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Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados Lima Barreto Ilustrações: Eduardo Schloesser Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, vindo a morrer em 1° de novembro de 1922 na mes- ma cidade. Exerceu a profi ssão de jornalista, o que provavelmente infl uenciou seu estilo fl uente e despojado, muitas vezes criticado pelos parnasianos, cultivadores de formas rígidas. Defensor de uma literatura engajada, foi um dos críticos mais agudos da Repú- blica Velha entre os intelectuais da época, manifestando, em sua obra, infl uências realistas e de narrativas populares cômicas. Prestando homenagem a esse grande escritor da literatura bra- sileira, a Editora Prazer de Ler apresenta, neste livro, alguns dos contos mais famosos do autor, nos quais se pode encontrar sua ironia certeira, que tanto infl uen- ciou os modernistas do início do século XX. !D po up t! Tf mf dj po be pt Referência da Editora - 41903 PdeL_Contos_Selecionados_cc.indd 1PdeL_Contos_Selecionados_cc.indd 1 24/5/2012 18:55:2524/5/2012 18:55:25 Clássicos da Literatura Brasileira PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 1PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 1 3/1/2012 18:51:583/1/2012 18:51:58 PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 2PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 2 3/1/2012 18:51:593/1/2012 18:51:59 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 3PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 3 3/1/2012 18:51:593/1/2012 18:51:59 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. As palavras destacadas de amarelo ao longo do livro sofreram modifi cações com o novo Acordo Ortográfi co. Coordenação Editorial Direitos Reservados à Editora Prazer de Ler Ltda. Rua Neto Campelo Júnior, 37 CEP: 50760-330 - Mustardinha - Recife / PE Fone: (81) 3447.1178 - Fax: (81) 3422.3638 CNPJ: 14.605.341/0001-03 Edição 2012 Q3r Queiroz, Malthus, 1976- Contos selecionados / Lima Barreto ; adaptação: Malthus de Queiroz ; ilustrações: Eduardo Schloesser. – Recife : Prazer de Ler, 2012. 96p. : il. – (Clássicos da literatura brasileira). 1. FICÇÃO INFANTOJUVENIL – PERNAMBUCO. I. Barreto, Lima, 1881-1922. II. Schloesser, Eduardo, 1962-. III. Título. IV. Série: Clássicos da literatura brasileira. CDU 869.0(81)-93 CDD 808.899 282 PeR – BPE 12-049 Ilustrações Eduardo Schloesser Editoras Isabela Nóbrega Márcia Regina Silva Leitura, Adaptação e Revisão Malthus de Queiroz Direção de arte Elto Koltz Diagramação Deborah Lobo Contos Selecionados Lima Barreto Impresso no Brasil ISBN: 978-85-65284-64-6 PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 4PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 4 13/1/2012 16:08:1113/1/2012 16:08:11 Contos Selecionados PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 5PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 5 3/1/2012 18:51:593/1/2012 18:51:59 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 6 PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 6PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 6 3/1/2012 18:51:593/1/2012 18:51:59 7 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto O Homem que Sabia Javanês Em uma confeitaria, certa vez, eu contava ao meu amigo Castro as peças que tinha pregado para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Ma- naus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para obter mais confi ança dos clientes, que chegavam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava isso. O meu amigo me ouvia calado, empolgado, gostando da- quele meu cômico relato, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: — Você tem levado uma vida bem engraçada, Castelo! — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como tenho me aguentado lá, no consulado! — Isso cansa; mas não é disso que me admiro. O que me admira é você ter corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático. — Mas o quê! Aqui mesmo, meu caro Castro, pode-se ar- ranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês! — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? — Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 7PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 7 3/1/2012 18:51:593/1/2012 18:51:59 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 8 — Conta como foi isso. Bebes mais cerveja? — Bebo. Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei: — Eu tinha chegado há pouco tempo no Rio e estava lite- ralmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Commercio o seguinte anúncio: “Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc.” Ora, disse comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu entendesse quatro palavras, ia me apresentar. Saí do café e andei pelas ruas, sempre me imagi- nando professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, tive a ideia de pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fi m de consultar o artigo relativo à Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fi m de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Son- da, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu. A Encyclopédie me dava indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia, e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronúncia fi gurada e saí. Andei pelas ruas, pe- rambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de vez em quando consultava as minhas notas; entra- va nos jardins e escrevia estas imagens na areia para guardá-las bem na memória e acostumar a mão a escrevê-las. À noite, quando pude entrar na casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto engolindo o meu “abc” malaio, fazendo isso com tanta dedicação que, de manhã, o sabia perfeitamente. Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que pudesse evitar me encontrar com o encarregado dos aluguéis dos cômodos: — Senhor Castelo, quando pagará a sua conta? PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 8PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 8 3/1/2012 18:52:003/1/2012 18:52:00 9 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 9PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 9 3/1/2012 18:52:013/1/2012 18:52:01 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 10 Eu lhe respondi então com a mais encantadora esperança: — Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e... Aí o homem me interrompeu: — Que diabo é isso, Senhor Castelo? Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem: — É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é? Oh!, alma ingênua! O homem se esqueceu da minha dívida e me disse com aquele falar forte dos portugueses: — Eu, por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo? Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi com determinação me candidatar ao professorado do idioma oceânico. Escrevi a resposta, passei pelo jornal e deixei lá a carta. Em seguida, vol- tei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fi z grandes progressos nesse dia,não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua ma- laia ou se por ter me empenhado mais na bibliografi a e história literária do idioma que ia ensinar. Depois de dois dias, eu recebia uma carta para ir falar com o doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecan- ga, à Rua Conde de Bonfi m, não me recordo bem que número. Não te esqueças que continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fi quei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder “como está o senhor?” — e duas ou três regras de gramática, todo esse saber sustentado por vinte palavras do vocabulário da língua. Não imaginas as grandes difi culdades que enfrentei para arranjar os custos da viagem! É mais fácil — fi que certo — apren- der o javanês... Fui a pé. Cheguei muito suado; e, com carinho maternal, as antigas mangueiras, que se perfi lavam na alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza... Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltra- PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 10PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 10 3/1/2012 18:52:043/1/2012 18:52:04 11 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto tada, mas não sei por que pensei que nesse mau tratamento havia mais falta de cuidado e cansaço de viver que pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam, e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam in- completos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou malcuidadas. Olhei um pouco o jardim e vi a força vingativa com que a tiririca1 e o carrapicho tinham expulsado as plantas de mais valor paisagístico. Algumas plantas continuavam, porém, a vi- ver com a sua folhagem de cores sem brilho. Bati. Demoraram a abrir. Veio, por fi m, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fi sionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento. Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senho- res de barba se perfi lavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfi s de senhoras, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, aumentadas pelos redondos vestidos balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar diziam-me que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, sonhando, para encanto dos olhos cansados dos velhos desiludidos... Esperei um instante o dono da casa. Demorou um pouco. Um tanto cambaleante, com um lenço na mão, tomando vene- ravelmente o rapé2 de tempos passados, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir embora. Mesmo se ele não fosse o discípulo, era sempre um crime mistifi car aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fi quei. — Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar. — Sente-se, respondeu o velho. O senhor é daqui, do Rio? — Não, sou de Canavieiras. 1 Espécie de erva daninha. 2 Pó extraído de folhas de tabaco, misturadas a outros componentes aromáti- cos, usado para inalação. Houve uma época em que era hábito cheirar o rapé. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 11PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 11 3/1/2012 18:52:043/1/2012 18:52:04 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 12 — Como?, fez ele. Fale um pouco mais alto, que sou surdo. — Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. — Onde fez os seus estudos? — Em Salvador. — E onde aprendeu o javanês?, indagou ele, com aquela teimosia peculiar dos velhos. Não contava com essa pergunta, mas imediatamente ar- quitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tri- pulante de um navio mercante que tinha chegado à Bahia e se estabelecido nas proximidades de Canavieiras como pescador; casou, prosperou, e foi com ele que aprendi javanês. — E ele acreditou? E o físico?, perguntou meu amigo, que até então me ouvia calado. — Não sou lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos lisos, duros e grossos e a minha pele bronzeada podem me dar muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes bem que, entre nós, existe de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaxes, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro. — Bem, fez o meu amigo, continua! — O velho, emendei, ouviu atentamente, considerou de- moradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato fi lho de malaio e perguntou com doçura: — Então está disposto a me ensinar javanês? A resposta saiu sem querer: — Pois não. — O senhor vai fi car admirado, falou o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas... — Não tenho que admirar. Tem-se visto exemplos e exem- plos muito positivos... — O que eu quero, meu caro senhor... — Castelo, me adiantei. — O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando ele abdicou do trono. Voltando de Londres, trouxe um livro para cá em língua esquisita, de que gostava muito. Um hin- du ou siamês foi quem lhe dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Quando meu avô PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 12PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 12 3/1/2012 18:52:043/1/2012 18:52:04 13 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto estava para morrer, chamou meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Quem me deu disse que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarde-o; mas, se você quiser que o destino que o sábio oriental me falou se cumpra, faz com que teu fi lho o entenda, para que a nossa raça seja sempre feliz”. Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele me deu o volume e disse o que tinha prometido ao seu pai. No começo, fi z pouco caso da história do livro. Deixei-o num canto e fa- briquei minha vida. Cheguei até a me esquecer dele; mas, de uns tempos para cá, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que ler esse livro, compreendê-lo, se não quiser que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, preciso enten- der o javanês. Aí está. Calou-se, e notei que os olhos do velho tinham fi cado molhados. Enxugou discretamente os olhos e perguntou se eu queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu instruções e me explicou que havia perdido todos os fi lhos, sobrinhos, só lhe restando uma fi lha casada, de quem a prole, porém, estava reduzida a um fi lho, débil de corpo e de saúde frágil e sem fi rmeza. Veio o livro. Era um volume velho, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha de rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito. Logo informei isso ao velho barão, que, não percebendo que eu tinha chegado aí por causa do inglês, fi cou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Folheei o volume, como quem soubesse magistralmente aquela linguagem confusa, até que afi nal acertamos as condições de preço e de hora, eu me comprometendo a fazer com que ele lesse o tal livro antes de um ano. Pouco depois, dava a minha primeira lição, mas o velhonão foi tão aplicado quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 13PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 13 13/1/2012 16:08:1213/1/2012 16:08:12 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 14 PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 14PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 14 3/1/2012 18:52:043/1/2012 18:52:04 15 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto e a escrever nem sequer quatro letras. Enfi m, levamos um mês com metade do alfabeto, e o Senhor Barão de Jacuecanga não fi cou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia. A fi lha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se inco- modaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo. Mas com o que tu vais fi car assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro fi cou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estaria!”. O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a fi lha do barão) era desembargador, homem bem relacionado e poderoso; mas não hesitava em mostrar diante de todo o mun- do a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava muito contente. Ao fi m de dois meses, tinha desistido da aprendizagem e me pediu que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse ele; não se opunha que outra pessoa o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava o cansaço do estudo e cumpria o encargo. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e empurrei-as ao velhote como sendo do crônicon3. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava encantado, como se estivesse ouvindo palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos! Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfi m, uma vida mansa. Contribuiu muito para isso o fato de ele receber a herança de um parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crer também. Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sem- pre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal linguajar malaio. E esse meu temor foi grande quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fi zesse entrar na diplomacia. Recusei de todas as formas: a minha feiúra, a falta de elegância, o meu aspecto malaio. 3 Crônica comum na Idade Média composta de fatos interessantes. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 15PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 15 3/1/2012 18:52:063/1/2012 18:52:06 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 16 PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 16PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 16 3/1/2012 18:52:083/1/2012 18:52:08 17 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto — Que é isso!, ele respondia. Vá, menino; você sabe javanês! Fui. O visconde me mandou para a Secretaria dos Estran- geiros com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou os chefes de seção: “Vejam só, um homem que sabe javanês — que extraordinário!”. Os chefes de seção me levaram aos ofi ciais e outros funcio- nários, e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: “Então, sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!”. O tal funcionário, que me olhou com ódio, acudiu então: “É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?”. Disse-lhe que não e fui à presença do ministro. A alta autoridade se levantou, colocou as mãos nas ca- deiras, consertou os óculos no nariz e perguntou: “Então, sabe javanês?”. Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. “Bem”, disse o ministro, “o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não presta para isso... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma, e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fi ca agregado ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bale, onde vai representar o Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller e outros!”. Imagine que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava em- pregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios. O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fi zesse chegar ao neto, quando tivesse a idade convenien- te, e me fez uma deixa no testamento. Apliquei-me no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não tinha jeito! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cabeça aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Lin- guistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, e nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam para mim, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês”. Nas livrarias, os gramáticos me consultavam sobre a colocação dos pronomes no tal jargão PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 17PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 17 3/1/2012 18:52:103/1/2012 18:52:10 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 18 das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber, e recusei uma turma de alunos de- sejosos de entender o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commercio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna... — Como, se você não sabia nada?, interrompeu o atento Castro. — Muito simplesmente: primeiro, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas referências de ge- ografi a, e depois citei até não poder mais. — E nunca duvidaram?, perguntou ainda o meu amigo. — Nunca. Isto é, uma vez quase fi co perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei para ir, mas fui, afi nal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — ufa! Chegou, enfi m, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani, e eu parti para Paris. Antes, porém, publiquei no Mensageiro de Bale o meu retrato, notas biográfi cas e bibliográfi cas. Quando voltei, o presidente me pediu desculpas por ter me dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e tinha julgado que, por eu ser americano brasileiro, estava naturalmente indicada para mim a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi. Acabado o congresso, publiquei partes do artigo do Mensageiro de Bale, em Berlim, Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Toda essa brincadeira me custou, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga. Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 18PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 18 3/1/2012 18:52:123/1/2012 18:52:12 19 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto de todas as classes sociais. O presidente da república, dias de- pois, me convidou para almoçar em sua companhia. Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fi m de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia,Melanésia e Polinésia. — É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja. — Olha: se não estivesse contente, sabe o que eu ia ser? — Quê? — Um grande bacteriologista. Vamos? — Vamos. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 19PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 19 3/1/2012 18:52:123/1/2012 18:52:12 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 20 A Biblioteca A Pereira da Silva À medida que ia fi cando mais velho, as lembranças das coisas da casa do pai lhe vinham mais nítidas. Ela fi cava lá pelas bandas da Rua do Conde, por onde passavam então as barulhen- tas “maxambombas”4 da Tijuca. Era um casarão grande, de dois andares, chácara cheia de fruteiras, muitas salas, quartos, povo- ado de parentes próximos e distantes, empregados, escravos; e a escada que servia os dois pavimentos, situada um pouco além da fachada, que tomava toda a largura do prédio, era iluminada por uma grande e larga claraboia de vidros coloridos. O piso era todo de peroba de Campos, com grandes tábuas largas, quase da largura da tora de que nasceram; e as esquadrias, portas, janelas, eram de madeira de lei. Até a cocheira e a garagem eram de boa madeira, e tudo coberto de excelentes e pesadas telhas. Que coisas curiosas havia entre os seus móveis e obje- tos? Aquela mobília de jacarandá-cabiúna com o seu vasto sofá, de três recostos, em forma oval e vastos, que mais parecia uma 4 Espécie de trem urbano antigo. O nome maxambomba é originário do inglês machine pump. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 20PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 20 3/1/2012 18:52:123/1/2012 18:52:12 21 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 21PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 21 3/1/2012 18:52:143/1/2012 18:52:14 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 22 cama que mesmo um móvel de sala; aquelas imensas mesas no canto, pesadas, e ainda mais com aqueles enormes jarros de porcelana da Índia que não vemos mais; aqueles gigantescos retratos dos seus antepassados, ocupando as paredes de alto a baixo — onde andava tudo aquilo? Não sabia... Ele vendera aqueles objetos? Alguns; e dera muitos. Umas coisas, porém, fi caram com o irmão que morrera cônsul na Inglaterra e lá deixara os fi lhos; outras, com a irmã que se casara no Pará... Tudo, enfi m, desaparecera. O que ele estranhava ter desaparecido eram os objetos de prata, as co- lheres, as facas, o coador de chá... E a tesoura das velas? Como ele se lembrava desse utensílio velho, de prata! Era com carinho que se lembrava dele, nas mãos de sua mãe, quando, em certas noites, na sala de jantar, à espera do chá, ele a via cortar a parte queimada das velas do candelabro, enquanto ela, sua mãe, não interrompia a história do Príncipe Tatu, que estava contando... A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada na es- treita cadeira de jacarandá, tendo o corpo reto, colado ao alto encosto, fi cava do lado, com os braços estendidos sobre os braços da cadeira, o tamborete aos pés, olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu olhar de velha e a sua pose de estátua tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs5 nas cadeiras; e as crias e moleques acocorados no piso, ouvindo... Ele era menino... O aparelho de chá, o usual, o de todo o dia, como era lindo! Feito de uma louça negra, com enfeites em relevo e um discreto esmalte muito igual de brilho — donde viera aquilo? Da China, da Índia? E a vasilha de madeira em que a Inácia, a sua ama, lhe dava banho — onde estava? Ah! As mudanças! Antes nunca tivesse vendido a casa paterna... A casa é que conserva todas as lembranças de família. Mesmo perdida, ela se vinga fazendo com que se percam as relíquias familiares que, de algum modo, conservavam a alma e a essência das pessoas queridas e mortas... Ele não podia, entre- 5 Forma com que os escravos tratavam seus senhores e senhoras. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 22PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 22 3/1/2012 18:52:173/1/2012 18:52:17 23 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto tanto, manter o casarão... Foram o tempo, as leis, o progresso... Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu tempo de menino, sem grande valor, hoje valeriam muito... Tinha ainda o bule do aparelho de chá, um escorredor, uma mesa lateral esculpida... Se ele tivesse (insistia) conservado a casa, teria todos hoje, para poder rever o perfi l duro e severo do seu pai, tal qual estava no retrato de Agostinho da Mota, professor de academia; e também a joia que era a sua mãe quando moça, mas que os retratistas da terra nunca souberam pôr na tela. Mas não pôde conservar a casa... A constituição da família carioca foi se modifi cando de forma insensível; e ela era grande demais para a sua. De resto, o inventário, as divisões de bens, a diminuição de rendas, tudo isso tirou-a dele. A culpa não era sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia... Essas recordações lhe vinham sempre e cada vez mais for- tes, desde os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou alegre, elas lhe apareciam. Seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, tenente-coronel do Corpo de Engenheiros e professor da Esco- la Central, era fi lho do sargento-mor de engenharia e também professor da Academia Real Militar que o Conde de Linhares, ministro de Dom João VI, fundou em 1810, no Rio de Janeiro, com o fi m de se desenvolverem entre nós os estudos de ciências matemáticas, físicas e naturais, como diz o ato ofi cial de sua fundação. Desta academia todos sabem como vieram a surgir a atual Escola Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Ver- melha. O fi lho de Carregal, porém, não passara por nenhuma delas; e, apesar de farmacêutico, nunca se sentira atraído pela especialidade dos estudos do pai. Este se dedicara, a seu modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma grande mania... bibliográfi ca. A sua biblioteca a esse respeito era completa e valiosa. Possuía verdadeiros “incunábulos6”, se assim se pode dizer, da química moderna. No original ou traduzidos, lá havia preciosidades. De Lavoisier7, encontravam-se quase todas as memórias, além do seu extraordinário Traité Élémentaire de 6 Obras raras. 7 Químico francês considerado o criador da química moderna. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 23PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 23 3/1/2012 18:52:173/1/2012 18:52:17 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 24 Chimie, “présenté dans un ordre et d’après les découvertes modernes ”8. O velho professor, no dizer do fi lho, não podia pegar nes- se respeitável livro a não ser que fosse tomado de uma grande emoção. — Veja só meu fi lho, como os homens são maus! Lavoisier publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução Fran- cesa, a qual ele sinceramente aplaudiu... Ela o mandou para a guilhotina — você sabe por quê? — Não, papai. — Porque Lavoisier tinha sido uma espécie de coletor ou coisa parecida no tempo do rei. Ele o foi, meu fi lho, para ter di- nheiro com que pagasse as suas experiências. Veja você como são as coisas e como é preciso ser mais do que homem para servir bem aos homens... Além desta pedra preciosa que era a sua menina dos olhos, o Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo Sistema de Filosofi a Química; o Priestley, Expériences sur les différentes espèces d’air; as obras de Guyton de Morveau; o Traité de Ber- zelius, tradução de Hoefer e Esslinger; a Statique Chimique, do grande Berthollet; a Química Orgânica, de Liebig, tradução de Gerhardt — todos livros antigos e sólidos, sendo dentre eles o mais moderno as Lições de Filosofi a Química, de Würtz, que são de 1864; mas, o estado do livro dava a entender que nunca tinham sido consultadas. Havia mesmo algumas obras de alqui- mia, edições dos primeiros tempos da tipografi a, enormes, que exigem ser lidas em altas escrivaninhas, o leitor de pé, com uma vestimenta de monge ou feiticeiro;e, entre os desta natureza, lá estava um exemplar do Le Livre des Figures Hiéroglyphiques, que a tradição atribui ao alquimista francês Nicolau Flamel. Sobravam, porém, além destes, muitos outros livros de natureza diferente, mas também preciosos e valiosos: um exem- plar da Geometria de Euclides, em latim, impresso em Upsal, na Suécia, nos fi ns do século XVI; os Principia, de Newton, não a primeira edição, mas uma de Cambridge muito apreciada; e as primeiras edições da Méchanique Analytique, de Lagrange, e da Géométrie Descriptive, de Monge. Era uma biblioteca rica de obras de ciências físicas e ma- 8 Em tradução livre: “apresendados na ordem e de acordo com as descobertas modernas”. PdeL_Contos selecionados_001a96.indd 24PdeL_Contos selecionados_001a96.indd 24 6/1/2012 20:26:386/1/2012 20:26:38 25 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto temáticas que o fi lho do Conselheiro Carregal, há quarenta ou cinquenta anos, com pena carregava de casa em casa, nos azares das mudanças desde que perdera o pai e vendera o casarão em que ela tinha vivido quieta durante dezena de anos, à vontade. Poderão supor que ela só tivesse obras dessa especia- lidade; mas isso não era verdade. Havia as de outros tipos. Encontravam-se lá os clássicos latinos; a Voyage autour du Monde, de Bougainville; uma Nouvelle Héloise, de Rousseau, com gravuras em aço; uma linda edição dos Lusíadas, em caracteres elzevirianos9; e um exemplar do Brasil e a Oceania, de Gonçal- ves Dias, com uma dedicatória, do próprio punho do autor, ao Conselheiro Carregal. Fausto Carregal, assim era o nome do fi lho, até ali nunca se separara da biblioteca que lhe fi cara como herança. Das coisas que herdara, tudo tinha dado fi m, bem ou mal; mas os livros do conselheiro, ele os guardara intatos e conservados religiosamente, apesar de não os entender. Estudara alguma coisa, era até farmacêutico, mas sempre vivera por fora do que é verdadeiramente a substância dos livros — o pensamento e a absorção da pessoa humana neles. Logo que pôde, arranjou um emprego público que nada tinha a ver com o seu diploma, afogou-se no seu ofício buro- crático, esqueceu-se do pouco que estudara, chegou a chefe de seção, mas não abandonou jamais os livros do pai que sempre o acompanharam e as suas velhas estantes de madeira com madrepérola embutida na superfície. A sua esperança era que um dos seus fi lhos entendesse um dia; e todo o seu esforço de pai sempre se encaminhou para isso. O mais velho dos fi lhos, o Álvaro, ele conseguiu matriculá- -lo no Pedro II; mas, logo no segundo ano, o pequeno se meteu nos namoros, acabou noivo e, mal fez dezoito anos, empregou- -se nos Correios como auxiliar de carteiro, casando-se pouco depois. Arrastava agora uma vida triste de casal pobre, moço, cheio de fi lhos; mais triste era ele ainda porque, não havendo alegria naquele lar, nem por isso havia desarmonia. Marido e mulher puxavam o carro igualmente... 9 Referente à família Elzevir ou às obras produzidas nas suas ofi cinas. A família Elzevir era famosa pela edição de livros nos séculos XVII e XVIII. PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 25PdeL_Contos selecionados_001a096.indd 25 13/1/2012 16:08:1213/1/2012 16:08:12 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 26 O segundo fi lho não quis ir além do curso primário. Empre- gara-se logo em um escritório comercial, fi zera-se remador de um clube de regatas, ganhava bem e andava pelas tolas festas de domingo dos clubes, com umas calças pelas canelas e um cha- péu de palha muito limpo, tendo na fi ta uma bandeirinha idiota. A fi lha se casara com um empregado da Câmara Municipal de Niterói e lá vivia. Restava-lhe o fi lho mais moço, o Jaime, tão bom, tão meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao mundo, ser aquele que estava destinado a ser o inteligente, o intelectual da família, o digno herdeiro do avô e do bisavô. Mas não foi; e ele se lembrava agora como recomendava sempre à mulher, nos primeiros anos de vida do caçula, quando ia para a repartição: — Irene, cuide bem do Jaime! Ele é que vai ler os papéis do meu pai. Porque o pequeno, quando criança, era tão doentinho, tão magro, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que o pai temia que se fosse com ele a sua última esperança de um herdeiro capaz da biblioteca do conselheiro. Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos doze anos; e a surpresa daquele fi lho alegrava-lhe muito, mas tinha deixado a mãe inquieta. Pelos seus quatro anos de idade, Fausto Carregal já tinha podido ver o desenvolvimento dos dois outros fi lhos homens e queria muito ver qualquer um deles entender, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô, que jaziam limpos, trata- dos, embalsamados, nos jazigos das prateleiras das estantes de madeira, à espera de uma inteligência, descendente dos seus primeiros proprietários, para de novo fazê-los voltar à completa e total vida do pensamento e da atividade mental produtiva. Certo dia, lembrando-se de seu pai e depositando no seu fi lho caçula as esperanças, Fausto Carregal considerou que, apesar do amor de seu progenitor à Química, ele nunca o vira com copos graduados ou com vaso para destilações. Eram só livros que ele procurava. Como os velhos sábios brasileiros, seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita com as suas mãos, ele mesmo... O seu fi lho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o queria PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 26PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 26 3/1/2012 18:52:173/1/2012 18:52:17 27 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto 10 Dispositivo, usado para efetuar aquecimento de soluções em laboratórios, aperfeiçoado por Robert Wilhelm Bunsen. com o maçarico, com o bico de Bunsen10, com a baqueta de vidro, com o copo de laboratório... — Irene, tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará descobertas. Sua mulher, entretanto, fi lha de um clínico que tivera fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo por essas coisas. A vida, para ela, se resumia em viver o mais simplesmente pos- sível. Nada de grandes esforços, ou mesmo de pequenos, para se ir além do comum de todos; nada de escaladas, de subidas; tudo pé no chão, muito aqui embaixo... Viver, e só! Para que sabedoria? Para que fama? Quase nunca davam dinheiro e quase sempre desgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus fi lhos fossem além do ler, escrever e contar; e isso mesmo para arranjar um emprego que não fosse braçal ou pesado. O Jaime cresceu sempre muito meigo, muito dócil, muito bom; mas com ideias estranhas. Implicava com uma vela acesa em cima de um móvel porque pareciam fl ores que vira em torno de um defunto, na vizinhança; quando trovejava fi cava a um canto calado, com medo; o relâmpago fazia-o tremer de medo, e, logo após, ria de um modo estranho... Não era, contudo, doente e com o crescimento, até adquirira certo vigor. Havia noites, porém, em que tinha uma espécie de ataque, seguido de um choro incontrolável, uma coisa inexplicável que passava e voltava sem causa nem motivo. Quando chegou aos sete anos, o pai logo quis pôr-lhe a cartilha na mão, pois vinha notando com satisfação a curiosidade do fi lho pelos livros, pelos desenhos e fi guras que os jornais e revistas traziam. Ele os contemplava horas e horas, absorvido, fi xando nas gravuras os seus olhos castanhos, bons, leais... Pôs-lhe a cartilha na mão: — “A-e-i-o-u”— diga: “a”. O pequeno dizia: “a”; o pai seguia: “e”; Jaime repetia: “e”; mas, quando chegava a “o”, parecia que lhe invadia um cansaço mental, entediava-se de repente, não queria mais atender, não obedecia mais ao pai e, se este insistia e brigava, o fi lho desa- tava a chorar: PdeL_Contos selecionados_001a96.indd 27PdeL_Contos selecionados_001a96.indd 27 6/1/2012 20:26:386/1/2012 20:26:38 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 28 — Não quero mais, papaizinho! Não queromais! Consultou médicos amigos. Aconselharam-no a esperar que a criança tivesse mais idade. Aguardou mais um ano, du- rante o qual, para estimular o fi lho, não parava de recomendar: — Jaime, você precisa aprender a ler. Quem não sabe ler, não arranja nada na vida. Foi em vão. As coisas passariam como da primeira vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente, um velho empre- gado público aposentado, na intenção de despertar inteligência no fi lho, o mínimo para ler e escrever. O professor começou com toda a paciência e insistência; mas a criança, que era incapaz de ódio até ali, perdeu a doçura, a meiguice com o professor. Era falar no nome, e se o pai não estivesse presente, ele perdia a cabeça em insultos, em piadas maliciosas ao físico e às maneiras do bom velho. Cansado, o antigo burocrata, ao fi m de dois anos, despediu-se tendo conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma coisa. Carregal pensou ainda um remédio, mas não encontrou. Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um caso excep- cional; era um caso mórbido esse de seu fi lho. Se houvesse um remédio não existia aqui; só na Europa... O pequeno não aprendia bem, nem mesmo ler, escrever, contar!... Oh! Meu Deus! A conclusão lhe chegou sem choque, sem nenhuma violên- cia; chegou de forma calma, mansa, pé ante pé, devagar, como uma conclusão fatal que era. O velho Carregal tinha o hábito de fi car na sala em que estavam os livros e as estantes do pai, lendo, pela manhã, os jornais do dia. À medida que os anos se passavam e os desgostos aumentavam na sua alma, mais religiosamente ele cumpria essa devoção à memória do pai. Chorava às vezes de arrependimento, vendo aquele pensamento todo, ali sepultado, mas ainda vivo, sem que, entretanto, pudesse gerar outros pensamentos... Por que não estudara? Aquela devoção diária dava a ele mesmo a ilusão de que, se não compreendia aqueles livros profundos e antigos, os res- peitava e amava como seu pai, esquecido de que para amá-los sinceramente era preciso compreendê-los primeiro. Os livros são deuses que precisam ser analisados para depois serem adorados; e eles não aceitam a adoração senão dessa forma... PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 28PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 28 3/1/2012 18:52:173/1/2012 18:52:17 29 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 29PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 29 3/1/2012 18:52:193/1/2012 18:52:19 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 30 Naquela manhã, como de costume, fora para a sala dos livros, ler os jornais; mas não os pôde ler logo. Ficou contemplando os volumes nas suas molduras de madeira. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas, as crias, o uniforme do seu avô, os retratos... Lembrou-se mais for- temente de seu pai e viu-o lendo, entre aquelas obras, sentado a uma grande mesa, tomando de vez em quando uma pitada de rapé, que ele tirava de uma bolsa de tartaruga, espirrando depois, assoando-se num grande lenço, sempre lendo, com a cara fechada, os seus grandes e estimados livros. As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve de segurá-las logo. O fi lho mais novo entrava na dependência da casa em que ele havia se recolhido. Jaime não tinha, po- rém, nesse tempo, um olhar de mais curiosidade para aqueles volumes. Cheio dos seus dezesseis anos, forte, não havia nele angústias nem dúvidas. Não era corroído pelas ideias e era bem nutrido pela limitação e pouca largura de sua inteligência. Foi logo falando, sem mais demora, ao pai: — Papai, você me dá dinheiro para eu ir hoje ao futebol? O velho olhou o fi lho. Olhou a sua adolescência estúpida e forte, olhou seu mau formato de cabeça; olhou bem aquele último fruto direto de sua carne e de seu sangue; e não se lem- brou do pai. Respondeu: — Dou, meu fi lho. Daqui a pouco, você terá. E em seguida, como se lembrasse de alguma coisa por causa daquelas palavras, acrescentou com pausa: — Diga a sua mãe que mande buscar para mim na venda uma lata de querosene, antes que feche. Não se esqueça, está ouvindo! Era domingo. Almoçaram. O fi lho foi para o futebol; a mu- lher foi visitar a fi lha e os netos, em Niterói; e o velho Fausto Carregal fi cou só em casa, pois a cozinheira teve também folga. Com os seus ainda fortes setenta anos, o velho Fausto Fernandes Carregal, fi lho do tenente-coronel de engenharia, Con- selheiro Fernandes Carregal, professor da Escola Central, tendo concertado mais uma vez o seu antigo cavanhaque inteiramente branco e pontiagudo, sem pensar duas vezes, sem fraquejar, aos dois, aos quatro, aos seis, ele só, de forma sacerdotal, como PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 30PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 30 3/1/2012 18:52:213/1/2012 18:52:21 31 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto num ritual, foi carregando os livros que tinham sido do pai e do avô para o quintal da casa. Amontoou-os em vários grupos, aqui e ali, jogou petróleo em cada um, muito cuidadosamente, e tocou fogo. No começo a grossa fumaça negra do querosene não deixa- va ver bem as chamas brilharem; mas, logo que o fogo evoluiu, o clarão dele, muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do desespero… PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 31PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 31 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 32 A Doença do Antunes A fama do doutor Gedeão não parava de crescer. Não tinha dia em que os jornais não dessem notícia de mais uma proeza feita por ele, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: “O doutor Gedeão, esse maravilhoso clínico e ex- celente goleiro, acaba de receber um honroso convite do Libertad Football Club, de São José de Costa Rica, para participar da sua partida anual com o Airoca Football Club, da Guatemala. Todo mundo sabe a importância que tem esse desafi o internacional, e o convite ao nosso patrício11 representa uma alta homenagem à ciência brasileira e ao futebol nacional. O doutor Gedeão, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora voltada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, item muito conhecido para a cura dos calos”. O doutor Gedeão vivia mais citado nos jornais que o próprio presidente da República, e o seu nome era encontrado em todas as seções dos diários. A seção elegante de O Conservador, logo ao dia seguinte da notícia acima, ocupou-se do doutor Gedeão da seguinte maneira: “O doutor Gedeão Cavalcanti apareceu ontem no Lírico12 inteiramente no melhor estilo. O milagroso clínico 11 Nascido na mesma pátria. 12 Provavelmente teatro onde se apresentavam óperas. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 32PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 32 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 33 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto saltou de sua carruagem completamente nu’’. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fi quei encantado. A fama do doutor corria assim sem medida. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia a Sra. Lespinasse, para ser o médico da cidade toda, o mestre sábio, o literato de escrita difícil como a de João de Barros, o herói do futebol, o convidado obrigatório dos banquetes diá- rios, o fi lósofo das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos13, o dançador dos bailes de bom gosto, etc., etc. O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de Carnaval, e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no porque era capaz de coisas incríveis. Era procurado principalmente pelas senhoras ricas, de classe média e pobres, e todas elas tinham elegância, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam: — Estou me tratando com o doutor Gedeão. Moças pobres sacrifi cavam os orçamentos domésticos para ir ao doutor Gedeão, e houve muitas que deixavamde comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar a consulta do famoso doutor. De uma, eu sei que foi lá com enormes sacrifícios para curar-se de uma infl amação; e curou-se, embora o doutor Gedeão não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específi co de nome complicado, grego ou egípcio antigo, Anakati Tokotuta. Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original na ciência que empregava. O seu consultório fi cava em uma rua central, bem perto da avenida, ocupando todo um primeiro andar. As antessalas eram mobiliadas com bom gosto e tinham pela parede quadros e mapas de coisas da arte de curar. Havia, no corredor, algumas gravuras de combate ao al- coolismo e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser convidado de fartos banquetes diários, bem servidos. Para conseguir a felicidade de um exame de minutos do 13 Poesia em que as primeiras letras, as do meio ou as do fi m de cada verso formam, em sentido vertical, um ou mais nomes. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 33PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 33 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 34 milagroso clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com antecedência, às vezes de dias. O preço era alto, para evitar que os viciados no doutor Gedeão atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam do famoso clínico. A consulta custava cinquenta mil; mas, apesar do preço tão alto, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria, e toda a cidade o tinha como uma espécie de Nossa Senhora da Aparecida médica. José Antunes Bulhões, sócio principal da fi rma Antunes Bulhões & Cia., estabelecido com armazém de secos e molhados14, lá pelas bandas do Campo dos Cardosos, em Cascadura, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liber- dade o seu bom cozido, cheio de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelha, nem mesmo saborear, do jeito que gostaria, o caldo que tantas saudades lhe dava da sua aldeia portuguesa. Consultou mezinheiros15, curandeiros, espíritas, médicos lo- cais e não havia meio de acabar com aquela insuportável dorzinha que não o permitia comer o cozido, com satisfação e em boa quan- tidade, e tirava-lhe o sabor do caldo que tanto amava e apreciava. Sempre que ia para a mesa, aparecia-lhe a dor, e o cozido, com seus ingredientes, muito cheiroso, cheio de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o, e ele namorava o cozido sem desejo de mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua força e a sua vontade exigiam. Antunes era solteiro e quase virgem. Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão guiado pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha reprimido todas as satisfações da vida, o amor proveitoso ou inútil, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar no dinheiro que lhe vingaria mais tarde da sua dedicação quase exclusiva ao balcão de uma venda dos subúrbios. À mesa, porém, ele sacrifi cava um pouco do seu ideal de riqueza e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas 14 Nome dado aos armazéns antigo, em que produtos de diversos gêneros eram vendidos. 15 Pessoa que prepara remédios caseiros. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 34PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 34 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 35 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto batatas, no bacalhau que, depois de cozido, era o seu prato predileto. Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extra- ordinariamente. Ele se privava do amor; mas que importava se, daqui a anos, ele pagaria para seu prazer, em dinheiro, em joias, em carros, em casamento até, corpos macios, de veludo, cuida- dos, perfumados, os mais caros que houvesse, aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas fi nas, mas que importava se, dentro de alguns anos, ele poderia ir aos melhores teatros daqui ou da Europa, com as mais caras mulheres que escolhesse; mas deixar de comer — isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela luta de quatorze ou quinze ho- ras, servindo ao balcão, discutindo com os caixeiros, suportando desaforos dos fregueses e tendo cuidado com os calotes. Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Gedeão Cavalcanti tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do navio “Minas Gerais”. Leu a notícia toda, e feriu-lhe o fato da informação dizer: “esse maravilhoso clínico e, certamente, um excelente artilheiro...”. Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, con- seguiu se lembrar de que aquele nome já fora lido por ele em outra parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele não o curaria daquela dorzita ali, no estômago? Pensava isso quando entrou na venda o Senhor Albano, empregado na Central, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento. Antunes foi logo lhe perguntando: — Senhor Albano, o senhor conhece o doutor Gedeão Cavalcanti? — Gedeão? — emendou o outro. — Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Albano? — Conheço. — É bom médico? — Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goleiro dos bons... — Então é um bom médico, não é, Senhor Albano? — É. Foi quem salvou a Santinha, minha mulher. Custou caro... Duas consultas... Cinquenta mil cada uma... Some. Antunes guardou a informação, mas não resolveu imediata- mente ir consultar o famoso milagreiro urbano. Cinquenta mil! E se não fi casse curado com uma única consulta? Mais cinquenta... Viu na mesa o cozido, cheiroso, fumegante, repleto de PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 35PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 35 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 36 PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 36PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 36 3/1/2012 18:52:223/1/2012 18:52:22 37 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto nabos e couves, cheio de toucinho e abóbora vermelha, e ele namorando o prato sem poder amá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias e afi nal decidiu descer até a cidade para ouvir a opinião do doutor Gedeão Cavalcanti so- bre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de vez em quando. Vestiu-se o melhor que pôde, preparou-se para suportar as botas, pôs o colete, o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a estrela de brilhantes, que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes negociantes; e se encaminhou para a estação da estrada de ferro. Chegou ao centro da cidade. Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do consultório, despedindo-se dos seus cinquenta mil com a dor do pai que leva um fi lho ao cemitério. Se o doutor pelo menos fosse seu freguês... Mas nada! Aqueles cinquenta não voltariam mais... Sentou-se entre homens bem vestidos e mulheres perfu- madas. Evitou encarar os homens e teve medo das mulheres. Sentia bem a sua condição, não de ser comerciante, mas de só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas — então, sim! — ele poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que alcançaria certamente, dentro de anos, o mais breve possível. Um a um, eles iam entrando para o interior do consultório; e demoravam pouco. Antunes começou a fi car desconfi ado... Diabo! Assim tão depressa? Será que todos teriam pago cinquenta mil? Boa profi ssão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso... Mas não! Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos fi lhos, como ele ia pagar os mestres? Cada um enriquece como pode... Foi, por fi m, à presença do doutor. Antunes gostou do ho- mem. Tinha um olhar doce, os cabelos já grisalhos,apesar de sua fi sionomia moça, umas mãos brancas, brilhantes... O médico perguntou-lhe com uma voz muito suave: — Que sente o senhor? Antunes foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que desaparecia e aparecia, mas que não o deixava nunca. O doutor Gedeão Cavalcanti fez PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 37PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 37 3/1/2012 18:52:243/1/2012 18:52:24 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 38 com que ele tirasse o paletó, o colete, ouvindo-o bem, examinou- -o demoradamente, tanto de pé como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recolocava o seu modesto vestuário. Antunes sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação. Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança: — O senhor não tem nada. Antunes ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou revoltado: — Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil e não tenho nada! Esta é boa! Em outra desta eu não caio! E saiu furioso do consultório que merecia da cidade uma romaria semelhante à da milagrosa Nossa Senhora de Lourdes. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 38PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 38 3/1/2012 18:52:263/1/2012 18:52:26 39 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto A Nova Califórnia Ninguém sabia de onde viera aquele homem. O agente do Correio só pôde informar que atendia pelo nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro ia lá, a um dos limites da cidade, onde o desconhecido morava, carregando um maço de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas complicadas, livros, pacotes... Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço na casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado. — Vou fazer um forno, disse o pedreiro, na sala de jantar. Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga ao saber da construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia — um monte de coisas esquisitas que se mostravam pelas mesas e prateleiras, como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse. O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 39PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 39 3/1/2012 18:52:263/1/2012 18:52:26 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 40 Chico da Tirana, o cocheiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso e olhava a chaminé da sala de jantar fumegando, não deixava de se benzer e rezar um “credo” em voz baixa; e, se não fosse a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria feito um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população. Levando em consideração as informações de Fabrício, o farmacêutico Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para levar avante os seus trabalhos científi cos de forma mais sossegada. Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fi zera sócio da farmácia para viver em paz, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade. De tarde, se o viam passeando pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, pensando diante da penetrante melancolia do cre- púsculo, não era raro que aos “boas-noites” dirigidos a ele se acrescentasse “doutor”. E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo ter piedade de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer. Na verdade, via-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele tratava aquelas crianças negras, tão lisas de pele e de modos tão tristes, mergulhadas na sua moral, e também as brancas, de pele sem brilho, com estrias e áspera, protegidas pela fraqueza dos trópicos. Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não era unicamente porque havia alguém que não tinha grande consideração pelos méritos do novo habitante. Capitão Pelino, professor primário e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e fi liado ao partido do governo, impli- cava com o sábio. “Vocês vão ver”, dizia ele, “quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio”. A sua opinião não se baseava em nada, ou, antes, baseava- -se no seu despeito disfarçado de ver na terra um rival para a PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 40PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 40 3/1/2012 18:52:263/1/2012 18:52:26 41 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 41PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 41 3/1/2012 18:52:283/1/2012 18:52:28 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 42 fama de sábio. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e, mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: “Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘de resto’...” E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga. Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio... Ao entardecer, depois de ler um pouco e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho professor saía vagarosamente de casa, com seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a loja do Bastos para uma conversa rápida. Conversar é um modo de dizer, porque Pelino era econômico nas palavras, limitando-se a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. “Eu asseguro”, dizia o agente do Correio, “que...” Por aí, o tom tornava-se evangélico: “Não diga ‘asseguro’, Senhor Bernardes; em português é garanto”. E a conversa continuava para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava a sua obrigação linguística. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inesperadamente. Foram inúteis as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas como era gene- roso — pai da pobreza —, e o farmacêutico vira numa revista seu nome citado como químico de valor. Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar na farmácia. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não tinha até aí visitado quem quer que fosse, e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível tédio que ele o recebeu e atendeu. Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu para PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 42PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 42 3/1/2012 18:52:303/1/2012 18:52:30 43 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 43PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 43 3/1/2012 18:52:323/1/2012 18:52:32 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 44 recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse: — Doutor, seja bem-vindo.O sábio pareceu não se surpreender nem com a demons- tração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu: — Queria falar com o senhor em particular, Senhor Bastos. O espanto do farmacêutico foi grande. Em que ele poderia ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jor- nais falavam com tanto respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a “mão” descansar no pilão, onde triturava uns produtos. Por fi m, achou, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais demorados ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Fla- mel não demorou a expor: — Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho um nome respeitado no mundo sábio... — Sei perfeitamente, doutor, tenho informado isso aqui, aos meus amigos. — Obrigado. Pois bem: fi z uma grande descoberta, extra- ordinária. Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou: — Uma descoberta... Mas não pretendo comunicar agora ao mundo sábio, compreende? — Perfeitamente. — Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência e me dessem um ates- tado, para proteger a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e... — Certamente! Não há dúvida! — Imagine o senhor que se trata de fazer ouro... — Como? O quê?, fez Bastos, arregalando os olhos. — Sim! Ouro!, disse, com fi rmeza, Flamel. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 44PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 44 3/1/2012 18:52:343/1/2012 18:52:34 45 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto — Como? — O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha? — Com certeza, é preciso que os seus direitos fi quem protegidos, porque... — Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o senhor fará o favor de me indicar. O farmacêutico fi cou um instante pensando, lembrando dos seus conhecimentos e, após uns três minutos, perguntou: — O Coronel Bentes lhe serve? Conhece? — Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui. — Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto. — É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem... — Quê! É quase ateu... — Bem! Aceito. E o outro? Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou um pouco mais consultando a sua memória... Por fi m, falou: — Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece? — Como já lhe disse... — É verdade. É homem de confi ança, sério, mas... — Que é que tem? — É maçom. — Melhor. — E quando é? — Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não recusem as suas assinaturas para autenticar a minha descoberta. — Está certo. Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respei- táveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou ex- plicação para o seu desaparecimento. Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífi ca, em cuja estação, de vez em quando, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque no Rio também se usava. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 45PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 45 3/1/2012 18:52:343/1/2012 18:52:34 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 46 O único crime notado em seu pobre cadastro fora um as- sassinato na ocasião das eleições municipais; mas, notando que o assassino era do partido do governo e a vítima da oposição, o acontecimento nada alterou os hábitos da cidade, continu- ando ela a exportar o seu café e a olhar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara. Mas qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se verifi cou nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio16; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria17; era coisa pior, pecado grave aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do “Sossego”, do seu cemitério, do seu campo-santo. No começo, o coveiro achou que fossem cães, mas, revis- tando bem o muro, só encontrou pequenos buracos. Fechou- -os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continu- ar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade. A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte nasceu antes de todas e certamen- te será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar — os bíblicos, como chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e o positivista Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presi- dente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abuda- la, negociante de armarinho, e o ateu Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebendo nas tavernas. A própria fi lha do engenheiro da estrada de ferro, que vivia menosprezando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso18 trouxesse um príncipe para casar com ela, a linda e metida Cora não pôde deixar de compar- tilhar a indignação e o horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que importava a ela o túmulo de antigos escravos 16 Assassinato do pai ou da mãe. 17 Repartição pública onde se recolhem impostos. 18 Trem. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 46PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 46 3/1/2012 18:52:343/1/2012 18:52:34 47 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto e humildes homens da roça? Em que podia interessar aos seus lindos olhos o destino de tão humildes ossos? Por acaso o furto deles perturbaria o seu sonho de desfi lar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio? Certamente não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que levaria um dia a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Lá, Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e descansando confortavelmente num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de a sua carne ter sido encanto e prazer dos vermes... O mais indignado, porém, era Pelino. O professor escrevera um editorial, praguejando, reclamando, gritando: “Na estória do crime”, dizia ele, “já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangula- mento dos irmãos Fuoco, não se registra um que seja tão grave como o saque às sepulturas do ‘Sossego’”. E a vila vivia atenta. Nas faces não se lia mais paz; os ne- gócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança... O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus. Foram cedo, mas, em breve, cedendo ao cansaço e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verifi cou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso. Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos. Não houve nada de anormal na primeiranoite, nem na segunda, nem na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se preparavam para cochilar, um deles achou ter visto um vulto se espremendo por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí adormecidas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta cacetada nos macabros ladrões que os deixaram PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 47PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 47 3/1/2012 18:52:343/1/2012 18:52:34 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 48 estendidos como mortos. A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fi zeram, disse que juntava os ossos para fazer ouro e o compa- nheiro que fugira era o farmacêutico. Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade! Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fú- nebres se pudesse fazer algum dinheiro, como não seria bom para todos eles! O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do fi lho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não tinha podido fazer a cerca, pensou no muro, que devia proteger sua horta e sua criação. Pelos olhos do proprietário de sítio Marques, que andava há anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no campo verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças... Aqueles ossos que eram ouro poderiam atender às neces- sidades de cada um, satisfazê-las e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico. Com difi culdade, o subdelegado impediu que destruís- sem a farmácia e conseguiu que fi cassem na praça, esperando o homem que tinha o segredo. Ele não demorou a aparecer. Acomodado em uma cadeira, tendo na mão uma pequena bar- ra de ouro que brilhava ao forte sol da manhã, Bastos pediu calma, prometendo que ensinaria o segredo se poupassem sua vida. “Queremos saber agora,” gritaram. Ele então expli- cou que era preciso escrever a receita, indicar o processo, os reativos — trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns che- garam a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 48PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 48 3/1/2012 18:52:343/1/2012 18:52:34 49 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 49PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 49 3/1/2012 18:52:363/1/2012 18:52:36 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 50 pelo resultado. Docilmente, com aquela doçura das multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse. O acontecido chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra coisa. O doutor juntou o que ainda sabia do seu curso e afi rmou que era impos- sível. Isto era alquimia, coisa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma coisa outra era “besteira”. Cora aproveitou o caso para rir da crueldade daqueles indígenas; mas sua mãe, Dona Emitia, tinha fé que a coisa era possível. À noite, porém, o doutor, percebendo que a mulher dormia, pulou a janela e correu em direção ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e foi lá também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao fi lho, saía; a mulher, acreditando enganar o marido, saía; os fi lhos, as fi lhas, os criados — toda a população, sob a luz das estrelas, correu ao satânico ponto de encontro, no “Sossego”. E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos, mexia na podridão das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres, agarradas aos ossos, e enchia o bolso formado pelo vestido levantado. Era o prêmio que colhia, e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o horrível cheiro dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta... O desentendimento não demorou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, empurrões. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur, e até entre as famílias questões surgiram. Unica- mente, o carteiro e o fi lho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: “Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda...” PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 50PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 50 3/1/2012 18:52:393/1/2012 18:52:39 51 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa não estivera lá, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro. Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontran- do ninguém, enchera uma garrafa e fi cou bebendo sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, in- diferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu segredo, sob a cobertura eterna das estrelas. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 51PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 51 3/1/2012 18:52:393/1/2012 18:52:39 Clássicos da Literatura Brasileira Contos Selecionados 52 Como o “Homem” Chegou Deus está morto; a sua piedade pelos homens matou-o. Nietzsche A polícia, como todos sabem, é paternal e compassiva no tratamento das pessoas humildes que dela necessitam; e sempre, quer se trate de humildes, quer de poderosos, a velha instituição cumpre religiosamente a lei. Vem daí o respeito que os seus empregados têm pelos políticos e a procura que esses homens fazem por ela, quase sempre interessados no cumpri- mento das leis que discutem e votam. O caso que vamos narrar não chegou ao conhecimento do público, certamente devido à pouca atenção que lhe deram os repórteres; e é pena, pois, se não fosse assim, teriam encontra- do nele um pretexto para clichês macabros que alegrariam as páginas de suas folhas móveis. O delegado que trabalhou na questão, talvez não tivesse notado o grande alcance de sua obra; e isso é de admirar, da mesma forma que é de admirar que as consequências do fato concordem com os argumentos de um fi lósofo sempre capaz de sugerir, de modo inesperado, novas fi losofi as ao público bem informado. Sabedores de acontecimento de tal importância, não nos era possível deixar de narrá-lo com detalhes, para melhorar a atuação dos delegados passados, presentes e futuros. PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 52PdeL_Contos selecionados_001a88.indd 52 3/1/2012 18:52:393/1/2012 18:52:39 53 Clássicos da Literatura Brasileira Lima Barreto Naquela manhã, a delegacia tinha um movimento fora do normal. Passavam-se semanas sem que houvesse uma simples prisão, uma pequena repreensão. O distrito era calmo. Pobre, não havia furtos; sem comércio, não havia ladrões; sem indús- tria, não havia vagabundos, graças à sua extensão e à vegetação que lá havia; os que não tinham
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