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Curiosos no Necrotério

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Às dez horas da manhã já se não podia entra facilmente no necrotério, para 
onde fora, sem perda de tempo, conduzido o cadáver de Amâncio, entre um 
cortejo imenso de curiosos. 
Choviam as interpretações, os comentários sobre o fato; todos queriam dar 
esclarecimentos, explicar os pontos mais obscuros do grande sucesso. “A bala 
atravessara-lhe as regiões torácicas e fora cravar-se num osso da espinha”, 
afirmava um homem alto, elegante, de cabelos brancos, cujo ar empantufado 
prendia a atenção dos mais. 
Esse homem, que alguns tomavam por um médico, outros por qualquer 
autoridade policial; outros por um jornalista, outros por um dos professores da 
faculdade, onde estudava o defunto, não era senão o Lambertosa - o ilustre - 
gentleman da casa de pensão da Mme. Brizard. 
E, sempre distinto, sempre viajado, pronto sempre a explicar as coisas 
cientificamente, agitava a bengala afagando a barriga bem abotoada, e de pernas 
abertas, pescoço duro, ia estadeando a sua “grande intimidade” com o célebre 
morto; citando fatos, contando magníficas anedotas que se deram entre os dois. 
Ah! Era um moço de invejável talento! - Boa memória, compreensão fácil e 
gosto cultivado. Para a retórica ainda não vi outro...Não, minto - em 
Londres, em Londres, confesso que encontrei um outro nessas condições!... 
E punha-se a falar de Londres, e passava depois à França, à Itália, à Europa 
inteira, e chegaria até aos pólos, se alguém quisesse acompanhá-lo na viagem. 
Muitos outros dos antigos inquilinos de Mme. Brizard também apareceram 
no necrotério. Lá esteve a pálida 
Lúcia, cheia de melancolia, a fitar o cadáver, em silêncio, com os seus 
belos olhos alterados pelo abuso das lunetas. Agora morava ela com o seu Pereira 
em Niterói, numa casa de pensão de um italiano, educador de cães e macacos. Era 
a terceira que percorria depois da da Rua do Resende. 
Lá esteve, de passagem, o Fontes, com as suas amostras de renda debaixo 
do braço; lá esteve o triste Paula Mendes, para fazer a vontade à mulher, que 
exigira ver a “vítima daquele grande cão!’; lá esteve o Dr. Tavares que parecia 
tomar cada vez mais interesse no “escandaloso assassínio”. E, quem diria? Até lá 
esteve o esquisitão do Campelo que muito dificilmente se abalava com as 
questões alheias. 
Por toda a cidade só se pensava no “crime do Hotel Paris”; os jornais saíam 
carregados de notícias e artigos sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da 
acusação de Amâncio; vendia-se na rua o retrato deste em todas as posições, 
feitios e tamanhos; moribundo, em vida, na escola, no passeio. E tudo ia direito 
para os álbuns, para as paredes e para as coleções de raridades. 
Hortênsia, quando lhe constou o terrível desfecho daquele episódio que, na 
sua fantasia romântica, tomava as proporções de um poema, caiu sem sentidos e

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