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CAMINHOS-PELA-ÁGUA-EM-ITAPIÚNA-MEMÓRIAS-SOBRE-A-BARRAGEM-DO-AÇUDE-CASTRO-E-OS-IMPACTOS-SOCIOAMBIENTAIS-1980-2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ 
FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL 
MESTRADO INTERDISCIPLINAR DE HISTÓRIA E LETRAS 
 
 
 
LÁDINA GILDO DO NASCIMENTO 
 
 
 
 
 
 
CAMINHOS PELA ÁGUA EM ITAPIÚNA: MEMÓRIAS SOBRE A BARRAGEM DO 
AÇUDE CASTRO E OS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS (1980-2019) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
QUIXADÁ – CEARÁ 
2021 
 
 
LÁDINA GILDO DO NASCIMENTO 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAMINHOS PELA ÁGUA EM ITAPIÚNA: MEMÓRIAS SOBRE A BARRAGEM DO 
AÇUDE CASTRO E OS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS (1980-2019) 
 
Dissertação apresentada ao Mestrado 
Interdisciplinar em História e Letras da 
Faculdade de Educação, Ciências e Letras do 
Sertão Central, da Universidade Estadual do 
Ceará, como requisito parcial para a obtenção 
do título de Mestre em História e Letras. Área 
de Concentração: Cultura, Memória, Ensino e 
Linguagens. 
 
Orientador: Prof. Dr. Edmilson Alves Maia 
Júnior. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
QUIXADÁ- CEARÁ 
2021 
 
 
 
 
 
 
 
 
LÁDINA GILDO DO NASCIMENTO 
 
 
CAMINHOS PELA ÁGUA EM ITAPIÚNA: MEMÓRIAS SOBRE A BARRAGEM DO 
AÇUDE CASTRO E OS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS (1980-2019) 
 
Dissertação apresentada ao Mestrado 
Interdisciplinar em História e Letras da 
Faculdade de Educação, Ciências e Letras do 
Sertão Central, da Universidade Estadual do 
Ceará, como requisito parcial para a obtenção 
do título de Mestre em História e Letras. Área 
de Concentração: Cultura, Memória, Ensino e 
Linguagens. 
 
Aprovada em: 30 de junho de 2021. 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
___________________________________________ 
Prof. Dr. Edmilson Alves Maia Júnior. (Orientador) 
Universidade Estadual do Ceará (FECLESC/UECE) 
 
 
Prof. Dr. Sander Cruz Castelo 
Universidade Estadual do Ceará (FECLESC/UECE) 
 
 
 
____________________________________________ 
Prof. Dra. Kênia Sousa Rios 
Universidade Federal do Ceará – UFC. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho à Cícera, minha mãe. Às 
mulheres e homens do campo. 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
À natureza, que representa Deus em minha vida, por canalizar as energias necessárias durante 
a construção deste trabalho. 
À minha mãe, Cícera – meu porto seguro e minha amiga – pelos ensinamentos diários. 
Aos meus irmãos, Lídia, Leandro e Leonardo pelo respeito e carinho. 
Ao meu maior incentivador nos estudos e na vida, Ruy, meu esposo, por sempre estar comigo 
nos momentos de dificuldade, de paz e de felicidade. Agradeço também a sua imensa 
contribuição intelectual neste trabalho e parceria acadêmica. 
Aos meus sogros, Dora e Alves, meus cunhados, Alana e Raul e meu sobrinho, Gabriel, pela 
rede de apoio que vocês representam em minha vida. 
Agradeço o apoio e paciência de todas e todos meus colegas de trabalho da Escola de Ensino 
Médio Franklin Távora durante a minha jornada no mestrado, em especial às minhas amigas de 
luta, Patrícia e Gleiciane, ao Diretor, Ivanildo e ao Coordenador escolar, Paulo. Sem o apoio de 
vocês eu não teria chegado até aqui. 
Aos meus amigos e companheiros de mestrado, Roberta e Glauber, pelas boas risadas. Espero 
reencontra-los muito em breve. 
Ao meu amigo, historiador e futuro doutor, Wilton, por sempre estar presente nos momentos 
importantes da jornada acadêmica. Agradeço as palavras de incentivo e de carinho. 
Agradeço as contribuições de Auxiliadora Beserra, Fátima Campelo, Marleide Cavalcante, 
Maria Pereira, Fernandes Araújo, Valdeci Freitas, Francisco Alves e Joaquim Clementino. Seus 
relatos me possibilitaram examinar diversas paisagens pelos caminhos da memória em direção 
à água. 
Agradeço a disponibilidade dos professores Dr. Sander Cruz Castelo e Dra. Kênia Sousa Rios, 
e suas significativas contribuições na avaliação deste trabalho. 
Agradeço as palavras de encorajamento e a parceria do meu querido orientador, prof. Dr. 
Edmilson Alves Maia Junior. 
Levo comigo os ensinamentos de todas e todos vocês rumo às novas possibilidades e desafios 
da memória. Gratidão! 
 
 
 
RESUMO 
 
A construção do Açude Castro foi a intervenção antrópica mais abrupta promovida no 
município de Itapiúna. Ela produziu alterações ambientais de grande impacto na vida da 
população, forçando o deslocamento de comunidades inteiras afetadas pelo alagamento de 
grandes faixas de terra no campo, no mesmo instante em que ampliava a oferta de água para as 
áreas urbanizadas. A concretização da obra resultava das mobilizações pelo acesso à água no 
município nas décadas de 1980 e 1990, então estimuladas pelas dificuldades de abastecimento 
que afetavam a população em períodos de estiagem. As reinvindicações dialogaram com as 
lutas pelo acesso à terra e com as políticas de gestão dos recursos hídricos do Governo do Estado 
do Ceará. As aspirações pela conquista de fornecimento de água possibilitada pela realização 
de uma grande obra foram amealhadas pela percepção do tempo do progresso que norteavam 
as políticas públicas dos Governos das Mudanças. Esta pesquisa objetiva analisar as 
transformações na vida social dos sujeitos impactados direta e indiretamente pelo barramento 
para compreender os processos de constituição da memória e as formas de assimilação das 
mudanças ocorridas na paisagem e na passagem do tempo histórico. Analiso as lutas e 
resistências em torno do acesso à terra e à água em diversas comunidades do município em 
meio a conflitos potencializados pela seca e utilizo as narrativas dos sujeitos atingidos pelo 
barramento para compreender o impacto da dupla ruptura – a perda dos lugares de memória e 
a descontinuidade com os espaços de sobrevivência – sobre suas vidas. 
 
Palavras-chave: Barramento. Água. Memória. Paisagem. Seca. 
 
 
ABSTRACT 
 
The construction of the Castro Dam was the most abrupt anthropic intervention carried out in 
the municipality of Itapiúna. It produced environmental changes that had a major impact on the 
lives of the population, forcing the displacement of entire communities affected by the flooding 
of large swaths of land in the countryside, while expanding the supply of water to urbanized 
areas. The completion of the work resulted from mobilizations for access to water in the city in 
the 1980s and 1990s, stimulated by the supply difficulties that affected the population in periods 
of drought. The claims dialogued with the struggles for access to land and with the water 
resources management policies of the Government of the State of Ceará. The aspirations for 
conquest of water supply made possible by the accomplishment of a great work were amassed 
by the perception of the time of progress that guided the public policies of the Governments of 
Changes. This research aims to analyze the transformations in the social life of subjects directly 
and indirectly impacted by the dam in order to understand the processes of memory constitution 
and the ways of assimilating the changes that occurred in the landscape and in the passage of 
historical time. It investigates the struggles and resistances surrounding access to land and water 
in various communities in the municipality amid conflicts that have been potentiated by 
drought. It starts from the narratives of the subjects affected by the dam to understand the impact 
that the loss of memory places and the discontinuity with survival spaces have on their lives. 
Keywords: Dam. Water. Memory. Landscape. Drought. 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
Foto 1 – Recepção ao Governador Tasso Jereissati para a Cerimônia de Assinatura da 
Ordem de Serviço da Barragem do Açude Castro. 01/07/1995 ........................... 81 
Foto 2 – Adesivo da Logomarca: “Açude Castro. Ponto de partida” ................................ 81 
Foto 3 – Assinatura da Ordem de Serviço da Barragem do Açude Castro ...................... 82Foto 4 – Discurso de Tasso Jereissati durante a Cerimônia ............................................... 82 
Foto 5 – Discurso de Joaquim Clementino Ferreira durante a Cerimônia ....................... 83 
Foto 6 – A Chegada das Máquinas em Itapiúna: julho de 1995 ........................................ 84 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE TABELAS 
Tabela 1 - Densidade Demográfica dos Municípios do Maciço de Baturité (1995) .......... 78 
Tabela 2 - Características da Obra do Açude Castro ......................................................... 87 
Tabela 3 - Obras/Adutoras com Desapropriação de Terras .............................................. 89 
Tabela 4 - Obras/Adutoras Complementares sem Desapropriação de Terras ................. 89 
Tabela 5 - População Reassentada e População Beneficiada Pelo Açude Castro ............. 90 
Tabela 6 - Resumo dos Custos e Investimentos do Açude Castro ...................................... 92 
Tabela 7 - Cronograma de Execução do Desmatamento da Bacia Hidráulica ................. 94 
Tabela 8 - Relatório de Atividades Executadas: Açude Castro (1995-1996) .................... 95 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................11 
2 SECA, ÁGUA E PODER............................................................................................22 
 “Lata d´água na cabeça” ............................................................................................22 
 Água e poder em Itapiúna antes do barramento.......................................................32 
3 CAMINHOS PELA ÁGUA EM ITAPIÚNA.............................................................36 
 Curupaiti: “foi negado para nós que tanto sofremos por não ter terra” ...............42 
 São José: “aí tem que ter o grito de guerra nessas horas” ......................................49 
 Touro: “pedimos em voz alta, a delicadeza que ouçam a voz do homem do campo” 
.......................................................................................................................................55 
 Massapê: “querem nos expulsar de lá, queimar nossos barracos e fazer com que 
percamos toda nossa colheita” ...................................................................................65 
4 BARRAMENTO: EXPERIÊNCIAS E MEMÓRIA EM ITAPIÚNA NO TEMPO 
DO PROGRESSO DOS ANOS 1990 NO CEARÁ...................................................71 
 A Barragem “desde os primórdios do tempo” .........................................................71 
 Barramento e poder: narrativas do tempo do progresso..........................................85 
 O barramento e as dimensões da memória sobre a construção do açude 
Castro...........................................................................................................................96 
5 IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS: LUGAR, PAISAGEM E MEMÓRIA...... 110 
 Ações antrópicas, migração e imagens desérticas...................................................110 
 Lugar, paisagem e memória: as mudanças no tempo histórico..............................121 
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................129 
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 131 
APÊNDICE A – DEPOIMENTOS ORAIS.............................................................143 
ANEXO A – JORNAL FOLHA DE ITAPIÚNA (1984) .........................................145 
ANEXO B – MUNICÍPIOS ATENDIDOS PELO PROURB/CE.........................146 
ANEXO C – MAPA DO CONTEXTO SOCIAL: ITAPIÚNA..............................147 
ANEXO D – ROTA DE ACESSO À BARRAGEM DO AÇUDE CASTRO........148 
ANEXO E – COMUNIDADES ATINGIDAS PELA BARRAGEM.....................148 
ANEXO F – MAPA DISTRITAL DO MUNICÍPIO DE ITAPIÚNA...................149 
ANEXO G – SANGRIA DO AÇUDE CASTRO – ANO: 2006..............................150 
ANEXO H – SANGRIA DO AÇUDE CASTRO – ANO: 2009..............................150 
ANEXO I – SANGRIA DO AÇUDE CASTRO – ANO: 2009...............................151 
11 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. 
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo 
que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, 
sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história 
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o 
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, 
ele vê uma catástrofe única, que acumula 
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos 
pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e 
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do 
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele 
não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele 
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, 
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa 
tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 
1994, p.226). 
 
Na epígrafe, uma das famosas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin 
ataca a representação do tempo histórico como tempo do progresso, tempo de “agoras”, tempo 
de salvação. O anjo que olha fixamente prenuncia a chegada inevitável de uma catástrofe: 
aquela que, como os fragmentos de uma ruína em nossas vidas, barra o percurso da natureza, 
destrói florestas, plantações, casas; desequilibra a plenitude da fauna, polui nascentes, mata, 
rouba, fragmenta vínculos comunitários e modifica a paisagem. Tudo em nome do progresso. 
Essa catástrofe também é, na perspectiva de Benjamin, uma representação bíblica: remete ao 
afamado dilúvio e à tempestade de fogo que baniu a humanidade da terra e destruiu as cidades 
de Sodoma e Gomorra (IBIAPINA, 2020). 
 As noções de tempo representadas nas duas analogias, são o ponto de partida para 
a construção narrativa desta pesquisa. Busco compreender o processo de transformação social 
na vida dos sujeitos impactados pelo barramento das águas do rio Castro e as transformações 
na paisagem no munícipio de Itapiúna entre o fim do século XX e o alvorecer do XXI. Reflito 
sobre as ações antrópicas de um tempo específico, tendo como referência as múltiplas narrativas 
que constroem o discurso desenvolvimentista e as expectativas em torno da construção da 
barragem do açude Castro, conferindo aos seus “mentores” a ideia de salvação a partir da 
exploração da natureza. O anjo da história olha assombrado para este tempo e espaço: ele resiste 
ao futuro, mas não consegue evitá-lo. 
O futuro é um tempo antecipado e abreviado no presente, e como tal deve orientar 
as ações do homem com a natureza já que deveria ser administrada e disputada por 
homens da ciência e da técnica em face das conexões diretas com os interesses 
econômicos e políticos. Desmatar, alisar, planificar, aterrar passaram a ser as palavras 
12 
 
 
e ações que garantirão o controle e o futuro da natureza. Tudo deveria estar a serviço 
da diminuição dos obstáculos que impediam a aceleração, o avanço, e temporalização 
da natureza a serviço do homem moderno (FUNES; RIOS, 2019, p.209). 
 
Pensando a “cadeia de acontecimentos” do passado, podemos refletir sobre as 
concepções da natureza no tempo histórico. Na reflexão filosófica e científica tradicional do 
século XVIII, a natureza influenciava as condições de vida e o curso da história humana. Na 
concepção moderna que aflora desde o século XIX, há uma inversão nesta relação. A 
interferência humana sobre o mundo natural é articulada a partir da percepção do espaço 
enquanto cenário que se constrói e se reconstrói, da natureza percebida subjetivamente como 
modificada, enquanto tempo do progresso (PÁDUA, 2010). Nessa perspectiva, a seca torna-se 
um dos principais fatores de mobilização da ação humana sobre a natureza no semiárido 
brasileiro, através de intervenções em torno dos usos e exploração da água.As políticas hídricas de “combate” às consequências da seca no século XX, 
sobretudo no Nordeste brasileiro, estão inseridas nesta percepção intervencionista sobre a 
natureza. Desde o princípio, elas foram justificadas enquanto solução para garantir “a segurança 
de abastecimento de água” nas regiões afetadas pelas secas, garantindo a permanência do 
“homem no campo” e estabelecendo as bases para o desenvolvimento regional. Na prática, 
respondiam às demandas das elites locais por recursos para a perpetuação das relações de poder 
tradicionais, baseada no controle da terra e da água. A presença de famintos e da multidão nas 
cidades em momentos de estiagem, passou a justificar as obras de infraestrutura hidráulica e o 
controle das populações rurais. A partir da década de 1980, o fortalecimento dos movimentos 
populares de luta por terra, trabalho e água, estimularam os discursos que diziam abraçar “a 
gestão dos recursos hídricos, de forma integrada e sistêmica” (ROCHA et al., 2011, p.135) com 
o objetivo de garantir o fornecimento de água e a sobrevivência do “homem do campo” em seu 
espaço de origem. 
No denominado polígono das secas1, o Ceará é destaque por “possuir a maior 
quantidade de açudes” dentre os estados da região Nordeste (ROCHA et al., 2011, p.136). Em 
1992, eram mais de 7 mil, entre açudes de pequeno, médio e grande porte. Ao longo das décadas 
de 1990 e 2000, a quantidade de reservatórios continuou a ser ampliada. É a permanente 
escassez de chuvas, a estação chuvosa irregular e concentrada em poucos meses do ano, a 
inexistência de rios permanentes, que justifica a construção de barragens pelo interior do 
semiárido (ROCHA et al., 2011). 
 
1 O Decreto-Lei 63.778 de 1968 dispõe sobre os municípios brasileiros inseridos na área do polígono das secas. 
13 
 
 
Sobretudo a construção de açudes de médio e grande porte, pressupõe a inundação 
de territórios já povoados. Deste ponto, começa a construção de uma “estrutura narrativa” 
focada na abordagem histórica sobre “dizer o tempo” (BARROS, 2010, p.22), partindo da 
interpretação das falas dos sujeitos afetados pela seca e atingidos por Barragens. As narrativas 
não se limitam a relatos estáticos no tempo. Elas percorrem caminhos, experiências e 
acontecimentos diversos que se entrelaçam e se ressignificam. Expressam percepções que o 
depoente cria a partir da sua experiência social e histórica (RIOS, 2012, p.18). 
Esta investigação está interessada em refletir sobre as formas de interação de 
homens e mulheres com a natureza, suas permanências e rupturas no tempo histórico. Ela atenta 
para a importância de analisar, por meio da História Oral, a ação dos sujeitos que viveram no 
município de Itapiúna antes e depois da construção barragem do açude Castro. São relatos e 
interpretações capazes de desconstruir a ideia de experiências “únicas” da seca assim como dos 
impactos socioambientais causados por obras hídricas. São relatos e interpretações que remetem 
às manifestações pelo acesso à água, seus usos múltiplos e a exploração da natureza. 
Afluente do Choró, o rio Castro percorre boa parte da extensão territorial do 
município de Itapiúna e sua bacia hidrográfica engloba os municípios de Aratuba e Canindé. O 
barramento do Castro (1995/1996) foi o evento histórico de maior impacto socioambiental do 
município. A construção foi estimulada pelas dificuldades de abastecimento de água que 
afetavam a população nos períodos de seca, e resultou da política de gestão dos recursos 
hídricos do Governo do Estado do Ceará. Aqui a ideia de salvação, “que como modelo 
messiânico abrevia num resumo incomensurável a história” (BENJAMIN, 1994, p. 232) das 
populações atingidas por obras de infraestrutura, associa o açude Castro às aspirações pela 
conquista de fornecimento de água possibilitada pela realização dessa grande obra. Essas 
aspirações foram amealhadas pela percepção do tempo do progresso que norteavam as políticas 
públicas dos Governos das Mudanças. 
A construção da Barragem produziu a reconfiguração da paisagem rural, mas 
também induziu mudanças no território urbano. A expulsão de moradores atingidos pelo 
alagamento de suas terras (em especial nas comunidades de Carnaubinha, Garrote, Poço dos 
Porcos e Barra Santo Antonio) estimulou a migração para a sede do município, para o novo 
assentamento Agrovila ou para os Distritos assistidos pelo maior fornecimento de água através 
de adutoras. Ao analisar as experiências de profundas mudanças na vida quotidiana dos sujeitos, 
busquei compreender a dimensão dos impactos causados pela ruptura com os lugares de 
memória, a ressignificação das relações sociais e as formas de assimilação dos sujeitos sobre as 
transformações ocorridas na paisagem e na passagem do tempo histórico. 
14 
 
 
Nesse sentido, as narrativas analisadas, sejam elas individualizadas ou demarcadas 
por ingredientes coletivos de rememoração, foram utilizadas para a exploração dos múltiplos 
significados das experiências (THOMPSON, 2002, p.17). Esse conjunto de representações 
sobre o passado me permitiu compreender as formas de assimilação do espaço pelos sujeitos 
em que viviam antes da “chegada” da Barragem, como se pensavam nestes espaços e como os 
representam hoje. 
Para isso, precisei percorrer os caminhos da memória em direção à água. E nesses 
caminhos, que são múltiplos, busquei saber como os sujeitos viviam em Itapiúna antes da 
Barragem; como elas e eles sobrevivam nos períodos de seca; como receberam a notícia sobre 
a construção; quais as expectativas geradas com a “chegada” da Barragem e as possibilidades 
de usos da água; quais expectativas foram alcançadas; quais mudanças e permanências estão 
presentes neste tempo histórico. 
Um desses caminhos me levou diretamente ao que eu imaginava ser o ponto de 
partida. Em 2008, quando vim morar em Itapiúna, o ciclo de chuvas havia iniciado e lembro-
me de ouvir comentários de que a colheita seria próspera naquele ano. No ano seguinte, “o 
inverno” generoso provocou o sangramento do açude Castro. E então tive o primeiro contato 
com a Barragem. Na ocasião, ela era referência de lazer para os moradores e visitantes, que 
desfrutavam do banho ora no sangradouro, ora no espelho d’água ou ainda no famoso “véu de 
noiva” (sangradouro em forma de chuveiro). Era comum que as pessoas pegassem com 
facilidade no sangradouro peixes trazidos pela correnteza. O momento era marcado por música 
e confraternização, se repetia quase todos os dias, principalmente aos finais de semana e 
feriados. Era uma verdadeira praia no sertão. 
Gilmar Arruda afirma que falar de sertão “significa, entre outras coisas, dialogar 
com os significados atribuídos à natureza na construção de identidades e memórias” 
(ARRUDA, 2020, p.18). Nesse sentido, a água – na memória dos depoentes – representa não 
só a superação dos problemas sociais potencializados pela seca, mas sobretudo a afirmação de 
uma identidade local conectada à noção de progresso. O impacto da água em Itapiúna era 
considerado significativo para os padrões da região, principalmente por proporcionar o 
crescimento do fluxo turístico e econômico. Mas essas não são as únicas tendências apontadas 
pelas narrativas. 
As perdas causadas às famílias diretamente atingidas pelas águas do açude são outra 
marca das profundas transformações na vida quotidiana dos sujeitos. Para elas, o rompimento 
de seus ancestrais lugares de memória implicou, na maioria dos casos, no fim dos laços 
comunitários e no risco de empobrecimento. Estas experiências são rememoradas de forma 
15 
 
 
conflituosa (PORTELLI, 2005, p. 103). Por isso, é fundamental compreender “as conjunturas 
favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas” reconhecendo as maneiras como o 
presente colore o passado (POLLAK, 1989, p.6). 
A partir de minha própria experiência com a Barragem Castro, pude ter as primeiras 
impressões sobre as narrativas das pessoas quepercorreram os caminhos em direção à água. 
Essa relação física entre o pesquisador e o seu tema, o pesquisador e o seu tempo presente, me 
mostrou que a história é atravessada por diversas referências no percurso da investigação. As 
referências, pode-se dizer, são experiências compartilhadas pelos sujeitos que rememoram os 
aspectos vividos de seu próprio passado sob a ótica do presente e que se entrelaçam à própria 
experiência do investigador. Fui afetada pelo fascínio do vivido. (ALBERTI, 2004). Assim, à 
medida que eu percorria os caminhos indicados pela memória, percebi que o ponto de partida 
não era a Barragem, mas a memória dos sujeitos sobre ela. Nesse sentido, a história oral passou 
a ser o âmago desta pesquisa e deixou de ser usada como um mero processo de organização da 
memória por meio de gravação de entrevistas. 
Na busca por percorrer os caminhos da memória, o pesquisador/a crer ser possível 
anular “as descontinuidades” da história. Mas o que lhe chega são retalhos de um vivido alheio. 
É o que Alberti (2004) chama de “síntese da memória.” Para ela, saber interpretar esses 
“retalhos” requer “uma preparação criteriosa, que nos transforme em interlocutores à altura de 
nossos entrevistados, capazes de entender suas expressões de vida e de acompanhar seus relatos. 
Mas, o tornar a vivenciar a experiência do outro nunca será completo” (ALBERTI, 2004, p.19). 
Esses retalhos se unem formando uma espécie de manta, uma representação da 
memória, que (neste caso) conta parte da história de homens e mulheres sobre suas expectativas 
e experiências em torno da “chegada” da Barragem em Itapiúna. Quando penso na construção 
desse passado, tenho a noção de que sua imagem “perpassa veloz” no tempo histórico. E nesse 
sentido, Walter Benjamin explica que 
o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no 
momento que é reconhecido”, pois, “articular historicamente o passado não significa 
conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como 
ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1994, p.224). 
 
A (re)construção desse passado me guiou em direção às novas possibilidades de 
interpretações dos acontecimentos, das experiências e das memórias que são “a marca principal 
de um tempo histórico específico, e mesmo das conjunturas, definidas pela ação dos sujeitos 
históricos que o vivenciam” (PEREIRA, 2008, p.28). Certamente, essas interpretações não 
serão levadas à suas últimas consequências (sem abrir mão deste esforço), pois “haverá sempre 
espaço para novas possibilidades, que, novamente, não darão conta da totalidade, e assim por 
16 
 
 
diante” (Alberti, 2004, p.19). E o que dizer sobre os desafios desta pesquisa histórica tendo 
como ponto de partida as fontes orais? Aqui quero destacar alguns aspectos do ponto de vista 
teórico e empírico da reflexão. 
Voldman (2005) apresenta dois desafios relacionados ao colhimento e análise das 
fontes orais. O primeiro é a entrevista. Entrevistador e interlocutor vivem um jogo de palavras 
e hierarquias: um está em busca da verdade, o outro está convencido de sua verdade. Suas 
particularidades ora expressas, ora analisadas, podem involuntariamente surgir “tanto para 
esclarecer quanto para confundir as pistas”. O segundo é a construção da estrutura narrativa, 
sujeita às rupturas e dilacerações da memória, caminhos que o pesquisador precisa percorrer. 
Se, por um lado, essas inquietações desafiam o pesquisador na busca da verdade, por outro, elas 
acabam por naturalizar este campo como o lugar de não-desafios para o depoente. No entanto, 
“se compete ao historiador estabelecer o que será tomado como está e o que será reexaminado, 
posto de lado e criticado, nada permite tirar da testemunha a posição que ela adquiriu pelo 
simples fato de ter aceitado responder às perguntas que lhe fazem” (VOLDMAN, 2005, p.37). 
Nesse sentido, “ser historiador, do passado ou do presente, além de outras 
qualidades, sempre exigiu erudição e sensibilidade no tratamento de fontes, pois delas depende 
a construção convincente de seu discurso” (JANOTTI, 2008, p.10). O mesmo se aplica às fontes 
orais: elas permitem a construção de um discurso histórico a partir das experiências repassadas 
de uma pessoa para outra. “E neste hiato entre o vivido e o narrado, localiza-se o fazer próprio 
do historiador” (MONTENEGRO, 2010, p.10). 
Para Walter Benjamim, a construção narrativa se distingue por duas categorias de 
representação. A primeira é expressa por alguém “que vem de longe” e conhece muitos lugares. 
Neste caso, o viajante é uma pessoa propícia a obter bastante conhecimento e informações, 
portanto, uma pessoa apta para contar sobre as múltiplas experiências vividas. A segunda 
representação qualifica alguém que conhece profundamente o espaço em que vive, suas práticas 
quotidianas e sua cultura, ideal para contar as histórias de sua terra. Nesse sentido, as fontes 
orais “têm em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode 
consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa 
norma de vida” (BENJAMIN, 1994, p.200). 
Embora a história oral possibilite profundas reflexões para a produção do 
conhecimento histórico, certamente algumas delas não trarão luz às hipóteses presentes na 
pesquisa. A teoria da história, nesse sentido, “se dedica, entre outros assuntos, a pensar os 
conceitos de história e memória, assim como as complexas relações entre ambos.” E pensar esta 
relação é considerar que a interpretação dessas hipóteses aconteça a partir de outras leituras 
17 
 
 
teóricas – a filosofia, a sociologia e a psicologia, por exemplo – “embasando e orientando o 
trabalho dos historiadores, aí incluídos os que trabalham com fontes orais” (VOLDMAN, 2005, 
p.27). 
Isso me leva ao segundo desafio da pesquisa histórica, que diz respeito ao seu 
desenvolvimento, especificamente o trabalho de campo. Minha pesquisa foi, assim como tantas 
outras, impactada pela pandemia de covid-19. Em maior ou menor grau, ela rompeu 
temporariamente e de forma imediata, a relação direta com os espaços de aprendizagem e 
lugares de interação social. Bibliotecas, escolas, universidades e laboratórios de pesquisas 
foram fechados; os encontros com os grupos de estudos e as aulas presenciais foram suspensos. 
O encontro virtual foi tornado o novo “normal”, junto às aulas remotas, debates promovidos 
pelas instituições utilizando plataformas digitais, solicitações de fontes de pesquisa por e-mail 
ou por telefone... As dificuldades e impactos negativos são óbvios. 
Imagino o anjo da história descrito por Benjamin. Ele parece estar novamente com 
aquele aspecto no olhar fixo para algo que se deseja evitar. São tempos sombrios, tempos de 
obscurantismo. E isso reflete diretamente na nossa saúde mental, nas nossas relações sociais e 
na capacidade de produção, acadêmica e laboral, nos “novos” espaços de saberes e em nossas 
residências. Nunca se ouviu tanto falar em saúde mental e em práticas para o bem-estar do corpo 
e da mente. Mas a pandemia não interrompeu nossa corrida frenética rumo ao nível mais 
elevado da ciência e da existência humana; rumo ao progresso. 
A verdade é que, dentro desse contexto, reconhecemos cada vez mais a importância 
da pesquisa científica. Descortinamos outras múltiplas experiências (de perdas e conquistas), 
sejam elas coletivas ou pessoais. Cada um vive um específico tempo de experiências e 
perspectivas, que não podem ser medidas ou comparadas, mas que coexistem dentro do 
contexto social da pandemia. Alguns desses desafios infligiram mudanças significativas em 
minha vida pessoal enquanto filha, esposa, irmã e amiga e também em minha vida social 
enquanto servidora pública e pesquisadora. 
A priori esta pesquisa propunha utilizar a história oral como principal estratégia 
metodológica para produção e interpretação das fontesnarrativas. Outras fontes seriam 
complementares no processo de escrita. No entanto, devido as medidas de isolamento social 
para o enfrentamento a pandemia, algumas entrevistas imaginadas não puderam ser realizadas, 
especialmente aquelas que envolviam pessoas do grupo de risco. 
A maior parte das entrevistas que ora utilizo foram realizadas entre os anos de 2014 
e 2017 com pessoas próximas (amigos e parentes) que moram na cidade-sede. Francisco Alves, 
participou das audiências públicas sobre os certames licitatórios da Barragem e tem lembrança 
18 
 
 
muito vivas sobre aquele momento. Dona Fátima, foi esposa de Zequinha Campelo (já 
falecido), ex-prefeito de Itapiúna, proprietário do açude Brejo, o reservatório de água mais 
importante da cidade até o fim dos anos 1970. Os demais colaboradores surgiram no avançar 
da pesquisa. Fernandes Araújo e Maria Pereira Pontes (dona Eurides) eram moradores das 
comunidades de Barra Santo Antonio e Poço dos Porcos (respectivamente), duas das mais 
atingidas pelo barramento. Após idas e vindas, entrevistei Joaquim Clementino Ferreira, 
prefeito do município durante a construção da barragem, principal interlocutor da obra junto à 
população e articulador junto ao Governo do Estado. 
Em janeiro e fevereiro de 2020, segundo ano do curso de mestrado, iniciei a 
pesquisa de campo entrevistando Valdeci Freitas e Marleide Cavalcante, também ex-moradores 
de Poço dos Porcos e Barra Santo Antonio (respectivamente). As entrevistas com os ex-
moradores dessas duas comunidades foram pensadas de forma estratégica para intermediar 
minha visita às comunidades remanescente de Agrovila, construída para o assentamento da 
população diretamente atingidas pela água. Mas no mês de março, fui surpreendida pela 
segunda onda da pandemia e pelos decretos de isolamento social. Meu objetivo era 
compreender os impactos da construção da Barragem na vida social e econômica das famílias 
ribeirinhas e como elas percebem as transformações ocorridas na paisagem ao longo do tempo. 
Esta análise ficará para outro momento a esta pesquisa. 
Na ausência de novas entrevistas, precisei recorrer a fontes que tratassem das 
mobilizações pela água ocorridas no município de Itapiúna durante as décadas de 1980 e 1990, 
fossem jornais, revistas, cartas, fotografias, enfim, tudo que pudesse estar relacionado às ações 
dos sujeitos históricos no período que antecede a construção da Barragem. Utilizei, então, fontes 
sobre conflitos de terra que resultaram na formação de assentamento de reforma agrária no 
município nos anos de 1980 e 19902. Os documentos são originários dos arquivos do IDACE, 
INCRA, Justiça Federal do Ceará, Comissão Pastoral da Terra do Ceará e, através deles, analiso 
as lutas dos sujeitos pelo acesso à água e à terra produtiva. 
A partir desta documentação, notei a participação frequente e direta de Auxiliadora 
Beserra nos movimentos sociais em Itapiúna. Ela me concedeu uma entrevista em fevereiro de 
2021, realizada em sua casa, mantendo todos os cuidados necessários de distância e uso de 
máscara. Esse foi um breve período em que os números de contaminação por covid-19 haviam 
diminuído no município; mas logo em seguida, o número de vítimas voltou a crescer e 
novamente precisei interromper as entrevistas previstas. 
 
2 Fontes da pesquisa de Pereira (2008). 
19 
 
 
Por fim, após longa espera, tive acesso aos documentos da construção da Barragem 
do Açude Castro guardados pela Secretaria de Recursos Hídricos. A história “oficial” registrada 
pelos órgãos do Estado me permitiram relacionar e ampliar a problematização das narrativas 
dos sujeitos desta pesquisa. 
De todo modo, os desafios encontrados durante o processo de desenvolvimento da 
pesquisa foram superados. Embora eu tenha recorrido a outras fontes, as narrativas dos sujeitos 
continuam sendo o cerne e o ponto de partida desta pesquisa: elas me “guiaram” pelos caminhos 
da memória em direção à água. Sem dúvida, essa interseccionalidade de distintas fontes trouxe 
contribuições significativas para a compreensão dos processos de atuação dos sujeitos e dos 
processos subjetivos que marcaram profundamente suas experiências coletivas e individuais. 
 
* * * 
 
No primeiro capítulo, intitulado Seca, água e poder, investigo sob quais aspectos 
se configuram as narrativas da seca, analisando as relações de poder existentes entre a 
população e os “donos” da água e as práticas quotidianas de sobrevivência dos sujeitos quanto 
à exploração dos poucos reservatórios de água existentes na época em que a cidade-sede e 
comunidades da zona rural eram abastecidas “à base da lata d´água na cabeça”. O capítulo está 
organizado em dois tópicos: Lata D´água na Cabeça e Água e Poder em Itapiúna Antes do 
Barramento. No primeiro tópico busco saber como viviam os sujeitos da cidade-sede quanto 
aos modos de exploração das águas do açude Brejo. Francisco Alves e Maria de Fátima narram 
algumas dessas práticas e a relação da comunidade com o açude. Do mesmo modo, analiso as 
falas dos ex-moradores de Carnaubinha, Poço dos Porcos, Barra Santo Antonio e Queimadas. 
Pessoas como Fernandes, Eurides, Valdeci e Marleide narram como os modos de exploração 
dos pequenos açudes localizados nas proximidades de suas comunidades diferem das práticas 
realizadas pelos moradores da cidade-sede. No segundo tópico, retomo as narrativas dos 
sujeitos sobre o açude Brejo, para analisar as ações paternalistas do dono do açude, conferindo 
à população o julgo de viver sob os mecanismos de controle social e político em troca da 
utilização da água do reservatório. Aqui discuto como as relações são constantemente vistas 
dentro do processo de negociação e renegociação do status quo. 
No segundo capítulo, Caminho pelas águas em Itapiúna, analiso a atuação de 
homens e mulheres do campo vinculados a luta pela reforma agrária e pelo acesso à água, 
buscando compreender as demandas das comunidades agrícolas no período de seca. Entre as 
décadas de 1980 e 1990, ocorreram cerca de 15 ocupações e conflitos de terra em Itapiúna, e 
20 
 
 
dentre elas analiso as manifestações camponesas nas comunidades de Curupaiti, São José, 
Touro e Massapê, conflitos que concentraram a atuação das entidades ligadas à Igreja e ao MST 
mobilização por água e contra a política hegemônica local. Essas atuações são analisadas 
através de documentos tais como carta-abertas, abaixo-assinados e denúncias realizadas pelos 
trabalhadores rurais e a partir das falas de Auxiliadora Beserra, ativista ligada aos movimentos 
sociais em Itapiúna. Busco, compreender os processos de articulação e organização dos sujeitos 
pelos caminhos em direção à água. 
No terceiro capítulo, Barramento: Experiências e Memória em Itapiúna no Tempo 
do Progresso dos Anos 1990 no Ceará, analiso as experiências e memórias dos sujeitos direta 
e indiretamente atingidos pela construção da barragem do Açude Castro. Aqui aparecem as 
falas de todos os envolvidos nesta pesquisa, já mencionados, incluindo a fala de Joaquim 
Clementino, prefeito de Itapiúna durante a construção da Barragem. Busco compreender, de um 
modo geral, as primeiras etapas do processo de transformação na vida dos sujeitos no período 
próximo e durante o barramento. Na primeira parte do capítulo, foco nas narrativas que 
rememoram às expectativas em torno da “chegada” da Barragem, como receberam a notícia e 
como suas aspirações pela conquista da água foram sendo ressignificadas ao longo do tempo. 
Aqui existe um discurso utilitarista sobre a Barragem enquanto objeto de desejo; um 
monumento que representa o progresso e o desenvolvimento – político, social e econômico – 
para o município e região. A segunda parte é dedicada a análise crítica das fontes que 
documentam o processo de desenvolvimento da obra, sobretudo as duas primeiras etapas: 
projeto e execução e as dimensões da memória sobre o tempo do progresso. Na terceira parte, 
analisoas narrativas que expressam conquistas e perdas, sejam elas individuais ou coletivas, 
em especial as comunidades diretamente atingidas pelo barramento – Poço dos Porcos, Barra 
Santo Antonio e Queimadas, forçadas ao deslocamento compulsório de terras, sujeitas à perda 
dos tradicionais meios de sobrevivência material e de seus lugares de memória e ao risco de 
empobrecimento. 
No quarto e último capítulo, Impactos Socioambientais: Lugar, Paisagem e 
Memória, analiso as narrativas dos sujeitos sobre o processo de transformação social no pós-
barramento, para compreender sob quais aspectos as formas de assimilação das mudanças na 
paisagem e na passagem do tempo histórico foram sendo construídas. Na primeira parte do 
capítulo, apresento os impactos socioambientais como consequência das ações antrópicas em 
Itapiúna. O desmatamento da bacia hidrográfica do açude, a qualidade da água, o processo 
migratório das famílias diretamente atingidas e o fornecimento ininterrupto de água encanada 
nas áreas urbanas do município têm ligação direta com os impactos na paisagem e na vida social 
21 
 
 
do município. Na segunda parte, estes impactos são analisados a longo prazo a partir das 
narrativas dos sujeitos. Aqui discorro sobre o processo de construção simbólica a partir da 
interpretação dos sujeitos sobre a paisagem. Nesse sentido, as narrativas apontam a água como 
fator principal de uma nova estrutura social, econômica e paisagística. Os aspectos são 
rememorados de forma conflituosa no campo da memória. Iniciaremos, a seguir, uma 
caminhada que nos permite observar diversas paisagens em direção à água. 
 
22 
 
 
2. SECA, ÁGUA E PODER 
 
2.1 “Lata d´água na cabeça” 
 
 
As narrativas presentes neste capítulo expressam as diferentes marcas das 
experiências dos sujeitos históricos durante os períodos de seca em Itapiúna. O debate 
historiográfico acerca das práticas de sobrevivência nos espaços onde se configuram as 
narrativas da seca revelam as constantes formas de resistência, conflitos e ações desses sujeitos 
tendo como foco central e centralizador a água: os modos de concebê-la e os usos múltiplos. 
As fontes levantadas durante a investigação me ajudam a compreender sob quais 
aspectos se configuram as narrativas da seca, no período que antecede a construção da barragem 
do Açude Castro, ao analisar algumas práticas quotidianas dos sujeitos, quando a cidade era 
abastecida “à base da lata d´água na cabeça”, e ao estudar as mobilizações pelo acesso à terra 
ocorridas durante as décadas de 1980 e 1990. 
Inicialmente vislumbrei a letra do Hino Municipal de Itapiúna, que põe em 
eminência a água e outros recursos naturais da região: a riqueza do solo; a terra fértil; a 
carnaúba; o algodão. Esses elementos contribuíram significativamente no processo de 
desenvolvimento socioeconômico da cidade ao longo dos anos, “proclamados com veemência, 
como sendo o sucesso da nação” (BEZERRA, 2010, p.71). 
Da raiz chamou-se de Fazenda Castro 
Do Serrote mudou para Itaúna 
Hoje o povo aclama forte o teu nome 
Itapiúna, Itapiúna, Itapiúna 
 
A natureza criou teu novo nome 
Surgiu uma pedra forte, miúda e preta 
Denominou-se então Itapiúna 
Terra fértil da Pátria Brasileira. 
 
Itapiúna, Itapiúna, Itapiúna 
Bela terra e cidade hospitaleira 
Do imigrante fez o teu futuro 
A tua origem e a tua beleza. 
Tua Glória é o nosso trabalho 
Somos a base que constrói o teu progresso 
Os heróis que por essa terra lutam 
Deixam frutos, bom trabalho e sucesso 
 
No subsolo a riqueza mineral 
No campo há carnaúba o algodão 
23 
 
 
Nos rios correntes as águas que te cercam 
Trabalha o homem e o vaqueiro do sertão.1 
 
A partir dos trechos em destaque, posso analisar versões sobre essa história da 
cidade e suas relações com a água. Nascido às margens do rio Castro, o município de Itapiúna 
está localizado aproximadamente à 120 km de Fortaleza. A cidade, quando ainda vilarejo 
chamou-se de Fazenda Castro e conheceu um pequeno crescimento populacional e 
econômico devido a construção da estrada de ferro de Baturité em 1872, que proporcionava o 
tráfego e venda de algodão. Do imigrante fez o teu futuro a partir chegada da família Bezerra 
Campelo vinda do Rio Grande do Norte, conhecidos como os “desbravadores dessas terras”. 
Em 1910 a natureza criou teu novo nome, “Itaúna”, que na língua Tupi-Guarani significa 
pedra preta. Em 1957 conquista sua emancipação política, passando a ser chamado de Itapiúna. 
Hoje, sua população soma um pouco mais de 18.000 habitantes (INSTITUTO [...], 2010). Nos 
rios correntes as águas que te cercam propiciaram a permanência aos heróis que por esta 
terra lutam a partir da exploração da água, o que nem sempre foi suficiente para suprir as 
demandas da população diante das inúmeras irregularidades de chuvas, que assolavam não só 
o município como grande parte do Nordeste. 
A narrativa do Hino, enquanto forma de dar sentido ao tempo, uma vez que o 
“tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa 
alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal” 
(RICOEUR, 2010, p.93), mobiliza em si elementos que rememoram a origem de Itapiúna, sua 
história e funciona como um lugar de memória. É nesse sentido que analiso as experiências 
rememoradas pelas pessoas que moravam (e ainda moram) em Itapiúna entre as décadas de 
1980 e 1990, buscando compreender as formas de organizações coletivas e individuais e suas 
práticas quotidianas. Contudo, é imprescindível montar uma linha do tempo sobre quais 
aspectos as narrativas são postas. 
 Lata d´água na cabeça, a frase-chave que constitui o âmago deste subcapítulo, foi 
rememorada por Francisco Alves, o primeiro colaborador desta jornada. Se, por um lado, a frase 
remete à uma forma de manejo da água, por outro, ela se constitui de significados políticos a 
partir do contexto de cada momento e percepções da seca. Ela remete, creio, à falta de água 
canalizada no município e às práticas de superação dos efeitos nocivos seca, através dos modos 
de conceber a água e a utilização da mesma. 
 
1 Hino Municipal de Itapiúna (1987), letra de Francisco Ednor Gomes e música de José Ferreira Barros (Zé 
Pretinho). Disponível em: http://www.itapiuna.ce.gov.br Acesso em 15/11/2016. 
24 
 
 
Defendo que as narrativas da seca não se limitam à relatos estáticos relacionados à 
falta de chuva, elas percorrem caminhos, experiências e acontecimentos diversos que se 
entrelaçam e se ressignificam. E que A História Oral, enquanto estratégia para produção de 
fontes, proporciona uma série de interpretações por meio das múltiplas falas, sejam elas 
individuais ou marcadas por ingredientes coletivos de rememoração (THOMPSON, 2002, 
p.17). Podemos “realmente compreender a experiência do outro e incorporar a diferença, não 
como desvio, mas como elemento constitutivo dos processos sociais” (KHOURY, 2001, p.86-
87). Ao buscar elencar esses aspectos, exploro o uso da água como propulsor central das práticas 
de sobrevivência durante a seca. 
Nesse sentido, quando entrevistei Francisco Alves, em 2015, ele relatou que “a 
cidade de Itapiúna era abastecida a base de lata d´água, de balde no ombro, do açude Brejo.” 
No momento da entrevista, em nosso tempo presente, a memória do entrevistado faz a 
elaboração de uma forte imagem indicativa de usos da água naquele instante. Até o início dos 
anos de 1980, a cidade-sede possuía apenas “três pipas, tentando solucionar o problema da zona 
urbana, e o açude Brejo, localizado a 1km do centro da cidade” (A VOZ, 1980b, p.1). E os 
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE mostram que, neste período, 
haviam 1.676 habitantes morando na zona urbana da cidade, o que representava 12% da 
população do município (apud PEREIRA, 2008). Grande parte desse número recorria 
unicamente ao açude Brejo para suprir suas demandas domésticas.Francisco Alves apresenta uma narrativa onde o açude Brejo aparece além de uma 
reserva de água que garantia, na medida do possível, o banho e o alimento da comunidade. Era 
também uma oportunidade para aqueles quem não possuíam renda fixa. O trabalho envolvia 
levantar cedo para encher os baldes, bacias e galões com água, lavar roupa à beira do açude ou 
levar a água até às casas das pessoas que solicitavam o serviço: 
Era um vai em vem de pessoas com lata d´água, e tinha gente que fazia desse ramo 
até uma profissão de colocar água nas casas como meio de sobrevivência para ganhar 
os seus trocados, e o pessoal lavava roupa também lá. Claro que não era dentro, era 
um pouco afastado. As mulheres iam pra lá, lavar roupa. Inclusive a dona Dora 
[esposa] lavou muita roupa lá (Francisco Alves). 
 
Segundo seu relato, e outros, durante os anos de exploração das águas do Açude 
Brejo, entre 1941 e 1981, as pessoas fizeram dessa prática uma profissão. No que tange às 
práticas quotidianas sobre o uso da água, dona Fátima, esposa de Zequinha Campelo, 
proprietário do Açude, conta que quotidianamente os moradores se deslocavam até o Brejo 
portados de baldes, bacias e tambores, onde se organizavam em fila para pegar água: 
25 
 
 
A pessoa pegava entrava no açude, enchia com a cuia, pra não entrar com os pés, 
né?...não deixavam porque a água era pra beber. Pegava, enchia e trazia a água, botava 
no balde, botava na cabeça e levava. Era assim: de manhã, parece que começava às 
sete horas até onze horas e depois começava duas horas em diante e fechava, não tinha 
mais. Só no outro dia. Porque se não, né! (Maria de Fátima). 
 
Observemos que a distribuição era realizada em horários específicos e coordenada 
por pessoas da confiança do proprietário, que mantinham uma rotina regular durante os dias da 
semana. E temos na de Fátima claramente a indicação do uso social, e passível de controle, da 
água do açude Brejo. Tal percepção, da presença da água na cidade, continua quando diz que a 
água do Açude era utilizada para “tomar banho e pra beber naqueles potes pra coar a água. Era 
utilizada pra fazer comida, até porque nas casas não tinha [água]. Tinha um chafariz, mas não 
era água boa como a água do Brejo” (Maria de Fátima). O chafariz a qual dona Fátima se refere 
ficava próximo à Praça Central da cidade-sede onde os moradores abasteciam suas reservas. 
Na sua entrevista ela segue narrando esses usos da água em meio a essa 
temporalidade anterior à construção do açude Castro. Outra prática de exploração das águas 
açude Brejo foi a pesca, quando Zequinha abria raras exceções para alguns conhecidos, como 
no caso do “seu Ananias, um velhim que chegou a pescar pra ele. E tinha outros que eu não me 
lembro quem era...pescavam o peixe, traziam pra cá, eles ficavam com uma parte e ele com 
outra” (Maria de Fátima). Dessa maneira é importante ressaltar que os entrevistados 
rememoram o panorama das relações de poder existentes a partir do domínio da água. Essas 
relações podem ser observadas em outros recortes e sob aspectos semelhantes: 
O dono do açude é também uma figura destacada na cidade. Os reservatórios fornecem 
água para beber, para cozinhar, para lavar roupa e utensílios domésticos e, ademais, 
são lugares propícios para determinadas culturas agrícolas. Semelhante ao que ocorre 
com a terra, também o dono do açude ou da lagoa cede trechos às margens dos seus 
reservatórios de água e, em troca, o agricultor entrega-lhe uma parte da colheita que 
chega, às vezes, a 50% do que é colhido. Os “donos da água” permitem o acesso 
somente para alguns. Com maior frequência, eleitores ou parentes (RIOS, 2012, 
p.250). 
 
Nesse aspecto, a pesquisa lidou com múltiplas narrativas sobre o tempo vivido 
como no caso dos moradores das comunidades de Poço dos Porcos, Barra Santo Antonio e 
Queimadas. As práticas de organização para obtenção da água nessas comunidades diferem 
daquelas vividas pelos moradores da cidade-sede, o que fica explicito após uma série de 
entrevistas realizadas com os atingidos pela Barragem sobre suas experiências antes do 
barramento. Essas comunidades foram constituídas às margens do rio Castro e, posteriormente, 
foram afetadas pelo deslocamento compulsório de terras para a construção da Barragem. 
26 
 
 
Nesse sentido, o senhor Valdeci Freitas fala sobre sua história de vida, quando 
morava na comunidade de Poço dos Porcos na qual foi líder comunitário nos anos de 1980. Em 
suas primeiras palavras, tomadas pela emoção, as lembranças do tempo de mocidade se fizeram 
presente. 
Naquela época era muito difícil, minha mãe teve doze filhos, apenas seis [inaudível]. 
O meu irmão casula, com vinte e oito anos ele se foi. Aí meu pai e minha mãe 
construíram essa família que eu tenho um sentimento muito grande. Eu nasci lá [em 
Poço dos Porcos], meu pai faleceu lá também, e eu conservo isso aí...[emocionado] 
eu conservo aí a história da minha família, quer dizer, é a minha vida. E eu tive uma 
vida. Nós Nascemos na Agricultura, tempos depois tivemos dificuldade de estudar, 
mas a gente conseguiu, e depois a minha irmã foi embora para Fortaleza e meus outros 
irmãos herdou o comércio [dos pais]. Mas as nossas histórias mesmo é lá, porque foi 
lá onde nós nascemos. Eu tenho 67 anos em Itapiúna, e esses 67 anos me vem tudo do 
Poço dos Porcos. (Valdeci Araújo). 
 
Emocionado, Valdeci continua dizendo que após a partida de seus pais, ele adquiriu 
as propriedades da família com a intensão de conservar “esse mesmo sentimento de 
permanecer” em seu lugar de memória. A comunidade de Poço dos Porcos, ele conta, era 
formada por cinco famílias muito unidas – “família Freitas, família dos Santos, família Doca, 
família do seu Zuza e dos Delfino” (Valdeci Araújo) – as quais enfrentaram diversas 
dificuldades de abastecimento de água durante os períodos de seca. Haviam poucos açudes 
disponíveis nas proximidades para o consumo de água, então os moradores recorriam aos 
açudes particulares: 
Só tinha três açudes: o açude do Padre Luizim (tio Luizim), que era na Barra Santo 
Antonio que era a 7km de Poço dos Porcos. O açude do Antonio da Reforma a 3km e 
o açude do Zequinha Campelo que seriam mais 14km [localizada na cidade-sede]. 
Nós só tínhamos esses três açudes. (Valdeci Araújo). 
 
A exatidão quanto a localização dos açudes deriva do percurso feito com frequência 
por Valdeci. As idas e vindas, impulsionadas pela falta de água potável em sua comunidade, 
era uma prática comum entre os moradores da zona rural mesmo nos períodos de chuva, quando 
o rio Castro enchia. A água não era boa para o consumo humano, exceto para o banho. Os 
pequenos açudes que ficavam próximos as comunidades ribeirinhas do Castro também enchiam 
durante os períodos chuvosos, mas rapidamente secavam, e à medida que as reservas de águas 
iam se esgotando a situação se tornava ainda mais penosa. O entrevistado segue narrando sobre 
tais circunstâncias sociais do tempo da água: 
Eu me lembro rio Castro, do poço de onde a gente pegava as piabas e as traíras, para 
sustentar o ramo da família, né? O que era que se fazia? Ou você ia lá na Barra Santo 
Antonio, os que não iam, faziam uma cacimba dentro do Rio [Castro], muito salgada. 
E lá, na época, como era mata, os guaxinins matavam os cururus, os sapos, na cacimba, 
aí você tinha que ‘desgotar’ a cacimba todinha, esperar que a água voltasse e a gente 
27 
 
 
fazia uma fila levando aquela água salgada. Então, [por exemplo] para tomar banho 
tinha que ser controlado o tempo para se gastar. (Valdeci Araújo). 
 
Outra dimensão desse tempo da água aparece quando ele comenta sobre a 
exploração do rio Castro, que contribuiu para a sobrevivência das comunidades ribeirinhas 
durante os períodos de seca, através da perfuração de poços profundos e de outros projetos 
hídricos desenvolvidos pelos próprios moradores: “Nós conseguimos fazer o primeiro açude 
em mutirão em Poçodos Porcos, conseguimos ampliar vários açudes, no caso do Garrote, da 
Carnaubinha e da Barra Santo Antonio onde fizemos e assim foi essa área toda, esse trabalho 
social nosso” (Valdeci Araújo). 
Nesses espaços o índice de investimentos dos setores públicos no tocante ao 
abastecimento de água eram baixos. Não fossem as ações comunitárias desenvolvidas pelos 
próprios ribeirinhos, a probabilidade dessa permanência seria mínima. Nesse sentido, Valdeci 
continua dizendo que, durante a década de 1970, surgiu em Poço dos Porcos o primeiro Grupo 
de Jovens do Meio Popular – PJMP2 incentivados pela Igreja Católica de Itapiúna e do qual ele 
participou. O grupo fazia um trabalho de conscientização social com os moradores locais, para 
reivindicar por melhorias da comunidade junto ao poder executivo municipal. Os projetos de 
melhorias muitas vezes eram desenvolvidos por eles, em mutirão, como fossas sépticas, escolas, 
armazém e farmácia comunitária: 
Nós nos tornamos um pouco polêmicos na história da sociedade porque foi lá onde 
surgiu o primeiro grupo de jovens de Itapiúna em 70, nos anos 74. O grupo de jovens 
foi incentivado pela religião católica, através da irmã Iolanda. E a gente com isso fazia 
as lutas. Nós conseguimos a primeira campanha de [fossa séptica]. Vou dizer assim, 
não tinha banheiro, nem etc... sabe onde é que se fazia as necessidades, né? Então nós 
conseguimos a primeira campanha que chamava fossa séptica que foi construída em 
Itapiúna em Poço dos Porcos, em mutirão. Eu tenho esse álbum, parecia uma 
coincidência, eu tava vendo a primeira ação comunitária. A escola também foi uma 
casinha que meu pai ofereceu para que se criasse uma escolinha na nossa comunidade. 
Nós criamos por cinco anos um armazém comunitário, onde todos nós criamos uma 
consciência, 27 famílias, que lá não tinha caixeiro, você chegava lá tirava o arroz, o 
 
2 “A Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) nasceu em 1978 em Recife num determinado contexto eclesial 
e sócio-político: no empobrecido nordeste brasileiro, na pós Ação Católica, na Igreja dos Pobres, na Teologia da 
Libertação, no Movimento Popular. [...] De 1981 a 1983 foi a fase de articulação da PJMP no Ceará. No 6º 
Encontro Regional em Tianguá, 12 a 16/01/83 participaram jovens e assessores das nove Dioceses do Ceará, todo 
o Regional NE I. De 1983 a 1985 foi a fase de consolidação e afirmação da Proposta da PJMP. No 8º Encontro 
Regional em Itapipoca, 8 a 12/01/85, definiu-se e se assume o marco teórico da PJMP do Ceará (Identidade e 
Características). De 1985 a 1987 se acentua e desenvolve a discussão e pratica (militância) sócio política. Fala-se 
muito de sociedade nova, socialismo, sindicalismo, luta partidária, movimentos populares... do engajamento da 
PJMP nos organismos de transformação da sociedade. De 1981 a 1983 foi a fase de articulação da PJMP no Ceará. 
No 6º Encontro Regional em Tianguá, 12 a 16/01/83 participaram jovens e assessores das nove Dioceses do Ceará, 
todo o Regional NE I. De 1983 a 1985 foi a fase de consolidação e afirmação da Proposta da PJMP. No 8º Encontro 
Regional em Itapipoca, 8 a 12/01/85, definiu-se e se assume o marco teórico da PJMP do Ceará (Identidade e 
Características). De 1985 a 1987 se acentua e desenvolve a discussão e pratica (militância) sócio política. Fala-se 
muito de sociedade nova, socialismo, sindicalismo, luta partidária, movimentos populares, do engajamento da 
PJMP nos organismos de transformação da sociedade.” Disponível em: https://www.pjmp.org/pjmp Acesso 
em:13/08/2021. 
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açúcar, anotava, e no final do mês chegava e pagava. Então funcionou esse armazém 
comunitário por cinco anos. E também uma farmaciazinha também comunitária. Tudo 
funcionou. (Valdeci Araújo). 
 
Percebo como os elementos de superação observados na fala de Valdeci são tratados 
como forma de indicar a situação de dificuldades, mas também de disputas pela água, por 
caminhos alternativos de seu acesso a ela. Se havia o controle dos açudes privados, também 
havia tentativas de solidariedade como o poço coletivo, apontando as disputas e conflitos em 
torno da água. Dimensões vislumbradas na fala de dona Marleide, que nasceu na comunidade 
Barra Santo Antonio e cresceu no povoado chamado Queimadas, onde morou até os quatorze 
anos de idade: “eu curtir muito a natureza, sabe, eu explorei demais tudo o que eu podia 
explorar”. 
Na comunidade onde Marleide morava “todo mundo era parente. E cada um tinha 
lá sua casinha perto do vovô e da vovó”. A comunidade era abastecida pelos carros pipas, que 
traziam a água do açude Curupaiti, localizado no Distrito de Itans. A água era armazenada em 
uma cisterna localizada na Escola de Ensino Fundamental Antonio Correa de Araújo, ponto de 
distribuição do recurso para os moradores. Além desse ponto de distribuição, existiam alguns 
pequenos açudes que pertenciam à toda comunidade: 
Como era uma localidade onde praticamente todo mundo era parente, e então era 
como se todo mundo fosse dono, né. Não tinha aquela pessoa que proibia ou aquele 
dono, tinha o nome das pessoas, por exemplo: o açude Oscar que era na minha região 
[Queimadas], aí tinha o açude da Elsa que já era no centro da Barra Santo Antonio, aí 
tinha o açude dos Altos. Mas era livre, todo mundo podia tirar água, lavar roupa e 
tudo, não era proibido não, porque se não tornava particular. Mas também era assim, 
só tinha o nome das pessoas, nem era particular. (Marleide Cavalcante). 
 
 Importante observar que os modos de conceber água em Queimadas era totalmente 
diferente de como ocorria em Poço dos Porcos. O primeiro aspecto a ser observado é a passagem 
do tempo histórico em que as histórias são narradas. Na primeira narrativa, Valdeci conta suas 
experiências no período – entre o final da década de 1970 e início de 80 – em que as 
comunidades ribeirinhas contavam apenas com os próprios recursos, explorando as poucas 
reservas hídricas disponíveis, e explanando estratégias para viabilizar um abastecimento 
mínimo de água. Na fala de dona Marleide – referente à segunda metade da década de 1980 – 
encontramos elementos que foram superados ao longo dos anos no que diz respeito à 
transposição de água e aos açudes “que pertenciam a todos da comunidade.” 
A próxima fala é da senhora Maria Pereira Monte, conhecida como Eurides. Ela 
nasceu na comunidade de Poço dos Porcos em 1944, onde morou até 1995, quando foi 
surpreendida pelo episódio que mudaria o percurso de sua vida. E com seu relato mais 
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dimensões são destacadas desses usos e acessos a água, de como os sujeitos narram experiências 
relativas ao tempo anterior à construção da Barragem. Ela conta que, antes do barramento, as 
pessoas de sua comunidade buscavam água nos açudes privados localizados nas comunidades 
de Carnaubinha e Novo Horizonte. Os proprietários desses açudes forneciam água aos 
moradores em dias alternados: 
A gente tirava água do açude Novo Horizonte, se tirava dos Costas, porque, sabe que 
os açudes eram pequenos. Um dava uma parte, outro dava outra, sabe. Teve um tempo 
que a gente tirava dos Costas, as vezes do açude dos Freitas e lava roupa no açude dos 
Bezerras e Reforma [Açude Antonio da Reforma], que chamava o açude lá, 
justamente o terreno se chamava Reforma, sabe. Era assim. Lá é tudo próximo, é 
assim, nós no Poço dos Porcos e esses açudes tudo... Novo Horizonte, na Carnaubinha, 
era assim. (Eurides) 
 
Assim como nos depoimentos anteriores, a fala de dona Eurides remete às práticas 
quotidianas dos sujeitos que vivem em espaços com alta irregularidade de chuvas.3 Esses 
aspectos também são percebidos na fala de Fernandes, que nasceu na comunidade de Barra 
Santo Antonio em 1970, onde morou por dezessete anos. Ele conta que, antes da construção da 
barragem do açude Castro, a comunidade era abastecida pelos pequenos açudes existentes em 
sua região, e que por diversas vezes enfrentou dificuldades de acesso à água.Esses açudes 
pertenciam aos proprietários de terras e de fazendas localizadas na comunidade vizinha 
chamada Garrote. O acesso a esses açudes era bloqueado pelos donos do lugar, impactando 
diretamente nas relações existentes entre os “donos da água” e os moradores que recorriam aos 
poucos espelhos d´água. Eles e elas, inclusive, apontam para uma imagem sobre essa 
temporalidade, criando uma dada significação do mesmo, o “antes da barragem”: 
Antes da Barragem, antes do abastecimento de água, os açudes da nossa região eram 
pequenos e logo eles secavam, aí a gente se abastecia nos açudes ali do Garrote, 
chamados o Açude Novo, o Açude Velho e da fazenda do doutor Miguel, a fazenda... 
eu não me lembro o nome da fazenda, mas o dono da fazenda era o doutor Miguel 
Esquetino. Ela ficava ali entre a Barra [Barra Santo Antonio] e o Garrote, na divisa. 
A água lá a gente tirava, mas era um pouco escondido, ele não gostava muito não. Eu 
fui algumas vezes interceptado por um filho dele, ele mesmo era difícil aparecer por 
lá, era mais o filho dele, era o Fernandes, ele sempre tava por lá administrando e as 
vezes quando ele via a gente tirando água ele num gostava muito não. Às vezes ele 
falava, perguntava: “quem foi que autorizou? Num tira água daí não rapaz.” Ele não 
gostava muito não. Mas quando tava só o gerente, ele não proibia não, ele ajudava 
muito a comunidade lá com o que era possível, a água ele não proibia de tirar não. 
(Francisco Fernandes). 
 
 
3 No semiárido brasileiro, a taxa de precipitação pluviométrica é de 200 a 800mm anuais. No município de 
Itapiúna-Ce essa taxa manteve a média de 822,40mm anuais. No entanto, a partir do ano de 2012, foram 
observadas precipitações de chuva abaixo do esperado com média entre 391,6mm e 706,2mm. (PREFEITURA, 
2019). 
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Nessa temporalização da experiência vivida temos o destaque para a proibição de 
acesso aos açudes, quando aponta uma relação de conflito entre os sujeitos que precisavam da 
água para sobreviver e os proprietários de terra. A interdição ao acesso, no entanto, não impedia 
que, em várias circunstâncias, seu Fernandes e outros moradores de sua comunidade 
adentrassem algumas nessas fazendas, impulsionados pela falta de água e sem autorização para 
tal. Por outro lado, o último trecho de sua fala revela que também havia cumplicidade entre os 
moradores e as pessoas encarregadas de monitorar os açudes. Nesse aspecto, aparece um pouco 
da complexidade das relações entre os “donos da água” (os proprietários de terra, os filhos dos 
proprietários e os que gerenciam a água) e os moradores das comunidades e como relatam tal 
situação. 
As narrativas de Francisco Alves, Valdeci, Marleide, Fernandes, Eurides e dos 
sujeitos que aparecem indiretamente em suas falas, mostram as rupturas do processo 
normativo4, sobre as formas de pensar o homem que vive nos espaços semiáridos e a forma 
como os próprios sujeitos se pensam dentro desse contexto. Esse processo normativo, que 
durante muitos anos da história da humanidade associou a seca aos fenômenos naturais e 
climáticos, foi sendo “abandonado” para pensar as questões sociais da seca. Essa ruptura, pode 
se dizer, aconteceu a partir das experiências que atravessam a vida quotidiana dos sujeitos 
afetados pela seca, possibilitando uma reflexão social de suas ações coletivas e individuais. 
Essa ruptura, no entanto, aconteceu efetivamente a partir de ações in loco de sujeitos 
na tentativa de mudar sua realidade. Neste caso, me refiro aos modos de superação dos efeitos 
nocivos da seca, a partir da ocupação de espaços propícios à exploração da água, a partir da 
organização comunitária ou de reivindicações e denúncias do descaso público. A consciência 
social pode, ao mesmo tempo, ser legítima sem que haja uma prática efetiva. A exemplo disso 
cito o trecho da redação intitulada SECA, publicada no jornal A Voz dos Jovens de Itapiúna 
(1980a). A construção narrativa é uma reflexão sobre os aspectos naturais e sociais das 
populações que vivem o drama da seca: 
E o que fazer para ajudar o Nordeste seco? Trazem um plano intitulado emergência, 
no qual as vítimas da seca se apoiarão como se fosse o último recurso que existisse na 
face da terra. É aí que muitas vezes ele foi, é e será vítima de mais um processo de 
sofrimento. Isso para os pobres lavradores em que não tem terra nem para se apoiar, 
pois os grandes proprietários, os “donos” das terras serão os únicos a tirar bom 
proveito da situação. O que fará o pobre homem do campo, raspando terra seca, 
passando necessidade, sofrendo injustiças? Terá ele uma recompensa? Não lucrará 
nada, pois sem a seca ele já sofria o árduo trabalho, avalio com a seca, situação em 
que muitos poderosos só aproveitam para humilhar mais ainda e tornar a situação mais 
 
4 Me refiro ao conjunto de regras sociais que se estabelece entre os sujeitos. No caso dos moradores da comunidade 
Barra Santo Antonio, esse processo normativo foi sendo ressignificado à medida que novas formas de disputa 
pela água foram sendo articuladas e experienciadas pelos sujeitos. 
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difícil. Não é a seca a total responsável por isso, ela iniciou a situação, mas existem 
outros responsáveis que poderiam amenizar mais a situação. (A VOZ, 1980a, p.1). 
 
 O texto reúne elementos que descrevem como a seca interfere diretamente a vida 
do homem do campo, sem desprezar os aspectos sociais ligados a este fenômeno. O impacto 
direto na produção agrícola de subsistência e na economia do lugar somam alguns desses 
aspectos. Logo, os sujeitos que vivem nos espaços com baixa incidência de chuva possuem 
maior vulnerabilidade de construir relações baseadas no assistencialismo ou paternalismo. 
Em suma, o paternalismo é um termo descritivo frouxo. Tem uma especificidade 
histórica consideravelmente menor do que termos como feudalismo ou capitalismo. 
Tende a apresentar um modelo da ordem social visto de cima. Tem implicações de 
calor humano e relações próximas que subtendem noções de valor. Confunde o real e 
o ideal. Isso não significa que o termo deva ser abandonado por ser totalmente inútil. 
Tem tanto ou tão pouco valor quanto outros termos generalizantes – autoritário, 
democrático, igualitário – que, em si e sem adições substanciais, não podem ser 
empregados para caracterizar um sistema de relações sociais. Nenhum historiador 
sensato deve caracterizar toda uma sociedade como paternalista ou patriarcal. Mas o 
paternalismo pode ser, como na Rússia czarista, no Japão do Período Meiji ou em 
certas sociedades escravocratas, um componente profundamente importante, não só 
da ideologia, mas da real mediação institucional das relações sociais (Thompson 
E.P.,1998, p.32). 
 
Tais tensões podem ser pensadas através da análise da representação que gera poder 
aos proprietários de terra, que também são os “donos da água”. E “todo discurso que gera poder 
escorrega pelas correntezas nem sempre abundantes de ter a água ou da possibilidade de 
fornecê-la aos que não tem” (RIOS, 2012, p.249). Os poucos espaços úmidos, durante as 
ocorrências de seca, tornam-se palcos de conflitos e de interesses voltados para o cultivo de 
alimentos e criação de animais e, sobretudo, para a concentração de poder econômica dos 
poderosos da região a partir da exploração comercial. 
Nestes espaços a elevação de preços dos produtos agrícolas e de origem animal, o 
baixo custo da mão de obra e a cobrança pelo acesso e utilização da água são alguns dos aspectos 
que caracterizam as “testilhas da seca” no sertão cearense (RIOS, 2012). Entretanto, as relações 
de poder não podem ser consideradas estáticas do ponto de vista social, uma vez que as tensões 
que se desenvolvem no seio desses vínculos podem transformar a natureza do status quo e 
demonstram esse tempo vivido em meio a conflitos e possibilidades de luta pela água. É sobre 
essa discussão que analiso no tópico seguinte. 
Trabalho, através da interpretaçãodas memórias e experiências dos sujeitos, as 
dimensões do processo de obtenção da água, bem como as relações de poder existentes, pois 
entendo tais rememorações tendo em vista que “a história da memória é cada vez mais necessária 
para quem pretende fazer a história dos acontecimentos.” E que “se pensarmos bem, estes apenas 
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são reconhecidos como tal com a atribuição de sentido operada pela memória, selecionando alguns 
factos no imenso e informe amontoado de acontecimentos quotidianos” (PORTELLI, 2013, p.89). 
 
 
2.2 Água e poder em Itapiúna antes do barramento 
 
O açude Brejo foi construído em 1941 por Manoel Bezerra Campelo. A família 
Bezerra Campelo, emigrante do Rio Grande do Norte de descendência portuguesa, chegou ao 
pequeno vilarejo, “Itaúna”, em 1914, quando ainda pertencia ao município de Baturité. A 
família adquiriu fortuna através da expansão territorial e conquistou, ao longo dos anos, o poder 
político local “intitulados como os fundadores de Itapiúna” ou “os desbravadores destas terras.” 
Segundo Bezerra (2010, p.20) “esta ideologia corresponde ao mito que se criou [...] pelo 
prestígio familiar advindo das grandes extensões de terras obtidas pela família e que os 
distinguem dos demais proprietários locais.” 
Assim, José Bezerra Campelo ou Zequinha Campelo, como era conhecido, herdou 
de seu pai muitas terras, o açude Brejo e a incumbência de tomar conta dos negócios da família, 
enquanto seus irmãos mais velhos se formavam em medicina, direito e docência. Tal prestígio 
proporcionou à Zequinha tornar-se uma figura de grande poder político e econômico de Itapiúna 
na década de 1950. Ele passou a ser intitulado de “pai dos pobres” adquirindo a admiração da 
comunidade. 
Além do poder econômico, Zequinha possuía um poder carismático muito forte. Isso 
por dois motivos: o primeiro, porque descendia de Manoel Bezerra, ou seja, era filho 
e tinha se incumbido de seguir os passos do pais no que se refere ao assistencialismo 
dos seus. E o segundo, diz respeito à beleza e simplicidade que este demonstrava a 
todo o povo local. Logo, se evidencia que José Bezerra Campelo [Zequinha Campelo] 
tentava misturar-se com o povo. Assim ele mostrava-se atento as necessidades do 
povo, porque tentava vivenciar a realidade quotidiana do sertanejo (BEZERRA, 2010, 
p.23). 
 
Após e emancipação política de Itapiúna, em 1958, Zequinha Campelo se candidata 
e se elege prefeito, utilizando a “política de favores” como forma de conquista de voto e 
simpatia dos eleitores, o que não foi tarefa difícil diante de sua imagem e ações paternalistas. 
O povo, naquela ocasião, fazia deste ato um momento de “dar” o seu voto para aquele que mais 
o agradou, para aquele que de uma maneira ou de outra o apoiou em alguma circunstância como 
um ato de lealdade e gratidão (BEZERRA, 2010). Nas eleições de 1962 e de 1967 Zequinha 
candidata-se novamente ao cargo de prefeito e perde as duas disputas, respectivamente, para os 
irmãos Waldemar Antunes e João Antunes Pereira Filho, que segundo a historiadora Mirelle 
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Bezerra, formam escolhidos pela população por serem “grandes proprietários de terras. 
Nascidos numa família tradicional de elites locais acumularam uma razoável fortuna com o 
plantio e o beneficiamento de algodão” (BEZERRA, 2010, p.32). Em sua perspectiva as 
relações políticas em Itapiúna estavam fortemente ligadas às ações paternalistas dos “donos do 
poder”, que utilizavam diferentes métodos para atrair o público eleitor. 
 Em 1970 Zequinha Campelo decide se candidatar mais uma vez à prefeito 
utilizando, desta vez, a seção das águas do açude Brejo como troca de moeda política, 
evidenciando suas intenções no trecho da música de sua campanha eleitoral: “Itapiúna elegera 
para sua prefeitura José Bezerra Campelo, um homem de alma pura. Açude, enxada e semente 
ele conseguiu até construir.”5 Interpreto aqui como tal reservatório de água fez parte das 
relações políticas e sociais na vida dos sujeitos. Tínhamos em Itapiúna disputas e negociações 
no acesso a água. 
O Açude Brejo foi, durante quatro décadas, a única reserva de água que abastecia a 
população da cidade-sede. Durante esse período, Valdeci lembra que, “Zequinha Campelo, 
quando era perto de eleição, abria as porteiras e todo mundo ia buscar a água.” O modo como 
Zequinha construiu sua campanha política – enquanto “dono da água” e conferindo à 
comunidade as melhorias que ele proporcionou para a cidade através do Açude – o fez ser 
reconhecido como um líder pela comunidade. Por vezes os moradores das comunidades rurais 
mais próximas recorriam ao açude Brejo, assim como Valdeci que percorria o trajeto de 
aproximadamente 7km até o reservatório quase todos os dias. 
 Assim, o proprietário do Açude utilizava os bens da família não apenas para 
conquistar a simpatia e o voto de seus eleitores, mas para lucrar sobre seus bens através da 
exploração da mão de obra barata e de ações assistencialistas. Esta relação de poder – de um 
lado as formas de controle social e do status quo, do outro, as necessidades vigentes dos sujeitos 
afetados pela falta de água – sugere uma prática normativa dentro do processo de negociação 
que se estabeleceu entre os sujeitos durante os períodos de seca em Itapiúna. 
 Essa política de favores utilizada conectou o açude Brejo aos aspectos social, 
político e econômico em Itapiúna. O primeiro está relacionado às experiências do homem 
urbano e do campo que não podem ser medidas ou se quer comparadas, considerando seus 
recortes sociais, mas apresentam um panorama sobre as formas múltiplas de utilização da água 
do Açude e permitem analisar as ações dos sujeitos em suas particularidades. O segundo aspecto 
está conectado à concentração de poder do “dono da água”, à medida que o Açude é utilizado 
 
5 A entrevistada Maria de Fátima cedeu um dos folhetos que contém a letra da música da campanha eleitoral de 
1970 do candidato José Bezerra Campelo, seu esposo. 
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como massa de manobra para obtenção de votos. E, por último, o econômico, considerando que 
a população desenvolveu o seu próprio meio de sustento, fosse através da venda de água, por 
meio de serviços de entrega a domicílio, enquanto “guardião da água” ou de serviços prestados 
à beira do Açude. Os serviços de lavagens de roupa, por exemplo, era uma prática muito comum 
entre mulheres desempregadas e as donas de casa da época. De qualquer modo, o impacto da 
água do açude Brejo na cidade-sede superou algumas demandas de primeira necessidade – era 
utilizada para beber, cozinhar, lavar utensílio domésticos e para o asseio pessoal. Além disso, 
o açude gerou uma renda para aquelas pessoas que não possuíam outro meio de sobrevivência, 
que contribuíam com o crescimento do comércio local. 
 As práticas de negociações entre o dono do Açude e a comunidade aos poucos 
foram sendo consolidadas. Em via de regra o açude Brejo era utilizado como forma de 
concentração de poder e de controle social durante as campanhas eleitorais e as gestões políticas 
de Zequinha Campelo, mas a ideia que se tinha sobre o reservatório se ressignificou a partir do 
momento em que ele passou a fornecer a água sem a pretensão de atrair o público eleitor, o que 
indica mudanças nessa temporalidade e algo que as narrativas também destacaram. 
Trata-se do período referente ao ano de 1976, quando Zequinha perde a eleição para 
José Monteiro Gonçalves (Zé Nilton) e passa a monetizar o fornecimento de água do Açude. 
Esse fato desencadeou alguns conflitos na comunidade, a partir do momento em que rompe e 
inicia-se novos ciclos de disputas e acesso à água: 
 
Era vendida. Na época ele tava vendendo. Até o pessoal chamava ele de miserável 
porque ele tava vendendo. Porque era pra abrir as portas pro pessoal pegar água, né?! 
Mas ele vendia. Todo mundo ia com suas latinhas e voltava...aí tinha uma pessoa lá 
pra receber o dinheiro. Naquela época era o quê? Era

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