Prévia do material em texto
SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 1. O QUE É SEMÂNTICA A área da Linguística que se dedica ao estudo do significado das línguas naturais é a Semântica, e ela se subdivide em várias abordagens, cada uma com diferentes perspectivas e enfoques. Essas subdivisões incluem a semântica textual, formal, lexical, discursiva, cognitiva, entre outras, mas todas compartilham um objetivo central: analisar o significado. O termo “semântica” foi cunhado pelo filólogo francês Michel Bréal (1832-1915). No entanto, mesmo antes da existência desse termo, o estudo dos significados estava presente na linguística. Desde a época de Aristóteles, investigações sobre os sentidos das palavras já eram conduzidas. Desde Bréal até os dias atuais, houve um progresso notável na área de estudos semânticos. Inicialmente, o foco estava na análise histórica e mecânica do significado das palavras, com ênfase nas mudanças lexicais. No entanto, com o tempo, percebeu- se que o significado vai além das palavras em si. Ele é moldado pela cultura, pelas interações humanas, e as pessoas percebem o mundo de maneiras variadas, atribuindo significados distintos a ele. Assim, a Semântica evoluiu para compreender as complexidades da significação em contextos culturais e sociais mais amplos. A Semântica, ao focar no estudo do significado, tornou-se um campo que deu origem a várias teorias e definições ao longo do tempo. O seu principal interesse reside na investigação das relações entre as expressões linguísticas e os conceitos mentais associados a elas. É fundamental destacar o impacto significativo que o século XX teve no estudo da linguagem, particularmente após a apresentação das ideias de Ferdinand de Saussure (1857-1913), um influente linguista suíço. Suas ideias estruturalistas tiveram uma influência marcante no desenvolvimento da teoria linguística e na compreensão das relações entre linguagem e significado. No início, a Linguística tinha uma ênfase notável na filologia, que foi proeminente ao longo do século XIX. Somente nesse século o interesse pelas línguas vivas começou a se estabelecer de forma mais robusta. Estudos comparativos ganharam um novo vigor com a descoberta do sânscrito e suas semelhanças com outras línguas. Através de investigações históricas, foram estabelecidas várias correspondências sistemáticas entre línguas como latim, sânscrito, grego e as línguas modernas. 1.1 A semântica e suas divisões A semântica, assim como outras disciplinas linguísticas, abrange diversas abordagens. Ela pode ser teórica, quando se estuda o conceito de significado; histórica, ao analisar o significado ao longo do tempo; descritiva, quando se foca na análise do significado em um determinado momento; e comparativa, quando se estabelecem relações entre significados. Dada a amplitude desse campo, é fundamental mencionar suas diferentes subdivisões. Portanto, após compreendermos o conceito de significado, podemos agora explorar as várias ramificações da semântica. De acordo com Müller e Viotti (2003), a semântica é verdadeiramente diversificada. Ela abrange uma gama de perspectivas, incluindo semântica textual, semântica cognitiva, semântica lexical, semântica argumentativa e semântica discursiva. Cada uma dessas abordagens investiga o significado de sua própria maneira. Essa ampla diversidade reflete a ideia de que o estudo do significado pode ser realizado a partir de várias perspectivas. Desta forma, torna-se inquestionável que a semântica é uma área fundamental da linguística por se concentrar no estudo do significado na linguagem. Pois envolve a análise dos significados das palavras, frases e estruturas linguísticas, bem como a forma como esses significados são interpretados pelos falantes de uma língua. A semântica desempenha um papel crucial na compreensão da comunicação e na interpretação de textos. Quanto ao significado das palavras: a semântica examina como as palavras individuais adquirem significado. Cada palavra possui um significado que pode ser definido de maneira abstrata, muitas vezes com base em conceitos, experiências ou referências do mundo real. Esses significados individuais são conhecidos como “significados lexicais”. Significado das frases: as palavras, quando combinadas em frases, podem adquirir novos significados que vão além da mera soma de seus significados individuais. A semântica estuda como a combinação de palavras em uma frase afeta o significado global da frase, levando em consideração questões como a sintaxe e a semântica composicional. Contexto: A interpretação semântica é altamente dependente do contexto. O mesmo conjunto de palavras pode ter significados diferentes em contextos diferentes. Portanto, a semântica analisa como o contexto influencia a interpretação das expressões linguísticas. Ambiguidade: A semântica também lida com a ambiguidade, que ocorre quando uma expressão pode ter mais de um significado. Existem vários tipos de ambiguidade, como a ambiguidade lexical (uma palavra com vários significados) e a ambiguidade estrutural (uma frase com várias interpretações devido à estrutura sintática). Polissemia: A polissemia é um fenômeno em que uma palavra tem múltiplos significados relacionados entre si. A semântica investiga como as palavras polissêmicas são usadas e como os falantes selecionam o significado apropriado com base no contexto. Referência: A semântica explora como as palavras e frases se referem a entidades do mundo real. Isso inclui o estudo de pronomes, demonstrativos e outros elementos que estabelecem a referência. Análise formal: Além da análise conceitual, a semântica também utiliza abordagens formais, como lógica e teoria dos conjuntos, para representar e analisar o significado de forma precisa. Assim, a fim de compreender como os significados de palavras e frases são estabelecidos, tanto para quem as cria quanto para quem as interpreta, a semântica se dedica à investigação de diversos aspectos, incluindo: ➢ As características estruturais que constituem os conceitos; ➢ O conhecimento dos interlocutores sobre o assunto do qual estão falando ou ouvindo (ou escrevendo e lendo); ➢ As indicações contextuais que direcionam os significados de palavras e frases. Hoje, dentro do domínio específico da linguística denominado semântica, encontramos, na verdade, um vasto conjunto de teorias que examinam diversos aspectos do mesmo tópico, ou seja, os significados nas línguas. Uma das teorias mais clássicas dentro desse conjunto é identificada como semântica lexical. A semântica lexical é a disciplina que se dedica de forma específica ao estudo dos significados das palavras (CANÇADO, 2008). Para entendermos o escopo da semântica lexical, é necessário, primeiramente, compreender o que uma palavra representa. Contudo, definir o conceito de “palavra” não é uma tarefa trivial. Se considerarmos a sua manifestação escrita, podemos conceituar uma “palavra” como uma sequência de letras delimitada por espaços em branco, como exemplificado na sequência “b-r-a-n-c-o” na sentença anterior. No entanto, quando nos voltamos para a expressão oral, estabelecer os limites de uma palavra se torna uma tarefa consideravelmente mais complexa. Isso se deve ao fato de que, na fala, não há “espaços em branco” que claramente delimitem uma palavra da seguinte. Certamente, nossa tendência mais natural não é articular cada palavra separadamente, mas sim proferir uma sequência contínua e fluida de sílabas, interrompida ocasionalmente por pausas. Essas pausas podem ocorrer tanto entre as sílabas de uma mesma palavra quanto entre palavras ou apenas no final de sentenças completas. É importante destacar que as pausas na fala nem sempre coincidem com os “espaços em branco” em uma linha escrita. Portanto, ao abordarmos a palavra como um elemento da semântica, nãopodemos simplesmente definir sua essência com base em sua forma, mas devemos considerá-la em termos de sua forma juntamente com o conceito associado a ela. Nesse contexto, a semântica lexical deixa de se concentrar apenas na palavra, passando a se concentrar, sobretudo, na unidade lexical (LEWIS, 1993). Uma unidade lexical, de forma geral, é qualquer unidade linguística, que pode ser uma palavra isolada ou até mesmo um grupo de palavras, que constitui a menor unidade de significado em uma língua. Em outras palavras, essas unidades são representações linguísticas às quais podemos atribuir um significado básico. Exemplos de unidades lexicais podem variar desde interjeições monossilábicas que expressam emoções e impressões, como “ai”, “oh” e “ei”, até palavras individuais, como “mala”, “exemplo” e “justiça”, bem como expressões compostas, como “fim de semana”, “mal-humorado” e “comemorar”. Uma abordagem para explorar o significado das unidades lexicais é conhecida como análise sêmica (ou análise componencial), conforme descrito por TAMBA-MECZ (2006). A análise sêmica permite investigar a estrutura semântica dessas unidades e como seus componentes contribuem para o significado global. Também chamada de análise componencial, consiste em identificar os traços semânticos mínimos, conhecidos como “semas”, que constituem cada unidade lexical e que a diferenciam de outras unidades lexicais similares. Esses semas são, por natureza, abstratos e frequentemente representados em um sistema binário, indicando a presença [+] ou ausência [–] de um determinado traço semântico nas unidades lexicais correspondentes. Para ilustrar a distinção sêmica entre os conceitos “homem” e “menino” na língua portuguesa, podemos utilizar semas para descrever seus significados básicos. O conceito “homem” pode ser caracterizado por semas como [+ concreto], [+ animado], [+ humano], [+ adulto], entre outros. Já o conceito “menino” pode ser descrito pelos semas [+ concreto], [+ animado], [+ humano], mas com o traço [– adulto], indicando que se trata de uma pessoa jovem. É importante ressaltar que, em última análise, a semântica lexical se concentra principalmente no sentido denotativo das palavras, como observado por Müller (2003). A denotação se refere ao significado literal ou descritivo de uma palavra específica, ou seja, o que a palavra representa de forma concreta ou objetiva. Em uma descrição mais detalhada, o sentido denotativo de uma palavra específica se refere à relação que ela estabelece com um elemento do mundo real com base nos traços semânticos que, em sua forma prototípica, a caracterizam. Esse conceito de denotação se distingue da conotação, que se relaciona ao significado não literal ou não descritivo das palavras e está ligado às particularidades do contexto em que a palavra é usada, incluindo as intenções do falante. O Quadro 1, a seguir, ilustra o modelo de análise sêmica. Veja: Quadro 1 - Exemplo de análise sêmica Fonte: adaptada de Müller (2003). 1.2 A semântica frástica A Semântica Frástica, de acordo com a definição de Tamba-Mecz (2006), é um ramo da linguística que se dedica não apenas aos significados das unidades lexicais individualmente, mas principalmente aos significados que surgem da combinação dos significados das palavras. Especificamente, a Semântica Frástica se interessa pelos significados lexicais, e também pelos significados que emergem das relações que essas palavras estabelecem entre si dentro de sequências linguísticas mais extensas. Em outras palavras, ela se concentra na análise dos significados que resultam da interação e da organização das palavras em frases ou textos maiores. Assim, na abordagem da Semântica Frástica, a unidade mínima de significado (e, consequentemente, de análise) deixa de ser a unidade lexical e passa a ser a frase. Portanto, podemos concluir que a pesquisa realizada pela Semântica Frástica tem, em última instância, uma base substancial nos aspectos relacionados à estrutura gramatical (ou, ainda, à sintaxe) das línguas. Em primeiro lugar, é fundamental compreender o que a Semântica Frástica considera como sua unidade de significação, ou seja, sua unidade de análise, que é a frase. As frases englobam tanto sintagmas quanto sentenças que podem ser construídas a partir de unidades lexicais independentes. Por um lado, o termo “sintagma” refere-se a uma palavra ou conjunto de palavras que desempenha uma função sintática específica dentro de uma sentença. Isso pode incluir funções como o sujeito, o predicado ou o complemento. O significado de um sintagma não é apenas determinado pela combinação dos significados de suas partes, mas também pelo papel que desempenha nas sentenças em que é utilizado. De acordo com a perspectiva da Semântica Frástica, o sintagma “o marido de Maria” teria significados distintos nas seguintes sentenças: “o marido de Maria matou uma pessoa” e “uma pessoa matou o marido de Maria”. Além do significado derivado da combinação de suas unidades lexicais individuais, esse sintagma também denotaria um significado específico de “agente” na primeira sentença e de “paciente” na segunda. Em outras palavras, o sintagma “o marido de Maria” desempenha papéis semânticos diferentes dependendo do contexto em que é utilizado. Na primeira sentença, ele representa o agente da ação (quem realizou a ação de matar), enquanto na segunda sentença, ele representa o paciente da ação (quem sofreu a ação de ser morto). Isso demonstra como a Semântica Frástica se concentra na análise dos significados que surgem das relações entre as palavras dentro de uma frase ou contexto maior. Por outro lado, de forma geral, uma sentença é a menor combinação de sintagmas que transmite um significado proposicional completo. Por exemplo, a sentença “o marido de Maria matou uma pessoa” é formada pela combinação dos sintagmas nominais “o marido de Maria” e verbais “matou uma pessoa” e expressa uma afirmação completa sobre um evento da realidade. É importante lembrar que o significado das sentenças não é simplesmente a soma dos significados lexicais de suas partes individuais, mas, principalmente, é derivado das relações que essas partes estabelecem entre si. De fato, a sentença “o marido de Maria matou uma pessoa” teria um significado completamente diferente se a ordem dos seus sintagmas fosse alterada, como nas sentenças “uma pessoa matou o marido de Maria” ou “Maria matou o marido de uma pessoa”. Essa variação na ordem das palavras pode resultar em interpretações distintas e ressalta a importância das relações sintáticas na determinação do significado global das sentenças. Além de considerar o significado associado aos sintagmas e sentenças, a Semântica Frástica também se concentra significativamente nos significados que surgem das relações estabelecidas entre sentenças. Isso significa que, frequentemente, o significado de uma sentença não depende apenas da combinação dos sintagmas nessa sentença, mas também da maneira como ela se conecta com outras sentenças que a precedem ou seguem em um texto específico. Assim, a Semântica Frástica reconhece que o significado de um texto pode ser mais do que a simples soma de suas partes individuais, considerando a complexa interação entre as sentenças e sua contribuição para o significado global de um discurso. O exemplo, “o acusado foi condenado, apesar de não haver provas contra ele”, ilustra claramente a importância das relações entre as sentenças na compreensão do significado global. A conjunção “apesar de” introduz uma ideia que se contrapõe à ideia anterior. Para entender o significado do sintagma verbal “não haver provas”, é necessário relacioná-lo ao sintagma verbal anterior “foi condenado”. Da mesma forma, o pronome “ele” depende do sintagma nominal anterior “o acusado” parater significado. Portanto, esse exemplo destaca como a Semântica Frástica também abrange uma dimensão interfrástica, ou seja, a análise dos significados que emergem das relações entre sentenças adjacentes em um texto. A compreensão do todo muitas vezes depende das partes e de como elas se conectam e influenciam mutuamente. 1.3 Relações semânticas Conforme observado por Cançado (2008), as unidades linguísticas, sejam elas palavras ou frases, podem ser organizadas ou analisadas com base em determinadas relações de sentido que existem entre elas. Essas relações podem ser de diversos tipos, como identidade, que aproxima as unidades devido a alguma semelhança, ou de oposição, que se baseia em aspectos contrários ou complementares. No nível das palavras, algumas das relações que podem se estabelecer entre as unidades lexicais incluem: Sinonímia: Quando duas palavras têm significados semelhantes ou quase idênticos, como “grande” e “enorme”. Antonímia: Quando duas palavras têm significados opostos, como “amor” e “ódio”. Hiponímia: Quando uma palavra é mais específica do que outra, como “rosa” sendo um hipônimo de “flor”. Hiperonímia: Quando uma palavra é mais geral do que outra, como “fruta” sendo um hiperônimo de “maçã”. Essas são apenas algumas das relações possíveis entre unidades lexicais, e essas relações desempenham um papel fundamental na organização e compreensão do vocabulário de uma língua. No nível da frase, de acordo com Cançado (2008), existem algumas relações de sentido que são análogas às relações entre palavras. Entre essas relações, podemos destacar: Paráfrase: Essa relação é análoga à sinonímia e ocorre quando duas frases expressam o mesmo significado ou ideia, embora possam ser formuladas de maneira diferente. É semelhante a reescrever uma frase com palavras diferentes, mas com o mesmo sentido. Contradição: Semelhante à antonímia, a contradição ocorre quando duas frases expressam ideias opostas ou contraditórias, indicando uma oposição direta de significados. Acarretamento: Essa relação é análoga à hiponímia e ocorre quando uma frase implica ou inclui automaticamente outra frase. Em outras palavras, uma frase “acarreta” a verdade da outra, sugerindo uma relação de generalização. Essas relações de sentido entre frases desempenham um papel importante na compreensão de textos e na análise da estrutura semântica das sentenças em contextos mais amplos. 2. O SIGNO LINGUÍSTICO É importante notar que os princípios subjacentes à noção de "signo" não estão restritos exclusivamente à linguística, mas têm suas raízes na semiótica. A semiótica é uma disciplina mais ampla da qual a linguística faz parte, e sua área de estudo abrange as relações entre fenômenos em geral, sejam eles linguísticos ou não, e como esses fenômenos adquirem significado dentro de sistemas específicos. Portanto, sob uma perspectiva semiótica mais abrangente, um "signo" pode ser definido como qualquer elemento que represente um estado de coisas, que pode ser um objeto, um evento ou até mesmo uma impressão, dentro de uma determinada cultura, por exemplo. Conforme Pierce (2005), explicou, a teoria dos signos abarca três categorias distintas. O primeiro desses tipos é o “ícone”, caracterizado por sua natureza imagética, no qual a forma do signo guarda uma relação de identidade com o objeto que ele representa. Exemplos de ícones incluem esculturas de pessoas ou maquetes de casas. Outro tipo crucial de signo é o "índice", que se destaca por estabelecer uma relação de contiguidade com o objeto representado, frequentemente sendo um fragmento extraído desse objeto. Um exemplo ilustrativo de índice é a fumaça, que funciona como índice de fogo, ou nuvens negras no céu, que indicam a possibilidade de chuva. Por fim, a terceira categoria é o "símbolo", um tipo de signo que representa seu objeto com base em convenções ou leis estabelecidas. A cruz, por exemplo, é símbolo do cristianismo, a balança representa a justiça e a cor verde é amplamente aceita como símbolo da esperança. Com a inclusão dos estudos da linguagem, particularmente através das contribuições teóricas de Ferdinand de Saussure na obra póstuma "Curso de Linguística Geral" (2012), o conceito de "signo" tornou-se um elemento fundamental ao representar a relação convencionalizada entre uma forma linguística específica e um significado particular. Esse elemento é referido de maneira específica como "signo linguístico". Uma explicação crucial de Saussure (2012), em relação ao conceito de signo linguístico é que ele "liga não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica". Isso implica que o signo linguístico possui uma natureza essencialmente psíquica, estabelecendo uma associação entre, por um lado, nossa representação mental de um conceito ou objeto no mundo, e, por outro, a impressão mental dos sons que compõem uma palavra específica. Para fins de terminologia precisa, Saussure (2012), atribui o termo "significante" à imagem acústica e "significado" ao conceito que essa imagem representa. Um ponto fundamental, enfatizado por Saussure (2012), relacionado à noção de signo linguístico (Figura 1), é que esse componente constitui uma relação intrincada e inseparável entre um significado específico e seu significante correspondente, ou seja, entre um conceito particular e sua imagem acústica associada. Isso significa que os dois elementos que compõem o signo linguístico estão intimamente unidos e um depende do outro. Figura 1 - Esquema que Saussure propõe para ilustrar a estrutura interna do signo linguístico Fonte: adaptada Saussure (2012). Para exemplificar essa ideia, Saussure (2012), utiliza uma analogia na qual compara o signo linguístico a uma folha de papel. Da mesma forma que não é possível separar o verso de uma folha do seu anverso sem cortar ambos ao mesmo tempo, também não podemos dissociar um significante do seu significado. Em outras palavras, não podemos evocar a imagem acústica de uma palavra sem simultaneamente trazer à mente o conceito que essa palavra representa. 2.1 Algumas características do signo Com base nas reflexões de Saussure (2012), podemos definir o signo linguístico de forma abrangente como o resultado da combinação entre um significado e o seu significante, ou entre um conceito específico e a sua imagem acústica correspondente. Segundo Saussure (2012), essa associação possui características distintivas que a definem. A mais proeminente dessas características é a noção de "arbitrariedade". Quando afirmamos que o signo linguístico é arbitrário, estamos indicando que a relação entre um determinado significado e o seu significante é, em essência, contingente. Portanto, não existem relações naturais ou intrínsecas entre o nosso conceito de "mesa" e a imagem acústica "mesa" em português. Isso é evidente pelo fato de que o conceito de "mesa" está associado a diferentes imagens acústicas em outras línguas, como "tafel" em holandês, "bord" em sueco, "tisch" em alemão, entre outras. A segunda característica essencial do signo linguístico, de acordo com Saussure (2012), está relacionada à linearidade dos significantes. Uma vez que o significante é um fenômeno acústico, sua realização ocorre na mesma dimensão temporal que qualquer outro som. Em termos simples, a sequência dos elementos que compõem a imagem acústica do signo linguístico se desenrola ao longo do tempo, com cada som sendo pronunciado sequencialmente. Essa característica do significante torna-se mais evidente quando tentamos representar, por exemplo, em texto escrito, a sequência dos elementos que o compõem. De fato, em várias línguas, incluindo o português, as representações gráficas de conceitos são organizadas em uma forma linear, com letras sendo escritas uma após a outra. No entanto, valeressaltar que, embora a linearidade seja predominante na imagem acústica da maioria das línguas, a modalidade escrita nem sempre segue essa mesma lógica. Isso se torna evidente em línguas cujos sistemas gráficos se baseiam em ideogramas, como o chinês e o japonês. Nessas línguas, os conceitos são representados graficamente por símbolos não lineares, com seus componentes (ou seja, traços) sendo dispostos em diversas direções, incluindo acima, abaixo, ao lado e até mesmo uns sobre os outros. Por fim, Saussure (2012), destaca duas características do signo linguístico que, à primeira vista, parecem contraditórias, mas que, na realidade, se complementam: sua imutabilidade e mutabilidade. O signo linguístico é, de fato, imutável, uma vez que o vínculo que liga um determinado significado a seu significante não é arbitrário; ele está estabelecido de acordo com as convenções estabelecidas (aqui e agora, isto é, em sua dimensão sincrônica) pela comunidade linguística como um todo. Portanto, não é da competência de qualquer falante, por exemplo, substituir um significante por outro na composição de um signo já estabelecido em sua língua, nem o fazer da maneira que lhe convier. No que diz respeito ao princípio da mutabilidade do signo linguístico, Saussure (2012) explica que o vínculo que conecta um significado a seu significante não é imune à passagem do tempo (nesse contexto, na dimensão diacrônica). De maneira mais precisa, é evidente que um dos efeitos do tempo sobre a língua é, justamente, o de ocasionar, muitas vezes por meio de fatores que estão além do controle individual dos falantes, deslocamentos (alguns mais acentuados do que outros) na relação entre um determinado significado e seu respectivo significante. 2.2 O valor linguístico Além do conceito de signo, outro elemento fundamental nos postulados de Saussure é a noção de "valor linguístico". Em um ponto de sua obra, Saussure (2012), argumenta que toda língua é, essencialmente, "um sistema de valores" para além de ser apenas um sistema de signos. Discutir o valor linguístico, de acordo com Saussure (2012), envolve a determinação, por um lado, da posição que cada signo ocupa dentro do sistema da língua como um todo e, por outro, das conexões que ele estabelece com outros elementos de natureza semelhante dentro desse sistema. Isso significa que um signo linguístico não é definido exclusivamente pela associação entre um determinado significado e seu significante correspondente, mas também pelas relações que estabelece com outros signos na vizinhança, destacando tanto semelhanças quanto diferenças. Em última análise, podemos afirmar que um signo linguístico existe na língua, precisamente, por ser aquilo que os outros signos não são. É essa distinção que determina o seu valor linguístico, e é esse valor que lhe garante seu lugar no sistema da língua. Com base em suas reflexões sobre o valor linguístico, Saussure (2012), procede então à classificação das relações que os signos estabelecem entre si dentro do sistema da língua. Sua primeira observação é que essas relações ocorrem em dois planos distintos, resultando em dois tipos de relações: as relações sintagmáticas e as relações associativas. O primeiro tipo, as relações sintagmáticas, reflete a natureza linear dos significantes (e, por extensão, da língua como um todo) e engloba as relações que os signos estabelecem entre si na sequência da fala. Uma vez que é impossível produzir dois signos ao mesmo tempo, eles só podem ocorrer um após o outro na linha da fala, gerando assim o sintagma. Exemplificam as relações sintagmáticas aquelas que se estabelecem entre os elementos nas seguintes sequências: "endereço postal", "Maria casou" e "estou atrasado, preciso correr". Esse tipo de relação, baseado na oposição ao longo da cadeia da fala, contribui para definir parte do valor do signo linguístico. Conforme Saussure (2012), destaca, "colocado em um sintagma, um signo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos". Em outras palavras, nas relações sintagmáticas, o valor de um signo linguístico se estabelece na medida em que se contrapõe a outros signos que o acompanham simultaneamente, ou como Saussure (2012), explicita, em suas relações "in praesentia". As relações associativas, também conhecidas como paradigmáticas, são aquelas nas quais os signos estabelecem conexões com outros signos que não estão na mesma sequência da fala, ou seja, estão "in absentia", mas compartilham algum tipo de correspondência (Figura 2). Essas relações se tornam evidentes, por exemplo, quando fazemos referência ao conceito de "pai" em uma sentença qualquer. É razoável esperar que essa menção evocará diversos outros conceitos associados a ele, como "filho," "mãe," "filha," etc. Se considerarmos o principal critério dessas associações, neste caso, seria o fato de o conceito de "pai" estar relacionado a um membro da família. O valor de um signo linguístico, a partir das relações associativas, é, portanto, determinado pela totalidade de elementos com os quais mantém alguma forma de relação, mesmo que esses elementos não apareçam formalmente na sequência da fala, sendo evocados apenas virtualmente. Figura 2 - Diferentes relações associativas que, segundo Saussure (2012), o conceito de “ensinamento” pode estabelecer, em função de critérios diversos Fonte: Saussure (2012, p. 146). 3. LINGUÍSTICA COGNITIVA E SEMÂNTICA COGNITIVA Antes de explorar a distinção entre a Semântica Cognitiva e a Linguística Cognitiva, é fundamental compreender a trajetória teórica do gerativismo, uma corrente linguística que desempenhou um papel significativo na evolução da linguística e da semântica. O gerativismo, originado a partir dos trabalhos de Noam Chomsky na década de 1950, introduziu um modelo teórico revolucionário para a compreensão da linguagem. Ele se concentrou na ideia de que a estrutura da linguagem é inata e universal para os seres humanos. Chomsky propôs a ideia de uma "gramática universal", uma gramática inata que governa todas as línguas naturais. O gerativismo também deu origem à Teoria da Gramática Generativa, que enfatizava a análise da estrutura sintática das sentenças. No entanto, o foco estava principalmente na estrutura sintática e nas regras gramaticais que governam a geração de frases, enquanto a semântica, ou o significado das palavras e frases, não era tão central nas teorias gerativistas iniciais. Com o tempo, as limitações das abordagens puramente sintáticas do gerativismo se tornaram mais evidentes, e isso levou ao surgimento de abordagens alternativas, incluindo a Semântica Cognitiva e a Linguística Cognitiva, que enfatizam a relação entre a linguagem e o pensamento, bem como a importância do significado na compreensão da linguagem. Portanto, entender o contexto histórico e teórico do gerativismo é essencial para apreciar as abordagens posteriores, como a Semântica Cognitiva e a Linguística Cognitiva, que incorporam aspectos cognitivos na análise linguística. 3.1 Gerativismo A publicação da obra "Estruturas Sintáticas" por volta de 1950 marcou uma revolução na linguística e foi um marco importante na carreira de Noam Chomsky. Esse estudioso norte-americano introduziu uma nova perspectiva na disciplina, enfatizando que a linguagem é um sistema autônomo, inato e comum a todos os seres humanos. Essa abordagem deu origem a um enfoque mais formalista na linguística, com um foco acentuado nas características internas da língua, seus constituintes e as relações entre eles, como destacado por Cortez (2011). Chomsky, em seu trabalho seminal de 1972, sustentou que as línguas naturais são o resultado de princípios inatos e autônomos. Ele argumentou que a linguagem é uma característicabiológica intrínseca à espécie humana e está incorporada no DNA humano. De acordo com essa visão, cada ser humano possui uma capacidade inata para a linguagem. No cerne da teoria gerativista de Chomsky está a ideia de que, com base em inputs linguísticos disponíveis no ambiente, os falantes desenvolvem as regras e normas de uma língua. Essas regras e normas limitadas, que Chomsky chamou de "gramática universal", possibilitam que os falantes gerem infinitas combinações e frases na língua, daí o termo "gerativismo". A produção linguística, de acordo com essa teoria, não depende de estímulos e respostas do ambiente para determinar o comportamento linguístico dos indivíduos, o que contraria a hipótese behaviorista. Essa perspectiva marcou uma mudança significativa na compreensão da linguagem, destacando a importância das capacidades inatas do ser humano na aquisição e uso da linguagem. Ela influenciou o campo da linguística e levou ao desenvolvimento de abordagens formais e teóricas para o estudo da linguagem. É verdade que a abordagem de Chomsky, como expressa em sua obra de 1972, enfatizou uma visão mais universalista da linguagem, considerando-a como algo inato e comum a todos os seres humanos. No contexto dessa perspectiva, Chomsky focou na análise de sentenças idealizadas, muitas vezes descontextualizadas e artificiais, a fim de identificar os princípios subjacentes que regem a estrutura das línguas naturais. Além disso, a ênfase dada ao estudo das regras e normas internalizadas em cada falante levou a uma priorização da sintaxe como o nível gramatical mais alto, em detrimento de outros aspectos linguísticos, como fonética, morfologia e semântica. No entanto, a partir dos anos 1980, a obra de Chomsky e as abordagens gerativistas começaram a receber críticas de diversos linguistas. Essas críticas contribuíram para o surgimento de novas correntes linguísticas, incluindo a Linguística Cognitiva, que se opôs a algumas das suposições-chave do gerativismo. A Linguística Cognitiva enfatizou a relação intrínseca entre linguagem e cognição, argumentando que a compreensão da linguagem deve levar em consideração não apenas a sintaxe, mas também a semântica, a fonética, a morfologia e outros aspectos linguísticos. A partir dessa tradição, surgiu a Semântica Cognitiva, que coloca um forte foco no papel da cognição na compreensão do significado da linguagem. Assim, a crítica às abordagens gerativistas, juntamente com uma ênfase na relação entre linguagem e cognição, desempenhou um papel fundamental na evolução da linguística e no desenvolvimento de abordagens como a Semântica Cognitiva. 3.2 O surgimento da linguística cognitiva Os questionamentos levantados por George Lakoff (2003), Mark Johnson (2003) e Eleanor Rosch (1980), em relação ao gerativismo, foram significativos e provocaram uma reavaliação das abordagens linguísticas tradicionais. Um dos principais pontos de discussão estava relacionado à ideia de que a linguagem seria uma faculdade autônoma e independente na mente humana, desconsiderando a interconexão com outras faculdades mentais. Esses linguistas argumentaram que, na realidade, a mente funciona de maneira integrada e que a linguagem não pode ser dissociada de outros processos de pensamento e da experiência cotidiana. Em vez de considerar a linguagem como uma entidade isolada, eles enfatizaram a necessidade de levar em conta os processos de pensamento subjacentes à utilização de estruturas linguísticas e sua adaptação aos contextos reais em que essas estruturas são construídas. Isso implicou uma mudança de foco em direção a uma visão mais cognitiva e contextual da linguagem. Essa nova abordagem Martelotta; Palomanes (2012), enfatizou a importância de considerar não apenas a estrutura sintática da linguagem, mas também a semântica, a pragmática e a relação da linguagem com a experiência humana. Ela culminou na Linguística Cognitiva e na Semântica Cognitiva, que se concentram na interação complexa entre a linguagem, a cognição e o contexto. Isso representou uma mudança substancial em relação às teorias linguísticas anteriores, como o gerativismo, que isolavam a linguagem do restante da cognição. Observe agora as diferenças entre o gerativismo e a linguística cognitiva: Gerativismo - Faculdade da linguagem autônoma. Linguística cognitiva - Faculdade da linguagem associada às outras faculdades mentais (memória, raciocínio lógico, emoções, etc.). Gerativismo - Concepção formalista — estuda a língua em sua forma, focando os aspectos linguísticos. Linguística cognitiva - Concepção funcionalista — estuda a língua em uso, aliando os aspectos linguísticos e os extralinguísticos. Gerativismo – Sintaxe como nível privilegiado, que comanda as combinações possíveis que o falante pode usar. Linguística cognitiva - A fonética, o léxico, a morfologia, a sintaxe e a semântica atuam juntos na comunicação humana. Gerativismo – Estuda o falante ideal, sem intervenção de fatores externos. Linguística cognitiva - Estuda o falante real em conjunto com fatores externos a ele. 3.3 Linguística cognitiva e semântica cognitiva Como observado anteriormente, os estudos de linguistas como Langacker, Rosch e, especialmente, Lakoff deram origem a uma nova abordagem linguística conhecida como linguística cognitiva. A linguística cognitiva se concentra na exploração do conhecimento mediado pela linguagem e busca compreender de que maneira a linguagem contribui para a nossa compreensão do mundo como citado por Silva (1997). Além disso, a linguística cognitiva atribui um papel fundamental ao falante de uma língua nesse processo. Conforme enfatizado por Martelotta e Palomanes (2012), o falante não é mais concebido como um mero executor de regras pré-determinadas, mas sim como um criador de significados em situações reais de comunicação, interagindo com interlocutores reais. Dentro desse contexto, a linguística cognitiva busca compreender como a linguagem auxilia na construção do conhecimento do mundo, e uma de suas dimensões centrais é a semântica, particularmente no que diz respeito ao significado. A semântica cognitiva, como uma subdivisão da linguística cognitiva, tem como objetivo analisar o significado sob a perspectiva cognitiva. Isso implica que, como apontado por Ferrari (2010), o significado de uma expressão linguística não é uma simples reflexão da relação direta entre as palavras e o mundo, mas, em vez disso, é sempre mediado por processos cognitivos inerentes à mente humana. 3.4 O conceito de categorização e a teoria prototípica Como a semântica cognitiva é uma subdisciplina da linguística cognitiva, ela se dedica a examinar o significado do ponto de vista da cognição. De acordo com essa perspectiva, o significado é moldado através da influência dos processos cognitivos humanos, e a experiência do indivíduo é uma parte fundamental desse cenário. De acordo com Silva (1997), a interpretação e a aquisição de novas experiências são feitas à luz de conceitos e categorias já existentes, que, por isso mesmo, funcionam como modelos interpretativos, como paradigmas. Além disso, Silva (1997), afirma que uma das capacidades cognitivas fundamentais é a categorização, isto é, o processo mental de identificação, classificação e nomeação de diferentes entidades como membros de uma mesma categoria. Em outras palavras, a semântica cognitiva atribui grande importância ao conceito de categorização, visto que ele é considerado um dos pilares essenciais no processo de atribuição de significado. Para uma compreensão mais aprofundada desse conceito, vamos analisar as definições a seguir. Fonte: adaptada de Silva (1997). Peixes: animais que nascem e vivem na água. Mamíferos: animais vertebrados que têm mamas. Através de uma experiência pessoal, um falante utiliza seusconhecimentos da língua para criar categorias mentais para diferentes entidades do mundo. Por exemplo, a categoria "peixes" é definida por um conjunto de características específicas, assim como a categoria "mamíferos" possui suas próprias singularidades. Portanto, o conceito de categorização está relacionado com a formação e definição de categorias com base em "condições necessárias e suficientes" (ou seja, propriedades que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes). Consequentemente, os elementos dentro de uma categoria têm o mesmo status, sem a existência de graus de representatividade (SILVA, 1997, p. 7). Na verdade, este conceito tem raízes antigas e remonta a Aristóteles, sendo posteriormente revisitado pela filosofia da linguagem de Wittgenstein e pela antropologia cultural de Berlin e Kay (FERRARI, 2010). No entanto, o conceito de categorização tem suas limitações como por exemplo, se um tigre nascer com apenas três patas devido a uma anomalia congênita, ele deixaria de ser considerado um tigre? Ou, se um tigre decidir incluir vegetais em sua dieta, isso o faria deixar de ser um tigre? Problemas desse tipo certamente afetam a aceitação de uma definição de conceito que depende da noção de condições suficientes e necessárias (CANÇADO, 2005). Certamente, o caso da baleia ilustra a inconsistência nas categorias de mamíferos e peixes, uma vez que a baleia apresenta características de ambos os grupos. Isso aponta para limitações e desafios no conceito tradicional de categorização na perspectiva da semântica cognitiva. Para abordar essa questão, Rosch (1978), desenvolveu a teoria prototípica, também conhecida como a teoria dos protótipos. De acordo com essa teoria, as categorias não são estruturas rígidas com "condições suficientes e necessárias", mas sim se organizam em torno de protótipos e suas relações com elementos periféricos. A Figura 1 ilustra essa ideia. Essa teoria sugere que categorias como "mamíferos" ou "peixes" têm elementos centrais que representam o protótipo da categoria, enquanto outros elementos relacionados de forma menos direta estão na periferia da categoria. Portanto, a teoria dos protótipos oferece uma abordagem mais flexível e dinâmica para a categorização, que pode acomodar casos ambíguos, como a baleia, de uma maneira mais adequada. Figura 1 - As categorias a partir da teoria prototípica Fonte: adaptada de Rosch (1978). Pela teoria prototípica, o elemento central de uma categoria retém mais definições e características da categoria do que os elementos periféricos. Essa teoria reconhece que a transição de características é gradual à medida que se move de dentro para fora da categoria e vice-versa. Além disso, um elemento pode servir como uma interface entre duas ou mais categorias, como ilustrado na Figura 2. Isso reflete a ideia de que as categorias não são estruturas rígidas, mas sim sistemas flexíveis de organização de conceitos. Figura 2 - Interface entre categorias prototípicas: mamíferos e peixes Fonte: adaptada de Rosch (1978. Essa teoria tem implicações significativas na linguagem cotidiana, especialmente no aspecto semântico. De acordo com Cançado (2005, p. 94), "A baleia é um animal que possui propriedades tanto da categoria MAMÍFERO quanto da categoria PEIXE. Portanto, muitos falantes têm dificuldade em afirmar com certeza se a baleia é um peixe ou um mamífero." Isso destaca como a teoria dos protótipos ajuda a explicar a ambiguidade semântica que surge em situações como essa, onde um elemento não se encaixa claramente em uma categoria convencional. Em vez disso, as categorias são flexíveis e refletem a dinâmica da nossa compreensão do mundo. É notável ressaltar o que Chiavegatto (2009, p. 82) observa em relação às implicações desse enfoque teórico, a ideia de que processos cognitivos e construções linguísticas podem fazer parte de categorias prototípicas é fundamental para a análise de diversos fenômenos na área da linguística cognitiva. Isso pode explicar, por exemplo, a polissemia (múltiplos significados de uma palavra), a amplitude das correspondências metafóricas e as diferentes naturezas de espaços mentais. Essa perspectiva destaca como a teoria dos protótipos é uma ferramenta valiosa para compreender a riqueza e a complexidade da linguagem e da cognição, permitindo uma análise mais abrangente de diversos fenômenos linguísticos e cognitivos. 3.5 O fenômeno da metáfora Como mencionado, na perspectiva da semântica cognitiva, o processo de significação se forma através da interação entre as diversas faculdades mentais e as experiências dos falantes enquanto eles interagem com o mundo. Essa interação possibilita que os falantes categorizem e compreendam o mundo por meio da linguagem. Em outras palavras, a linguagem desempenha um papel crucial na maneira como as pessoas percebem, interpretam e dão sentido ao seu ambiente, e essa compreensão é moldada pela experiência individual e pelas estruturas cognitivas. Isso demonstra como a linguagem é intrinsecamente ligada à cognição e à experiência humana. Sem dúvida, a categorização da realidade muitas vezes enfrenta desafios quando se trata de sentidos que são mais abstratos e menos tangíveis, exigindo processos cognitivos mais complexos. É nesse contexto que as metáforas desempenham um papel fundamental, sendo um fenômeno semântico amplamente estudado na semântica cognitiva. Como Chiavegatto (2009), já mencionou, as construções linguísticas e os processos cognitivos baseados na categorização, especialmente na categorização prototípica, nos permitem compreender fenômenos semânticos mais flexíveis e abstratos. Isso ocorre devido à nossa experiência física de existir e interagir com o mundo, percebendo o ambiente ao nosso redor, movendo nossos corpos e experimentando forças, entre outros aspectos. Essa experiência física forma estruturas conceituais básicas que usamos para organizar nosso pensamento sobre domínios mais abstratos (CANÇADO, 2005). Assim, as metáforas se tornam uma maneira eficaz de mapear conceitos mais abstratos em termos de experiências mais concretas e palpáveis. A metáfora é uma ferramenta fundamental na semântica cognitiva que permite que o processo cognitivo dê sentido a conceitos abstratos por meio da projeção de domínios mais concretos e tangíveis. Como Lakoff e Johnson (2003) explicam, a metáfora é um processo mental pelo qual os falantes constroem significado ao mapear um domínio de origem (geralmente mais concreto e familiar) para um domínio de destino (geralmente mais abstrato e menos palpável). Essa projeção da metáfora ajuda a tornar conceitos impalpáveis mais compreensíveis, relacionando-os a experiências cotidianas e sensoriais que são mais acessíveis à nossa cognição. Isso ilustra como a linguagem e a cognição estão intrinsecamente entrelaçadas, permitindo-nos compreender e comunicar conceitos abstratos de forma mais clara. A explicação de Cançado (2005, p. 97) destaca que a metáfora se desenvolve por meio da aproximação e da atribuição dos domínios-fonte e dos domínios-alvo. O domínio-alvo é o ponto de chegada ou o conceito que está sendo descrito, conhecido como "target domain" em inglês. Enquanto isso, o conceito que está sendo comparado ou usado como analogia é chamado de domínio-fonte, referido como "source domain" em inglês. Para ilustrar o conceito de metáfora, Lakoff e Johnson (2003) usam o exemplo clássico "argumentação é guerra". Nessa metáfora, o domínio-fonte é "guerra", e o domínio-alvo é "argumentação". Ao aplicar essa metáfora, as características e as estruturas do domínio-fonte (guerra) são projetadas sobre o domínio-alvo (argumentação), permitindo que os falantes compreendam a argumentação como um tipo de confronto ou batalha, com estratégias, vitórias,derrotas, etc. Isso ilustra como as metáforas são usadas para enriquecer o significado e a compreensão de conceitos abstratos por meio da associação com conceitos mais concretos e familiares. Veja: Domínio-fonte Guerra (palpável) Inimigos Confronto Domínio-alvo Argumentação (abstrato) Debatedores Discussão Como é evidente, o domínio-fonte serve como uma fonte de significado (muitas vezes derivado de experiências pessoais) projetado no domínio-alvo. Isso implica que a argumentação, uma ideia abstrata, passa a incorporar características oriundas do domínio-fonte. Considere o seguinte: estabelecem-se analogias estruturais entre esses dois domínios. Os participantes de uma discussão são equiparados aos adversários de uma guerra, o conflito de opiniões se assemelha às diferentes posições dos beligerantes, levantar objeções corresponde a atacar, e manter uma opinião a defender, desistir de uma opinião equivale a render-se, entre outros paralelos. Assim como uma guerra, uma batalha ou um confronto, uma discussão, um debate ou o processo de argumentação pode ser dividido em fases, desde as posições iniciais dos oponentes até a determinação do vencedor, incluindo momentos de ataque, defesa, recuo e contra-ataque. Chiavegatto (2009), destaca que a metáfora não se limita apenas a influenciar o processo de significação direto, mas também desempenha um papel importante em outros processos de significação, através das informações que são transferidas entre os domínios, criamos novos significados com relações que ocorrem dentro do contexto. Essas correspondências podem explicar, por exemplo, processos figurativos, como metáforas, e suas extensões em figuras de linguagem como analogias, comparações, personificações, hipérboles e eufemismos." Isso destaca como a metáfora uma ferramenta fundamental para enriquecer a linguagem e a comunicação, permitindo a criação de significados figurativos e ampliando a expressividade na forma como nos comunicamos. Desta forma, na perspectiva da semântica cognitiva, a metáfora se origina da interação dinâmica entre domínios que não apenas moldam o pensamento humano, mas também desempenham um papel fundamental na construção de significado e na compreensão do mundo pelo falante. 4. A SEMÂNTICA FORMAL E O ESTUDO DO SIGNIFICADO De acordo com Cançado (2005), a semântica formal, é um campo de estudo originado a partir das pesquisas sobre lógica conduzidas pelo filósofo Richard Montague na metade do século XX, concentra-se na análise do significado a partir da perspectiva da referencialidade. Ou seja, a semântica formal se baseia na premissa de que as línguas estabelecem uma conexão referencial com os objetos do mundo real. Desta forma, a compreensão do conceito de referencialidade é crucial para essa vertente da semântica. Conforme Müller e Viotti (2016), a referencialidade está intrinsecamente ligada ao fato de que as línguas naturais são utilizadas para descrever objetos, indivíduos, eventos, fatos e propriedades que são considerados externos à própria língua. Isso implica na articulação tanto do conhecimento do falante sobre seu idioma quanto do conhecimento que ele possui sobre o mundo que o cerca. Para uma melhor compreensão do funcionamento da referencialidade, é possível observar a Figura 1 a seguir. Figura 1 - A referencialidade Fonte: adaptada de Snake22/Shutterstock.com. 4.1 O significado e a condição de verdade Conforme observado, a referencialidade representa uma característica fundamental da semântica formal. A partir dessa noção, surge uma singularidade descrita por Müller e Viotti (2016), de que na Semântica Formal, o significado é concebido como uma relação entre a linguagem, de um lado, e aquilo sobre o qual a linguagem se refere, por outro. Esse "mundo" ao qual nos referimos quando usamos a linguagem pode abranger o mundo real, uma parte dele, ou até mesmo outros mundos fictícios ou hipotéticos. Dentro desse contexto, para essa abordagem na semântica, Cançado (2005), esclarece que atribuir significado a uma sentença significa especificar em que situações essa sentença seria considerada verdadeira. Portanto, o significado está intrinsecamente vinculado ao conceito de condição de verdade. Vamos considerar a seguinte sentença como exemplo: Na perspectiva de Cançado (2005), se tentarmos explicar o significado desta sentença diríamos que ela significa que uma pessoa, com as qualidades normalmente atribuídas a um homem (sexo masculino, adulto...), realizou uma ação de ultrapassar um obstáculo chamado muro. Se precisarmos definir em que circunstâncias essa sentença seria considerada verdadeira, podemos responder da seguinte maneira: a sentença "Um homem pulou o muro" será verdadeira quando: a) existir no mundo a que se faz referência um ser com características masculinas e que seja adulto; b) e esse ser fizer uma ação de transpor um obstáculo fruto de uma construção vertical de alvenaria. Portanto, para que esta sentença possua condições de verdade, um conjunto específico de circunstâncias precisa ser satisfeito. Por exemplo, a afirmação "Um homem pulou o muro" não pode ser verdadeira se a situação envolver apenas uma mulher trocando o pneu de um carro, uma vez que essa condição não se alinha com o contexto anterior. Isso ressalta a importância da abordagem referencial na Um homem pulou o muro. semântica formal, em contraste com abordagens mentalistas ou enunciativas. Se a conexão referencial entre uma língua natural e o mundo ao qual essa língua faz referência não for estabelecida, o significado não pode ser adequadamente determinado. 4.2 Princípio da composicionalidade Você explorou como a semântica formal se dedica ao estudo do significado, principalmente através da perspectiva da referencialidade, e também adquiriu compreensão do conceito de condição de verdade. Agora, compreenderemos sobre outro conceito crucial nessa abordagem, o princípio da composicionalidade. Conforme Cançado (2005), o princípio da composicionalidade estabelece que o significado de uma sentença resulta do significado de suas partes individuais, ou seja, dos itens lexicais, combinados de acordo com a estrutura sintática. Ainda em consonância com o referido autor, se entendermos o significado das palavras ou unidades que compõem uma sentença e conhecermos as regras que especificam como essas unidades são combinadas, então podemos deduzir o significado da sentença como um todo. Desta forma, se tivermos o conhecimento do significado das unidades e das regras para montá-las em unidades mais complexas, seremos capazes de construir e interpretar uma variedade infinita de novas sentenças, ao mesmo tempo em que explicamos por que certas interpretações não são possíveis. A abordagem de Müller e Viotti (2016), é altamente relevante. Eles destacam a notável produtividade das línguas naturais, que nos permite constantemente criar e compreender novos significados. Essa capacidade não se limita apenas à flexibilidade na formação de novas palavras, mas principalmente à habilidade de gerar e entender sentenças completamente novas. Isso se torna possível devido ao fato de que, a partir do significado dos itens lexicais e da forma como eles se combinam, somos capazes de derivar o significado das unidades mais complexas. Sendo assim, cada parte de uma sentença contribui de maneira sistemática para o seu significado. Pode-se fazer uma analogia, considerando os idiomas como organismos humanos e as palavras como as células, unidades menores e mais simples. Essas unidades formam a base para a construção de unidades maiores e mais complexas, permitindo a expressão de uma variedade infinita de significados.4.3 Aplicação do princípio da composicionalidade Como podemos compreender, a semântica formal aborda o significado a partir da perspectiva da referencialidade. Para que o significado seja estabelecido, é fundamental que haja um conjunto de circunstâncias básicas, ou seja, a condição de verdade. Uma vez que essa condição esteja definida, um falante de uma língua pode compreender o sentido de uma declaração por meio do princípio da composicionalidade. Como já discutido, esse princípio estabelece que o significado de uma declaração está intrinsecamente ligado ao significado de suas partes individuais, bem como à maneira pela qual essas partes são organizadas sintaticamente (CANÇADO, 2005). Considere a seguinte sentença como exemplo: Fonte: adaptada de Cançado (2005) “Marcos”, nome de uma pessoa do gênero masculino; “abraça”, ação de dar um abraço em alguém; “Ana”, nome de uma pessoa do gênero feminino. Considerando a disposição sintática dos elementos da sentença (1), observamos que a sentença (S) é composta por um sintagma nominal (SN) e um sintagma verbal (SV). O SN é constituído por um núcleo (N), que neste caso é "Marcos". Por sua vez, o SV é formado por um verbo (V), "abraça", e um SN, "Ana". Toda essa representação visual descrita pode ser observada na Figura 2. (1) Marcos abraça Ana. A análise da disposição sintática da sentença, juntamente com os significados individuais de cada item lexical, nos leva à seguinte conclusão: para compreender o significado da sentença S, é necessário compreender o significado dos constituintes SN e SV. Para entender o SN, é preciso conhecer o significado de seu núcleo, N. Da mesma forma, para entender o SV, é necessário compreender o significado do verbo V e do SN que o acompanha. Portanto, o significado global da sentença S é derivado da composição e interação dos significados dos elementos menores que a compõem. É por isso que esse princípio é chamado de "composicionalidade". Por meio da combinação de unidades menores e simples, somos capazes de compreender as unidades maiores e mais complexas, permitindo-nos interpretar o significado completo da sentença. Figura 2 - Diagrama de árvore da sentença (1) Fonte: adaptada de Cançado (2005). 4.4 Recursividade na semântica formal Conforme mencionado anteriormente, o princípio da composicionalidade afirma que o significado de uma sentença não é determinado apenas pelo significado de suas palavras, mas também pela sua estrutura gramatical (MÜLLER; VIOTTI, 2016). De acordo com Oliveira (2001), levando em consideração os pressupostos da semântica formal, quando um falante interpreta uma sentença, ele atribui referências aos nomes que utiliza, estabelecendo, de alguma maneira, uma relação entre a sequência sonora e objetos no mundo. Ainda segundo o autor, a forma como o falante relaciona a linguagem com o mundo, principalmente por meio de sentenças, resulta na construção de significados específicos. É nesse contexto que os elementos recursivos de acarretamento, pressuposição, paráfrase, contradição e ambiguidade se inserem. A seguir, você vai conhecer a definição desses elementos e ver alguns exemplos práticos, com o intuito de categorizá-los. Essa abordagem ressalta a importância da estrutura gramatical, bem como da relação entre as palavras e o mundo real na criação e interpretação de significados em linguagem, um conceito central na semântica formal. Acarretamento Cançado (2005), se baseia na lógica de que a verdade de uma sentença implica automaticamente na verdade de outra, e, adicionalmente, o conteúdo expresso na segunda sentença está incluído na primeira. Para uma compreensão mais clara, considere as sentenças a seguir: Fonte: adaptada de Cançado (2005). Observe que, se a sentença (2) é verdadeira, então automaticamente a sentença (3) também é verdadeira. Além disso, a informação presente em (3) está (2) Carlos continua doente. (3) Carlos adoeceu na infância. contida em (2); portanto, a sentença (2) acarreta a sentença (3). Outro ponto ressaltado por Cançado (2005) em relação ao acarretamento é a sua assimetria. Isso pode ser notado ao considerar novamente as sentenças (2) e (3). Como (2) acarreta (3), não é possível que o contrário ocorra, ou seja, (3) acarretando (2). Müller e Viotti (2016), também destacam que o acarretamento é uma relação de sentido fundamental entre sentenças que influenciam muitos dos nossos padrões de inferência. Por exemplo, se as sentenças (a) e (b) são verdadeiras, podemos inferir que a sentença (c) também é verdadeira. Podemos afirmar que (a) e (b) em conjunto acarretam (c), porque a situação descrita por ambas é suficiente para descrever a situação em (c). Isso ilustra como o acarretamento é fundamental para nossas inferências lógicas e compreensão de significados. Você pode ver isso no exemplo a seguir: Fonte: adaptada de Müller e Viotti (2016). Perceba que as sentenças (4) e (5) implicam a sentença (6), uma vez que as duas primeiras, quando combinadas, descrevem a última. Quando aplicado a um texto, o conceito de acarretamento pode ser um aliado valioso na interpretação textual, ajudando a esclarecer as relações entre as sentenças e a compreender o contexto de maneira mais completa. Pressuposição Como destacado por Cançado (2005), a pressuposição é semelhante ao acarretamento, porém é mais implícita. Em outras palavras, a pressuposição não é totalmente evidente no texto linguístico. Em vez disso, ela envolve uma afirmação que é subentendida. Para uma melhor compreensão desse conceito, considere o exemplo: (4) Jupará é mamífero. (5) Jupará é notívago. (6) Jupará é mamífero e notívago. Fonte: adaptada de Müller e Viotti (2016). Observe que, antes de alguém "parar de fumar", é necessário que tenha ocorrido a ação de "fumar". Portanto, a sentença (8) implica uma afirmação anterior àquela apresentada na sentença (7), ou seja, uma pressuposição. Reforçando o ponto das autoras, Cançado (2005, p. 33) indica que a pressuposição é derivada da própria estrutura linguística da sentença; existem construções e expressões linguísticas que desencadeiam essa pressuposição. No caso das sentenças mencionadas, no sintagma verbal da sentença (7), encontramos o verbo "parou" e o sintagma preposicional "de fumar", o qual só poderia existir devido ao verbo "fumava" da sentença (8). Isso ilustra como a pressuposição pode ser identificada com base na estrutura linguística e na relação entre as sentenças. Paráfrase De acordo com Cançado (2005, p. 28), quando existe uma relação simétrica, isto é, a sentença (a) implica a sentença (b) e, ao mesmo tempo, a sentença (b) também implica a sentença (a), temos o que é chamado de relação de paráfrase. Em contraste com o acarretamento, no qual as sentenças são assimétricas, ou seja, uma sentença está contida na outra, resultando em uma sentença que implica a outra, mas não o contrário, na paráfrase, a implicação é mútua. Para uma compreensão mais clara, observe esses exemplos de acarretamento: Fonte: adaptada de Müller e Viotti (2016). (7) A Maria parou de fumar. Quando você lê essa sentença, pode fazer a afirmação antecipada de (7): (8) A Maria fumava. (9) Carlos continua doente. (10) Carlos adoeceu na infância. Agora veja estes exemplos de paráfrase: Fonte: adaptada de Müller e Viotti (2016). A informação da sentença (10) está contida na sentença (9), onde (9) implica em (10), estabelecendo assim uma relação assimétrica. No entanto, essa relação assimétrica não ocorre nas sentenças (11) e (12). Nestas duas últimas sentenças, a relação é simétrica, pois o significado é compartilhado tanto em (11) quanto em (12). Portanto, a paráfrase pode ser construída tanto a partir de itens lexicais sinônimos como de estruturas sintáticas diferentes, desde quemantenham a mesma relação entre os objetos descritos. Contradição Como afirmado por Cançado (2005), a contradição ocorre quando dois eventos descritos pela sentença não podem ocorrer simultaneamente, nem sob as mesmas circunstâncias no mundo real. Veja o exemplo a seguir: Fonte: adaptada de Cançado (2005) Tanto a sentença (13) quanto a sentença (14) referem-se ao mesmo objeto no mundo. No entanto, é impossível que esse objeto tenha simultaneamente formatos espaciais de quadrado e redondo. Além disso, em relação à contradição, Müller e Viotti (2016) fazem uma observação relevante: frequentemente, palavras com significados opostos estão presentes em situações contraditórias, mas isso nem (11) Governo Federal atrasa os salários dos servidores. (12) Governo Federal não paga o ordenado dos funcionários públicos na data prevista. (13) Esta mesa é quadrada. (14) Esta mesa é redonda. sempre implica que elas sejam necessariamente contraditórias. Para compreender isso, veja o caso a seguir: Fonte: adaptada de Cançado (2005) Embora as sentenças (15) e (16) contenham palavras com significados opostos, elas não implicam em contradição. Nesse contexto, elas representam "extremos do processo de viver". Ou seja, considerando que os verbos estão no pretérito, é possível que em um momento da vida uma pessoa tenha nascido na Bahia, e em outro momento tenha morrido na Bahia. Isso demonstra como a interpretação depende do contexto temporal e não necessariamente gera contradição. Ambiguidade Conforme Cançado (2005), a ambiguidade se refere à falta de clareza nos significados de uma sentença. Um exemplo clássico disso são as palavras homônimas, ou seja, aquelas que têm a mesma grafia, mas significados distintos. Aqui está um exemplo: Fonte: adaptada de Cançado (2005) Na sentença (17), a palavra "irado" pode ser ambígua, pois pode tanto significar algo muito bom quanto um comportamento colérico e raivoso. Müller e Viotti (2016) destacam que a ambiguidade também pode surgir devido a uma construção sintática específica, como no exemplo a seguir: (15) Carlos nasceu na Bahia. (16) Carlos morreu na Bahia. (17) Ele estava irado. Fonte: adaptada de Cançado (2005). (18) Os alunos e os professores inteligentes participaram do simpósio. Essa construção sintática pode remeter a dois significados: (18a) [[Os alunos e os professores] inteligentes] participaram do simpósio. ou ainda (18b) [[Os alunos] e [os professores inteligentes]] participaram do simpósio. 5. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A semântica argumentativa, também referida como semântica enunciativa ou da enunciação, baseia-se na perspectiva da argumentação. Assim, essa abordagem semântica visa a estudar o significado a partir de um processo de persuasão realizado pelos interlocutores por meio da linguagem. Como já vimos, a semântica formal é baseada no princípio da referencialidade, o que significa que essa abordagem acredita que a linguagem representa algo no mundo. Por outro lado, a semântica argumentativa é orientada pela perspectiva da argumentatividade. Nessa visão, acredita-se que um falante de uma língua não apenas emite uma sentença que faz referência a algo real, mas também tem o objetivo de convencer outro interlocutor por meio da linguagem. De acordo com Cançado (2005, p. 142), nesta abordagem, as condições de verdade de uma sentença não desempenham um papel relevante. A teoria se baseia na ideia de que é mais importante ter categorias descritivas que se relacionam ao uso potencial na interação entre falantes e ouvintes, em vez de enfocar a sintaxe ou o conteúdo objetivo da sentença. A semântica argumentativa surgiu durante a transição entre as décadas de 1960 e 1970, sendo desenvolvida pelo linguista Oswald Ducrot. Embora suas pesquisas tenham raízes no estruturalismo de Ferdinand de Saussure, Ducrot aprofundou os princípios teóricos do fundador da linguística, com especial ênfase no conceito de valor do signo linguístico. Com base no conceito de valor linguístico, que postula que um signo linguístico adquire seu valor a partir de outro, Ducrot (1989), tinha como objetivo "identificar as possibilidades oferecidas pela língua para a utilização e as limitações impostas por ela a esses usos" (CABRAL, 2013, p. 184). Ou seja, Ducrot (1989), argumenta que o uso da linguagem está intrinsecamente ligado aos sentidos que são gerados nos enunciados dos falantes. Contudo, esses sentidos não são arbitrários; eles são restringidos por elementos da própria língua que regulam orientações argumentativas. Com base nessa premissa, Ducrot (1989), em colaboração com Jean-Claude Anscombre (1983), estabeleceu os fundamentos da semântica argumentativa por meio da Teoria da Argumentação na Língua (TAL). A Teoria da Argumentação na Língua (TAL) revela que a língua, assim como o significado, é permeada pela argumentatividade. Isso traz à tona outra característica fundamental: a intencionalidade. Conforme Costa (2008), a intencionalidade subjacente à produção de enunciados, em uma situação de interlocução, orienta a construção do significado com base na situação discursiva. Ao entender a argumentatividade como um elemento intrínseco à linguagem, podemos partir do princípio de que ninguém expressa algo que não acredita ser relevante. Portanto, toda ação de falar envolve a intenção, por parte do locutor, de "demonstrar" a conclusão à qual o interlocutor deve chegar. Devido à presença da argumentatividade e da intencionalidade na linguagem, Ducrot (1989) começou a se concentrar no estudo de palavras que direcionam a construção do significado. Como afirma Cabral (2013), essas palavras são os operadores argumentativos, que desempenham uma dupla função, servindo tanto como elementos de conexão quanto como orientadores do significado. Pode-se dizer que os operadores argumentativos são palavras que articulam as informações e os argumentos em um enunciado, desempenhando um papel fundamental na construção do sentido. Para tornar essa teoria mais concreta, apresentaremos um exemplo clássico que envolve o uso do operador argumentativo "mas". Quando "mas" é utilizado, não há uma oposição direta de significado entre dois enunciados, mas sim uma restrição de sentido em relação às diferentes orientações argumentativas que podem levar à conclusão. Observe o seguinte exemplo: Fonte: adaptada de Cabral (2013). Em casos como esse, a utilização do operador argumentativo "mas" pode orientar a argumentação para uma possível conclusão de que os interlocutores não vão almoçar no restaurante caro, ou pode restringir a argumentação, indicando que eles de fato vão almoçar no restaurante caro. É importante notar que a inclusão do (1) Este restaurante é bom, (2) mas é caro. operador argumentativo "mas" direciona a argumentação em uma direção específica, de acordo com esse ponto de vista teórico, em vez de outra. Isso realça como o sentido do enunciado, de acordo com esse ponto de vista teórico, conduz em uma determinada direção. De acordo com essa teoria, as condições argumentativas seguem a lógica do "portanto". Retomando o exemplo anterior: O restaurante é bom, mas é caro. Portanto, não vamos almoçar nele. De outra forma, Freitas (2008, p. 112) expressa que, de acordo com essa perspectiva teórica, são os próprios elementos linguísticos que promovem a argumentação, em vez dos fatos que eles poderiam representar. Cada enunciado "argumenta", ou seja, promove certas sequências discursivas e impede outras, com base em seu significado linguístico intrínseco. Além disso, é importante destacar a diferença entre sujeito empírico, locutor e enunciador conforme proposto por Ducrot (1989). O sujeito empírico não é o foco de estudo da linguística. O locutor é o indivíduoresponsável pela emissão do enunciado. Os enunciadores, por sua vez, são as fontes de pontos de vista e não necessariamente indivíduos. Como Freitas (2008, p. 11) destaca, os enunciadores são argumentadores e em relação a eles, o locutor assume atitudes (como concordância, identificação, rejeição etc.), construindo assim sua própria argumentação. 5.1 Teoria dos blocos semânticos O avanço da semântica argumentativa deu origem a novos teóricos que enriqueceram o domínio, e entre esses, destaca-se a figura de Marion Carel. Durante a década de 1990, Carel (1995), desenvolveu uma teoria que aprofundou a abordagem da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS). De acordo com a citação de Lunardi e Freitas (2011), a TBS se destaca como uma teoria que visa elucidar o sentido argumentativo dos enunciados, descrevendo as palavras não com base em um conhecimento prévio da realidade, mas sim com base em suas potencialidades discursivas. Portanto, essa nova teoria preserva a perspectiva da argumentatividade e da intencionalidade. Entretanto, na Teoria da Argumentação na Língua (TAL), Ducrot (1989), explica que as relações argumentativas entre os signos eram fundamentadas em encadeamentos por meio do conectivo "portanto", simbolicamente representado por "A - - - - -} C", em que "A" denota um fato "F" expresso em um enunciado-argumento que serve para explicar ou justificar uma conclusão "C". A significativa contribuição de Carel (1995) para a teoria de Ducrot está relacionada ao sentido dos enunciados. Carel (1995) percebeu que esse sentido é construído por meio do encadeamento argumentativo entre os enunciados. A Teoria da Base Semântica (TBS) postula que as relações argumentativas são estabelecidas através de encadeamentos enunciativos compostos por dois segmentos, ligados por um conector, que pode ser tanto normativo (como "portanto") quanto transgressivo (como "no entanto"). Conforme destacado por Costa (2008), cada encadeamento argumentativo é fundamentado na fórmula "X conectivo Y", revelando assim um aspecto argumentativo distinto. O Quadro 1 resume essas concepções. Quadro 1 - Encadeamento argumentativo Fonte: adaptado de Costa (2008). Para uma melhor compreensão, considere o exemplo a seguir: Fonte: adaptada de Costa (2008). (3) João tem muito dinheiro e é feliz. (4) João tem saúde e é feliz. Observe que, nos encadeamentos argumentativos (3) e (4), a concepção de felicidade não é idêntica. Portanto, cada instância de felicidade tem um significado particular. Isso ocorre devido à estruturação e à sequência única de cada enunciado, os quais interagem de forma inseparável. Considere: Fonte: adaptada de Costa (2008). Como vimos anteriormente, a TBS também leva em conta os encadeamentos argumentativos realizados com operadores argumentativos transgressivos. Nesse cenário, as possibilidades argumentativas de um enunciado podem ser ampliadas. Considere o exemplo do encadeamento argumentativo "João tem muito dinheiro e é feliz". Em relação a esse enunciado, é possível definir um bloco semântico, conforme ilustrado no Quadro 2. (5) João tem muito dinheiro (portanto) é feliz. (6) João tem saúde (portanto) é feliz. Em ambos os casos, há a seguinte configuração: Enunciado X — conectivo normativo — enunciado Y. Quadro 2 - Bloco semântico Fonte: Adaptado de Costa (2008). Assim, para cada encadeamento argumentativo, um aspecto argumentativo específico é gerado e inserido em um bloco semântico, conforme afirmado por Carel (1995), ela observa que os termos do encadeamento argumentativo (X e Y), não são segmentos semanticamente independentes que podem ser compreendidos separadamente, mas sim constituem uma "representação unitária" dos princípios, estereótipos ou fórmulas que convocam. Em outras palavras, esses termos são blocos lexicais que obtêm sua força persuasiva ao destacar um ponto comum específico. 5.2 Modelo de descrição semântico-argumentativo Neste tópico, faremos uma análise semântico-argumentativa baseada na TBS. Vamos explorar a dinâmica dos blocos semânticos usando um conjunto de enunciados reais como exemplo inicial, extraído de Freitas (2008, p. 119). Fonte: adaptada de Freitas (2008). Neste exemplo, que é um trecho de uma carta do leitor publicada em uma revista semanal, a análise dos enunciados será dividida em três partes. Em cada parte, você irá examinar o encadeamento argumentativo, o aspecto argumentativo e o bloco semântico. Fonte: adaptada de Freitas (2008). Observe como esse trecho pode ser dividido. Fonte: adaptada de Freitas (2008). O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem planejamento nem ordenação ambiental; portanto, é insustentável. A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta, apesar da existência de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região. Infelizmente, muitas pessoas inescrupulosas, inimigas da natureza e escravas do lucro fácil, teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro. O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem planejamento nem ordenação ambiental; portanto, é insustentável. Enunciado 1: “O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem planejamento nem ordenação ambiental”. Conectivo normativo: “portanto”. Enunciado 2: “é insustentável”. Dessa forma, o significado deste conjunto de palavras é o seguinte: ação predatória — portanto, — insubsistente. No entanto, o trecho exemplificado não se restringe à primeira parte, uma vez que há mais duas por vir, como você poderá ver adiante: Fonte: adaptada de Freitas (2008). Observe: Fonte: adaptada de Freitas (2008). Portanto, a interpretação desse conjunto de palavras é a seguinte: florestas destruídas — no entanto — tecnologias para o progresso equilibrado. Por fim, há a terceira parte: . Fonte: adaptada de Freitas (2008). Novamente, observe a divisão subsequente: A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta, apesar da existência de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região. Enunciado 1: “A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta”. Conectivo transgressivo: “apesar de”. Enunciado 2: “apesar da existência de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região”. Infelizmente, muitas pessoas inescrupulosas, inimigas da natureza e escravas do lucro fácil, teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro. Fonte: adaptada de Freitas (2008). Assim, a interpretação deste enunciado é a seguinte: pessoas sem escrúpulos — portanto — destruição da Amazônia. É importante notar que em cada unidade semântica, há uma coerência interna. No entanto, uma vez que todos esses blocos estão interconectados e contribuem para um significado geral, é possível criar uma interpretação semântica abrangente do parágrafo inteiro. Confira: Fonte: adaptada de Freitas (2008). Ou seja: Fonte: adaptada de Freitas (2008). Enunciado 1: “Infelizmente, muitas pessoas inescrupulosas, inimigas da natureza e escravas do lucro fácil”. Conectivo transgressivo: “portanto”. Enunciado 2: “teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro”. Ações predatórias — portanto — insubsistentes — no entanto — tecnologias para o progresso equilibrado — portanto — destruição da Amazônia. Ações predatórias que ocorrem na floresta são insubsistentes. Mesmo que haja tecnologia para o progresso equilibrado, a destruição da Amazônia ainda acontece. Com base no exemplo fornecido, é possível observar como a descrição semântico-argumentativa se baseia na TBS. O sentido do parágrafo da carta do leitor é construído por meio de um bloco semântico, que é formado por encadeamentos e elementos argumentativos. Esses encadeamentos e aspectos argumentativos são, por sua vez, criados através da interligaçãoentre os enunciados e o uso de conectores normativos e transgressivos. Todos esses elementos são interdependentes, resultando na construção de um significado global em sentenças complexas. 6. O ESPAÇO DA PRAGMÁTICA NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS A comunicação humana oferece um amplo espectro de análise, com abordagens teórico-metodológicas que se concentram em uma variedade de objetos de estudo. Para entender o papel da pragmática nos estudos linguísticos, é instrutivo começar com um exemplo: Fonte: adaptada de Fiorin (2008a, 2008b). Em princípio, o conteúdo informativo desta sentença é limitado. Podemos inferir que o sujeito está fazendo uma afirmação sobre um projeto que assumiu no passado, com o elemento temporal "já" indicando que essa ação ocorreu em um momento anterior. No entanto, essa análise é predominantemente descritiva, não fornecendo pistas ou recursos para uma investigação mais aprofundada do contexto em que a declaração foi feita. Agora, vamos analisar o mesmo exemplo apresentado em um formato diferente: Fonte: adaptada de Fiorin (2008a, 2008b). Quanto ao contexto em que ocorre esse diálogo, considere o seguinte: Eu já assumi um projeto. Interlocutor 1: Estou procurando com urgência colaboradores para o meu projeto. Você teria disponibilidade para participar? Interlocutor 2: Eu já assumi um projeto. Interlocutor 1: Entendi. Tudo bem. Fonte: adaptada de Fiorin (2008a, 2008b). Conforme observado, a mesma frase do primeiro exemplo é posteriormente incorporada a informações adicionais em meio a um diálogo. O Interlocutor 1 faz uma pergunta direcionada ao Interlocutor 2. Além disso, existem informações não explicitamente mencionadas na interação deste curto diálogo. Sabemos que ambos os interlocutores trabalham juntos em uma empresa que atribuiu projetos diversos a seus funcionários, e que esses projetos variam em complexidade. Com base nessas informações, é possível realizar uma análise mais detalhada, levando em consideração o contexto da conversa e o que foi expresso linguisticamente pelos interlocutores. Com base na análise do diálogo, é possível concluir que o Interlocutor 1 está enfrentando uma sobrecarga em relação ao projeto sob sua responsabilidade, já que ele usa a expressão "com urgência". Ao perceber que o Interlocutor 2 pode ter mais disponibilidade, talvez devido à natureza menos complexa do projeto que assumiu, o Interlocutor 1 pergunta se há a possibilidade de colaboração entre eles. No entanto, o Interlocutor 2 não responde diretamente à solicitação. Ele menciona que já assumiu outro projeto, o que pode ser interpretado como falta de interesse em estabelecer uma parceria de colaboração. O diálogo encerra-se com o Interlocutor 1 demonstrando compreensão da resposta que lhe foi fornecida. Isso indica uma falta de disponibilidade do Interlocutor 2 para ajudar o Interlocutor 1, apesar da urgência mencionada. Essa breve análise ilustra o âmbito dos estudos pragmáticos, que se concentram no uso da linguagem. Ao analisar o uso da linguagem contextualizada, é possível revelar informações que podem não ser explicitamente declaradas nos enunciados. De acordo com Fiorin (2008a, 2008b), a pragmática é o campo da linguística que se dedica a estudar a relação entre a estrutura da linguagem e sua utilização prática. Para o autor, a pragmática é fundamental, uma vez que há palavras - os interlocutores trabalham juntos em uma empresa; - recentemente houve a atribuição de projetos na empresa, que variam em termos de responsabilidade e complexidade. e frases cuja interpretação só pode ocorrer na situação concreta da fala, já que comunicamos muito mais do que as palavras significam. Isso ressalta a importância de entender como a linguagem é usada em contextos reais de comunicação para compreender totalmente o significado e a intenção por trás das palavras e frases. Ao revisitar os exemplos apresentados no início desta seção, é evidente a relevância das considerações feitas por Fiorin (2008a, 2008b). O enunciado "Eu já assumi um projeto", quando desprovido de contexto, possui um escopo comunicativo restrito, limitando-se ao significado das palavras. No entanto, quando situado em um contexto, torna-se possível analisar o processo interacional no qual foi proferido. Ao afirmar que já assumiu outro projeto, o interlocutor não apenas fornece informações sobre sua situação pessoal, mas também contextualiza seu papel social em relação ao interlocutor. A falta de disposição para colaborar com seu colega, expressa na declaração sobre sua carga de trabalho, na verdade, constitui uma resposta indireta, embora negativa, à pergunta feita. Isso ilustra como a pragmática desempenha um papel fundamental na compreensão do significado real das interações linguísticas, indo além das palavras e explorando o contexto e as relações sociais subjacentes. No campo da pragmática, existem várias regras e estratégias linguísticas por meio das quais as funções gerais da linguagem podem ser desempenhadas com o objetivo de atender às intenções comunicativas dos falantes. No exemplo apresentado, o Interlocutor 2 provavelmente optou por não responder de forma negativa para evitar a criação de uma situação conflituosa e manter a cortesia na interação. Isso ilustra como as considerações pragmáticas desempenham um papel importante na comunicação, permitindo que os falantes expressem suas intenções de maneira sutil e delicada, mesmo quando a resposta é, de fato, uma negação indireta. Bates (1976), destaca a natureza abrangente da pragmática na linguagem. Ele afirma que a pragmática é um conjunto de regras que governam o uso da língua em contextos específicos. De acordo com essa visão, a pragmática não define uma estrutura linguística ou um objeto separado, mas está intrinsecamente ligada à linguagem como um todo. Tudo na linguagem é, em certo sentido, pragmático desde o início. Os falantes escolhem seus significados de acordo com o contexto e constroem seus significados de acordo com esses contextos, de modo que os dois são inseparáveis, como a figura que só pode ser definida em relação ao fundo. Sob essa perspectiva, cada ato envolvido na construção de significado é, por sua própria natureza, um ato pragmático. Isso ressalta a importância da pragmática na compreensão e na análise da linguagem, pois ela está intrinsecamente ligada à forma como a linguagem é usada em contextos reais de comunicação. Isso significa que a pragmática na linguística abrange as características de uso da língua, incluindo a intencionalidade dos falantes, os papéis sociais que desempenham, os padrões de fala socializados e o conhecimento de mundo. Aqui, o conhecimento de mundo se refere às referências socioculturais que os falantes possuem. Portanto, é plausível considerar que a pragmática se encontra na interseção de três elementos fundamentais da linguagem, também conhecidos como aspectos pragmáticos da linguagem: o contexto, os usuários e o conhecimento sociocultural (conforme ilustrado na Figura 1). Esses três elementos desempenham papéis cruciais na compreensão e na análise de como a linguagem é usada de forma eficaz em situações comunicativas do mundo real. Figura 1 - Elementos da linguagem constituintes da pragmática Fonte: adaptada de Fiorin (2008a, 2008b). A interação entre os usuários da linguagem (sejam eles falantes ou interlocutores), o contexto no qual a comunicação ocorre (a situação interativa) e o conhecimento compartilhado (ou referências socioculturais) estabelece as bases para o uso da língua. Dentro desse enfoque teórico e metodológico, os interlocutores são vistos como agentes intencionais que selecionam estratégias discursivas com base em seu conjunto de conhecimentos, a fim de expressaratos de fala que se ajustam a um contexto específico. Isso realça a importância da intenção, do conhecimento cultural e do contexto na comunicação eficaz, bem como na compreensão da pragmática da linguagem. O marco inicial da pragmática pode ser atribuído às contribuições dos filósofos da linguagem Austin (1990) e Grice (1982). Com base nessas contribuições para o desenvolvimento da pragmática, podemos recorrer às considerações de Fiorin (2008a, 2008b), quando afirma que o ponto de partida da pragmática surgiu com os trabalhos dos filósofos da linguagem John Austin e Paul Grice. Austin (1990), argumentou que a linguagem não tem apenas uma função descritiva, mas também uma função de ação. Ao falar, o ser humano realiza atos. Por exemplo, ao dizer “eu lhe prometo vir”, o ato da promessa é realizado quando se diz “eu lhe prometo”. Grice mostra que a linguagem natural comunica mais do que aquilo que se significa num enunciado, pois quando se fala, comunicam-se também conteúdos implícitos. Quando alguém diz ao outro, que “está se aprontando para sair, são oito horas”, ele não está fazendo uma simples constatação sobre o que marca o relógio, mas dizendo “apresse-se; vamos chegar atrasados”. Portanto, a perspectiva apresentada pela pragmática reconhece que, ao expressar sentenças, o falante não está simplesmente limitado a relatar passivamente informações, mas está efetivamente agindo em um contexto específico. Quanto ao conteúdo da linguagem, a pragmática pressupõe que há informações que são comunicadas nos processos interativos, embora não sejam explicitamente mencionadas. Rajagopalan (2016), também compartilha dessas observações. Rajagopalan (2016), explica que a pragmática é uma abordagem singular para a análise da linguagem. Ele enxerga a linguagem como uma ação, que vai além da simples produção de palavras. Na verdade, cada vez que escolhemos dizer algo a alguém, estamos agindo de alguma maneira. Até mesmo a decisão de ficar em silêncio em vez de falar é uma forma de ação. A fala e a própria falta de fala fazem parte de um ato muito mais complexo. Quando falamos, estamos nos posicionando no mundo em relação às situações e questões que enfrentamos, essas ações linguísticas têm implicações políticas e outras ramificações importantes. Portanto, a pragmática nos permite entender como a linguagem é uma ferramenta poderosa que utilizamos para interagir com o mundo e expressar nossa posição diante das diversas situações e questões que enfrentamos. Neste ponto, torna-se evidente a existência de uma interface entre a pragmática e a análise do discurso. Para ilustrar essa interface, é relevante fornecer uma breve definição do que se entende por análise do discurso. Conforme Souza (2016), a análise do discurso tem como objetivo não restringir a função da linguagem apenas informar, comunicar ou persuadir. Ao lidar com as condições de sentido, a análise do discurso procura destacar o confronto político-ideológico que historicamente se manifesta no discurso. Essa conexão entre pragmática e análise do discurso realça a importância de considerar não apenas como as palavras são usadas para comunicar, mas também como a linguagem é empregada para expressar poder, política e ideologia nas interações comunicativas. Ambos os campos enfatizam que a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas também uma ferramenta complexa que reflete e influencia questões mais amplas na sociedade. Com base nessas considerações analíticas e definições, é possível entender que as condições de sentido englobam aspectos pragmáticos que veiculam processos discursivos com conotações político-ideológicas. Em termos simples, os aspectos pragmáticos são características que podem ser identificadas no discurso, evidenciando as referências socioculturais que historicamente se manifestam na fala por meio de convenções e estratégias linguísticas. Isso realça como a análise do discurso e a pragmática se entrelaçam, explorando a maneira pela qual a linguagem não apenas comunica informações, mas também reflete e transmite nuances de poder, política e ideologia. As convenções e estratégias linguísticas usadas em um discurso podem ser uma janela para compreender as influências culturais e ideológicas subjacentes. Na prática, essa interface entre pragmática e análise do discurso encontra aplicação no campo da educação. Com base no referencial teórico que abrange essas duas áreas, é viável explorar diversas abordagens para investigar a materialidade da linguagem, tanto na forma oral quanto escrita, bem como suas variadas formas de significação e interpretação. Esse enfoque teórico combinado pode ser extremamente valioso para o ensino- aprendizagem, uma vez que permite uma compreensão mais profunda das sutilezas da linguagem e como ela é usada para expressar, influenciar e refletir questões políticas, sociais e ideológicas. Ele fornece uma estrutura sólida para a análise crítica do discurso e a exploração de diferentes usos da linguagem, enriquecendo o aprendizado dos alunos e capacitando-os a compreender e avaliar o discurso de maneira mais informada e reflexiva. Capperucci (2010, p. 60), aborda essa relação no contexto da educação ao reconhecer que as práticas pedagógicas no Brasil geralmente não incentivam os alunos a se tornarem leitores ativos da linguagem e dos processos de ensino e aprendizagem. Conforme a autora menciona, dada a importância da linguagem no contexto da educação, é essencial ampliar a discussão sobre a necessidade de averiguar os discursos, tanto os implícitos quanto os explícitos, presentes no ambiente educacional. O objetivo é elevar o nível de competência linguística para identificar as ideologias encobertas nos documentos que orientam a educação no Brasil, compreendendo seus reais objetivos. A partir de uma perspectiva livre de preconceitos, podendo então debater maneiras de romper com o status quo e explorar novas direções no campo educacional. Isso destaca a necessidade de uma análise crítica dos discursos educacionais, a fim de promover mudanças e melhorias significativas no sistema de ensino. Essa abordagem sublinha a necessidade de desenvolver a competência linguística dos alunos não apenas como leitores e escritores eficazes, mas também como analistas críticos da linguagem e dos discursos presentes na educação. Isso é fundamental para identificar ideologias subjacentes e buscar aprimoramentos no sistema educacional brasileiro, promovendo a reflexão e o questionamento de práticas existentes e, possivelmente, direcionando o campo da educação para novas abordagens. Portanto, enquanto a análise do discurso se dedica a desvendar os processos de construção e socialização do conhecimento, a pragmática investiga os mecanismos linguísticos e os aspectos contextuais que os sustentam. Fiorin (2008a, 2008b, p. 181), destaca essa relação entre discurso e pragmática ao afirmar que todos esses mecanismos produzem efeitos de sentido no discurso. Não é indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou distanciar-se dele; simular que os eventos narrados ocorreram simultaneamente à enunciação ou apresentá-los como anteriores ou posteriores a ela; tornar o passado presente; expressar um eu na forma de um ele. Isso ressalta como os mecanismos linguísticos, explorados pela pragmática, desempenham um papel fundamental na criação de efeitos de sentido no discurso. A escolha de expressões, tempos verbais e perspectivas discursivas molda a maneira como a mensagem é recebida e interpretada pelo interlocutor, enfatizando a interação entre a linguagem e o significado no contexto da comunicação. A integração das duas áreas no campo da educação parece ser uma estratégia eficaz para o processo de reforma da educação brasileira. A ideia é desenvolver atividades e práticas pedagógicas que questionem tanto asmensagens explícitas quanto as mensagens implícitas contidas nos discursos que circulam na sociedade e nos documentos escolares, incluindo documentos pedagógicos, planos de aula, avaliações e outros. Essa abordagem permite uma análise mais aprofundada dos discursos presentes na educação, ajudando a identificar ideologias subjacentes, preconceitos e outros elementos que podem influenciar o ensino-aprendizagem. Ao desafiar esses discursos e promover uma compreensão crítica da linguagem, os educadores podem contribuir para uma renovação mais significativa e consciente do sistema educacional brasileiro, direcionando-o para práticas mais inclusivas, igualitárias e socialmente conscientes. 7. A NOÇÃO DE COERÊNCIA PRAGMÁTICA E AS REGRAS CONVERSACIONAIS Fiorin (2008a, 2008b), ressalta que dentro do campo da pragmática, existe uma tendência entre alguns estudiosos de considerar que os comportamentos linguísticos são orientados por regras ou princípios gerais baseados na razão, a forma como a linguagem é utilizada na comunicação é guiada por princípios gerais fundamentados em inferências pragmáticas. Essa abordagem teórico-metodológica levou Grice (1982), a empreender estudos voltados para a análise desses princípios gerais. Como resultado de suas investigações, a autora desenvolveu o conceito de implicatura, o qual está intrinsecamente ligado ao princípio da cooperação. A autora postulou que esse princípio pode ser resumido da seguinte forma: todas as intervenções e contribuições do falante em uma interação devem ocorrer de acordo com os objetivos ou direções previamente acordados durante a troca verbal em que se está envolvido. Desta forma, o princípio da cooperação pode ser entendido como um mecanismo fundamental na comunicação que possibilita aos interlocutores deduzirem e fazerem inferências, frequentemente denominadas "implicaturas conversacionais". Esse princípio permite que preencham lacunas de sentido que podem surgir de forma intencional ou não intencional em determinadas declarações. Para Fiorin (2008b), conforme diversos estudiosos da Pragmática, esta é regida por um “Princípio de Cooperação” que demanda que cada enunciado tenha um propósito ou uma finalidade. Muitas vezes, os atos de fala não são expressos de forma explícita, mas de maneira implícita, e, portanto, somente é possível perceber o propósito ou o objeto de um enunciado ao compreender essas informações implícitas. Esse mecanismo é baseado em regras conversacionais, frequentemente referidas como "máximas conversacionais". Essas regras são amplamente reconhecidas pelos falantes, fazendo parte do repertório de conhecimento compartilhado entre eles. Esse repertório auxilia os interlocutores a identificar e recuperar o conteúdo motivacional e intencional que subjaz aos enunciados, contribuindo para a manutenção da coerência pragmática em uma determinada situação de comunicação. A coerência pragmática desempenha um papel central na estruturação da comunicação. Em essência, a coerência pragmática implica que uma resposta seja gerada quando uma pergunta é feita. É por meio desse princípio que os atos de fala são organizados, guiados pelas regras ou máximas conversacionais propostas por Grice (1982). Abaixo, apresenta-se um resumo dessas regras ou máximas conversacionais do autor. Fonte: adaptada de Grice (1982). Durante uma interação, é possível que essas regras sejam quebradas. É nesse momento que as implicaturas são acionadas para manter o fluxo da conversa. No entanto, é crucial destacar que as violações das regras conversacionais não devem ser interpretadas nem como eventos que prejudicam a comunicação, nem como eventos que a beneficiam. No decorrer de um enunciado, o falante utiliza estratégias que têm como base referências socioculturais, a fim de expressar sua intenção no discurso. Portanto, as violações das regras conversacionais podem ser cometidas de forma a atender à orientação do falante na expressão da comunicação. Regra da quantidade: a contribuição deve conter o tanto de informação exigida; ela não deve conter mais informações do que é exigido. Regra da qualidade: a contribuição deve ser verídica; não se deve afirmar o que se pensa que é falso e não se deve afirmar coisa de que não se tem provas. Regra da relação (da pertinência): a colaboração não deve abordar o que não é concernente ao assunto tratado (deve ser pertinente). Regra da maneira: a colaboração deve ser clara, não obscura; deve-se evitar a ambiguidade, ser breve (evitar prolixidade inútil) e falar de maneira ordenada. Portanto, é importante compreender que as violações das regras conversacionais fazem parte da competência comunicativa dos falantes. Elas ocorrem quando os interlocutores moldam a situação de fala de acordo com suas motivações e percepções. Embora as violações possam, em alguns casos, prejudicar o processo comunicativo, isso não é uma necessidade constante. No esquema a seguir, são apresentados exemplos de enunciados que ilustram essas violações. Tipo de violação: Violação à regra da quantidade. Descrição: Nesse caso, viola-se a regra da quantidade pois uma informação evidente é verbalizada, comprometendo a utilidade informacional. Exemplos: — Você por aqui! — Não, já fui embora. Tipo de violação: Violação à regra da qualidade. Descrição: A regra da qualidade é infringida quando o interlocutor demonstra desdém, exagero ou ironia, deixando claro que o que é afirmado não condiz com o que ele realmente pensa. Exemplos: — Este é um excelente carro! — É, até que serve. Tipo de violação: Violação da regra da relação (da pertinência). Descrição: A regra da relação é violada quando um dos interlocutores não se engaja no tópico proposto, expressando uma informação que não é pertinente e provocando uma interrupção ou mudança de tópico. Exemplos: — Você tem um minuto para conhecer a nossa organização? — Desculpe, estou com pressa. Preciso trabalhar. Tipo de violação: Violação da regra da maneira. Descrição: A regra da maneira é desrespeitada quando os interlocutores optam por se manifestar de tal modo que a informação solicitada não é diretamente respondida, envolvendo, em geral, ambiguidades, multiplicidade de sentidos e obscuridades. Aqui, a resposta dada pode consistir num empecilho para o acesso à informação, ou pode revelar informações implícitas que ultrapassam o que foi indagado em princípio. Exemplos: — Você trabalhou por quanto tempo com ela? — O suficiente. 7.1 Alinhando os conceitos Os conceitos discutidos até agora não devem ser vistos como mutuamente exclusivos, mas sim como complementares. Para uma compreensão mais clara, a Figura 1 apresenta uma representação visual das definições abordadas. Figura 1 - O domínio da pragmática e seus elementos interacionais Fonte: adaptada de Grice (1982). A pragmática é uma área da linguística que se concentra no uso da linguagem, guiando-se pela coerência pragmática. Isso implica que as interações são construídas de forma a serem coerentes do ponto de vista pragmático. Por exemplo, diante de uma pergunta, espera-se que haja uma resposta que seja compatível com a intenção comunicativa. O princípio da cooperação é fundamental para que a coerência pragmática seja alcançada. O princípio da cooperação, quando aplicado, pressupõe que as interações sejam orientadas por um propósito, objetivo ou finalidade que seja interpretado e reconhecido pelos interlocutores sempre que participam de uma conversa. Como ilustrado na Figura 1, esse princípio da cooperação se desdobra em quatro regras ou máximas conversacionais: a regra conversacional da quantidade, a regra conversacional da qualidade, a regra conversacional da relação e a regraconversacional da maneira. Vale ressaltar que apesar de essas regras estarem associadas ao princípio da cooperação, é relevante compreender que nem sempre elas serão estritamente seguidas. Em alguns casos, ocorrem violações, sejam intencionais ou não. É importante destacar que tais violações não são necessariamente negativas nem positivas. Essas eventuais quebras das regras fazem parte da competência linguística do falante, que pode adaptar os recursos da linguagem de acordo com sua compreensão dos enunciados e sua intenção comunicativa. 7.2 Funcionalismo e pragmática: um possível alinhamento teórico-metodológico A abordagem funcionalista da pragmática está intrinsecamente ligada ao que entendemos como a abordagem funcional nos estudos da linguagem. Halliday (1978), argumenta que em relação ao funcionalismo e à pragmática, se podemos variar nosso nível de formalidade ao falar ou escrever, ou transitar livremente entre diferentes tipos de contexto, utilizando a linguagem para planejar uma atividade organizada, fazer uma apresentação ou manter as crianças disciplinadas, isso porque a natureza da linguagem na sua complexidade possui todas essas funções integradas em sua capacidade total. O funcionalismo é uma abordagem de análise que se aplica a diversas áreas da linguística, incluindo a pragmática. Essa abordagem se concentra no estudo da língua em termos de suas funções e atribuições. De acordo com essa perspectiva de análise, a função comunicativa não é apenas uma característica isolada da linguagem humana; ela exerce influência e molda o sistema linguístico como um todo. Marques (2006), enfatiza que a estrutura da língua se desenvolve da maneira como o faz devido aos diversos modos de uso e às diferentes funções sociais da linguagem. Essas funções estão relacionadas ao fato de que, ao nos comunicarmos, estamos inseridos em contextos variados e diversos, o que demanda do falante a escolha de expressões adequadas para cada situação. Portanto, o uso da língua desempenha um papel fundamental na determinação de sua estrutura. O argumento do autor destaca a importância de examinar a relação entre as perspectivas funcionalistas. Se o funcionalismo se concentra na investigação de como o uso da linguagem molda as estruturas formais da língua, então a pragmática, ao abranger as condições que governam os usos linguísticos, fornece uma sólida base teórica para a exploração desse processo. Modesto (2006), complementa, afirmando que, com base no contexto situacional, o falante decide qual uso linguístico empregar em sua produção de fala. A escolha do registro linguístico durante a interação verbal está relacionada ao papel que o falante desempenha na comunicação. Portanto, suas escolhas dependem da intenção do falante, da maneira que ele considera apropriada para transmitir sua informação pragmática e de como deseja que o destinatário a compreenda e responda. Dessa forma, os falantes e ouvintes, ou seja, os interlocutores, compartilham um conhecimento mútuo que, quando compartilhado durante uma interação, desencadeia dois processos interativos: um de expressão de intenções e outro de interpretação de intenções. Na perspectiva pragmática, os interlocutores utilizam determinados usos linguísticos para garantir que suas intenções sejam comunicadas de forma eficaz e compreendidas pelo destinatário. Dependendo do contexto, um dos interlocutores pode escolher adotar uma postura mais ambígua e não responder diretamente à pergunta que lhe foi feita. Em outras situações, o interlocutor pode demonstrar maior cooperação, mostrando um comprometimento maior em responder às perguntas que lhe foram feitas. Além disso, em alguns casos, um dos falantes pode enfatizar o aspecto informativo, fornecendo mais informações do que o estritamente necessário. Em todas essas situações e em outras semelhantes, a forma como a linguagem é utilizada envolve usos linguísticos que são moldados pelas intenções e são subordinados às motivações dos interlocutores envolvidos em uma interação específica. Com base no esquema denominado "Top-Down", proposto por Levelt (1989), para esclarecer a relação entre funcionalismo, discurso e pragmática, podemos observar que o processo de produção da fala começa com a intenção e se move em direção à expressão linguística. Inicialmente, o falante decide qual será seu propósito comunicativo, com base em informações contextuais e pragmáticas. Em seguida, ele seleciona as informações que melhor se adequam para alcançar seu objetivo. Essas informações são codificadas gramatical e foneticamente, resultando na articulação final que expressa a intencionalidade que desencadeou todo o processo. Diferentemente do que se presume em outras abordagens linguísticas, os falantes não selecionam passivamente e de forma automática os usos linguísticos com base no que a situação de fala exige. Na verdade, há uma interação de forças linguísticas que moldam e influenciam a função dos usos (funcionalismo) por meio dos recursos da linguagem que são aplicados (pragmática). Isso resulta na consolidação das intenções dos falantes envolvidos em uma determinada situação comunicativa. 8. ATOS CONSTATIVOS E ATOS PERFORMATIVOS Antes da consolidação da pragmática como um campo de estudo linguístico, os fenômenos da linguagem eram abordados de tal forma que uma determinada frase era avaliada com base na suposição de sua verdade ou falsidade. Isso resultava em uma orientação de análise essencialmente descritiva. No entanto, com as contribuições da filosofia da linguagem, tornou-se evidente que a estrutura da linguagem está intimamente ligada ao seu uso. Como resultado, a linguagem deixou de ser estritamente limitada ao âmbito da descrição, e os atos de fala passaram a ser compreendidos como manifestações concretas. Austin (1990), um filósofo da linguagem, foi o pioneiro na formulação da teoria dos atos de fala. Esse arcabouço teórico se estabeleceu como uma das principais vertentes da pragmática, pois não considerava as sentenças como entidades isoladas do contexto de fala, mas sim como construções linguísticas moldadas ao longo de uma interação. As observações de Rajagopalan (2016), apoiam a ideia de que a Pragmática reconhece que estamos lidando com algo que é construído, não algo que é inerente à natureza. As condições dessa construção só podem ser plenamente compreendidas quando examinamos os fatores culturais e políticos que influenciaram determinadas épocas da nossa história. Ao abordar o uso da linguagem, Austin (1990), argumenta que muitas das frases produzidas pelos falantes não se limitam a meramente representar o mundo, mas são, na verdade, meios pelos quais os falantes executam ações. Isso leva à denominação de "atos de fala". Os atos de fala se referem simplesmente às declarações proferidas, tanto verbalmente quanto por escrito, pelos falantes. A proposta subjacente a essa ideia implica que o uso da linguagem e as condições que o regulam pode ser classificado, embora seja importante ressaltar que a língua não deve ser estritamente considerada como uma mera representação de fatos percebidos no mundo. Como resultado, emerge a concepção fundamental do autor, que estabelece uma distinção entre enunciados performativos e enunciados constativos. De acordo com Fiorin (2002), Austin (1990), demonstra que a Linguística estava submetida a uma ilusão descritiva, uma vez que é necessário discernir entre dois tipos de declarações: aquelas que descrevem estados de coisas, que ele chama de constatativas, e aquelas que não se enquadram nessa categoria. A estas últimas, ele denomina de performativas. Considere a seguinte declaração: Eu os declaro marido e mulher. Tal enunciado é categorizado como um ato de fala performativo, pois implica uma ação que se concretiza no momento em que ele é postulado.Dizer e agir estão sobrepostos. O sofá é azul. Tal enunciado é categorizado como um ato de fala constativo, pois implica simplesmente uma constatação que pode ser verificada. Dizer e agir não estão vinculados. Nos termos de Austin, os enunciados performativos são assim chamados porque estão intrinsecamente relacionados a uma performance, ou seja, à execução de uma ação em si. Eles não apenas descrevem uma ação, mas a realizam no momento em que são proferidos. Por outro lado, os enunciados constativos são aqueles que simplesmente descrevem um estado de coisas no mundo, sem necessariamente acionar ou executar uma ação. A distinção entre esses dois tipos de enunciados é central para a compreensão da teoria dos atos de fala e como a linguagem é usada para realizar ações, além de transmitir informações. Em geral, os atos de fala performativos apresentam verbos que sinalizam admissão, proposição, testemunho, aceitação, ordem, promessa ou aposta, já que, ao se enunciar, a ação que se pratica é desencadeada. O autor chama esses verbos de “performativos” pois, se por um lado descrevem uma ação, por outro também a executam. Austin (1990), propõe que tanto os atos de fala constativos quanto os performativos estão sujeitos à verificação, embora essa verificação ocorra de maneiras distintas para cada tipo. Por exemplo, um enunciado constativo pode ser avaliado quanto à sua verdade ou falsidade, e sua veracidade pode ser verificada por meio de verificações condicionais no mundo real. No entanto, um enunciado performativo não está sujeito a julgamentos de verdade ou falsidade, pois opera sob condições de realização. O sucesso ou fracasso de um enunciado performativo depende das condições específicas em que é proferido. Se as condições forem propícias, o enunciado é considerado bem-sucedido e efetivamente realizado; caso contrário, o enunciado falha e, como resultado, não é efetivamente concretizado. Veja quais são as chamadas “condições de felicidade”, que podem ser compreendidas como condições de sucesso e concretização do que está implicado em um ato de fala performativo. Condição de felicidade/ sucesso 1 - As condições envolvidas na realização de um ato performativo precisam ser apropriadas e convenientes. Exemplo: Em um tribunal, o juiz afirma “Declaro que X é inocente”; o performativo implicado no enunciado exige que o interlocutor ocupe uma posição, institucional ou não, que garanta a ele a autoridade para executar a ação proferida. Se o supracitado enunciado for proferido por um leigo, então o performativo em questão não se realiza, uma vez que o falante não apresenta as condições apropriadas para tal. Condição de felicidade/ sucesso 2 - Ao se enunciar um ato performativo, se faz necessário que a sua execução opere corretamente em dado contexto Exemplo: Se o performativo “Declaro que X é inocente” for enunciado por um juiz na abertura de um programa de auditório, então certamente a ação nele implicada não se realizará, por mais que o interlocutor ocupe um cargo jurídico. Isso ocorre pois é de suma importância que o falante esteja inserido no contexto adequado. Condição de felicidade/ sucesso 3 - Ao se enunciar um ato performativo que demanda a presença de terceiros, se faz necessário que todos os envolvidos estejam efetivamente engajados para que a ação seja executada. Exemplo: Por fim, se a mesma declaração for enunciada por um juiz, em um tribunal, mas na presença de uma série de torcedores de futebol, então, novamente, a ação contida no performativo não se realiza. É importante que todos os elementos envolvidos no contexto da enunciação sejam propícios e adequados à concretização do ato proposto. 8.1 A tripartição dos atos de fala Após desenvolver a teoria dos atos de fala com base na distinção entre enunciados constativos e enunciados performativos, Austin percebeu a necessidade de reformular suas ideias iniciais. Isso aconteceu quando ele se aprofundou na análise das diferenças entre atos performativos e atos constativos. Esse aprofundamento levou a uma revisão de suas propostas anteriores, à medida que ele buscava uma compreensão mais precisa das complexidades envolvidas na distinção entre esses dois tipos de atos de fala. Souza Filho (2006), destaca que, nessa ocasião, o estudioso Austin percebeu que o ato constativo possui uma dimensão performativa. Isso significa que descrever algo também é um ato que realizamos, e assim como os performativos, pode ser bem- sucedido ou malsucedido. Da mesma forma, os atos performativos têm uma dimensão constatativa, pois estão relacionados a fatos do mundo real. Além disso, Austin (1990), questionou em que medida é possível julgar um enunciado constativo como verdadeiro ou falso com precisão. Essa dúvida surgiu em sua investigação sobre a complexidade da linguagem e como ela é usada para realizar ações, tornando a distinção entre constativos e performativos menos rígida do que inicialmente proposta. O autor argumenta que as diferentes formas de expressar o que se observa frequentemente não são apenas resultado de variações no conhecimento, nuances de discernimento, disposição para assumir riscos ou interesses específicos em diferentes aspectos da situação. Pode também ocorrer devido ao fato de que o que se observa é percebido de maneira distinta, sendo visto de uma forma diferente, destacando um aspecto sobre outro. Às vezes, pode não haver uma única maneira correta de descrever o que se vê, porque talvez não haja uma única maneira correta de percebê-lo. Isso ressalta a subjetividade inerente à interpretação das observações e à expressão das experiências individuais. Essa discussão sugere a possibilidade de que os enunciados constativos também estejam sujeitos a condições de felicidade. Para ilustrar essa expansão conceitual, considere os exemplos a seguir, que retomam as situações mencionadas anteriormente: Eu os declaro marido e mulher. No enunciado, há uma inegável dimensão performativa; no entanto, essa dimensão não está factualmente desvinculada da realidade, uma vez que resulta da perspectiva de um observador em relação a algo que ele constata ou presencia. O sofá é azul. Aqui, nota-se que o enunciado contém uma afirmação que pode ser cotejada com a realidade e julgada como verdadeira ou falsa. Mas, apesar disso, é visível que no enunciado está implicada a perspectiva de um observador que se posiciona perante a realidade. Logo, o ato de constatar é o ato de performar algo. Por exemplo, ao afirmar que o sofá é azul, o interlocutor também afirma um testemunho ou uma admissão: “[Eu admito/testemunho que] o sofá é azul.” Como resultado dessas reflexões, Austin (1990), amplia sua linha de investigação e passa a considerar que os enunciados, enquanto atos de fala, não se enquadram estritamente como exclusivamente performativos ou exclusivamente constativos. Em vez disso, ele sugere que todo e qualquer enunciado implica em uma ação ou posicionamento por parte do sujeito em relação ao contexto no qual está inserido. Essa perspectiva reconhece que os atos de fala não se limitam a descrever ou realizar ações, mas também envolvem uma dimensão de interação e posicionamento em relação ao ambiente e ao interlocutor. Portanto, a linguagem é vista como uma ferramenta multifacetada que combina elementos performativos e constativos em sua expressão. 8.2 Atos locucionário, ilocucionário e perlocucionário A definição dos elementos constituintes dos atos de fala é fundamental para compreender como as ações linguísticas são realizadas na comunicação. Vamos explorar a explicação de Ottoni (1998) sobre essa distinção entre esses elementos: Locucionário: O elemento locucionário se refere à produção física e fonética do enunciado. Envolve a escolha de palavras, gramática, entonação e outros aspectos relacionadosà forma e à expressão do discurso. Em outras palavras, é a parte material da fala ou da escrita que constitui o ato de fala. Ilocucionário: O elemento ilocucionário se concentra na intenção do falante ao realizar o ato de fala. Ele envolve a identificação da função comunicativa do enunciado, ou seja, o que o falante deseja alcançar por meio desse ato de fala. Isso inclui determinar se o ato é uma afirmação, uma pergunta, uma promessa, uma ordem, uma sugestão, etc. Perlocucionário: O elemento perlocucionário diz respeito aos efeitos ou reações que o ato de fala provoca no interlocutor ou destinatário. Envolve a compreensão, interpretação e resposta do interlocutor ao ato de fala. Os efeitos perlocucionários são as respostas, reações emocionais, ações subsequentes ou mudanças de comportamento que resultam da realização do ato de fala. Essa distinção entre os elementos locucionário, ilocucionário e perlocucionário ajuda a analisar a complexidade dos atos de fala e a entender como a comunicação eficaz envolve não apenas a escolha de palavras, mas também a intenção e a reação do interlocutor. Ela é fundamental para uma análise abrangente dos atos de fala e de como eles funcionam na interação comunicativa. Ottoni (1998), destaca que os três elementos dos atos de fala têm suas bases nas concepções de significado, impacto e resposta. O ato locucionário, ao criar significado, permite a produção de sentido, enquanto o ato ilocucionário, ao fornecer a força linguística, efetua a concretização da intenção transmitida pelo ato locucionário. Por fim, a resposta desencadeada no interlocutor em decorrência do enunciado compreende o efeito, que se insere na dimensão do ato perlocucionário. É relevante salientar que esses três elementos não operam de maneira independente, mas, em vez disso, colaboram para constituir o ato de fala como um todo. Observe o exemplo: Eu aprovo o candidato X. Nesse enunciado, o interlocutor, que está implicitamente representado pelo sujeito "eu," realiza simultaneamente a ação de aprovar e a ação de enunciar. A aprovação e a expressão verbal dessa aprovação estão intrinsecamente interligadas. Não é viável aprovar algo ou alguém sem comunicar essa aprovação por meio da expressão verbal. Da mesma forma, não é possível expressar tal aprovação sem assumir uma posição verbal em relação a algo ou alguém. É fundamental analisar as várias camadas dos atos de fala que estão presentes nessa frase, pois revela a interação complexa entre a ação de aprovar, a ação de expressar e a comunicação efetiva de uma atitude ou posição; observe o esquema a seguir. ➢ Ato locucionário: o ato de dizer cada um dos componentes linguísticos da frase. ➢ Ato ilocucionário: o enunciado contém o ato de aprovar que se realiza na linguagem, na medida em que o enunciado é proferido. ➢ Ato perlocucionário: o enunciado gera um efeito que não se realiza na linguagem, e sim pela linguagem, isto é, o candidato em questão é aprovado. Dessa forma, os atos de fala podem ser classificados com base nesse esquema. Um simples enunciado, como "Estou com sede," inquestionavelmente envolve o ato locucionário, uma vez que é construído a partir de elementos linguísticos. Além disso, o enunciado também abarca o ato ilocucionário, pois representa uma afirmação por parte do falante a respeito de suas condições ou estados. Além disso, se esse enunciado for uma resposta à pergunta "Você gostaria de algo?", ele desencadeará uma reação por parte do interlocutor. Nesse caso, o ato perlocucionário se manifesta, uma vez que a resposta do falante provoca uma ação, reação emocional ou compreensão por parte do interlocutor. Isso demonstra como os atos de fala estão interligados e podem ser analisados considerando suas várias dimensões. 8.3 Contribuições de Searle: atos de fala diretos e indiretos John Searle é amplamente reconhecido como um dos principais sucessores dos trabalhos de Austin e desempenhou um papel crucial na expansão e aprofundamento da teoria dos atos de fala. Searle investigou áreas que não haviam sido abordadas pela proposta de Austin e desenvolveu outra perspectiva sobre os atos de fala. Uma de suas contribuições mais significativas foi a categorização dos atos ilocucionais em atos diretos e indiretos (SEARLE, 1981). Vamos examinar as definições a seguir. Ato de enunciação: Refere-se à expressão linguística de cada um dos componentes da sentença. Isso envolve a escolha de palavras, gramática, estrutura da frase e entonação, ou seja, a forma como o enunciado é construído linguisticamente. Ato proposicional: Diz respeito às informações contidas no enunciado, com o objetivo de estabelecer referências específicas. O ato proposicional se concentra no que está sendo afirmado ou comunicado no enunciado. Ato ilocucional: É o que efetivamente ocorre na linguagem quando um enunciado é proferido, incluindo suas consequências. Os atos ilocucionais podem ser categorizados em duas formas principais: atos ilocucionais diretos e indiretos. Os atos ilocucionais diretos se referem às ações de fala que são explicitamente realizadas, como afirmar, perguntar, ordenar, prometer, entre outros. Os atos ilocucionais indiretos envolvem a realização de ações de fala de maneira mais sutil, muitas vezes por meio de implicaturas ou inferências, como solicitar, sugerir, aconselhar, entre outros. Essas definições abrangem diferentes aspectos dos atos de fala, desde a expressão linguística até as ações comunicativas e suas implicações. Essa categorização ajuda a compreender a complexidade dos atos de fala na comunicação humana. (a) Que horas são? (b) Você tem horas? No enunciado (a), o ato de enunciação é composto essencialmente pelos mesmos elementos encontrados em (b). A proposição expressa em (a) está enquadrada pela força ilocucionária de uma pergunta, que interpela diretamente o interlocutor em busca do horário em uma situação específica. A expectativa é que o interlocutor reaja fornecendo essa informação. Por essa razão, a sentença (a) pode ser considerada um ato ilocucional direto. Por outro lado, a sentença (b) contém a mesma proposição, mas a força ilocucionária atua de forma indireta. Nesse caso, o falante não faz uma pergunta direta sobre o horário, mas, em vez disso, implica essa intenção. Ainda assim, espera-se que o interlocutor perceba a intenção subjacente e forneça a informação solicitada. Portanto, a sentença (b) é classificada como um ato ilocucional indireto. Essa distinção ilustra como a força ilocucionária pode variar, mesmo quando o conteúdo proposicional é o mesmo, dependendo da maneira como a ação de fala é realizada na interação comunicativa. Portanto, os atos ilocucionais diretos são aqueles que, em certa medida, expressam a intencionalidade do interlocutor de forma explícita, visando provocar uma reação imediata no contexto comunicativo. Por outro lado, os atos ilocucionais indiretos são aqueles que ocultam a intencionalidade do interlocutor, embora não a eliminem por completo do contexto comunicativo. Nesse caso, a intencionalidade pode ser recuperada por meio de inferências e suposições. Por exemplo, quando o interlocutor pergunta se alguém tem as horas, ele provavelmente espera uma resposta relacionada ao horário, não apenas uma resposta afirmativa ou negativa. Isso ilustra como os atos ilocucionais indiretos dependem da habilidade do interlocutor de inferir a intenção subjacente. A abordagem teórica dos atos de fala proposta por Searle assume que, ao expressar um ato proposicional, é necessário destacar e evidenciar um sujeito que ocupará a posição de referência. A partir desse ponto de referência, a perspectiva incorporada na sentença é desenvolvida. Uma vez que a perspectiva enunciativa tenha sido estabelecida, seja em relação a propriedades ou eventos, torna-se possívelrealizar os atos ilocucionários. Vamos analisar as sentenças a seguir com base nessa interpretação de Searle. (c) Ana trabalha muito bem. (d) Ana trabalha muito bem? (e) Ana, trabalhe muito bem. (f) Eu exijo: trabalhe muito bem, Ana. Nos quatro enunciados, há um ato de expressão que inclui um substantivo, um verbo e um complemento. Simultaneamente, existe um ato proposicional que estabelece o mesmo referente, que é Ana, associado à ação de trabalhar. No entanto, cada um dos enunciados realiza atos ilocucionários diferentes: afirmação, indagação, recomendação e exigência, respectivamente. O que fica evidente é que um mesmo ato proposicional pode ser expresso de maneiras distintas por meio de atos ilocucionários diferentes. Isso demonstra como a intenção comunicativa subjacente pode variar, mesmo quando o conteúdo proposicional permanece o mesmo. Fiorin (2002), destaca a importância de distinguir entre esses dois atos, segundo o autor, um dos sucessores de Austin é John Searle, que continua o seu programa e desenvolve vários aspectos de sua teoria. Um deles é que, ao comunicar uma frase, ocorrem simultaneamente um ato proposicional e um ato ilocucional. O primeiro diz respeito à referência e à predicação, ou seja, ao conteúdo comunicado. O segundo, como Austin concebeu, refere-se à ação realizada na linguagem, ao ato de dizer. Essa diferenciação enfatiza como, ao comunicar, um enunciado envolve tanto o conteúdo que está sendo comunicado (ato proposicional) quanto a ação que está ocorrendo na linguagem (ato ilocucional). Essa distinção é fundamental para compreender os aspectos complexos dos atos de fala na comunicação humana. Nesse contexto, é importante notar que uma proposição é delimitada pela força ilocucionária de um enunciado. Em outras palavras, um ato de enunciação carrega um conteúdo proposicional que é contextualizado pela força ilocucionária. Uma diferença notável na teoria de Searle em relação à de Austin é a introdução do conceito de ato proposicional, ausente nas teorizações de Austin. Por outro lado, Searle não faz menção ao ato perlocucionário, presente nas considerações de Austin. Essa divergência ocorre porque, para Searle (1981), o efeito ou reação desencadeado por um enunciado está intrinsecamente relacionado ao próprio ato ilocucionário, não sendo necessário distinguir o ato perlocucionário como uma categoria separada. Essas nuances demonstram como diferentes teóricos abordam e categorizam os componentes dos atos de fala de maneira distinta. Na frase (c), que declara que Ana trabalha muito bem, é possível inferir um elogio dirigido a Ana, o que pode agradá-la. Em (d), a capacidade de Ana é questionada, o que pode ser prejudicial para ela. No enunciado (e), o ato ilocucionário de recomendação pode incentivar uma mudança no comportamento de Ana. Por fim, em (f), também pode ser provocada uma mudança no comportamento de Ana, mas, nesse caso, a mudança é motivada por uma ordem ou intimidação. Esses exemplos ilustram como diferentes atos ilocucionários podem ter efeitos distintos nas interações entre as pessoas. As palavras e a forma como são expressas desempenham um papel importante na comunicação e podem influenciar as reações e comportamentos dos interlocutores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2002. v. 1, p. 165-186. OTTONI, P. R. Visão performativa da linguagem. Campinas: UNICAMP, 1998. RAJAGOPALAN, K. Pragmática. In: MOLLICA, M. C.; FERRAREZI JUNIOR, C. (org.). Sociolinguística, sociolinguísticas. São Paulo: Contexto, 2016. p. 197-204. SEARLE, J. R. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra: Almedina, 1981. SOUZA FILHO, D. M. A teoria dos atos de fala como concepção pragmática de linguagem. Filosofia Unisinos, v. 7, n. 3, p. 217-230, 2006. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008. LEWIS, M. The lexical approach: the state of ELT and a way forward. Hove: Language Teaching Publications, 1993. MÜLLER, A. A semântica do sintagma nominal. In: MÜLLER, A.; NEGRÃO, E.; FOLTRAN, M. (Orgs.). Semântica formal. São Paulo: Contexto, 2003. TAMBA-MECZ, I. A semântica. São Paulo: Parábola, 2006. PIERCE, S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005. CHIAVEGATTO, V. C. Introdução à linguística cognitiva. Matraga, v. 16, n. 24, 2009. CHOMSKY, N. Syntactic structures. Paris: Mouton, 1972. CORTEZ, C. M. Formalismo x funcionalismo: abordagens excludentes? PERcursos Linguísticos, v. 1, n. 1, p. 57-77, 2011. FERRARI, L. Modelos de gramática em linguística cognitiva: princípios convergentes e perspectivas complementares. Cadernos de Letras da UFF, n. 41, p. 149-165, 2010. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. London: University of Chicago, 2003. MARTELOTTA, M. E.; PALOMANES, R. Linguística cognitiva. In: MARTELOTTA, M. E. (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2012. p. 176-192. ROSCH, E. Principles of categorization. In: ROSCH, E.; LLOYD, B. (ed.). Cognition and categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1978. p. 27-48. SILVA, A. S. da. A semântica de deixar: uma contribuição para a abordagem cognitiva em semântica lexical. 1997. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005. MÜLLER, A. L. P.; VIOTTI, E. C. Semântica formal. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2016. p. 137– 159. OLIVEIRA, R. P. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas: Mercado das Letras, 2001. CABRAL, A. L. T. Ducrot. In: OLIVEIRA, L. A. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. CAREL, M. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatic, Amsterdam, v. 24, n. 1, p. 167–188, 1995. COSTA, I. A. Aspectos argumentativos e polifônicos do operador discursivo ainda. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Programa de Pós- Graduação em Estudos Lingüísticos, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. DUCROT, O. Argumentação e “topoi” argumentativos. In. GUIMARÃES, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 13–39. FREITAS, E. C. Blocos Semânticos: o Movimento Argumentativo na Construção do Sentido no Discurso. Revista do GEL, São José do Rio Preto, v. 5, n. 1, p. 109–128, 2008. LUNARDI, G. R.; FREITAS, E. C. Metáforas em títulos de reportagens jornalísticas: a argumentação sob a perspectiva da teoria dos blocos semânticos. Revista Investigações, Recife, v. 24, n. 2, p. 157–188, 2011. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BATES, E. Language and context: the acquisition of pragmatics. Massachussets: Elsevier, 1976. CAPPERUCCI, S. A. S. Uma análise discursiva do programa Brasil Alfabetizado: educação para as massas ou educação de massas? 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro Universitário de Caratinga, Caratinga, 2010. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 166-186. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008. p. 161-177. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: DASCAL, M. (org.). Fundamentosmetodológicos da lingüística. Campinas: Unicamp, 1982. p. 81- 103. (Pragmática, v. 5). RAJAGOPALAN, K. Pragmática. In: MOLLICA, M. C.; FERRAREZI, C. Sociolinguística, sociolinguísticas. São Paulo: Contexto, 2016. SOUZA, T. C. C. Sociolinguística e análise do discurso: pragmática. In: MOLLICA, M. C.; FERRAREZI, C. Sociolinguística, sociolinguísticas. São Paulo: Contexto, 2016. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2008. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: DASCAL, M. (org.). Fundamentos metodológicos da lingüística. Campinas: Unicamp, 1982. p. 81- 103. (Pragmática, v. 5). HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in English. Londres: Longman, 1978. LEVELT, W. J. M. Speaking: from intention to articulation. Cambridge: MIT, 1989. MARQUES, W. Funcionalismo, pragmática e análise do discurso. Natal: UFRN, 2006. MODESTO, A. T. T. Abordagens funcionalistas. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura Letra Magna, [s. l.], ano 3, n. 4, p. 1–19, 2006.