aos humanos
alimentos roupas, medicamentos, e
outros produtos” (13).
De fato, embora sinônimos, os
dois termos têm um sentido técnico
diferente, sendo que o termo
“biotecnociência” indica a vigência de
um paradigma científico, ao passo que
o termo “biotecnologias” indica o con-
junto de práticas e produtos que o
paradigma torna possíveis, tais como
a engenharia genética ou a repro-
dução artificial, por um lado, e os
OGMs ou clones, por outro. Em
outras palavras, trata-se de concei-
tos de ordens lógicas diferentes, pois
as biotecnologias e seus produtos são
objetos conceituais de primeira ordem,
ao passo que a biotecnociência é um
objeto de segunda ordem que define o
espaço conceitual da análise
epistemológica de tais ciências e téc-
nicas. Os problemas abordados nos
dois casos são diferentes: a descrição
e compreensão dos fenômenos, assim
como seu campo de aplicabilidade, por
um lado; a consistência e a fidedigni-
dade dos conceitos e métodos adotados
pelas primeiras, por outro.
Esta distinção é importante não
só para o filósofo da ciência, que lida
com objetos de segunda ordem, isto é,
com paradigmas, mas também para o
filósofo moral, que distingue um obje-
to de primeira ordem como a moral e
um objeto de segunda ordem como a
ética (ou bioética), sendo que a moral
é o conjunto de códigos de valores e
princípios vigentes num momento his-
tórico determinado, ao passo que a
ética analisa a consistência dos argu-
mentos morais, quer dizer, objetos de
primeira ordem (14). No caso especí-
fico da análise bioética, a distinção
entre primeira e segunda ordem é im-
portante porque evita, por exemplo, a
confusão entre os sentimentos e valo-
res morais intuitivos do senso comum
(que todos nós temos na medida em
que possuímos uma moral) e a análise
racional e imparcial da consistência
dos argumentos em jogo numa dispu-
ta moral (que em princípio só um pro-
fissional da análise moral, filósofo ou
não, possui).
Feita esta distinção, consideremos
as “biotecnologias”. Com este termo
indicam-se tanto as tecnologias bioló-
gicas da engenharia genética
(tecnologia do DNA recombinante,
clonagem, fertilização in vitro, dentre
outras) quanto tecnologias biológicas
mais antigas ou “tradicionais” (que
remontam a milhares de anos a.C.),
tais como a seleção, a criação e o cru-
zamento de animais e plantas, a utili-
zação de microrganismos para produ-
zir pão, vinho, cerveja, iogurte e quei-
jo, razão pela qual poder-se-ia afirmar
que a própria genética “é provavelmen-
te uma ciência muito mais antiga do
que se pense” (15).
Um argumento a favor desta afir-
mação é que as biotecnologias tradi-
cionais certamente implicaram na
transferência de genes que alteraram
o patrimônio genético de determina-
das espécies, e que provavelmente não
teria ocorrido naturalmente. Este foi o
caso do trigo que, atualmente, contém
aproximadamente três vezes mais
genes que o trigo cultivado no Oriente
Médio há dez mil anos.
Mas, embora a seleção e o cruza-
mento possam ter sido, em alguns ca-
sos, conscientes e racionais, é mais
provável que fossem baseados na
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experiência prática sem uma teoria ra-
cional abrangente, que só se tornará
possível a partir da genética e da bio-
logia molecular. Por isso, é correto fa-
zer a distinção entre biotecnologias tra-
dicionais e biotecnologias modernas,
sendo que estas só se tornaram de fato
possíveis nas últimas décadas, quan-
do surgiram práticas disciplinares tais
como a cultura de células, de micror-
ganismos, de tecidos e, em princípio,
de órgãos e organismos inteiros; a
transferência de embriões; a engenha-
ria genética e, recentemente, a
clonagem. Nesse sentido, somente as
“biotecnologias modernas” seriam,
estritamente falando, biotecnologias
como as entendemos hoje, quer dizer,
resultantes da vigência do paradigma
biotecnocientífico.
Biotecnologias tradicionais e mo-
dernas se distinguem em pelo menos
três aspectos:
a) o cruzamento efetuado pelas
primeiras acontecia entre espéci-
es próximas, ao passo que as se-
gundas permitem que seja feito
em princípio entre qualquer tipo
de espécie, independentemente
de sua distância genética;
b) o tempo necessário para a atu-
ação das primeiras era muito mais
longo (em geral numa escala de
anos), ao passo que o tempo ne-
cessário às segundas é muito me-
nor (podendo chegar a poucas
semanas);
c) o campo de aplicação das pri-
meiras era bastante reduzido, ao
passo que “a biotecnologia mo-
derna é muito mais ambiciosa”
(15), pois pretende controlar a
poluição ambiental, criar novos
fármacos, novos organismos e
reprogramar o próprio patrimônio
genético humano em vista de uma
melhor adaptação a condições
adversas futuras e da prevenção
de doenças e incapacidades de
origem genética.
A magnitude do know how
biotecnológico moderno tem, portan-
to, um significado importante para a
análise moral, como veremos apresen-
tando os diferentes papéis de
biossegurança e bioética.
Biossegurança e bioética:
limites e argumentos
Antes de apresentar os diferentes
papéis de biossegurança e bioética, é
preciso lembrar que os artefatos das
biotecnologias modernas são objeto de
preocupação de ambas as disciplinas,
tanto os artefatos já produzidos, como
OGMs e clones animais, quanto os
ainda não produzidos, mas virtualmen-
te possíveis, como os clones humanos.
O caráter “atual” ou “virtual” de tais
artefatos não é relevante para a pon-
deração de seus riscos e benefícios,
pois estes sempre serão computados
em termos de probabilidades.
Por outro lado, os enfoques de
biossegurança e bioética são diferen-
tes, sendo que a bioética se preocupa
com os argumentos morais a favor ou
contra, e a biossegurança visa estabe-
lecer os padrões aceitáveis de seguran-
ça no manejo de técnicas e produtos
biológicos. A biossegurança é, portan-
to, “o conjunto de ações voltadas para
a prevenção, minimização ou elimina-
ção de riscos inerentes às atividades

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