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FOTOGRAFIA E CIDADE Material de apoio Por Cristiano Mascaro Avenida São João, São Paulo, 1986 www.sescsp.org.br/ead www.sescsp.org.br/ead 1 Nasci em Catanduva, mas vivo em São Paulo desde os cinco anos. Assim que cheguei come- cei a andar pela cidade: não havia carro na fa- mília e íamos a pé para a escola, para comprar pão, para a escola, para o cinema. Quase sempre, meu caminho era a avenida São João, que me parecia um fundo de vale, ladeado por grandes prédios. A variedade das construções que se su- cediam naquela reta imensa me assombrava – e talvez ali tenha se iniciado minha relação de en- cantamento e intimidade com o espaço urbano. Cursei o ensino médio no Colégio de Aplicação, politizado e de elite entre as escolas públicas. Quando concluí o curso, estava, como quase todo adolescente, inseguro quanto à faculdade que deveria escolher. A família esperava que eu estudasse medicina, o que não tinha nada a ver com meus planos ainda confusos. Igreja de Santa Ifigênia, São Paulo, 2003 www.sescsp.org.br/ead 2 O acaso me ajudou a resolver o dilema. Certo dia, no caminho de casa, passei em frente ao casa- rão art-nouveau onde funcionava a Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Fi- quei encantado com aquele ambiente e decidi, de imediato, que seria ali que eu iria estudar. Prestei vestibular em 1964, o ano do golpe mi- litar no país. Comecei, portanto, meu curso em plena ditadura. Foi um intenso e ativo período de política universitária, marcado por passeatas, tomadas dos prédios das faculdades e perma- nente contestação na música, teatro, nas artes plásticas e no cinema. A fotografia surgiu, assim, em meio a essas ati- vidades e às aulas. Mais uma vez, quase casual- mente: fugindo de uma aula técnica, refugiei- -me na biblioteca da faculdade e abri ao acaso um livro. Era Images à la sauvette, de Henri Car- tier-Bresson, com fotos que me deixaram espan- tado e entusiasmado. Naquele exato momento, eu soube que seria fotógrafo. Talvez não seja fantasioso pensar que ali, nesses anos iniciais, estavam presentes os elementos que iriam definir meu caminho ao longo das décadas seguintes: o impulso de caminhar pela cidade, o fascínio sempre renovado pela paisa- gem construída, a permanente abertura para as possibilidades trazidas pelo acaso. www.sescsp.org.br/ead 3 Um pouco de história Acredito que uma brevíssima digressão pela his- tória da fotografia pode servir como uma espécie de genealogia do trabalho que faço, ou esclare- cer a tradição em que me insiro como fotógrafo. A fotografia surgiu em meados do século XIX. Em 1826, o francês Joseph Nicéphore Niépce produ- ziu o que se considera a primeira fotografia da história, registrando com uma máquina primiti- va uma vista de sua rua (e é curioso pensar que essa imagem inaugural seja justamente de uma rua, como se o retrato da paisagem urbana esti- vesse na gênese mesma da fotografia). Niépce mais tarde se associaria a Louis Daguerre, inven- tor do daguerreótipo, processo que consistia em fixar uma imagem – ainda única, não reprodutí- vel – em uma placa metálica sensibilizada. Alguns anos depois, já na passagem do século XIX para o XX, Eugène Atget registraria as ruas de Paris, num trabalho pioneiro de fotografia ur- bana. As primeiras câmeras, porém, eram enormes e obrigavam os fotógrafos a se comportar quase como pintores, tal o tempo necessário para fo- tografar uma paisagem ou retratar uma pessoa. Niépce levou oito horas para conseguir sua fo- tografia, e o próprio Atget tinha de se deslocar com um equipamento pesadíssimo e pouco ágil. Somente quase um século depois desses exercícios é que surgiram câmeras mais leves e portáteis, que permitiram aos fotógrafos cami- nhar com seu equipamento a tiracolo. A câmera portátil proporcionou um avanço sig- nificativo da narrativa fotográfica. Surgiu o que foi chamado de “o ponto de vista da calçada”, isso é, a fotografia obtida pelo fotógrafo que se movimenta pelas ruas das cidades e que regis- www.sescsp.org.br/ead 4 tra o momento no instante mesmo em que ele acontece. Os primeiros fotógrafos a se dedicarem àquilo que chamo de “ver as cidades” foram André Ker- tész, Henri Cartier-Bresson e, mais tarde, Robert Frank. Não é coincidência que eles tenham sido minhas maiores referências no ofício que estava iniciando. www.sescsp.org.br/ead 5 Primeiras experiências Comecei a fotografar principalmente nas via- gens de estudante. Nesse espírito meio nôma- de, fotografei Ouro Preto, Salvador, Brasília, e me aventurei por um destino muito em voga entre os jovens da época: Peru e Bolívia, pelo lendário Trem da Morte. Essa viagem acabou sendo de- cisiva para mim: com as fotos dela ganhei o pri- meiro lugar em um concurso cujos jurados eram Fernando Lemos, Claudia Andujar e João Xavier. Procissão do Enterro do Senhor, Ouro Preto, 1965 Animado pelo concurso e imbuído da coragem da juventude, procurei Claudia Andujar, fotógra- fa por quem tinha – e tenho – grande admiração. Ela acabou me levando para a editora Abril, onde comecei minha carreira de repórter fotográfico na revista Veja. Como fotojornalista, viajei pelo Brasil e pela América Latina, fui detido algumas vezes pela www.sescsp.org.br/ead 6 ditadura vigilante, levei alguns golpes de casse- tete em passeatas. Submetido às pautas jorna- lísticas, chegava a realizar três trabalhos, às vezes sobre assuntos completamente diferentes, em um só dia. A experiência na Veja durou apenas dois anos e meio, mas marcou fortemente mi- nha postura como fotógrafo. Rua de Cusco, Peru, 1966 www.sescsp.org.br/ead 7 Fotógrafo autônomo Se o encontro com uma imagem produzida por um grande fotógrafo definiu minha profissão, foi uma fotografia feita por mim – ou melhor, uma cena a ser fotografada – que me mostrou o ca- minho a seguir dentro do meu ofício. Ainda tra- balhava na Veja quando vislumbrei na praça da Sé um vulto que parecia emparedado pelo már- more negro de um edifício. Fiz a foto: o resulta- do, que evocava uma tela de Edward Hopper, me pareceu instigante e fez com que me interessas- se apaixonadamente pela fotografia de rua. Homem na praça da Sé, São Paulo, 1975 Foi o estímulo que faltava para me libertar das pautas da redação e me dedicar ativamente a www.sescsp.org.br/ead 8 projetos autorais de documentação urbana e exploração da vida das cidades. À essa época, fui convidado a coordenar o recém-criado La- boratório de Recursos Audiovisuais da FAU-USP; consegui dividir meu tempo, dedicando-me ao meu incipiente trabalho pessoal e mantendo o vínculo com a universidade, onde depois rece- beria os títulos de mestre (dissertação: O uso da fotografia na interpretação do espaço urbano, 1986) e de doutor (tese: A fotografia e a arquite- tura, 1994). www.sescsp.org.br/ead 9 Primeiros trabalhos Fiz minha primeira exposição em 1975, na esco- la Enfoco, onde dei aulas de fotojornalismo. Essa escola formou importantes fotógrafos e tinha grandes profissionais em seus quadros. Entre eles estava Maureen Bisilliat, grande fotógrafa que me acolheu com generosidade. A exposição chamou-se Paisagens urbanas e reuniu minhas primeiras fotos paulistanas. O resultado foi mui- to positivo, o que me deu a certeza de estar no caminho correto. Fotografia do projeto O bairro do Brás, São Paulo, 1977 www.sescsp.org.br/ead 10 Lancei-me, então, àquilo que seria um primeiro trabalho significativo de documentação da ci- dade: O bairro do Brás, em parceria com Pedro Martinelli. Àquela época – meados da década de 1970 – o antigo bairro operário habitado sobretu- do por imigrantes italianos se transformava rapi- damente, com as obras de construção do metrô e a chegada de trabalhadores nordestinos. Nes- se projeto, pude, de forma clara, conciliar as duas vertentes de minha formação – a arquitetura e a fotografia –, registrando ruas, edifícios, comér- cios, novos prédios e velhos casarões. Ao mes- mo tempo, ao fotografarpersonagens do bairro, pude explorar outro terreno: o retrato. Carregadores de sacos de farinha, bairro do Brás, São Paulo, 1977 www.sescsp.org.br/ead 11 A fotografia como trabalho autoral Meu método de trabalho pode parecer um pou- co indisciplinado em um primeiro momento. Ele consiste, basicamente, em andar muito, flanar livre de qualquer objetivo pré-definido. Trata-se, em úl- tima instância, de estar predisposto ao improviso, aberto para identificar aquilo que há de surpreen- dente, de espantoso na realidade cotidiana – e cap- turá-lo. Saio em busca desses pequenos espantos, como disse certa vez o poeta Ferreira Gullar a pro- pósito da “inspiração” de seu trabalho. Capela do Palácio da Alvorada, Brasília, 1996 www.sescsp.org.br/ead 12 É verdade que há muito de intuição nessa forma de trabalhar. Mas é preciso notar que a intuição não brota sozinha; ela decorre de um longo trei- no do olhar: a escolha do “momento certo” é re- sultado de uma educação, de um “saber ver” que vem da prática, certamente, mas também do conhecimento. Por isso, insisto na necessidade de que os jovens fotógrafos conheçam a história da fotografia e o trabalho de outros profissionais – tanto o de seus contemporâneos quanto o da- queles que os antecederam. A imprevisibilidade está presente inclusive nas fotos de arquitetura. Quando fotografo um pré- dio ou um monumento, faço um planejamento prévio, examino o objeto da foto de forma ob- jetiva e racional. No entanto, a foto em si, seu momento exato, sempre carrega uma surpresa, pois a realidade se transforma incessantemen- te: uma nuvem sombreia a parede, o vento agita uma cortina, uma pessoa atravessa a rua distrai- damente. A realidade está em permanente mu- tação, e o que o fotógrafo faz é apreender um fragmento dela – único, irrepetível – antes que se dissolva. www.sescsp.org.br/ead 13 Os trabalhos comissionados Bastante diferentes dessa liberdade dos traba- lhos autorais, nos quais o compromisso é unica- mente com nosso desejo, são os trabalhos ditos “comissionados”, ou seja, encomendados. Quan- do aceitamos um projeto de um cliente – um ar- quiteto, uma editora, uma instituição –, regras e prazos são muito mais estritos, e o primeiro man- damento é, claro, dar ao cliente no mínimo aqui- lo que ele busca. Ao fazer o trabalho encomen- dado, levo vários tipos de câmeras, para que não haja acidentes. É importante lembrar que num trabalho pessoal todas as experimentações são permitidas; num trabalho comissionado, numa documentação arquitetônica, o compromisso é com o rigor e a exatidão, o que não significa seguir o óbvio, mas estar sempre atento ao de- talhe, buscar algum ineditismo em um mundo saturado de imagens. Se deve responder a uma pauta previamente dada, o trabalho comissionado não é necessaria- mente um corpo estranho à obra do fotógrafo. À medida que me aprofundei na documentação urbana e arquitetônica, passei a receber convites para projetos que enriqueceram minha experi- ência. Assim foi com o projeto de fotografar os cem edifícios mais representativos da arquite- tura brasileira, que me levou a ficar oito meses viajando pelo Brasil e deu origem ao livro Patri- mônio construído (2002); vinte anos depois, em uma segunda edição, foram incluídas mais dez construções. Em 1998, fui incumbido de um pro- jeto semelhante, o de fotografar 28 centros his- tóricos brasileiros, dessa vez com uma aborda- gem mais urbanística que arquitetônica, para o Programa Monumenta, do Ministério da Cultura. www.sescsp.org.br/ead 14 Ensaio, livro, fotolivro O fotojornalismo não foi meu caminho, mas foi uma experiência decisiva e uma escola importan- te para mim, pessoalmente, e para a linguagem fotográfica como um todo. O binômio imagem/ narrativa foi magistralmente desenvolvido pela revista americana Life, que circulou de 1886 a 2000 e publicou, a partir da década de 1930, en- saios fotográficos – ou “discursos visuais”, como também se dizia – de grandes fotógrafos. Um exemplo clássico são os ensaios de Eugene Smi- th publicados pela revista, verdadeiras aulas de como compor frases visuais – as fotos em sequ- ência dão toda uma modulação àquilo que se conta, assumindo a função de vírgulas e pontos conforme seu tamanho na página. Assim, no en- saio Spanish Village, Smith mostrava um vilarejo espanhol durante a ditadura franquista. A ima- gem domina a narrativa: após o início, em que se mostra uma foto mais geral da vila, a série apre- senta personagens, lugares e cenas da vida local, conduzindo o olhar do leitor/observador até uma foto grande, sangrada, de um velório, que marca indiscutivelmente o fim – da vida, do ensaio, da história. Em outro ensaio, Country Doctor, Smith mostra o trabalho incessante de um médico ru- ral, retratado no atendimento a seus pacientes em uma variada sequência de ações; na última imagem, ele está exausto, recostado, bebendo um café. Mais uma vez, a foto atua como ponto final, marcando tanto o fim da jornada do mé- dico quanto da reportagem em si. É importante assinalar que Smith contou com uma autonomia incomum na edição desses ensaios, pois ele mes- mo diagramava suas fotos; na imensa maioria dos casos, isso fica a cargo dos editores da revista. Enquanto o fotojornalismo liga-se mais à atu- alidade, a um fato ou história ser contado com agilidade, um livro é projeto mais longo, mais pensado e mais livre, no sentido de poder trans- www.sescsp.org.br/ead 15 formar-se à medida que novas descobertas se coloquem para o fotógrafo. Foi o que me aconte- ceu, por exemplo, no livro Portugal, em que uma ideia inicial, bastante restrita (fotografar duas bi- bliotecas portuguesas), acabou por se desdobrar num longo ensaio que contemplou também a arquitetura contemporânea lusitana. Essa mu- dança de planos só foi possível porque eu não estava trabalhando com os compromissos im- postos pelo jornalismo. É importante lembrar, porém, que, mesmo no livro, o fotógrafo não é dono absoluto de seu tra- balho. Ele dividirá a responsabilidade final com todos os profissionais envolvidos na produção editorial e terá de levar em conta questões como a escolha do papel, formato, impressão, custo fi- nal da obra. O posicionamento das fotos ao lon- go do livro é outro ponto importante, muitas ve- zes discutido entre fotógrafo e designer ou chefe de arte: uma estrutura bastante usada é formar pares entre as fotos, colocando-as lado a lado, seguindo uma lógica de semelhança ou de con- traste de forma ou conteúdo. Com o designer, o fotógrafo também decidirá que fotos devem ocupar as páginas duplas ou quantos espaços em branco (“respirações” na sequência) haverá no livro. Outra vertente que hoje está tomando fôlego, na esteira do desenvolvimento de impressoras rápi- das de boa qualidade e custo menor que as grá- ficas tradicionais, é o fotolivro. Ele permite que o fotógrafo assuma integralmente a produção de seu objeto, retirando o aspecto mais “solene” de uma edição convencional, que geralmente conta com um aparato de textos, créditos etc., e dando-lhe todo o controle sobre seu trabalho. www.sescsp.org.br/ead 16 Forma, composição, luz Em 2006, resolvi reunir em livro as fotos urbanas que havia produzido ao longo de minha trajetó- ria. O resultado foi Cidades reveladas, no qual as imagens foram divididas em capítulos segundo os pressupostos da fotografia: composição, for- ma, luz e sombra. Parto, assim, do livro para falar um pouco sobre esses temas. No capítulo “Forma”, apresentamos fotografias em que esse é o elemento mais evidente: uma árvore que projeta no chão sombras que tomam formas geométricas; a escada do Itamaraty vista “ao contrário”, de trás, assumindo o desenho de uma grande sombra elíptica (essa imagem re- força um ponto já comentado: o fotógrafo deve buscar novos ângulos, buscar uma forma dife- rente do habitual, descobrir aquilo que o objeto a ser fotografado pode oferecer e que não havia sido suspeitado). As fotografiasque compõem o capítulo “Com- posição” guardam também esse aspecto de sur- presa. Não sei precisar até que ponto minha for- mação de arquiteto me impele a procurar certo equilíbrio nos elementos da fotografia; muitas vezes, porém, o interesse não é o rigor da sime- tria, mas exatamente sua ruptura. O fotógrafo anda, ajeita-se, aproxima-se e afasta-se até que o campo esteja ocupado da forma que deseja; pode fotografar um momento fugidio ou espe- rar muito tempo até que surja um elemento que deseja – uma pessoa, uma sombra. São esco- lhas feitas caso a caso, para as quais concorrem, como sempre, o acaso e a intuição. Não é inco- mum que a qualidade de uma foto só se revele a posteriori – no tempo das fotografias analógicas, na revelação; hoje, com as digitais, ao serem ob- servadas na tela. Por fim, outro capítulo de Cidades reveladas dis- www.sescsp.org.br/ead 17 cute um ponto essencial: a luz (e a sombra). Uma regra que obedeço é acordar o mais cedo possí- vel e ver o sol nascer. No começo da manhã, a luz resvala na parede dos edifícios, lhes dá relevo, di- ferentemente da luz do meio-dia, que é dura, fria. Escadaria do Palácio do Itamaraty, Brasília, 2002 www.sescsp.org.br/ead 18 Arquitetura A arquitetura foi minha primeira escolha profis- sional e sempre fez parte da minha vida. Vejo-a como um vestígio da evolução do conhecimen- to humano, o resultado concreto dos avanços da técnica e da tecnologia: a pegada que cada época deixa para seus sucessores. Arquitetura e cidade são, em meu trabalho, dois temas corre- latos que correm paralelos e eventualmente se sobrepõem. Edifício Copan, São Paulo, 1995 www.sescsp.org.br/ead 19 Uma importante referência para meu trabalho foi o livro Looking at architecture, do fotógrafo e arquiteto americano George Everard Kidder- -Smith, que apresenta, em ordem cronológica, grandes obras arquitetônicas de todo o mun- do. O livro é uma homenagem à arquitetura, expondo seu caráter de testemunho de época e da capacidade criativa humana por meio de fotografias de grande qualidade – nunca óbvias ou literais. Foi a partir desse livro que decidi re- gistrar, de forma mais sistemática, e à minha maneira – sem a organização rígida de Kidder- -Smith –, construções de importância históri- ca e arquitetônica. Fiz isso em longas séries de viagens, dentro de meu trabalho pessoal ou em projetos comissionados – entre estes, além do livro Patrimônio construído e do Programa Mo- numenta, já mencionados, estão o projeto Tra- ces of peoples, de documentação de cinco cida- des polonesas, e a documentação fotográfica da reforma, construção e restauro dos edifícios do complexo Cidade Matarazzo, de São Paulo, regis- trados ao longo de 7 anos. É claro que há grandes diferenças na forma de lidar com cada um deles. Fotografar a cidade é debruçar-se sobre um organismo vivo, mutável, que surpreende a cada momento; um concerto sem maestro, incontrolável. A arquitetura, por sua vez, já está organizada para ser vista; tem um caráter estático, de permanência. A surpresa, na fotografia de arquitetura, é mais sutil e deve ser revelada pelo fotógrafo, por meio da luz, da atenção ao detalhe, da escolha de um ângulo incomum – muitas vezes insuspeitado até pelo próprio arquiteto. www.sescsp.org.br/ead 20 Preto e branco Descobri a fotografia quando conheci o trabalho de Henri Cartier-Bresson, André Kertész e Ro- bert Frank, e esses três nomes se mantiveram sempre como minhas referências básicas. Essa circunstância explicaria, em parte, minha prefe- rência pela fotografia em preto e branco. Outra explicação, também plausível, é minha formação analógica: o preto e branco permitia o domínio da técnica da revelação do filme, mais simplifi- cada e barata do que a dos filmes coloridos. Isso tudo é fato, mas há um motivo mais impor- tante e de ordem puramente estética na minha escolha: o preto e branco imprime dramaticida- de, estranhamento, “clima” à foto. Ao retirar a cor das imagens, fico mais próximo do objetivo que persigo, que é o de apresentar uma representa- ção particular, pessoal, do mundo real. Costumo recorrer a uma ideia do professor Antonio Can- dido que, a meu ver, se aplica ao ofício do fotó- grafo da forma como o entendo e pratico: inter- pretar o mundo que vemos a nossa volta é um exercício permanente de desfazer a realidade para em seguida refazê-la, transformada. Uso a cor eventualmente, mas costumo deixá-la para trabalhos mais documentais, em que é impor- tante apresentar o objeto fotografado de uma maneira mais literal. Uma curiosidade: com as câmeras analógicas es- colhia-se de antemão se o filme usado seria colo- rido ou preto e branco; hoje a escolha é posterior à foto. Posso fotografar, em princípio, no modo colorido e depois transformar o arquivo colorido em preto e branco. E é o que faço normalmente: uso a opção “cor”, que permite melhor resolução, e, no computador, passo para o preto e branco. www.sescsp.org.br/ead 21 Vida útil do fotógrafo Há uma imagem um pouco romantizada do fotógrafo como aventureiro, quase um atleta, pronto para os maiores malabarismos em sua busca pela foto ideal. Há alguma verdade nisso: sobretudo o fotógrafo que trabalha nas ruas, e não em estúdio, tem de ter disposição física su- ficiente pelo menos para conseguir se deslocar com suas pesadas câmeras e demais acessórios (uma mochila bem desenhada, portanto, faz parte do equipamento básico do profissional). A “vida útil” do fotógrafo – se é que se pode usar essa expressão mais adequada a produtos e coi- sas – dependeria, portanto, desse vigor físico e estaria encerrada tão logo a idade começasse a impor limitações. Não é bem assim. É fácil apontar, ao longo da história, exemplos de fotógrafos que continua- ram a trabalhar com a qualidade de sempre em idades em que muita gente se aposenta. Hen- ri Cartier- Bresson, André Kertész, Robert Frank (como sempre, volto a essa tríade fundamental), Robert Doisneau e Jacques-Henri Lartigue pas- saram dos 80 anos, alguns dos 90, em plena ati- vidade. A segurança técnica, o conhecimento e a intuição apurada ao longo do tempo constituem o grande patrimônio do artista (de qualquer ar- tista, não apenas do fotógrafo). No meu caso, a partir dos 50 anos realizei alguns de meus tra- balhos mais significativos e de maior fôlego. A conclusão: tão importante quanto a boa forma física é a experiência acumulada, o olhar aten- to, as boas ideias e o ingrediente indispensável: a paixão pelo ofício. www.sescsp.org.br/ead 22 A fotografia acessível Assim como o estereótipo do fotógrafo como arrojado aventureiro não corresponde à realida- de, também não é verdade que ele precise estar sempre de posse de equipamentos ultrassofisti- cados. Para realizar um bom trabalho, não é necessá- rio se equipar exageradamente com as últimas novidades (que, aliás, se sucedem a cada ano, tornando obsoletas câmeras perfeitamente ca- pazes de realizar ótimos trabalhos). O que limita a atuação é a falta de boas ideias. Se as tivermos, bastam um velho celular e a compreensão de como fazer bom uso dele. Deixo claro que não romantizo a precariedade nem sou apegado a tecnologias antigas; apenas questiono a corrida incessante por inovações que nem sempre re- presentam, de fato, mudanças na prática ou na qualidade do trabalho. A melhor tecnologia é a que responde à necessidade e ao desejo de ex- pressão do artista. Repito: uma boa fotografia é resultado de um olhar sensível e de uma boa ideia, independen- temente do equipamento usado. Acredito até que uma preocupação técnica excessiva muitas vezes atrapalha. Poderemos criar belas imagens com velhas câmeras ou com celulares, assim como falhar redondamente com uma câmera de último tipo. www.sescsp.org.br/ead 23 Fotografar com o celular Num projeto recente, feito conjuntamente com o fotógrafo José Bassit, fotografei a avenida Pau- lista com um celular. Foi uma experiência nova e interessante paramim, que confirmou que a boa fotografia independe do equipamento. A agilidade e a discrição do celular me permitiram fotografar pessoas e lugares de maneira espon- tânea, o que não é pouco nos dias hoje, em que todos parecem desconfiados e vigilantes, e os entraves burocráticos se multiplicam. No entanto, essa mesma facilidade resulta na produção de um excesso de imagens, no vício de fotografar muito e de ver pouco. Cada vez mais nos deparamos com reflexões sobre os rumos da fotografia: produzida aos milhares, ela corre o ris- co de perder o interesse e o impacto? Creio que há diferentes respostas para essa per- gunta. A mais evidente é que a fotografia não é só para fotógrafos. É legítimo fotografar apenas para guardar momentos sem nenhuma preten- são adicional, e devemos lembrar que a sensa- ção de “banalização” já estava presente mesmo em tempos analógicos, à medida em que a tec- nologia se disseminava e permitia que todos construíssem seu acervo de memórias guar- dadas nos álbuns de família. O celular apenas potencializou esse impulso, e os velhos álbuns foram sendo substituídos por publicações em redes sociais. Num segundo plano, é possível fotografar com qualidade mesmo sem desejar ser profissional, assim como se pode tocar bem um instrumen- to sem pretender ser concertista. Mais que o re- gistro puramente afetivo, a fotografia nesse caso começa a ser uma forma de expressão e, sobre- tudo, uma forma de olhar, uma forma de pensar. Se a ideia é ter mais que um registro para a me- www.sescsp.org.br/ead 24 mória, uma atitude menos voraz é importante. O fotógrafo tem a intenção de descobrir coisas, mas não olha a realidade pela lente o tempo todo. Existe aí um jogo de equilíbrio, um vaivém; é preciso saber olhar para as coisas a olho nu, sem intermediação, para perceber que cena pode se transformar em uma boa foto. Só então é que o observador olha através da câmera e organiza o que vê – e espera o momento certo, em que to- dos os elementos se compõem da forma como deseja. Essa operação, que se torna inconsciente e intuitiva pela prática, é tão necessária na foto- grafia com o celular quanto naquela feita com uma câmera cheia de recursos. Escada rolante na avenida Paulista, São Paulo, 2018 www.sescsp.org.br/ead 25 Conselhos para novos fotógrafos O elemento indispensável, básico, para quem quer se tornar fotógrafo é o entusiasmo pelo ofí- cio. A paixão é o motor que faz com que o fotó- grafo amador ou profissional saia todos os dias, enfrente obstáculos, persiga a imagem, acerte, erre, aprimore-se. Outro elemento fundamental é, como venho re- petindo, conhecimento: das artes em geral, das artes visuais, da fotografia em particular. Todo fotógrafo precisa conhecer a obra dos grandes fotógrafos, estudá-las e entender o contexto em que foram criadas. E precisa também conhecer o trabalho dos fotógrafos contemporâneos, sa- ber o que fazem seus pares, cercar-se de bons profissionais. Cultura, curiosidade, interesse é o que dá consistência e sentido ao trabalho. Evidentemente que a profissão pressupõe al- gum conhecimento técnico, que será apurado pela prática, pela observação do trabalho de ou- tros fotógrafos e pelo estudo. Mas, muitas vezes, por várias limitações, não temos condições de tratar os arquivos digitais ou de revelar nossos próprios filmes. Daí a importância de nos cercar- mos de profissionais competentes, técnicos que se tornam verdadeiros parceiros – tive a sorte de contar com companheiros como Rosângela An- drade, que revelou meus filmes por muitos anos, e Marcos Ribeiro, que hoje cuida de meus arqui- vos profissionais. Por fim, o fotógrafo conta com alguns fatores mais fugidios, difíceis de descrever com obje- tividade, mas sempre presentes. Um deles é a intuição, de que já falei muito, e que é filha do exercício e da sensibilidade. O outro, inescapável, é a sorte – de encontrar um tema que se encai- xe em seu desejo, de escolher o caminho certo, de estar presente no momento mágico em que www.sescsp.org.br/ead 26 tudo acontece. Sei que isso é imponderável. Mas sinto que posso dizer aos novos fotógrafos: estu- dem, olhem, pratiquem. E acreditem na sorte – ela sempre aparece. www.sescsp.org.br/ead 27 Flanando por São Paulo, como sempre Sou um fotógrafo andarilho. E um fotógrafo de São Paulo. Minha relação com a cidade que for- mou meu olhar é intensa e sempre renovada. Para quem sempre busca o inesperado, ela é inesgotável em seus múltiplos cantos de sereia. Meus planos são sempre desviados pelas surpre- sas que se interpõem em meu caminho. Hoje volto ao centro e revejo lugares que fotogra- fei muitas vezes, desde muito tempo. Em 1983, Escadas rolantes, São Paulo, 1983 www.sescsp.org.br/ead 28 passei por um centro comercial na rua 24 de Maio e, curioso, subi por escadas rolantes que- bradas até o último andar carregando meu pe- sado equipamento. Ao me encostar no parapei- to, vi as escadas rolantes abaixo de mim, numa espantosa composição geométrica. Para cap- tá-la, tive de tirar a câmera do tripé e apontá-la para baixo, mas não conseguia olhar pelo visor. Tive sorte: a imagem captou a simetria da cena, preservando seu aspecto de máquina, de engre- nagem. Ali, há 40 anos, percebi que era possível falar da cidade por meio de seus detalhes, sem recorrer aos discursos mais desgastados. Também no centro paulistano fotografei, em 1986, a avenida São João do alto do Edifício Ba- nespa. O sol entre as nuvens refletia-se sobre o asfalto transformando a avenida num facho de luz. Um momento mágico que tive a sorte de presenciar, em uma circunstância – o dia enco- berto – talvez considerada pouco adequada para a fotografia. Essas fotos se tornaram conhecidas e continuam entre minhas preferidas, pela histó- ria por trás delas e pelo resultado. Flano pela cidade dando tanta atenção ao que é novo e preservado quanto ao que está degra- dado ou em ruínas. As coisas abandonadas têm alma. Entre os japoneses há uma palavra – kint- sugi – que designa a beleza das coisas quebradas. Quando um vaso quebra, eles o colam deixando o remendo aparente, ou usando como adesivo um material precioso que destaca e enobrece a rachadura. Para o fotógrafo, as cicatrizes das ci- dades, em sua superposição de vidas e histórias, pelo eterno movimento de destruição e recons- trução, são pontos de luz. www.sescsp.org.br/ead 29 Capela de Santa Luzia, São Paulo, 2018 Este material de apoio é parte do curso Fotografia e Cidade. A formação é gratuita e está disponível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo: www.sescsp.org.br/ead www.sescsp.org.br/ead
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