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Valor Jurídico da Vida

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A vida humana como valor
jurídico
Para a consideração da vida
como valor jurídico, um ponto de par-
tida adequado é a observação, ainda
que sucinta, do tratamento dispensa-
do à pessoa humana e suas caracte-
rísticas essenciais ao longo dos tem-
pos. O exame dos documentos mais
antigos, inclusive dos mais remotos
textos legislativos, mostra que se per-
de na origem dos tempos o reconheci-
mento de que os seres humanos são
criaturas especiais, que nascem com
certas peculiaridades. Com o avanço
dos conhecimentos humanos foi ha-
vendo maior precisão, esclarecendo-se
que há certas necessidades básicas, de
natureza material, psicológica e espi-
ritual, que são as mesmas para todas
as pessoas. Entre as peculiaridades da
condição humana encontra-se a possi-
bilidade de se desenvolver interiormen-
te, de transformar a natureza e de esta-
belecer novas formas de convivência.
Essa evolução levou à conclusão
de que o ser humano é dotado de es-
pecial dignidade, bem como de que é
imperativo que todos recebam prote-
ção e apoio tanto para a satisfação de
suas necessidades básicas como para
o pleno uso e desenvolvimento de suas
possibilidades físicas e intelectuais. Em
decorrência de todos esses fatores, foi
sendo definido um conjunto de facul-
dades naturais necessitadas de apoio
e estímulo social, que hoje se externam
como direitos fundamentais da pessoa
humana. Nos textos da antiguidade se
confundem preceitos religiosos, políti-
cos e jurídicos, mas já se percebe a
existência de regras de comportamen-
to social impostas à obediência de to-
dos e com a possibilidade de puni-
ção para os que desobedecerem. Em
vários casos a punição vai além da
sanção moral e uma autoridade públi-
ca pode impor castigos ou restrições a
direitos.
Aí está a origem humana e social
dos direitos, inclusive do direito à vida,
que através dos séculos será reconhe-
cido e protegido como um valor jurídi-
co. Conforme observam muitos auto-
res, durante séculos a proteção da vida
como direito se deu por via reflexa.
Não havia a declaração formal do di-
reito à vida, mas era punido com se-
veridade quem atentasse contra ela.
Isso chegou até os nossos dias, sendo
interessante assinalar que no Brasil o
direito à vida só foi expresso na Cons-
tituição de 1988, embora desde 1830
a legislação brasileira já previsse a
punição do homicida.
Existem divergências quanto
ao momento e local em que surgi-
ram as primeiras normas que, à luz
das concepções atuais, podem ser
identificadas como de direitos huma-
nos. Mas em autores da Grécia anti-
ga, assim como em documentos de di-
ferentes épocas e que hoje recebem a
qualificação de monumentos legisla-
tivos da humanidade, encontram-se
afirmações e dispositivos que corres-
pondem ao que atualmente denomina-
mos normas de direitos humanos. A
partir do século V da era cristã, no iní-
cio da Idade Média, a humanidade
passou por transformações profundas,
incluindo grandes movimentos migra-
tórios, aquisição de novos conheci-
mentos que passariam a influenciar
consideravelmente a vida e a convivên-
cia das pessoas, invenção de novas
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formas de organização política e mui-
tas outras descobertas que mudariam
substancialmente os rumos da história
humana.
Nesse ambiente surgiram graves
confrontos de valores e de objetivos
temporais imediatos ou permanentes,
favorecendo a formação de grupos
sociais privilegiados, fundados na
acumulação dos poderes militar, polí-
tico e econômico. Como parte desse
processo, foi-se definindo também uma
situação de submissão de indivíduos
e de coletividades, fragilizados por não
terem participação nos instrumentos de
poder. E como sempre acontece quan-
do há grupos sociais com o privilégio
de uso do poder, os direitos fundamen-
tais daquelas pessoas e coletividades
mais fracas foram sendo anulados pela
vontade e pelos interesses dos
dominadores, a tal ponto que nem
mesmo a dignidade inerente à sua con-
dição humana foi respeitada.
Assim nasceu a moderna diferen-
ciação entre nobres e plebeus, entre os
ricos proprietários, sempre participan-
tes diretos ou indiretos do poder políti-
co, e os outros, incluindo pequenos
proprietários e também muitas pesso-
as pobres ou miseráveis que só tendo
a força de seu corpo e de sua mente
viviam, como vivem ainda hoje, em
situação de sujeição, sendo forçados,
mediante coação expressa ou
disfarçada, a contribuir para a pros-
peridade dos primeiros.
Durante essa fase histórica, que
irá durar alguns séculos, os chefes que
dispunham de mais força assumiram
poderes absolutos, exercendo, inclusi-
ve, o poder de julgar e de impor penas
escolhidas segundo seu arbítrio, o que
incluía a pena de morte, muitas vezes
aplicada para eliminar um inimigo ou
competidor, como também para servir
de exemplo e fator de intimidação, pre-
venindo eventuais rebeliões. Na segun-
da metade da Idade Média, com o au-
mento do número de cidades e o cres-
cimento de suas populações, vai-se
definir e desenvolver a figura do co-
merciante e emprestador de dinheiro
o qual, muitas vezes, será também vi-
timado pelo poder absoluto dos
governantes – que sob diversos pretex-
tos eliminavam os credores e confis-
cavam seu patrimônio.
O excesso de agressões à vida, à
integridade física e à dignidade da pes-
soa humana, em decorrência do ego-
ísmo, da insaciável voracidade, da in-
sensibilidade moral dos dominadores,
acabaria por despertar reações tanto
no plano das idéias quanto no âmbito
da ação material. Desse modo, surgi-
ram teorias e movimentos revolucio-
nários que foram contribuindo para
que um número cada vez maior de se-
res humanos tomasse consciência de
sua dignidade essencial e dos direitos
a ela inerentes.
Os direitos humanos: defesa
da pessoa e da vida
No final da Idade Média, no sé-
culo XIII, aparece a grande figura de
Santo Tomás de Aquino, que terá gran-
de importância para a recuperação
do reconhecimento da dignidade
essencial da pessoa humana. Embora
sendo um pensador cristão, Santo To-
más de Aquino retomou Aristóteles,
sob muitos aspectos, e procurou fixar
conceitos universais. De seus estudos,

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