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HISTÓRIA, POLÍTICA, ECONOMIA, CULTURA NO SÉCULO XIX AULA 1 Prof. Heitor Alexandre Trevisani Lipinski 2 CONVERSA INICIAL A história mundial revela diversos momentos de intensa mudança social, política e cultural. No entanto, há também períodos em que se observa certa manutenção do que já está vigente. O século XIX, por sua vez, é marcado por um espaço-tempo diferente do habitual. Enquanto o normal é pensarmos em um século de cem anos, esse inicia com fatos importantes no final do século XVIII e encerra com a Primeira Grande Guerra. Talvez, possamos toscamente comparar a temporalidade com a guerra dos cem anos, cuja disputa territorial ultrapassou cerca de dezesseis anos do nome ao qual ficou conhecida. Este século foi um tempo de mudanças significativas, que alteraram o modo de pensar e agir, bem como as relações intra e interpessoais. Falamos em intrapessoais porque as relações individuais, bem como a herança religiosa de séculos anteriores, foram ameaçadas por um pensamento distinto, material, humano e igualitário. A filosofia deu saltos e promoveu um remodelamento político, cujos reflexos ainda percebemos. Impérios foram extintos, monarcas destituídos ou mortos, a política e o poder mudaram de mãos, o colonialismo entrou em colapso, a escravidão foi abolida, os conflitos raciais e a miséria aumentaram, a forma de pensar o mundo ganhou novos ares, as artes exprimiram essas novas configurações, e tudo o que era, agora já não é, ou teve de se modernizar para permanecer – como tentou o célebre político Joseph Fouché, que passou de conselheiro do rei Luiz XVI a integrante da cúpula revolucionária e, mais tarde, apoiador de Bonaparte. Claro que esse exemplo não é dos melhores, visto que os historiadores o retratam como um traidor vil, mas com as mudanças de pensamento e as adequações ao que se despontava nesse século, é relevante evidenciar que, para permanecer no poder, ou próximo a ele, muitos tiveram que deixar suas convicções e abraçar novos valores. Por isso o século XIX é tão relevante, por trazer ao mundo acontecimentos que deixariam reflexos culturais para as novas gerações. A lógica se aplica à concepção de igualdade nas lutas populares por reconhecimento, ao amadurecimento da mulher, que passou a se dar conta de que faz parte do mundo, e que pode agir nele e ser parte atuante e protagonista na sociedade, ou ainda aos métodos de governo, que buscaram representar os novos grupos da elite, ainda que travestidas, algumas vezes, de movimento popular. 3 TEMA 1 – O “LONGO SÉCULO XIX” Apesar de inúmeras batalhas, expansões territoriais e exploração de recursos na América, as mudanças sociais, políticas e econômicas mais substanciais ocorreram mesmo durante o final do século XVIII, e se estenderam até o início do século XX. Podemos elencar diversos fatores cruciais para essa mudança de pensamento; no entanto, devemos perceber que essas mudanças foram ocorrendo lenta e gradativamente. A Revolução Industrial iniciada em 1760 dá início a um processo de acúmulo de capital, com novas maneiras de comercialização. A produção de diversos materiais é melhorada por conta de inventos em maquinários que facilitavam o processo de colocada no mercado, gerando novas necessidades para a população, o que fazia crescer o consumo. Iniciada na Inglaterra, essa expansão de fabricação em escala foi ganhando novos espaços geográficos e ultrapassando fronteiras, trazendo novas relações na sociedade. A exploração da mão de obra culminou em um convívio distinto entre patrão e empregado. O trabalho infantil e a precariedade das condições nas fábricas eram realidades recorrentes. Ainda assim, com a oferta de trabalhos nos centros urbanos, a população, que antes vivia os resquícios medievais no ambiente rural, migra para as cidades, promovendo um inchaço nesses locais, fato que exigiu novos olhares e perspectivas dos governantes para readequar e acomodar esse contingente, como nos diz Ortiz (1998, p. 21): Por exemplo, é entre 1853 e 1870 que a cidade de Paris transforma-se radicalmente, época em que se realizam as grandes obras urbanísticas do barão Hausmann, procurando remover a população do antigo centro, empurrando as classes populares para os bairros periféricos, onde se instalam as empresas fabris. Tudo se passa como se as mudanças estruturais da sociedade se refletissem no espaço urbano, que deve agora se distanciar das cidades vetustas do antigo regime, com suas ruas estreitas e tortuosas. Um novo modelo de modernidade urbanística se impõe, privilegiando as grandes vias, a circulação dos transportes e dos homens. A necessidade de matéria-prima barata fez com que os países europeus buscassem uma nova forma de exploração, diferente da colonização realizada no novo continente; o imperialismo foi como cortar a África em pedaços, sem respeito às configurações dos costumes de cada região, pois na época o continente era dividido em incontáveis administrações tribais. 4 Reflexos dessas empreitadas europeias serão vistos ao longo do tempo. A geopolítica mundial passa, mais do que nunca, a se configurar entre exploradores e explorados. Veja na figura como era o continente africano antes do processo de expansão europeia em seus territórios. Figura 1 – África Crédito: João Miguel A. Moreira. 5 TEMA 2 – UM POUCO DO QUE VEIO ANTES: O SÉCULO XVIII Além da Revolução Industrial, que criou uma nova classe social, a burguesia de classe média e a alta burguesia, o período foi marcado pelo patrocínio francês no processo de independência das treze colônias americanas, o que desencadeou uma enorme crise econômica no país. Essas mudanças foram fomentadas pela burguesia, que se industrializava, mas que também almejava, com o acúmulo de riquezas, fazer parte não apenas de uma elite econômica, mas também política, forçando o governo a promover uma abertura. A exuberância e extravagancia da corte em Versalhes passou a ser noticiada em panfletos nas maiores cidades, tendo como principal alvo a rainha Maria Antonieta. Apelidada de madame déficit, foi a encarnação da crise econômica. A população estava insatisfeita com a escassez de alimentos; por fim, a convocação dos Estados, que garantiu a permanência da configuração política tal como era, culminou na tomada da Bastilha, antiga prisão francesa e que naquele momento era um depósito de pólvora. Em seguida, a família real foi forçada a se instalar em Paris. Nesse momento, muitos nobres trataram de fugir do país, mas muitos foram presos e guilhotinados. Instalou-se então um regime de terror. Só em Paris, cerca de oitocentas pessoas eram guilhotinadas por dia. Luiz XVI e Maria Antonieta também perderam a vida da mesma forma. Os ideais iniciais da revolução, “liberdade, igualdade e fraternidade”, ganharam novos rumos, e naquele momento pareciam ter se perdido na sanha de eliminar todos aqueles que de algum modo foram capazes de oprimir os mais empobrecidos. Parece terrível pensar apenas naquilo que não foi bom no percurso revolucionário. No entanto, o processo promoveu uma nova maneira de se governar, pois os reis europeus passaram a ter um novo olhar sobre os súditos, para garantir que suas coroas permanecessem em suas cabeças. A Revolução Francesa chegou a ponto de consumir seus idealizadores, retomando um novo período de monarquia sob o regime napoleônico. Por fim, as ideias lançadas, perpetuaram-se nos mais diversos regimes de governos ocidentais. Além da revolução, o período é marcado pela ascensão da vida urbana e externa à França. Houve também um processo de crítica contundente ao absolutismo. A voz das ruas passa a ser clamada e, ainda que os governantes 6 tentassem desdenhar, o exemplo da guilhotina, ainda tão próximo, ressoava como um alerta para as monarquias vigentes, que ou se adequavamaos novos códigos de conduta, ou caíam, como um efeito dominó. Saiba mais A França sente orgulho de sua história e seu legado para o mundo deixado pela revolução. No entanto, atrocidades e julgamentos equivocados fazem parte dessa história, difícil de ser contada. Para relembrar, existe um site com a lista de todos os guilhotinados durante o regime revolucionário: LES Guillotinés de la Révolution Française. Disponível em: <http://www.prospection.net/>. Acesso em: 10 nov. 2019. TEMA 3 – LIBERALISMO E ILUMINISMO Pouco antes do início temporal do século XIX, as ideias de pensamentos filosóficos que engendram os campos políticos e econômicos da Europa estão florescendo. O liberalismo, de que comumente falamos hoje, em sistemas econômicos que ganharam roupagens cada vez mais permissivas, teve em seu início, duas concepções: enquanto a Inglaterra, que já havia passado por um período de transformação política, abordava o liberalismo nas questões econômicas, a França tratava como questão política. Por exemplo, era pregado o direito à vida plena e a felicidade, somente conquistada com a liberdade da vida plena, sem interferência do Estado. O liberalismo é uma forma política de encarnar as ideias iluministas, que recusam a tirania da coroa, do absolutismo. Essa corrente de pensamento procura unir duas vertentes filosóficas: o empirismo e o racionalismo. Ora, enquanto uma busca a razão na experiência, o outro mostra a razão; dessa forma, o iluminismo procura unir razão e experiência para que o indivíduo ganhe a emancipação e a autonomia. Dessa maneira, percebemos claramente que, ao pregar essas características, cada um deveria ser livre e não ser regido ou cerceado por um governo. O humano aparece então no centro de todas as reivindicações, buscando a exterioridade, e atingindo o mundo. Os principais nomes do iluminismo foram: 7 • John Locke (1632-1704): fundador do empirismo. Para ele o homem nasce como se fosse uma folha em branco e suas experiências na vida é que preencheriam esse espaço. • Voltaire (1694-1778): crítico ferrenho da Igreja Católica, por conta das interferências políticas que praticava, defendia o liberalismo como garantia da liberdade civil. • Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): acreditava na soberania popular nas decisões políticas, defendendo uma democracia direta. • Montesquieu (1689-1755): acreditava na separação de poderes no Estado em legislativo, executivo e judiciário. • Denis Diderot (1713-1784): considerava que a ciência, ou seja, o conhecimento, só poderia ser alcançada pela razão, por isso desprezava toda forma espiritualista e religiosa de pensamento. • Adam Smith (1723-1790): considerado o pai da economia moderna, defendia o livre mercado e a não interferência estatal na economia. Cunhou o termo mão invisível para designar aquilo que seria o sustentáculo econômico, como o próprio comércio. Era a favor do acúmulo de capital. Esses foram os principais ideais que regeram o iluminismo e o liberalismo, mudando o pensamento não apenas das elites burguesas, mas também da classe média, que aspirava, como ainda o faz, riqueza e influência política. TEMA 4 – MODERNIDADE, O QUE É? A modernidade é o nosso tempo; apesar de já haver referências sobre a pós modernidade, ainda não há um consenso nos campos teóricos de que já saímos desse período. Portanto, a modernidade inicia-se nesse tempo de grandes transformações, mas elas ainda continuam; por isso, esse é o tempo que existiu e que ainda vivemos, nos campos da filosofia, tecnologia, e quanto a configurações geopolíticas e culturais. Nesse sentido, Habermas afirma (2002, p. 5): O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos 8 direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal e, à secularização de valores e normas. Habermas de certa forma sintetiza todo o amalgama, formado pelo processo desse período, que denominamos modernidade. É a constante transformação, a ponto de impactar de forma expressiva a vida do indivíduo, agente colaborador e transformador da sociedade. Em uma outra definição, Arendt afirma (2002, p. 84): A época moderna começou quando o homem, com auxílio do telescópio, voltou seus olhos corpóreos rumo ao universo, acerca do qual especulara durante longo tempo e aprendeu que seus sentidos não eram adequados para o universo, que sua experiência quotidiana, longe de ser capaz de constituir o modelo para a recepção da verdade e a aquisição de conhecimento, era uma constante fonte de erro e ilusão. Após esta decepção, as suspeitas começaram a assediar o homem moderno de todos os lados. Sua consequência mais imediata, porém, foi o espetacular ascenso da ciência natural, que por longo período pareceu libertar-se com a descoberta de que nossos sentidos, por si mesmos, não dizem a verdade [...] desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás de aparências enganosas. Para que tivesse certeza, o homem tinha que “verificar”. A verdade cientifica não só não precisa ser eterna, como não precisa sequer ser compreensível ou adequada ao raciocínio humano. De forma metafórica, podemos dizer que a modernidade foi encarar a pequenez do ser humano, buscando formas de se agigantar em um universo de possibilidades. Assim, ciência, tecnologia e filosofia buscam aprimorar-se nesse tempo, não apenas para facilitar a vida no planeta, o convívio social, ou garantir a política de exploração, mas também para encontrar novas maneiras de estabelecer, ainda que de maneiras equivocadas, os princípios de sustentação das ideias iluministas, de um homem livre, com direitos equivalentes, em uma sociedade que preza pela unidade. TEMA 5 – UM BREVE BALANÇO HISTORIOGRÁFICO Diversos autores, pensadores e historiadores já se debruçaram sobre os fenômenos do século XIX e, por consequência, da modernidade. No entanto, neste breve balanço historiográfico, versaremos sobre as principais características definidas por três teóricos: • Eric Hobsbawm: sua obra pode ser dividida em quatro fases, que vão até o século XX; no entanto, para esse momento vamos nos fixar nas três primeiras. Ele analisa, em A era das revoluções, as transformações 9 sociais e políticas desde o antigo regime para a Europa da burguesia; em A era do capital, expõe toda a magnitude do capitalismo industrial, bem como a consolidação burguesa no topo da pirâmide social e política; na terceira etapa, com o livro A era dos impérios, expõe o imperialismo e os conflitos das grandes potências. É interessante saber que o historiador pensou principalmente a história social da classe trabalhadora, em revoltas camponesas, no marxismo e no movimento operário. • René Rémond: o autor buscou definir a política do século XIX, tendo foco na renovação que ocorria no continente europeu nesse período. Procura dialogar com várias disciplinas das ciências humanas, promovendo o ser político e os desmembramentos correlatos, para revelar a capacidade de arbitrar os conflitos existentes, a diplomacia e os desfechos que alteraram as configurações do mundo. • Peter Gay: atentando ao mundo sensível, às artes, à literatura e a expressões humanas no século XIX, o autor defende que o liberalismo é a pedra fundamental do mundo moderno; no entanto, declara que a modernidade não é democrática, pois a arte nesses tempos também é consumida pelas elites, assim como antigamente. Ou seja, muda-seas perspectivas de lideranças, mas o consumo de bens culturais permanece incólume às classes dominantes. Gay promove uma leitura psicanalítica desses aspectos da modernidade. NA PRÁTICA Apesar de parecer distante temporalmente, a Revolução Francesa foi influenciada que o uso de informações, mesmo falsas ou exageradas, que corroboravam o clima de insatisfação das camadas populares. Essas informações eram disseminadas por panfletos, que de certa forma intensificavam a vontade de mudança. Os desdobramentos já sabemos: a execução dos monarcas e de grande parcela da nobreza do país. Claro que, para o momento presente, as atitudes são radicais, e é claro, podem ser analisadas da perspectiva de valores éticos e humanos. Atualmente, sabemos de interferências e manipulações de eleições presidenciais nos EUA por meio de dados de usuários em redes sociais; destacamos também a decisão do Reino Unido de sair da União Europeia, o Brexit, bem como as chamadas fake news propagadas nos países citados e também em terras brasileiras. 10 A despeito de todas as polêmicas que envolvem o caso, promova uma discussão sobre os desmembramentos desse tipo de uso da informação. Perceba se isso faz parte apenas da modernidade ou se é anterior a ela. Pense no papel dos meios de comunicação naquela época e hoje, para uma sociedade mais democrática e consciente. Onde encontrar a verdade noticiada? É possível? FINALIZANDO Pudemos perceber que o século XIX tem início com os reflexos deixados pelos acontecimentos do século anterior, como a Revolução Industrial, a independência americana e a Revolução Francesa. Ao longo dele, diversas outras transformações puderam ser percebidas, compondo uma enorme historiografia, política, social, cultural e geográfica – todos os âmbitos foram articulados para mudar. As ciências passaram a se desenvolver com mais velocidade, e a criatividade humana floresceu ainda mais. A cidade, com populações cada vez maiores, viu a dinâmica de convivência se alterar. Assim, a modernidade se instala sem que percebamos, se tornando um conceito e uma experiência histórica. 11 REFERÊNCIAS ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2002. HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ORTIZ, R. Cultura e Modernidade: a França no século XIX. São Saulo: Brasiliense, 1998.
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