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Daniele Borges Bezerra; Juliane Conceição Primon Serres | 27 
 
seleções, o saber de quem experimentou os eventos será sempre 
“mais quente” do que aquele apreendido a partir da observação. 
A utilização de pontos de apoio exteriores para a memória 
tornou-se muito difundida com a literatura testemunhal, de cunho 
autobiográfico do pós-guerra. Um exemplo intrigante é a obra “Au 
couer de l´enfer: Témoignage d´un Sonderkommando”, de Zalmem 
Gradowski, assassinado após 16 meses de serviços prestados ao 
regime nazista como Sonderkommando de um dos crematórios. O 
manuscrito foi encontrado enterrado, após a liberação dos campos. 
Esse livro, escrito dentro do campo, narra as experiências e emoções 
do homem que conviveu de perto com a barbárie e vivenciou, 
impotente, o sofrimento de seus companheiros sabendo que o seu 
dia também chegaria. Talvez o mais instigante nessa obra seja 
perceber a esperança contida na escrita de alto risco, de que essas 
páginas fossem lidas e a verdade transmitida. Nesse sentido, a 
motivação do registro, além de envolver um sentimento de justiça, 
teve lugar de refúgio para o homem que experimentava cada dia 
como o último. Diante de uma situação extrema como essa, de se 
sentir “no coração do inferno” as emoções podem tornar-se veículo 
de sobrevivência, mesmo que a sobrevivência só ocorra a partir da 
transmissão da experiência vivida. Nesse sentido, “as emoções têm 
um poder – ou são um poder – de transformação. Transformação 
da memória em desejo, do passado em futuro, ou então da tristeza 
em alegria” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p.44). 
As obras de cunho autobiográfico exprimem esse mesmo 
desejo de transmissão da memória que conecta o passado a uma 
nova possibilidade de futuro. Nesse sentido, a escrita testemunhal 
pode ser uma tentativa de elaborar o trauma e criar um terreno para 
os afetos. Logo, demarcar a ausência pode ser uma forma de 
territorializar a falta, e dar ancoragem aos eventos do passado, como 
diz o escritor Georges Perec sobre a visita ao túmulo de seu pai. 
 
Estava realizando, a vontade de dizer alguma coisa, uma oscilação 
confusa entre uma emoção [...] e uma indiferença [...] e por baixo 
28 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
uma serenidade secreta ligada à ancoragem no espaço, à 
ancoragem, impressa na cruz, dessa morte que cessava enfim de 
ser abstrata. (PEREC, 1995, p.49, grifos nossos). 
 
Vê-se que a experiência do autor atesta sobre a importância 
da inscrição, do registro e da localização para a pacificação dos 
afetos. Nesse sentido, ao constituírem-se como potentes lugares 
refúgio, as autobiografias são, também, “lugares de memória 
portáteis” (NORA, 1981, p.26), pois “a própria escrita é uma 
determinada grafia e, nesse aspecto, uma espécie de indício” 
(RICOEUR, 2007, p.186). 
A pessoa que lembra dá materialidade a sua busca enquanto 
escreve, como é possível observar no trecho extraído do livro “W ou 
a memória de infância” de Georges Perec: “o projeto de escrever 
minha história formou-se quase ao mesmo tempo que meu projeto 
de escrever” (PEREC, 1995, p.37). E, ainda, “é algo ligado à própria 
coisa escrita, tanto ao projeto da escrita como ao projeto da 
lembrança” (idem, p.54). Nesse caso, a escrita em si e a escrita de si 
coincidem. Na tentativa de dar materialidade ao seu próprio 
passado, o autor tenta criar uma memória para os pais, mortos 
durante a segunda guerra mundial, a partir de vestígios da infância 
remanescentes no presente, sobretudo fotografias. Ao “submeter a 
herança a inventário” (RICOEUR, 2007, p.101), Georges Perec tenta 
preencher as lacunas causadas pelas ausências que compõem a 
memória de si, a partir do infraordinário, e com isso sobreviver, 
pois, como ele diz “para existir, é preciso um suporte” (idem, p.70). 
Ao dar curso a essa empreitada autobiográfica, Perec pretende dar 
testemunho de uma falta difícil de nomear, que se torna dizível pelo 
exercício da própria escrita, ao mesmo tempo em que a sua 
existência ganha sentidos possíveis: 
 
Não sei se não tenho nada a dizer, não sei que não digo nada; não 
sei se o que teria a dizer não é dito por ser indizível (o indizível 
está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a 
desencadeou); sei que o que digo é branco, é neutro, é signo de

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