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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA SUPERIOR DE AGRONOMIA LUIZ DE QUEIROZ ECO5024 ECOLOGIA APLICADA: AGRICULTURA, SOCIEDADE E NATUREZA Docente Responsável: Paulo Eduardo Moruzzi Marques TRABALHO FINAL Luísa Ramos Mellis (933481) 01/2024 fabio Destacar A PAISAGEM RURAL CONTEMPORÂNEA: A NOVA FRONTEIRA DO URBANO CONTEMPORARY RURAL LANDSCAPE: THE URBAN NEW FRONTIER Resumo: O espaço rural passou por fortes transformações desde a introdução da mecanização na agricultura, das mudanças nas formas de produção, colheita e armazenamento, mas também o tecido social, as relações trabalhistas, o morar no campo, a paisagem. Estas transformações se intensificaram com a introdução de novas tecnologias, processo este que ainda está longe de se dar por terminado, e alteraram também a fisionomia do campo. A paisagem rural foi completamente alterada em algumas regiões e parece irreconhecível, diluindo as fronteiras do urbano e rural. A perda da identificação destes lugares como rurais, a falta de identidade territorial das pessoas e até a indiferença e desprezo sobre a procedência de produtos agrícolas aumenta a vulnerabilidade deste espaço perante o espaço urbano, onde vive a maioria da população mundial. Ainda que a produção agrícola já não pareça tão dependente de ciclos naturais, a intensificação de eventos naturais extremos nos alerta para o fato de que o espaço rural não está livre de sus efeitos. Mesmo com as oscilações da natureza, o respeito aos ciclos naturais e a vinculação de certos produtos ao território onde são produzidos permite agregar valor e fortalecer a identidade territorial das populações. Palavras-chave: relação urbano-rural, espaço rural, paisagem rural, paisagem natural, organização territorial. Abstract: Rural space has gone through major transformation since the introduction of mechanization in agriculture, the changes in production forms, crops and storage were altered, but also the social tissue, the labor relationships, the living in the countryside, the landscape. These changes have gone even deeper with the introduction of new technologies, a process that is still far from over and that also altered country’s physiognomy. Rural landscape was completely altered in some regions and seems unrecognizable, blurring the distinction between urban and rural. The loss of the identification of these places as rural, the lack of territorial identity of the people and even the indifference and contempt about agricultural products origin increases this spaces’ vulnerability towards urban space, where the majority world population lives. Even if agricultural production doesn’t seem so dependent on natural cycles anymore, the escalation of extreme natural events alerts us to the fact that rural space is not exempt of its effects. Despite nature’s variability, the respect to natural cycles and the attachment of certain products to the territory turns into added value and strengthen population territorial identity. Key-words: urban-rural relationship, rural space, rural landscape, natural landscape, territorial arrangement. fabio Destacar INTRODUÇÃO A paisagem rural, com seus valores culturais e produtivos e seu papel ambiental cada vez mais estratégico, não pode ser negligenciada ou vista apenas como contraponto da paisagem urbana e muito menos como reserva de solo urbanizável. O estudo da paisagem rural revela uma importância que vai além do fundo cenográfico para o desenvolvimento da vida local, da identidade ou autoestima territorial. De paisagens rurais sai o alimento, a água, os minerais e uma parte da energia que abastece a população mundial. Com linguagem e funcionalidade distintas da morfologia e infraestrutura urbana, o meio rural abriga também funções residenciais e produtivas em menor densidade e com maiores possiblidades de resguardar o suporte geológico, as dinâmicas hidrológicas e a biodiversidade, desde que sejam levados em conta nas ocupações. A paisagem rural, antropizada, não é estática, mas baseada na fusão de em elementos vivos, ciclos naturais, culturais, econômicos e tecnológicos. Sua evolução vai deixando marcas físicas (desmatamento, erosão, contaminação, ...), mas também saberes, técnicas, produtos e experiências. Ainda que algumas delas não possam ser chamadas sustentáveis, as práticas consolidadas ao longo dos anos, e que não esgotaram os recursos de que dependiam e criaram padrões de ocupação resiliente e perdurável. Mantiveram-se ao longo de tempo suficiente para criarem uma cultura de práticas agrícolas locais, história e identidade. Na dicotomia cidade e campo, a paisagem urbana sempre foi considerada o futuro e a paisagem rural, o passado. E como a maior parte da população brasileira vive em grandes e médios centros urbanos, como cidadãos urbanos que somos, voltados para o futuro, negligenciamos o estudo deste “longínquo território”, do que consideramos “lavoura arcaica”, tão pitoresca e agradável para finais de semana tranquilos, mas que parece desconectada do cotidiano urbano. É importante compreender as dinâmicas deste tipo de paisagem e ainda mais importante incorporá-las em políticas ambientais e culturais de âmbito municipal, a instância local de administração pública com poder de decisão sobre o território. Conceitos como mudança climática, sanitarismo, segregação social e produção local devem ser incorporado à gestão do território rural. É preciso direcionar a paisagem rural ao futuro, à inovação e à assertividade. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA PAISAGEM O positivismo naturalista define paisagem como suporte geográfico, um conceito exato e objetivo. Mas na etimologia do termo, e em seu conceito mais amplo, a palavra paisagem fabio Destacar fabio Destacar fabio Máquina de escrever Em quais situações? Agronegócio é considerado super moderno. Por outro lado, quais as motivações para essa categorização de "atraso rural" ? fabio Destacar fabio Destacar fabio Máquina de escrever De qual futuro e inovação estamos falando? Faltou caracterizar melhor isso a partir de uma análise crítica sobre o processo de modernização agrícola. expressa a relação do homem com seu território (pays, em francês). Mesmo na Convenção Europeia da Paisagem, a definição objetiva do termo revela a relação direta entre suporte físico e seres humanos. “Paisagem: designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou humanos.” (Conselho Europeu, 2000) Embora paisagem seja uma noção cultural e abstrata, ela não deve ser confundida com critérios de avaliação da paisagem, sempre subjetivos. É uma obra coletiva e, como tal, “toda paisagem, de um modo que lhe é próprio, é relativa a um projeto social”. (Besse, 2014) Portanto, entendemos que todas as paisagens são “uma criação cultural de duas formas: como realidade física moldada pela técnica humana, por um lado, e por outro como fenômeno perceptivo que implica intencionalidade, memória, gosto.” (Le Dantec, 1996) Segundo o filósofo Alain Roger (n. 1936), a arte desnaturaliza a realidade da natureza e a reconfigura (“artializa”) segundo critérios humanos, in situ (alterando o próprio suporte físico) ou in visu (elaborando novas realidades da paisagem em modelos autônomos como pinturas, fotografias e relatos a partir do despertar estético que o olhar nos despertou). "A natureza é indeterminada e apenas a arte a determina." (Roger, 2000). Sendo assim, a natureza seria apenas o “grau zero” da paisagem. Embora o termo paisagem tenha surgido apenas no século XV, com o Humanismo, esta noção já estava presente em Cícero (século I a.C.) na ideia de “Primeira natureza”, relacionada ao ambiente selvagem, domínio dos deuses, como matéria-prima da “Segunda natureza”, o domínio dos homens. No mundo Ocidental, a idealização docampo aparece já entre os gregos (Hesíodo, século VII a.C.) e depois os romanos (Virgílio, século I a.C.), cujas atribuições de virtudes à vida campestre muitas vezes estavam ligadas à objetivos políticos da aristocracia rural, mas foi Cícero quem introduziu aos romanos as principais escolas da filosofia grega e se aprofundou na relação entre homem e natureza. A ideia de “Segunda natureza” indica a natureza reformulada pelo homem. Aplicada ao suporte territorial indica a paisagem antropizada, mas também se aplica ao “hábito”, “Segunda natureza” do ser humano adquirido através da educação. É o produto de desdobramentos de experiências sociais a partir das quais os indivíduos criam disposições duráveis para agir, sentir e acreditar. Esta noção perpassou os séculos da cultura ocidental e chegou até nós através de autores como Robbes (século XVII), Rousseau e Kant (século XVIII), Marx e Elias (século XIX), Adorno e Marx (século XX), entre muitos outros. Norbert Elias (1897-1990), em “O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização” define bem esta transição entre estágios selvagens e aculturados dos seres humanos: “entre os mais primitivos, a esfera natural é ainda uma zona de perigo, repleta de medos que os mais civilizados já não sentem.” (Elias, 1994, p. 230) E o medo, para ele, é o motor que faz com que seres humanos, instintivos e egoístas em sua natureza íntima, aceitem submeter- se à longa cadeia social de interdependências funcionais. Para Elias, isso afeta até a relação do homem com a natureza externa a ele: “Isso tem uma importância decisiva para o que deixa ou não de ser percebido. A maneira como se sentia a ‘natureza’ foi afetada de modo fundamental, ainda devagar nos fins da Idade Média e cada vez mais depressa a partir do século XVI, pela crescente pacificação das áreas habitadas. Só então as florestas, campinas e montanhas foram deixando de ser zonas altamente perigosas, onde a ansiedade e o medo estavam constantemente presentes na vida do indivíduo.” (Elias, 1994, p. 230) Elias, ao descrever o processo civilizador da humanidade a partir do final da Idade Média, descreve também o surgimento da paisagem como um contexto aprazível e pouco ameaçador. “Ao se adensarem a rede de estradas, bem como a interdependência social em geral, os barões salteadores e os animais de presa vão desaparecendo; as florestas e o campo deixam de ser o cenário de paixões desenfreadas, de perseguição selvagem entre homem e animal, de alegrias e medo alucinantes; moldando-se pelo entrelaçamento de atividades pacíficas — como a produção de bens, o comércio e o transporte —, a homens pacificados aparece uma natureza igualmente apaziguada, que eles podem enxergar de uma nova maneira.” (Elias, 1994, p. 230) Surge também a paisagem rural e a ideia de território e natureza domesticados pelos homens, aos que o olhar atribui valor. “Ela se torna — dada a crescente importância que o olho adquire como mediador do prazer, ante a gradativa moderação das emoções —, em alto grau, objeto de prazer visual. Além disso, as pessoas — mais exatamente, os citadinos, para quem a floresta e o campo não são o ambiente da vida diária, mas locais de relaxamento — tornam-se mais sensíveis e começam a ver o campo aberto de forma mais diferenciada, num nível que antes lhes era vedado pelo perigo e pelo entrechoque de paixões imoderadas. Sentem prazer na harmonia de cores e linhas, tornam- se sensíveis à beleza da natureza, têm os sentimentos afetados pelos matizes e formas mutáveis das nuvens e o jogo de luzes nas folhas de uma árvore.” (Elias, 1994, p. 230) PAISAGEM RURAL Estaria resolvida assim a questão da fruição da paisagem rural se não fosse pelo simples fato de que seu propósito, em última instância, não é o deleite visual do citadino. Aliás, o cidadão urbano tem muitas vezes uma visão estereotipada desta paisagem, de um idílio campestre idealizado que muitas vezes já não corresponde à realidade produtiva do campo. Mesmo para o cidadão rural pode ter distorções na percepção da paisagem rural. Para Alain Roger, a proximidade da terra é proporcional ao distanciamento da noção de paisagem, e para o camponês, que tem uma relação produtiva e simbiótica com a terra, a perspectiva de fruição estética é distorcida. Ou seja, para Roger, os camponeses entendem de produção e preservação ambiental, mas, ao contrário dos cidadãos urbanos, a paisagem rural para eles não tem valor intrínseco. Mais do que isso, Roger diz que para o camponês contemporâneo, a paisagem rural contemporânea não é vista desde um ponto de vista próprio, mas é produto de uma recultura, de como a paisagem rural é vista pela cultura urbana e difundida pelos meios de comunicação (globais). Neste sentido, Roger defende que os neorrurais pouco ajudam a situação, porque não são co-criadores da paisagem rural, mas seus consumidores. Se instalam aí para viver, mas o fato de não trabalharem a terra só os distancia cada vez mais de seus processos e do ambiente rural que buscavam originalmente. O filósofo Jean-Marc Besse não trata especificamente das paisagens rurais, mas das paisagens vernaculares num sentido mais amplo e espontâneo. Para ele, elas são uma concepção “local” do território, espaço de vida das comunidades, regido e regulado por hábitos que buscam o não esgotamento do suporte produtivo. A organização do espaço segue valores morais e políticos da comunidade, de como manter relações estruturadas e duradouras entre membros e não apresenta espaços nitidamente desenhados. A paisagem vernacular não está estática e nem morta, presa a tradições, mas é fruto da adaptação mútua e ativa em função de vivermos em harmonia com o mundo natural. É uma zona de contato entre homem e natureza, dominada pela incerteza, que revela adaptabilidade e continuidade temporal. A paisagem para Besse é o aspecto visível de como coexistem e se entrelaçam as paisagens vernacular e política, embora com ritmos espaciais e temporais diferentes. As paisagens políticas são a representação da visão de mundo das classes dominantes, “naturalizando” a dimensão desigual das relações sociais através da relação imaginária com a natureza. Besse acredita que os sistemas locais tendem a desaparecer ao serem integrados às redes globais e que o capitalismo transforma o território em mercadoria e espetáculo. Assim, o hábitat contemporâneo (urbano, global) se estende inexoravelmente sobre o local (comunitário). Ele alerta para a possibilidade de que o estranhamento às novas paisagens não se deva a perda de raízes ou identidade, mas pela ausência de categorias intelectuais e estéticas para representar esta nova realidade. AGRICULTURA FAMILIAR Já o russo Alexander Chayanov (1888-1937) tinha ideias muito claras do mundo que queria, tanto estéticas quanto intelectuais. E o futuro do território agrícola que delineamos atualmente é muito diferente do imaginado por ele, para quem a agricultura se caracterizava pela heterogeneidade e a unidade de exploração doméstica camponesa era imprescindível. Segundo Ricardo Abramovay (Abramovay, 1988), a agricultura que ele imaginava em “Voyage de Mon Frère Alexis au Pays de l’Utopie Paysanne” (1920) já não era uma atividade fabio Destacar fabio Máquina de escrever Onde estaria o contraponto a essa visão? Como as comunidades rurais resistem, lutam e mantém suas tradições no campo? Haverá mesmo seu desaparecimento? Em quais situações? fabio Destacar fabio Máquina de escrever Será que essa forma de enxergar o rural é mesmo tão distante da realidade imposta à agricultura camponesa contemporânea? mecânica, mas de labor cuidadoso de jardins. Moscou era tomada por eles, numa espécie de conquista da metrópole pelo campo. Embora Chayanov tivesse sido educado em universidades europeias, ele era um utopista russo vivendo no apogeu do Utopismo Russo, um movimento visionário e futurista por um lado, mastambém nacionalista, que pregava a preservação das tradições e da especificidade russa contra os ataques do universalismo ocidental. Apesar disso, Chayanov era um pragmático que entendia que a economia agrícola está intrinsecamente submetida à economia de mercado, mas que os processos agrícolas funcionavam melhor na articulação das pequenas unidades familiares do que nas grandes empresas estatais idealizadas pelos marxistas, com produção agrícola em grande escala. Ele defendia uma agricultura comunitária, que não se restringia apenas a cooperativas, mas implicava também o vínculo dos trabalhadores com o território, sua permanência no campo e sua dinamização com facilidades urbanas. Chayanov é uma referência para o estudo da relação entre agricultura e desenvolvimento e na discussão dos laços rural-urbano (com protagonismo do rural). Sua contribuição é fundamental para entender o agricultor não mais como massa, mas como sujeitos criando sua própria existência. A paisagem rural chayanoviana é dinâmica, povoada, constantemente elaborada desde uma perspectiva local, com seus ritmos e suas especificidades, com núcleos familiares que vão variando com o tempo e deixando marcas no território, mas mantendo suas tradições e aperfeiçoando a técnica. O conceito de unidade agrícola familiar desde Chayanov não está baseado diretamente na dimensão do estabelecimento rural. A principal distinção se dá no fato de que na agricultura familiar o trabalho assalariado não predomina e que as decisões e organização do trabalho seguem critérios individuais. Paulo Eduardo Moruzzi Marques analisa a agricultura familiar em países (especialmente França) onde há políticas públicas de apoio aos agricultores familiares e como e elas se traduzem em melhor saúde econômica e democrática. No caso brasileiro, ele distingue duas importantes correntes de agricultura familiar e que perseguem objetivos distintos: a agricultura familiar consolidada (pequenas unidades com inserção no mercado) e a agricultura familiar periférica (geralmente surgida de uma situação de precariedade familiar e voltada inicialmente para subsistência). Em qualquer um dos casos, Moruzzi Marques defende a agricultura familiar baseando-se na noção da multifuncionalidade da agricultura e na ideia de que os alimentos, e portanto a produção de alimentos, é um elemento fundamental da identidade nacional. “Em geral, a ideia de fortalecimento da agricultura familiar se inscreve na crítica às consequências sociais e ambientais desastrosas da modernização conservadora da agricultura brasileira.” (Moruzzi Marques, 2004, p. 17) Ele também defende que o suporte técnico de políticas públicas de apoio à agricultura familiar deve respeitar os saberes locais e potencializá-los, observar a organização social e criar sinergias locais. “Esta reinvenção de valores transforma o espaço rural em lugar propício para lutar contra a exclusão social. A agricultura familiar, polivalente e diversificada, constituiria um eixo para múltiplas iniciativas destinadas à revalorização do território, favorecendo notadamente a criação de oportunidades locais e a participação política. Esta perspectiva reforça, principalmente, os aspectos qualitativos do desenvolvimento. Desta maneira, aproxima-se da noção da multifuncionalidade da agricultura, na qual a ideia de eficácia econômica incorpora, vigorosamente, temas associados à conservação da biodiversidade, à qualidade ambiental, ao equilíbrio territorial e à coesão social.” (Moruzzi Marques, 2004, p. 26) DISCUSSÃO Em muitos lugares do planeta a paisagem rural passa por profundas modificações e já não tem nada de idílica. E onde ainda conserva sua autenticidade, talvez não o faça por muito mais tempo. Não importa o que façam os habitantes da cidade para manter este “seu” reduto campestre intocado, ela está em um lento processo de agonia, de pasteurização e de perda de autenticidade. Talvez porque o controle das variáveis naturais do campo visando a máxima produtividade o transforme em não-campo. Talvez porque não haja população rural, e portanto mão de obra suficiente para trabalhar. Ou, talvez porque o modelo empresarial do campo contemporâneo não seja adequado aos camponeses. O fato é que a pouca população rural residente no campo e que trabalha a terra segundo critérios próprios está desaparecendo. Talvez ainda não tenhamos modelos intelectuais e estéticos para compreendê-la, como aventou Besse. Esta perda de identificação do homem com o território tem desdobramentos individuais importantes (desarraigamento, alienação, descuido) que, somados, provocam a perda do espírito de comunidade, da noção de pertencimento e até de amor, cuidado e respeito por um território. Não é um fenômeno local, embora incida com diferentes intensidades pelo mundo, segundo diferentes paisagens. Onde as populações estão mais arraigadas ao território, a luta pela sua defesa é ferrenha. Se consideramos que a paisagem é a representação de uma realidade, de um projeto coletivo de uma sociedade, nossa atual paisagem agrícola espelha a vontade política de uma parte muito pequena da sociedade, provavelmente desvinculada do território e dos hábitos locais. Estaríamos em uma encruzilhada entre decidir se preferimos o cenário idealizado da fabio Destacar fabio Máquina de escrever Quais os limites dessa tese? A diversidade e o campesinato não resistem? fabio Destacar fabio Máquina de escrever Apenas aqui um breve contraponto à conclusão de extinsão do campesinato, mas pouco explorado. paisagem rural capitalista ou a opressão da realidade desta paisagem, como retrato de relações sociais desequilibradas e, ainda pior, de como tratamos nosso suporte físico natural. Alguns autores qualificam nossa era como Período Capitaloceno (Andreas Malm, 2009), a partir da ideia de Paul Crutzen (1995) de que vivíamos uma era geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra. O Capitaloceno considera a desigualdade das relações políticas e econômicas no contexto do capitalismo global, que considera a natureza e os território como mercadorias passíveis de apropriação, controle e comércio. O paradoxo desta apropriação está no próprio espírito do capitalismo. Segundo Luc Boltanski e Ève Chiapello, a dinâmica capitalista não está interessada no acúmulo de riqueza (que pode até prejudicar a liquidez), mas em reinvestir perpetuamente capital no circuito econômico. O enriquecimento é avaliado em termos contábeis (lucro acumulado), dissociado da riqueza material. O caráter abstrato e o instinto de auto-preservação (perpetuamente ameaçada por outros capitalistas) contribuem ao desejo de acumulação infinita. De modo que a dinâmica do espírito do capitalismo é de consumir sempre mais, e muito além de necessidades, sem nunca encontrar saciedade.(Boltanski, L. e Chiapello, 2009) E assim está o planeta, territórios e naturezas sempre consumidos, nunca vivenciados, poucas vezes respeitados. Além disso, Boltanski e Chiapello explicam que, num mundo onde a acumulação capitalista exige mobilização de grande número de pessoas sem chance de lucro, a maioria da população vive submetida voluntariamente ao trabalho assalariado, sem dispor de meios de produção e dependente de decisões alheias. Os assalariados perderam controle do resultado do trabalho e possibilidade de vida não subordinada. Historicamente, o trabalho autônomo era representado pela agricultura familiar. (Boltanski, L. e Chiapello, 2009, p. 38) Num mundo onde a agricultura é cada vez mais extensiva, produtivista, onde o homem é apenas um trabalhador assalariado sem poder de decisão, todas as consequências ambientais são desprezadas. Em caso de esgotamento de recursos, a terra é vendida e novas fronteiras agriculturáveis são conquistadas. Para Boltanski e Chiapello, a crítica atribui ao capitalismo a opressão, a miséria e a desigualdade, também o desencanto, a inautenticidade,o egoísmo e a destruição dos vínculos sociais e da solidariedade comunitária. A crítica ao sistema capitalista surge da indignação, um primeiro impulso pessoal, emotivo e, depois, se transforma em reflexão para sair de particularismo e transformar-se em bem comum, passível de universalização. E se desenvolve basicamente sobre dois eixos: crítica social e crítica estética. Para Boltanski e Chiapello, a crítica estética se centra na perda de sentido e, em especial, a perda do sentido do belo e do grandioso, decorrente da padronização e da mercantilização generalizadas, características que atingem não só os objetos cotidianos, mas também as fabio Destacar fabio Máquina de escrever Novamente, quais realidades apresentam evidentes contrapontos a esse modelo destrutivo de modernização do rural capitalista? obras de arte (mercantilismo cultural da burguesia) e os seres humanos. A crítica social do sistema capitalismo diverge da crítica estética segundo os autores e se volta contra ela, contra a vaidade de artistas. Por mais que o sistema capitalista busque justificativas para continuar se aprimorando, não é capaz de produzir autenticidade e identidade territorial, uma vez que tende à acumulação virtual e abstrata. E a paisagem se não é a expressão estética coletiva de um sistema social não existe. “Si la notion de paysage mérite d’être honorée, de n’est pas seulement parce qu’elle se situe de façon exemplaire, à l’entrecroisement de la nature et de la culture, des hasards de la création et de l’univers et du travail des hommes, ce n’est pas seulement parce qu’elle nous rapelle de cette terre, la nôtre, que nos pays sont à regarder, à retrouver, qu’ils doivent s’accorder à notre chair, gorger nos sens, répondre de la façon la plus harmonieuse qui soit, à notre attente. Le monde (et donc notre existence) vaut la peine d’être parcoru, aimé, salué, comme reconnu.” (Sansot, 1983) CONCLUSÃO A agricultura de unidades familiares, além de preservar a heterogeneidade e diversidade produtiva e social, também são responsáveis fixação da população rural no campo, e pela criação de paisagens e identidade territorial. Seu fortalecimento é de interesse para toda a população (rural e urbana) e deve ser fomentado através de políticas públicas. A gestão da produção respeitando os ciclos naturais, a escolha dos cultivos, os saberes desenvolvidos a partir das condicionantes territoriais e técnicas, e que depois são transmitidos entre gerações, e até mesmo o fato da residência vinculada ao local de trabalho são criadores de uma paisagem rural autêntica e muito significativa. Estas práticas são consolidadas ao longo dos anos, cuidando-se para que não esgotem os recursos naturais dos quais dependem. Elas criam padrões de ocupação resiliente e perdurável, respeitando o meio- ambiente. Esta paisagem é importante para criação de identidade territorial e vinculação das populações em determinada região. Até mesmo a venda de produtos agrícolas pode se beneficiar do fortalecimento da procedência dos alimentos, como um valor agregado. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, Ricardo. O Admirável Mundo Novo de Alexander Chayanov. Estudos Avançados USP, n. 321988. BESSE, Jean-Marc. O Gosto do Mundo: Exercícios de Paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. BOLTANSKI, L. E CHIAPELLO, È. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo, 2009. CONSELHO EUROPEU. Carta Europeia da Paisagem. Florença, 2000. Disponível em: fabio Destacar fabio Máquina de escrever Todo o texto não suporta essa conclusão, mas o oposto, reafirmando a extinção sumária da agricultura familiar. fabio Destacar fabio Máquina de escrever Em quais condições é possível afirmar essa tese? O texto não traz esses exemplos. https://rm.coe.int/coermpubliccommonsearchservices/displaydctmcontent?ocumentid=09000 016802f3fb7.Acesso em: 24/8/2020. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Formação do Estado e Civilização. Trad.: R.J. Ribeiro. São Paulo: Jorge Zahar Editores, 1994. LE DANTEC, Jean Pierre (ED.). Jardins et Paysages: Textes Critiques de L’Antiquité à Nos Jours. col. Texte ed. Paris: Larousse, 1996. MORUZZI MARQUES, Paulo Eduardo. Concepções em Disputa na Formulação das Políticas Públicas de Apoio à Agricultura Familiar: uma Releitura Sobre a Criação do PRONAF. Raízes - UFCG, v. 22, n. 22004. ROGER, Alain. Breu Tractat del Paisatge: Història de la Invenció del Paisatge i Denuncia dels Malentesos Actuals sobre la Natura. Barcelona: La Campana, 2000. SANSOT, Pierre. Variations Paysagères: Invitation au Paysage. Paris: Payot, 1983. 163 p. fabio Máquina de escrever Bom texto com forte vínculo teórico da pesquisa (sobre a paisagem) com os textos, teorias e discussões abordados ao longo da disciplina. Contudo, o texto está carregado de um fatalismo intransigente que não permite chegar à conclusão proposta de realidades culturais diversificadas e respeitosas do território rural. Seria importante trazer para a discussão exemplos trabalhados e vistos em aula de experiências e práticas de movimentos sociais e agroecológicos que resistem e evidenciam o outro lado da moeda de quando tratamos de desenvolvimento rural na sociedade capitalista. Os estudos da paisagem pela perspectiva da ecologia histórica de Willian Balée pode ser útil para auxiliar nessa abordagem.
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