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221 humanos, que implica em utilizar or- ganismos para prover aos humanos alimentos roupas, medicamentos, e outros produtos” (13). De fato, embora sinônimos, os dois termos têm um sentido técnico diferente, sendo que o termo “biotecnociência” indica a vigência de um paradigma científico, ao passo que o termo “biotecnologias” indica o con- junto de práticas e produtos que o paradigma torna possíveis, tais como a engenharia genética ou a repro- dução artificial, por um lado, e os OGMs ou clones, por outro. Em outras palavras, trata-se de concei- tos de ordens lógicas diferentes, pois as biotecnologias e seus produtos são objetos conceituais de primeira ordem, ao passo que a biotecnociência é um objeto de segunda ordem que define o espaço conceitual da análise epistemológica de tais ciências e téc- nicas. Os problemas abordados nos dois casos são diferentes: a descrição e compreensão dos fenômenos, assim como seu campo de aplicabilidade, por um lado; a consistência e a fidedigni- dade dos conceitos e métodos adotados pelas primeiras, por outro. Esta distinção é importante não só para o filósofo da ciência, que lida com objetos de segunda ordem, isto é, com paradigmas, mas também para o filósofo moral, que distingue um obje- to de primeira ordem como a moral e um objeto de segunda ordem como a ética (ou bioética), sendo que a moral é o conjunto de códigos de valores e princípios vigentes num momento his- tórico determinado, ao passo que a ética analisa a consistência dos argu- mentos morais, quer dizer, objetos de primeira ordem (14). No caso especí- fico da análise bioética, a distinção entre primeira e segunda ordem é im- portante porque evita, por exemplo, a confusão entre os sentimentos e valo- res morais intuitivos do senso comum (que todos nós temos na medida em que possuímos uma moral) e a análise racional e imparcial da consistência dos argumentos em jogo numa dispu- ta moral (que em princípio só um pro- fissional da análise moral, filósofo ou não, possui). Feita esta distinção, consideremos as “biotecnologias”. Com este termo indicam-se tanto as tecnologias bioló- gicas da engenharia genética (tecnologia do DNA recombinante, clonagem, fertilização in vitro, dentre outras) quanto tecnologias biológicas mais antigas ou “tradicionais” (que remontam a milhares de anos a.C.), tais como a seleção, a criação e o cru- zamento de animais e plantas, a utili- zação de microrganismos para produ- zir pão, vinho, cerveja, iogurte e quei- jo, razão pela qual poder-se-ia afirmar que a própria genética “é provavelmen- te uma ciência muito mais antiga do que se pense” (15). Um argumento a favor desta afir- mação é que as biotecnologias tradi- cionais certamente implicaram na transferência de genes que alteraram o patrimônio genético de determina- das espécies, e que provavelmente não teria ocorrido naturalmente. Este foi o caso do trigo que, atualmente, contém aproximadamente três vezes mais genes que o trigo cultivado no Oriente Médio há dez mil anos. Mas, embora a seleção e o cruza- mento possam ter sido, em alguns ca- sos, conscientes e racionais, é mais provável que fossem baseados na 222 experiência prática sem uma teoria ra- cional abrangente, que só se tornará possível a partir da genética e da bio- logia molecular. Por isso, é correto fa- zer a distinção entre biotecnologias tra- dicionais e biotecnologias modernas, sendo que estas só se tornaram de fato possíveis nas últimas décadas, quan- do surgiram práticas disciplinares tais como a cultura de células, de micror- ganismos, de tecidos e, em princípio, de órgãos e organismos inteiros; a transferência de embriões; a engenha- ria genética e, recentemente, a clonagem. Nesse sentido, somente as “biotecnologias modernas” seriam, estritamente falando, biotecnologias como as entendemos hoje, quer dizer, resultantes da vigência do paradigma biotecnocientífico. Biotecnologias tradicionais e mo- dernas se distinguem em pelo menos três aspectos: a) o cruzamento efetuado pelas primeiras acontecia entre espéci- es próximas, ao passo que as se- gundas permitem que seja feito em princípio entre qualquer tipo de espécie, independentemente de sua distância genética; b) o tempo necessário para a atu- ação das primeiras era muito mais longo (em geral numa escala de anos), ao passo que o tempo ne- cessário às segundas é muito me- nor (podendo chegar a poucas semanas); c) o campo de aplicação das pri- meiras era bastante reduzido, ao passo que “a biotecnologia mo- derna é muito mais ambiciosa” (15), pois pretende controlar a poluição ambiental, criar novos fármacos, novos organismos e reprogramar o próprio patrimônio genético humano em vista de uma melhor adaptação a condições adversas futuras e da prevenção de doenças e incapacidades de origem genética. A magnitude do know how biotecnológico moderno tem, portan- to, um significado importante para a análise moral, como veremos apresen- tando os diferentes papéis de biossegurança e bioética. Biossegurança e bioética: limites e argumentos Antes de apresentar os diferentes papéis de biossegurança e bioética, é preciso lembrar que os artefatos das biotecnologias modernas são objeto de preocupação de ambas as disciplinas, tanto os artefatos já produzidos, como OGMs e clones animais, quanto os ainda não produzidos, mas virtualmen- te possíveis, como os clones humanos. O caráter “atual” ou “virtual” de tais artefatos não é relevante para a pon- deração de seus riscos e benefícios, pois estes sempre serão computados em termos de probabilidades. Por outro lado, os enfoques de biossegurança e bioética são diferen- tes, sendo que a bioética se preocupa com os argumentos morais a favor ou contra, e a biossegurança visa estabe- lecer os padrões aceitáveis de seguran- ça no manejo de técnicas e produtos biológicos. A biossegurança é, portan- to, “o conjunto de ações voltadas para a prevenção, minimização ou elimina- ção de riscos inerentes às atividades
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