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HIS-Silvia M M Pereira

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DA PROVIDÊNCIA À FAVELA: O PROCESSO DE OCUPAÇÃO DE 
UM MORRO DA REGIÃO PORTUÁRIA SOB A PERSPECTIVA DO 
PODER PÚBLICO MUNICIPAL (1881-1924) 
 
 
Aluna: Silvia M. M. Pereira 
Orientador: Leonardo A. M. Pereira 
 
 
 
Introdução 
A origem da ocupação do Morro da Providência costuma ser atribuída pelos analistas 
dedicados ao tema ao regresso dos soldados advindos de Canudos, em 1897, e à campanha de 
combate às habitações coletivas que, por serem consideradas focos de doenças, passaram a ser 
alvos da higiene pública. No final do século XIX muitos cortiços foram demolidos, entre os 
quais famoso “Cabeça de Porco”, situado ao pé do Morro da Providência. Os moradores 
daquele cortiço, segundo Lílian F. Vaz, foram autorizados por um de seus proprietários, que 
era também proprietário de terrenos no Morro da Providência, a ali construir casebres usando 
as madeiras do cortiço, demolido em 1893, o que teria contado também com a autorização do 
então prefeito da Cidade, Barata Ribeiro (ABREU, 1994; CHALHOUB, 1996; 
GONÇALVES, 2013). Alugando tais terrenos, antigos moradores do Cabeça teriam se 
instalado no Morro da Providência e construído ali seus próprios barracos com aquele 
material. 
Tendo esses marcos temporais como base, a bibliografia é praticamente uníssona em 
afirmar, com Chalhoub, que “nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do 
Rio já entrava no século das favelas” (CHALHOUB, 1996, p 20). Quanto ao Morro da 
Providência em particular, além da associação específica com o Cabeça de Porco, a chegada 
do grupo de Canudos, que fez com que aquele morro passasse a ser conhecido como “Morro 
da Favella”, dataria sua ocupação de 1897 (VALLADARES, 2005). Na prática, assim, as 
favelas teriam sucedido os cortiços como locais de habitação dos homens e mulheres livres, 
pobres em geral, e que ocupavam tais áreas “ilegalmente”, em condições precárias e sem 
licença do poder público. 
Ainda assim, e embora o crescimento da ocupação do Morro da Providência possa ser 
associado à demolição dos cortiços, e o termo “favela” - depois generalizado para designar 
“todas as aglomerações de habitações toscas que surgiam na cidade” (ABREU, 1994) - aos 
ocupantes advindos de Canudos, há evidência documental de que essa ocupação é ainda 
anterior. 
Alguns autores sugerem que o Morro da Providência já era ocupado antes daqueles 
eventos, mas sem entrar em detalhes (CHALHOUB, 1996). De fato, há em levantamento 
realizado em diversos jornais da época, há registro de anúncios de aluguel de imóveis naquele 
morro desde 1860 pelo menos. Além disso, esse mesmo levantamento informa que havia, 
dentro do período até o momento investigado (1860-1900), alguma infraestrutura e aponta 
para a existência de um mercado imobiliário na região, não só de aluguel, mas também de 
compra e venda (embora em menor quantidade). Há ainda algumas referências a construção 
(também em menor quantidade) nesses anúncios e alguns casos de transmissão por sucessão 
hereditária, em que imóveis foram levados a leilão no contexto de inventários, sendo os 
leilões organizados por casas comerciais e mediante autorização judicial. Tudo isso em 
anúncios publicados entre 1860 e 1900, confirmando a ocupação do Morro bem antes do 
período que costumeiramente se atribui para isso. 
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Nesse sentido, foram pesquisados, encontrados e lançados em um banco de dados um 
pouco mais de 600 anúncios de aluguel e/ou venda de imóveis no Morro da Providência 
publicados entre 1860 e 1900 nos seguintes periódicos: Correio da Tarde, Correio Mercantil, 
Jornal do Commercio, Correio do Brazil, Gazeta de Notícias, O Cruzeiro, Gazeta da Noite, 
Gazeta da Tarde, O Paiz, O Tempo, A Notícia e o Jornal do Brasil. 
O banco de dados foi organizado de forma a se identificar o endereço em que se 
localizava o imóvel, suas condições anunciadas, quantidade de cômodos, infraestrutura 
associada e onde se poderia tratar sobre o anúncio. Uma compilação quantitativa e qualitativa 
das informações desse banco de dados pode ser vista nas tabelas a seguir: 
 
 
Tabela 1: tipos de imóveis, aluguel/venda. 
 
Quantidade total de imóveis 610 
Anúncios para aluguel 510 
Anúncios para venda 97 
Anúncios para aluguel ou venda 3 
Imóveis completos 546, sendo: 
32 chalés 
2 chácaras/chacarinhas 
372 casas* 
70 sobrados/sobradinhos 
10 terrenos 
13 lojas 
45 prédios 
1 pedreira 
1 sótão 
*Abrange casas, casinhas, casa assobradada, 
casa e chácara e uma casa com terreno para 
edificar. 
Imóveis com cozinha 196 
Imóveis com banheiro (ou “quarto de 
banho”) 
34 
Parte de imóveis (cômodo, “os baixos” de 
uma casa”) 
65 
Cômodo em casa de família 2 
Referência a água/tanque/chuveiro/banho de 
chuva 
220 
Referência a gás 17 
Referência a bondes 13 
Referência a “família” 106 
Referência a “solteiros” (alguns “família ou 
moços solteiros) 
12 
Referência a “casal” (alguns “família ou 
casal”, “senhora ou “casal”) 
35 
Referência à vista (“bonita”, “excelente”) 82 
Referência a lugar saudável/arejado 65 
Pagamento adiantado/depósito/garantia 12 
 
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Tabela 2: quantidade de cômodos: 
 
Quantidade de cômodos (“quartos”, 
“alcovas”, “salas”, “despensas”, “gabinetes) 
Quantidade de imóveis 
8 7 
7 ou mais* 43 
6 ou mais* 39 
5 72 
4 35 
3 16 
2 20 
* A referência a “ou mais” é feita nos casos em os anúncios não quantificam a exata 
quantidade de cômodos, mas é possível saber o mínimo informado. Por exemplo, quando 
dizem que o imóvel tem “sala, quartos e quintal” 
 
 
As informações lançadas no banco de dados dão uma ideia panorâmica da ocupação do 
Morro nos anos de 1860 a 1900 e um pouco do que já existia de infraestrutura ali, do que seus 
moradores reputavam relevante (ou seus potenciais novos moradores, público-alvo dos 
anúncios) e que tipo de espaço e imagem se buscava construir para o Morro. 
Com relação à infraestrutura, nota-se uma grande quantidade de anúncios que 
mencionam explicitamente haver água no imóvel anunciado. E água sob variadas formas, 
como “água de poço”, “água dentro”, “água em abundância”, “chuveiro” e “banho de chuva”. 
Alguns anúncios, por outro lado, referem a “bondes próximos” e a “carroça que passa na 
porta”, indicando a existência de uma infraestrutura urbana próxima capaz de atender a 
moradores e trabalhadores do Morro. Ainda no que diz respeito à infraestrutura, é interessante 
notar alguns anúncios que se referem a gás, desde pelo menos 1883, e há ao menos um 
anúncio que se refere a imóvel localizado na Ladeira do Faria 32, “defronte ao Hospital do 
Dr. Tavano (Gazeta de Notícias, 23/06/1878). 
Verificou-se também que há bastante referência nos anúncios à condição de limpeza e 
higiene dos imóveis e ao fato de serem arejados e terem “bonita vista”. 
A atenção demonstrada com a limpeza e a condição de salubridade dos imóveis é 
bastante coerente com as preocupações da higiene pública que vigiam naquele período. A 
cidade tinha passado há pouco tempo por uma epidemia de febre amarela (1850) e outra de 
cólera (1855) chamando a atenção dos administradores da Corte para a questão das condições 
higiênicas das habitações – em particular daquelas que favoreciam aglomerações 
(CHALHOUB, 1996), como poderia ser o caso dos imóveis situados no Morro da 
Providência. Anunciando os imóveis com destaque para essas questões, possivelmente 
miravam-se potenciais inquilinos atentos a elas, seja porque já estavam ambientados com as 
discussões em torno do tema, seja por experiência própria de desalojamento decorrente do 
bota-abaixo dos cortiços ameaçado e realizado durante o período investigado. 
De certo modo, essa preocupação era reflexo da percepção que se tinha dos cortiços, 
como lugares insalubres e aglomerados, em que viviam as “classes perigosas” (CHALHOUB, 
1996) e favoreciam um a propagação de doenças. Numa época em que o Rio de Janeiro ainda 
tinha uma feição de “vila portuguesa” (ABREU, 1994) e em que se pensava transformá-lonuma cidade moderna e civilizada, discutia-se formas controlar as doenças. O alvo dessas 
investidas, que se amparavam nas ideias cientificistas então em voga, eram exatamente os 
cortiços. No meio legislativo criavam-se posturas municipais rígidas, com regras sobre 
construção de imóveis, reformas ou mesmo proibição de uma e de outra e buscando limitar 
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quantidade de pessoas que poderiam morar nessas habitações coletivas. Ao mesmo tempo, 
recomendava-se como medida para recuperar ou preservar a saúde, subir as montanhas, pois 
“quanto maior a altitude, menores os efeitos nocivos dos miasmas.” Em linha com esse 
pensamento, Backheuser chegou a afirmar, em relatório de 1906, em que comparava tipos de 
habitação popular no Rio de Janeiro, que essa “aldeia de casebres e choças do Morro da 
Favella constituía, portanto, um tipo original, diferente daqueles que se reuniam sob a 
denominação genérica de ‘habitação coletiva’ ou sob a identidade específica de cortiço.” 
Reconhecia ele que as “choupanas do morro” eram diferentes dos demais tipos descritos 
porque eram “casas isoladas” que se localizavam em “terreno íngreme e escarpado.” 
(ALMEIDA, 2016). 
Alguns exemplos de anúncios que tratam da infraestrutura e da condição de salubridade 
dos imóveis podem ser vistos nas imagens abaixo: 
 
 
Correio da Tarde, 14/02/1860: 
 
 
 
 
Jornal do Commercio, 20/05/1870: 
 
 
Correio do Brazil, 09/09/1872: 
 
 
 
Gazeta de Notícias, 28/03/1876: 
 
 
 
 
Correio Mercantil, 08/02/1877: 
 
 
 
Gazeta de Notícias, 21/08/1880 
 
 
 
 
Jornal do Commercio, 07/10/1881: 
 
 
 
Gazeta de Notícias, 23/09/1882: 
 
 
 
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Jornal do Commercio, 05/02/1887: 
 
 
 
 
Gazeta de Notícias, 02/08/1894: 
 
 
O Paiz, 18/01/1895: 
 
 
 
Jornal do Commercio, 04/11/1896: 
 
 
 
O Paiz, 23/11/1897: 
 
 
 
 
Jornal do Brasil, 30/05/1898: 
 
 
 
 
Também foi possível verificar pelos anúncios a recorrência da referência a “família”, 
“senhora viúva”, “senhora honesta”, “senhora séria”, sinalizando para um tipo de ocupação 
que se buscava para o Morro e a imagem que se projetava sobre ele. Nesse contexto, entre os 
anúncios encontrados, 106 se referem a “família”, “pouca família”, “família regular”, 
“pequena família”, “grande família” ou simplesmente “família”. Alguns anúncios mencionam 
“casal sem filhos”, “moços solteiros”, de que alguns dos mesmos anúncios acima são 
exemplos. 
Nesse ponto, é interessante traçar um paralelo com os clubes dançantes que surgiram no 
Rio de Janeiro nesse mesmo período e que, para além da função recreativa, também 
funcionavam como meio de afirmar a respeitabilidade de seus membros, buscando um padrão 
associativo elevado, dando a ver em suas paredes pequenos avisos moralizadores, segundo a 
crônica da época. O exemplo ocorrido com o “Estrela da Aurora” em 1899 (que por acaso 
funcionava na rua Barão de São Felix) também é ilustrativo dessa afirmação de 
respeitabilidade: no dia seguinte a uma nota publicada no jornal A Noticia narrando um 
episódio de desordem envolvendo briga entre seus frequentadores, os dirigentes do Estrela 
foram ao jornal desmentir tal nota reafirmando que seus salões seriam ‘frequentados 
unicamente por cavalheiros decentes e famílias consideradas.’ Buscavam assim afastar as 
imagens negativas que o jornal imprimira sobre o clube e a pecha de desconfiança que 
costumava pairar sobre eles (PEREIRA, 2020). Da mesma forma, ao referir, sob diversas 
formas, a “família”, os anúncios dos imóveis pareciam querer dar ao Morro o mesmo caráter 
de respeitabilidade e confiança. 
Há que se apontar ainda alguns casos em que o anúncio menciona que a casa é 
“ultimamente acabada”, ou é “casa nova”, dando a entender que se trata de construção 
recente. Há caso também de imóvel anunciado à venda que menciona a possibilidade de se 
“fazer um prédio na frente”. E, ainda, alguns outros em que se diz que o imóvel tem grande 
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terreno, sugerindo implicitamente a possibilidade de novas construções. Mais alguns 
exemplos de anúncios dessa natureza podem ser vistos nas imagens que seguem: 
 
 
Gazeta de Notícias, 24/10/1879: 
 
 
 
Gazeta de Notícias, 27/02/1880: 
 
 
Jornal do Commercio, 27/04/1880: 
 
 
 
Jornal do Commercio, 02/03/1886: 
 
 
 
 
 
Para além de moradores, assim, esses anúncios chamavam a atenção de um outro tipo 
de público: o dos investidores, confirmando a existência de um mercado imobiliário atento ao 
Morro da Providência. 
Talvez por isso, as autoridades públicas, ao mesmo tempo em que buscavam reprimir a 
ocupação das encostas dos morros, por outro lado faziam “vistas grossas” a essa mesma 
ocupação, deixando de aplicar a legislação quando ela impusesse restrições ao gozo do direito 
de propriedade em afronta ao pacto liberal do Império brasileiro (GONÇALVES, 2013). 
Seguia-se assim um pouco da lógica que prevalecia na exploração dos cortiços, como diz 
Maurício Abreu (ABREU, 1994, p. 36): 
 
“podiam ser insalubres, mas eram também uma enorme fonte de extração de renda, 
sendo inúmeros os indivíduos que se dedicavam a explorá-los. A própria Câmara 
Municipal, por sua vez, representante dos interesses comerciais e rentistas da cidade, 
pouco fazia para mudar essa situação. Embora promulgasse, sob pressão dos órgãos de 
higiene, posturas severas de combate aos cortiços, fazia vistas grossas quanto ao seu 
cumprimento.” 
 
O próprio Morro da Providência foi alvo de tentativas variadas de remoção ao longo do 
tempo, sendo que em 1906 houve uma tentativa de remover seus “casebres” e que não teve 
sucesso graças ao engajamento de seus moradores (MATTOS, 2020) Se por um lado isso 
poderia atender aos interesses dos investidores do mercado imobiliário, por outro evitava as 
reações e a resistência dos moradores, já que sua mobilização social sempre se apresentou 
como um perigo real que era necessário controlar (GONÇALVES, 2013). E permitia também 
atender a interesses do capital, diante da proximidade de uma força de trabalho para a 
indústria, as atividades de construção civil e prestação de serviços, inclusive domésticos, 
caracterizando-se como um fator de estabilidade social (ABREU, 1994). A proximidade entre 
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a moradia e o mercado de trabalho também se explicava pela precariedade das relações 
laborais, pois uma parcela dessa população mais carente precisava encontrar seu ganha-pão a 
cada dia. Sem ter condições de arcar com os custos de transporte para partes mais distantes da 
cidade, acabavam se estabelecendo nos morros (GONÇALVES, 2013). 
Há, ainda, alguns casos de leilão de imóveis no contexto de sucessões hereditárias de ao 
seis pessoas identificadas, falecidas nos anos de 1881, 1886, 1888, 1896 e 1899. Dados os 
anos dos anúncios, mais uma vez se observa que a ocupação do Morro da Providência é mais 
antiga do que se pensa. 
Um outro elemento que se destaca no banco de dados por sua relativa recorrência é o 
local em que se deve tratar sobre o anúncio. Muitos são no próprio Morro, mas aparecem com 
frequência alguns endereços fora dali, como a Rua do Ouvidor, Rua Sete de Setembro, Rua 
dos Ourives (atual Rua Miguel Couto), Rua Senador Pompeu e a Rua Barão de São Félix, 
essas duas últimas ali bem próximas ao Morro. 
Não foi possível ainda saber o que funcionava nesses endereços nas datas dos anúncios, 
com exceção de um caso: a Rua Barão de São Félix, 154. Ali funcionava o cortiço Cabeça de 
Porco (CHALHOUB, 1996) e, embora tenham aparecido apenas três imóveis para se tratar 
precisamente ali (dois em anúncio de 1881 e um em 1883, alguns anos antes da demolição 
daquele cortiço, portanto), esses anúncios corroboram a afirmação de que alguns proprietários 
do Cabeça eram também proprietários de terrenos no Morro (ABREU, 1994, CHALHOUB, 
1996, GONÇALVES, 2013). Os anúncios em questão se referem a imóveis situados no Morro 
da Providência n. 18 e informam que “a chave está no n. 15”. Eis osanúncios: 
 
 
Jornal do Commercio, 23/06/1881: 
 
 
 
Jornal do Commercio, 23/06/1883: 
 
 
 
 
Há uma outra correlação que o banco de dados permite fazer ainda tendo em mente o 
Cabeça de Porco: alguns anúncios publicados em 1881 indicam exatamente o mesmo n. 15 do 
Morro da Providência para se tratar sobre o aluguel de imóveis no Morro da Providência n. 
16. Coincidência? Ou seriam também imóveis dos donos do Cabeça de Porco? Seja como for, 
esses anúncios evidenciam que mais de 10 anos antes da demolição do Cabeça de Porco, o 
Morro da Providência já era ocupado e possivelmente os aluguéis nas duas localidades eram 
explorados pelas mesmas pessoas. É preciso investigar mais. 
Todas essas constatações se referem aos anúncios publicados em jornais entre 1860 e 
1900. Significativamente antes, portanto, do período que tradicionalmente se atribui como 
início da ocupação do Morro da Providência, já havia gente morando ali. Famílias (às vezes 
mais de uma morando na mesma casa), pessoas solteiras ou casais morando em casas de 
família, solteiros morando em quarto alugado. Variadas formas de ocupação, portanto. E 
havia também água, gás, bondes próximos, comércio (alguns anúncios são de “lojas”, aliás) e 
há referência a pomares com árvores frutíferas e imóveis sendo construídos e até a um 
hospital. Uma intensa movimentação. E, talvez por isso, as autoridades públicas se atentaram 
para essas ocupações, preocupadas com a qualidade das construções, além da já mencionada 
preocupação com a higiene. 
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Nesse sentido, entre os documentos sobre “Infração de Posturas da Gamboa” 
consultados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (códice 10.1.27), encontra-se um, 
datado de janeiro de 1905, pelo qual, visando atender a uma recomendação do Sr. Prefeito, 
enviava-se “a descrição sucinta dos casebres existentes no morro da Providência – Favella – 
feitos ali sem licença, sem satisfazerem a nenhuma das condições exigidas pelas leis de 
construção em vigor, nem às condições de estabilidade.” O documento se fez acompanhar da 
relação dos proprietários dos terrenos e dos proprietários das construções “em cujos nomes 
estão [as mesmas propriedades] lançadas para o respectivo pagamento do imposto predial”. 
Acompanhou também o documento um croqui, uma espécie de planta do Morro, com a 
disposição das construções e caminhos identificados e a relação descritiva dos imóveis 
encontrados. Recomendava a vistoria “sem demora” dos mencionados casebres para que se 
procedesse legalmente com relação às “construções ruinosas”. O documento tem uma 
declaração final informando que em alguns casos a descrição é impossível, por se tratar de 
 
“casebres baixos, quentes e escuros, de chão batido, coberto de folhas de zinco, latas de 
querosene abertas e tabuas de caixão; as paredes, geralmente de taipa, acham-se 
esburacadas, a cair; outras são de tábuas de caixão cobertas com latas abertas, feitas nas 
encostas do morro (...) algumas se mantém em equilíbrio grandemente instável. Muitas 
enfim assemelham-se mais a tocas de animais que a habitações humanas. Das poucas 
que fazem exceção a essa regra, contam0se as de números 1, 22 e 23, regularmente 
conservadas embora não tenham as condições exigidas nas leis de obras e de higiene.” 
 
Descrição em tudo diferente do que se declara em boa parte dos anúncios, mas que é 
possível imaginar por algumas imagens fotográficas (embora de alguns anos mais tarde - 
1920) o que relata a pessoa que escreveu o documento em questão. 
 
 
 
Foto do Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 
 
 
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Foto do Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 
 
 
 
Foto do Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 
 
 
Curioso é que, ao mesmo tempo que a autoridade pública se atenta para a qualidade dos 
“casebres”, conhece a relação de proprietários porque cobra-lhes o imposto predial (ainda que 
não em relação a todos os imóveis existentes). Vale mencionar aqui que há indícios de que 
naqueles anos iniciais da ocupação do Morro da Providência, haviam variadas formas de 
construção, desde aquelas do tipo descritas pelo agente que fez o documento acima 
mencionado e que as imagens ajudam a imaginar, como também construções em outras partes 
do morro de qualidade bastante diferente, como as imagens a seguir também ajudam a 
imaginar: 
 
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Foto do Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 
 
 
 
 
Foto do Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 
 
 
É possível que alguns anúncios de imóveis se referissem a “casinhas” mais ao estilo dos 
“casebres”, mas também a casas mais sólidas (talvez até para abrigar, no início, as pessoas de 
classes mais abastadas que subiram as montanhas em busca de saúde?). Uma diversidade que 
talvez tenha coexistido em partes diferentes do morro ou que pode ter se modificado ao longo 
do tempo, tendo se deteriorado pela precariedade da condição de vida da população da cidade 
e como resultado também das políticas da higiene e, um pouco mais tarde, das adotadas no 
contexto das reformas urbanas por que a cidade passaria. Talvez por isso, Lilian F. Vaz tenha 
afirmado que, até o final do século XIX, havia formas embrionárias de favelas, mas que ainda 
não se podiam caracterizar como tal por faltar-lhe alguns atributos “tais como: a conotação de 
adensamento, ilegalidade, insalubridade, desordem, autoconstrução e falta de serviços de 
infraestrutura urbana” (GONÇALVES, 2013). Ou, dito de outra forma, o fenômeno da 
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existência das favelas é “claramente anterior ao aparecimento da categoria favela”, como nos 
diz Lícia Valladares (VALLADARES, 2005, p. 26). 
Voltando aos documentos analisados, entre aqueles relacionados à Infração de Posturas 
da Gamboa consultados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, poucos se referem a 
moradores ou pessoas que têm negócio no Morro da Providência. A documentação em regiões 
próximas é bem mais farta, mas, ainda assim, alguns registros foram identificados. 
Assim se toma conhecimento do caso da Sra. Luíza de Paula, residente à Ladeira do 
Barroso n. 101 que, tendo um negócio de quitanda, foi multada em 1908 por ter deixado de 
pagar a licença anual de seu negócio e requereu à Prefeitura, “por equidade’, relevação da 
multa, obrigando-se a satisfazer o débito relativo à licença anual. Atribui a sua falta a “motivo 
de moléstia grave em si e pessoas de sua família.”. A requerente teve seu requerimento 
assinado por Manoel Pereira da Silva, que arrogou a assinatura por não saber a requerente ler 
e escrever (códice 9.3.32). Não há informação sobre ela ter tido seu requerimento deferido, 
mas a administração informou que ela era devedora das taxas de anos anteriores também. 
O caso do Sr. Albino Teixeira Aragão, residente à Ladeira do Faria, 46A. Autuado em 
1905 por não ter licença de obras, relata ser proprietário há muitos anos no Brasil e “esta é a 
primeira vez que isso lhe acontece, julga haver prevenção contra si por parte do Sr. Agente” 
para pedir, assim como a Sr. Luíza de Paula, relevação da multa. Em seu caso, houve 
indeferimento, tendo a administração relatado ser o “suplicante infrator remisso desde 1904”, 
elencando diversas infrações que ele teria cometido. 
A Sra. Candida Lopes Pereira, residente à Rua do Livramento n. 29, autuada por ter 
construído um “muro divisório no terreno de seu prédio à Rua Coronel Pedro Alves, n 157” 
sem a necessária licença “por motivos de ignorância”, teve seu pedido de “despacho 
favorável” indeferido em 1906. O agente administrativo atribui à própria requerente o 
reconhecimento da falta. 
Os casos ocorridos fora do Morro da Providência não são muito diferentes, sendo 
muitos deles relativos à falta de licença para a atividade desenvolvida e pedidos de relevação 
da multa. Há até mesmo o caso de um empresário de circo, que deixou de obter um visto da 
Prefeitura em seu panfleto de divulgaçãode espetáculo em 1904. As apresentações desse 
circo eram anunciadas para ocorrer na Rua Barão de São Félix, esquina da do Dr. João 
Ricardo, “Antiga Cabeça de Porco”. 
Há que se mencionar também alguns pedidos de aforamento, consultados junto ao 
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Por esses processos, os proprietários de imóveis 
em terrenos situados no Morro da Providência que eram foreiros à municipalidade, requeriam 
formalmente a “carta de aforamento” visando dar regularidade documental a seu imóvel. Em 
alguns desses processos é possível verificar, inclusive, que a administração pública municipal 
reconhece que houve pagamento de taxas e laudêmio para transferência de propriedade. Isso 
demonstra que, embora as favelas tenham sido sistematicamente classificadas como espaços 
ilegais, fora do alcance do Estado, os proprietários de imóveis interagiam com a 
administração pública que, por seu turno (ainda que talvez com o objetivo de arrecadar taxas), 
reconhecia algumas propriedades e sua legitimidade. Como aliás era também o caso dos 
processos sucessórios referidos anteriormente e como também reconhecido pelo documento 
que descreve os “casebres” acima mencionado. 
A amostra de elementos que o banco de dados dos imóveis de 1860 a 1900 permite 
constatar ainda pode ser mais aprofundada para melhor compreender o processo de 
consolidação da ocupação do Morro da Providência, ampliando essa investigação para o 
período posterior a 1900. Por outro lado, a continuidade da investigação de outros processos 
administrativos de aforamento, infração de posturas e de licenciamento de obras no mesmo 
período também pode contribuir para melhor traçar um panorama da experiência dos 
moradores, trabalhadores e proprietários de negócios ou imóveis no Morro da Providência em 
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sua relação com o poder público e de construção social de seu espaço, desde os primeiros 
anos do período delimitado para a pesquisa. 
Metodologia 
Para investigar a ocupação do Morro da Providência anteriormente à chegada dos 
soldados de Canudos (1897) e mesmo à demolição dos cortiços - sendo a demolição do mais 
famoso deles, o “Cabeça de Porco”, de 1893 (CHALHOUB, 1996), a pesquisa baseia-se no 
levantamento de anúncios compra e venda e de aluguel de imóveis naquele Morro, em que é 
possível ver, além da quantidade de anúncios e do tipo de imóvel anunciado e as estratégias 
dos anunciantes para alcançar seu público-alvo. O levantamento realizado até o momento 
(período de 1860 até 1900), permite ver que os anúncios destacavam o tipo e a qualidade dos 
imóveis, fazendo referência, por exemplo, a “casa”, “casinha”, “uma das melhores casas do 
morro da Providência”, “chácara”, “um cômodo”, “tem quintal”, há “árvores frutíferas”, 
“bonita vista”, “tem água dentro”, o imóvel é “muito saudável”, entre outros. Alguns 
anúncios, por outro lado, buscavam não exatamente moradores, mas investidores ao publicar, 
por exemplo, que o imóvel “dá boa renda” e que “há terreno próximo”, sugerindo talvez a 
possibilidade de se construir outros imóveis, indicando a existência de um mercado 
imobiliário no Morro da Providência. Aliado a outras fontes documentais (como os processos 
de infração de posturas e de aforamentos), a base de dados permitirá elucidar de que maneira 
o processo de ocupação do Morro se constituiu como resultado de um processo de produção 
social do espaço (LEFEBVRE, 2013), a partir da interlocução de seus moradores com o poder 
público municipal. 
Conclusões 
Embora comumente seja atribuída à chegada dos soldados advindos da Guerra de 
Canudos, encerrada em 1897, a ocupação do Morro da Providência se iniciou bem antes – 
pelo menos dede 1860, como evidenciam as fontes. Durante o período compilado na base de 
dados de imóveis (1860-1900), é possível notar uma quantidade de anúncios significativa, 
indicando a ocorrência até de uma especulação imobiliária no Morro. Por outro lado, há 
referência a alguma infraestrutura (como água, esgoto e proximidade de transporte público) 
nas casas, como se vê nos anúncios que indicam que o imóvel “tem água dentro”, que 
aparecem com alguma recorrência, o que é indicativo do que era valorizado pelos potenciais 
inquilinos. Com relação aos documentos relativos à infração de posturas examinados, embora 
não todos associados diretamente aos moradores ou comerciantes do Morro da Providência 
(há mais ocorrência nos arredores), indicam que tinham conhecimento dos meandros da 
burocracia administrativa e de como percorrê-la para se defender de autuações e até de abusos 
de agentes fiscalizadores – embora nem sempre com sucesso. É possível, assim, recuar o 
marco temporal da ocupação do Morro da Providência e avançar para período ainda não 
muito evidenciado pela historiografia. 
Referências 
[1] ABREU, M. A. “Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das 
favelas do Rio de Janeiro”. Espaço & Debates, Rio de Janeiro, n 37, 1994 (pp. 34-46). 
[2] ALMEIDA, Rafael Gonçalves. Favelas do Rio de janeiro: invenção histórica de um 
espaço. Tese de Doutorado em Geografia, UFRJ, 2016 (Capítulo 1, pp. 25-70). 
[3] CHALHOUB, Sidney, “Cortiços”, em Cidade Febril. Cortiços e epidemias na Corte 
Imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996 (pp. 17-68). 
[4] GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio de 
Janeiro: Pallas: Ed. da PUC, 2013 (pp. 27-93). 
Departamento de História 
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[5] GUPTA, Akhil e FERGUSON, James. “Mais além da cultura: espaço, identidade e 
política da diferença. In: ARANTES, Antonio A. (Org.) O espaço da diferença. Campinas: 
Papirus, 2000 [1992] (pp. 30-49.) 
[6] LEFEBVRE, Henri. “Prefácio - A produção do espaço”. Estudos avançados, vol.27, n.79, 
2013 [1985]. 
[7] LOW, Setha. “The social construction of space”. Spatializing culture: the ethnography of 
space and place. New York, NY: Routledge, 2016 (pp. 68-93). 
[8] MATTOS, Romulo. “O Morro da favela como território das classes perigosas na Primeira 
República”. In: GONÇALVES, Rafael et alli, Pensando as favelas cariocas: história e 
questões urbanas, Rio de Janeiro: Pallas/PUC-Rio, 2020 (pp. 31-55). 
[9] PEREIRA, L. A. M.. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro 
(1881-1933). Campinas: Editora da Unicamp, 2020 (Introdução, Capítulo 2). 
[10] VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com, 
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. (pp. 22-73). 
Imagens fotográficas pertencem ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro são para uso 
exclusivo desta pesquisa acadêmica. A reprodução não permitida.

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