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33O labirinto da linguagem jurídica Língua Portuguesa e Literatura – Não, não, disse ele. – Só acho que devemos levar em consideração as hipóteses heterodoxas. As eventualidades aleatórias. As circunstâncias atenuantes. Em outras palavras, as oportunidades imperdíveis. E exemplificou: – Digamos que eu fique preso num elevador com a Luana Piovani. – Sei. – Só eu e ela. – Certo. – Depois de 10, 15 minutos, ela diz “Calor, né?” e desabotoa a blusa. Mais dez minutos e ela tira toda a roupa. Mais cinco minutos e ela diz “Não adiantou” e começa a abrir o zíper da minha calça... – Sim. – O contrato deveria prever que, em casos assim, eu estaria automaticamente liberado dos seus termos restritivos. Ela concordou, em tese, mas argumentou que a licença pleiteada deveria ser mais específica, rechaçando a sugestão dele de que o inciso expiatório se referisse genericamente à “Luana Piovani ou similar”. Depois de alguma discussão, ficou decidido que ele estaria automaticamente liberado da obrigação contratual de ser fiel a ela no caso de ficar preso num elevador com a Patrícia Pillar, a Luma de Oliveira, ou uma das duas (ou as duas) moças do “Tchan”, além da Luana Piovani, se o socorro demorasse mais de 20 minutos. Isto estabelecido, ela disse: – No meu caso, deixa ver... – Como, no seu caso??? – No caso de eu ficar presa num elevador com alguém. – Defina “alguém”. – Sei lá. O Maurício Mattar. O Antônio Fagundes. O Vampeta. – O Vampeta não! – É só um exemplo. – Não pode ser brasileiro! – Ah, é? Ah, é? Foi a primeira briga deles. Ele se considerava um homem moderno e um escravo da justiça, mas aquilo era demais. Não conseguia imaginar ela presa num elevador com um homem irresistível, ainda mais com a absolvição pelo adultério garantida em contrato. Sugeriu o Richard Gere. Ela não era louca pelo Richard Gere? O Richard Gere ele admitia. Ela achou muito engraçado. As chances de ela 34 O Discurso como prática social: oralidade,leitura, escrita, Literatura Ensino Médio • “Cláusula do Elevador” é uma crônica de humor. Que recursos foram utilizados pelo autor para provocar a graça? • Com relação ao texto, defina hipótese heterodoxa, eventualidades aleatórias, circunstâncias atenuantes e inciso expiatório. • O contrato final pode ser considerado justo? Discuta com a turma. ATIVIDADE Leia, agora, o poema de Vinícius de Moraes, que trata do mesmo assunto da crônica de Veríssimo: a fidelidade. SONETO DE FIDELIDADE De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor ( que tive ): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. ficar presa num elevador com o Richard Gere eram muito menores do que as chances dele de ficar preso com a Luana Piovani, que morava no Brasil, ora, faça-me o favor. – Então o Julio Iglesias. – O quê?! – O Julio Iglesias vem muito ao Brasil. – Eu tenho horror do Julio Iglesias! – Bom, se você vai começar a escolher... Finalmente, chegaram a um acordo. Ele ainda relutou, mas no fim se viu sem nenhuma objeção convincente. Ela estaria liberada de ser fiel a ele se um dia ficasse presa num elevador com o Chico Buarque. Mas só com o Chico Buarque. E só se o socorro demorasse mais de uma hora! (O Estado de São Paulo – Domingo, 07 de março de 1999 – Caderno Cultura).