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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ivair da Silva Costa Uma contribuição ética de alguns mitos amazônicos diante da reflexão do iminente colapso ecológico da água: aproximação teológica DOUTORADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2010 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ivair da Silva Costa Uma contribuição ética de alguns mitos amazônicos diante da reflexão do iminente colapso ecológico da água: aproximação teológica DOUTORADO EM TEOLOGIA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia Moral sob a orientação do Prof. Doutor Sérgio Conrado. SÃO PAULO 2010 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA TÍTULO DA TESE: Uma contribuição ética de alguns mitos amazônicos diante da reflexão do iminente colapso ecológico da água: aproximação teológica ALUNO: Ivair da Silva Costa Orientador: Prof. Doutor Sérgio Conrado. SÃO PAULO - 2010 ERRATA DA TESE 1. Abstract Title: An ethical contribution of some Amazonian myths on the reflections of impending ecological collapse of the water: a theological approach. - The whole of the thesis reflects … The whole of the dissertation reflects - express principles (criterion) … express principles (criteria) - In analyzing the new Amazon environment… In base of the new Amazon environment - re-invention of Life in focus ethical and theological... re-invention of Life from a ethical and theological focus. - take before reality conflict… take in face of reality conflict - for wanting to see… for longing to see - Keywords: ethics, theology, creation… Keywords: theological ethics, creation. 2. Desenvolvimento P. 38 – quarto parágrafo - Uma proveniente da herança cultural grega... Uma proveniente da herança da racionalidade iluminista P. 44 – terceiro parágrafo - por quem tem respeito e atitude de reverência... por quem tem atitude de respeito. P. 64 - nota 141 - Paulo: Moderna, 1995. p. ... Paulo: Moderna, 1995. p. 34. P. 66 – segundo parágrafo - esse mito pós-moderno... esse mito moderno P. 68 – quarto parágrafo - considerada a maior do planeta... a maior do planeta, P. 83 – terceiro parágrafo - norte como Austrália e regiões... norte e regiões P. 114 – nota 293 - CF. O sagrado. Rio de Janeiro: Edições 70, [s.d.]... CF. O sagrado. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. P. 123 – terceiro parágrafo - empreendera uma corrida maluca à procura... empreendera uma corrida à procura P. 137 – primeiro parágrafo - o chamã prediz o fim da raça humana... o pajé prediz o fim da raça humana São Paulo, 04 de outubro de 2010. _________________________________ ______________________ Aluno Orientador BANCA EXAMINADORA ---------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- DEDICATÓRIA Ao Zésena (in memorian), em agradecimento a tudo que me ensinou na vida. Resumo Autor: Ivair da Silva Costa Título: Uma contribuição ética de alguns mitos amazônicos diante da reflexão do iminente colapso ecológico da água: aproximação teológica. O conjunto da tese reflete sobre a exuberância das florestas, dos rios e da riqueza do ethos amazônico como criações divinas, as quais estão submetidas a formas de destruição impostas pelo avanço tecnológico e pela globalização. A degradação e a destruição dos ecossistemas geram uma realidade desumana, que assinala o colapso ecológico da humanidade. A exploração dos ecossistemas e o desrespeito à dignidade do homem consolidam e ampliam as desigualdades sociais profundas, manifestadas pela crescente miséria das periferias urbanas e pela pobreza crônica do campo. As inquietações provocadas por estas realidades, cujas evidências são provas incontestáveis de uma situação concreta, são questionamentos motivadores da investigação científica. Ao assumi-las, como conteúdos reflexivos para a teologia, as perguntas se transformaram em hipóteses inferidas: os mitos amazônicos, em suas expressões simbólicas, sintetizam e expressam princípios (critérios) de defesa da vida e do meio ambiente, especialmente no que se refere aos recursos hídricos? Eles podem se tornar pontos de encontro para a reflexão da teologia moral, em sua tarefa de criticar e contribuir nos procedimentos éticos, frente aos processos destrutivos na região amazônica? Ao analisar o novo ambiente amazônico à luz da ética teológica, a pesquisa faz a aplicação da força defensiva da natureza retirada do imaginário amazônico e, à luz de textos bíblicos, reconhece suas contribuições ao oferecer valores éticos e a urgência de aplicá-los no combate ao iminente colapso ecológico. Esses princípios estão consubstanciados na consideração da água como fonte geradora de vida. Eles anunciam, ao mesmo tempo, uma “solução respeitosa” para toda a criação e oferecem suporte para a análise crítica da realidade, através da ética teológica; postulam para a humanidade uma re-invenção da vida em foco ético-teológico. Dessa forma, a pesquisa colabora na definição de algumas funções que a teologia deve assumir diante da realidade conflitante, que tem a região amazônica como paradigma real, destacando-se entre elas, a de fundamentar o valor da vida humana e renovar a esperança naqueles que lutam por querer ver a criação renovada na harmonia e na paz. Palavras-chaves: degradação socioambiental, ethos amazônico, ética teológica, criação. Abstract Author: Ivair da Silva Costa Title: An ethical contribution of some Amazonian myths on the reflections of impending ecological collapse of the water: theological approach. The whole of the thesis reflects on the lush forest, rivers and the wealth of the Amazon ethos as divine creations, which are subjected to forms of destruction imposed by technological advance and globalization. Degradation and destruction of ecosystems generate an inhuman reality, marking the ecological collapse of humanity. The exploration of ecosystems and the disrespect for human dignity consolidate and extend deep social inequalities, as manifested by the increasing misery of the urban peripheries and the chronic poverty of the countryside. The concerns caused by these realities, whose evidence is incontrovertible evidence of a concrete situation, are questions motivating the research. In focusing on them as reflective content for theology, the questions turned into hypotheses inferred: the Amazonian myths, in their symbolic expressions, synthesize and express principles (criterion) for defense of life and the environment, especially as regards water resources? They can become meeting points for reflection of moral theology, in their task of criticizing and help in ethical procedures, before the destructive processes in the Amazon region? In analyzing the new Amazon environment in light of theological ethics, the research makes the application of defensive force of nature removedfrom Amazon and imaginary, in the light of biblical texts, recognizing their contributions by offering ethical values and the urgency to apply them in combat impending ecological collapse. These principles are embodied in the consideration of water as a source of life. They advertise at the same time, a "respectful solution" for all creation and support for critical analysis of reality by means of theological ethics; postulate for humanity re-invention of Life in focus ethical and theological. Thus, the research helps to define some functions that theology must take before reality conflict, which has the Amazon region as a paradigm for real, foremost among them, to justify the value of human life and renew hope in those who fight for wanting to see the renewed creation in harmony and peace. Keywords: socio-environmental degradation, Amazon ethos, ethics, theology, creation. Sumário Uma contribuição ética de alguns mitos amazônicos diante da reflexão do iminente colapso ecológico da água: aproximação teológica Introdução..................................................................................................................................10 Primeira unidade: águas amazônicas e globalização: potencialidades naturais, interesses e mitos subjacentes.......................................................................................................................18 Introdução...................................................................................................................................18 I. Ecossistemas amazônicos: riqueza e diversificação............................................................18 1. A diversidade das águas amazônicas...................................................................................19 a) Os rios amazônicos.............................................................................................19 b) Igarapés, lagos, igapós, aningais, paranás e restingas........................................21 c) A cacimba e o poço.............................................................................................23 2. Ecossistemas amazônicos e adaptabilidade humana...........................................................23 a) A várzea e a terra-firme......................................................................................24 b) Adaptabilidade humana nas várzeas...................................................................28 c) Adaptabilidade humana na terra-firme...............................................................33 3. O ethos ecológico das populações amazônicas...................................................................36 a) A relação ethos e natureza nas populações amazônicas.....................................37 b) Imaginário simbólico e preservação do alimento..............................................43 II. Ecossistemas amazônicos e imaginário simbólico ameaçados.........................................47 1. Amazônia: o “outro” rico e diferente.................................................................................48 a) A conquista sistemática do espaço amazônico...................................................48 b) Visualidade mágica da paisagem amazônica.....................................................53 c) A reprodução de “clichês”...................................................................................57 2. Globalização e enfraquecimento do potencial simbólico.....................................................59 a) Demitização e desenraizamento cultural.............................................................59 b) A Amazônia e os novos mitos predatórios da globalização.................................65 Conclusão.....................................................................................................................................68 Segunda unidade: águas e avanço tecnológico na Amazônia: desenvolvimento e colapso socioambiental iminente............................................................................................................70 Introdução....................................................................................................................................70 I. Avanço tecnológico e colapsos ecológicos iminentes da água..............................................70 1. Desenvolvimento racional e tecnológico da humanidade....................................................71 a) A techne e as mudanças da ação humana............................................................71 b) A humanidade e o “mito do desenvolvimento ilimitado”...................................77 2. A vulnerabilidade da natureza..............................................................................................81 a) Aquecimento global e sobrevivência do planeta.................................................81 b) A humanidade e a “crise da água”......................................................................86 II. Avanço tecnológico na Amazônia e nova realidade socioambiental.................................91 1. Avanço tecnológico e ameaças aos ecossistemas amazônicos............................................91 a) A Amazônia e o “desenvolvimento a qualquer custo”.......................................92 b) A penetração do capital e a monocultura de exportação....................................98 c) Degradação socioambiental da Amazônia........................................................104 Conclusão..................................................................................................................................110 Terceira unidade: imaginário simbólico e construção da ordem cósmica e social: aproximação teórica e aproveitamento ético-teológico........................................................112 Introdução.................................................................................................................................112 I. Aproveitamento ético-teológico do imaginário amazônico..............................................113 1. As representações das origens do mundo e do ser humano..............................................113 a) Funções das narrativas da criação....................................................................113 b) Motivos dos criadores e papel do homem na criação.....................................117 c) Construção simbólica da ordem cósmica e social...........................................124 2. Práticas simbólicas e matrizes ético-teológicas...............................................................129 a) Práticas simbólicas e integração com a natureza............................................129 b) Matrizes éticas das narrativas indígenas da criação.......................................133 c) A força simbólica da água na cultura amazônica............................................143 3. Aproveitamento ético-teológico da cosmovisão amazônica............................................146 a) A relação profunda entre sagrado e profano...................................................146 b) Ponto de vista da éticacristã: o despertar da consciência..............................156 II. Aproveitamento ético-teológico das fontes bíblicas.......................................................162 1. A criação no contexto da aliança entre Deus e Israel.......................................................163 a) A cosmovisão do povo da Bíblia.....................................................................163 b) A criação como um ato de amor e de libertação.............................................168 c) Deus Criador, Senhor e dono da vida.............................................................171 2. Deus Criador do Gênesis e seu projeto ético para a criação............................................174 a) A criação e o projeto de comunhão com o Criador.........................................174 b) Ser humano, imagem e semelhança de Deus.................................................177 c) O papel do homem na criação........................................................................180 Conclusão................................................................................................................................183 Quarta unidade: realidade socioambiental e iminente colapso ecológico da água: análise crítica e contribuição ético-teológica....................................................................................186 Introdução................................................................................................................................186 I. Realidade socioambiental e implicações ético-teológicas................................................186 1. Nova realidade amazônica e reflexão ético-teológica......................................................187 a) Crítica ético-teológica ao desenvolvimento ilimitado.....................................187 b) A água entre a heurística do medo e a heurística do amor..............................196 c) Nova realidade humana e nova visão de pecado..............................................202 2. Colapso ecológico iminente como um paradigma de pecado...........................................208 a) Degradação socioambiental e desumanização.................................................209 b) Vazio ético e ausência de valores espirituais....................................................212 c) Harmonia esfacelada e quebra da comunhão...................................................215 d) A rejeição do ser imagem e semelhança de Deus.............................................219 3. Novos princípios éticos à luz da ética teológica bíblica....................................................221 a) O cuidado em oposição à desumanização........................................................222 b) Ser humano, imagem de Deus e sacerdote da criação.....................................225 c) A comunhão com o Criador e a solidariedade com o outro.............................229 d) Ser imagem de Deus como vocação e compromisso.......................................234 II. Funções da ética teológica no contexto socioambiental amazônico...............................237 1. Funções direcionadas à degradação socioambiental e humana........................................237 a) Criticar e avaliar ganhos e perdas do avanço tecnológico...............................237 b) Legitimar o valor da vida e a dignidade da pessoa humana............................241 2. Funções direcionadas à fé como compromisso libertador................................................245 a) Configurar-se ao Filho, imagem de Deus........................................................245 b) Manter viva a esperança da plenitude possível...............................................247 c) Ética e projeto de vida: mas, qual projeto?......................................................259 Conclusão.................................................................................................................................262 Conclusão................................................................................................................................264 Bibliografia.............................................................................................................................268 10 Introdução O fenômeno da grande estiagem na Amazônia, no segundo semestre do ano de dois mil e cinco, despertou o Brasil e a opinião internacional para uma realidade comum em todo o planeta. A estiagem alertou todos para os processos de deterioração, depredação e descaso provocados pelo relacionamento injusto da humanidade com a natureza. Esses processos de ordem econômica, cultural e socioambiental estamparam as faces da denominada “crise ecológica planetária” que sinaliza um colapso ecológico iminente, alcançando dimensões que a política, a ciência e a teologia moral cristã não podem mais ignorar. Vários fatores concorreram para o agravamento da situação ecológica planetária, a partir da década de 1960: o choque do petróleo, os regimes totalitários na América Latina, a guerra do Vietnã, o alargamento do fosso Norte-Sul, a ideia de progresso ininterrupto e o valor universal da razão. Estes feitos permitiram aos países do Primeiro Mundo a intensificação de um capitalismo pós-industrial, fortemente globalizado, baseado em alta tecnologia e na exploração permanente dos recursos naturais do planeta. Os mecanismos operados pela globalização do mercado em vista do desenvolvimento dos povos reforçam a tendência planetária modernista pós-industrial que visa basicamente a rentabilidade econômica, sustentada por uma visão especulativa e imediatista do uso dos recursos naturais da terra, considerados fonte de riqueza a ser explorada a qualquer custo humano e ecológico. As transformações em chave desenvolvimentista levam não só à implantação de um capitalismo industrial, mas a transformações socioambientais e culturais que são capazes de produzir situações de total descaso para com a vida humana e o ambiente natural. Por ser um capitalismo periférico, dependente e marcado por uma forte concentração de rendas, é natural que a cultura moderna compatível e funcional que daí surja tenha características próprias. Uma delas é o forte individualismo e a legitimação da competição selvagem, que se torna conhecido pelo ditado popular “deve-se levar vantagem em tudo”. Outra característica é a implantação de um grande parque industrial, acompanhado da ideologia desenvolvimentista que possibilita a formação de uma cultura moderno-capitalista urbana compatível com a nova forma produtiva hegemônica, produzindo o “milagre 11 brasileiro”, com uma profunda internacionalização da economia, fazendo avançar a transformação cultural e econômica para o interior do Brasil, principalmente para a região da Amazônia. A Amazônia é marcada principalmente pela enorme diversidade fundada em valores simbólicos da relação ser humano-natureza de um lado, e, de outro, o utilitarismo e os imediatismos impregnados nos modelos de desenvolvimento econômico ao qual a região ficou atrelada nos últimos duzentos anos. Por não haver um controle das forças de mercado na região, o uso do solo baseia-se na exploração madeireira predatória e pecuária extensiva, fazendo persistir um modelo econômico caracterizado pelo ciclo “boom-colapso”, isto é, uma atividade econômica de ilusório e rápido crescimento (boom) seguido por um severo declínio em renda, emprego e arrecadação de impostos (colapso). Esse padrão é evidente nas regiões exploradas pela mineração e nas fronteiras madeireiras mais antigas como as da região leste do Pará. Do mesmo modo, o uso desregrado dos recursos da natureza em vista do bomdesempenho econômico da industrialização e do agronegócio que se impuseram na região, impactando, sobretudo os recursos aquáticos, se caracteriza, hoje, como o principal vilão promotor do colapso ecológico detectado. Analisando esse processo histórico e seus efeitos por um olhar específico, ou seja, o da Teologia moral, a presente pesquisa aborda várias questões que sinalizam a realidade do colapso ecológico mundial a partir da contextualização da Amazônia. Para realizar essa caminhada e chegar ao final com uma sensação de ter cumprido a missão, a tese, utilizando o método ver-julgar-agir, analisa várias questões através de quatro unidades, dentro dos quais os objetivos são bem definidos. Cada unidade, por sua vez, se subdivide em dois capítulos cujas discussões, complementadas entre si, formam um todo coeso e coerente. A primeira unidade – parte do ver – apresenta os ecossistemas amazônicos, ricos em biodiversidade e com uma imensa riqueza aquática, por intermédio da análise dos diversos tipos de rios caracterizados pela cor de suas águas, dos ecossistemas várzea e terra-firme e da adaptabilidade humana nesses espaços naturais. O primeiro capítulo da unidade estuda o imaginário simbólico amazônico determinado por um ethos que mantém com a natureza uma relação integrada, de onde retira os recursos para sua sobrevivência e os elementos simbólicos necessários para sua compreensão do mundo. Aspectos da cultura e suas manifestações são ressaltados para demonstrar o interesse em combater a exploração e o domínio impostos à região. Esta realidade altamente indicativa da presença criadora e amorosa de Deus é analisada nos aspectos da globalização e das intervenções antrópicas, concretizadas na 12 realidade de degradação socioambiental que ameaça a sobrevivência do ser humano e instaura o desenraizamento cultural nas populações da região. No segundo capítulo, manifestações culturais das populações locais reconhecidas como o “outro” descoberto e subjugado, são postas em relevo e valorizadas como sinais de luta contra o mal representado pela invasão européia do período da colonização e pelos projetos nacionais e internacionais implantados atualmente a serviço do capital. O processo de globalização iniciado com a colonização pelos europeus, ao penetrar no ambiente amazônico, provoca o enfraquecimento do imaginário simbólico regional e o desenraizamento cultural, ao mesmo tempo em que favorece o surgimento e o fortalecimento de novos mitos tecnológicos predatórios, alterando o relacionamento do homem com a natureza. Esses novos mitos se confrontam com o potencial simbólico da cosmovisão do ribeirinho e criam, em relação aos recursos naturais, principalmente à água, diversas formas de apreensão e novos tipos de inter- relação com o ambiente natural. A segunda unidade – ainda do ver – apresenta a realidade atual da crise ecológica, com acento na questão água, verificando, sobretudo o avanço tecnológico e as mudanças provocadas pela ação do ser humano e pelo desenvolvimento adotado. O avanço tecnológico favorece novas formas pós-modernas de pressão, exploração e maior controle dos recursos naturais, despertando a humanidade para a vulnerabilidade da natureza, ao mesmo tempo em que assinala a crise da água vivida em algumas regiões da terra. O estudo descreve o tipo de desenvolvimento adotado e as posturas assumidas em relação aos recursos naturais. Com isso, a discussão se abre para a percepção de que a “crise da água” que algumas regiões do planeta estão vivendo é o grande sinal do colapso ecológico que se anuncia num futuro não muito distante. O segundo capítulo destaca que os elementos indicativos do colapso já estão se manifestando nos ecossistemas característicos da Amazônia, também invadidos pelos processos tecnológicos. Estes, por sua vez, são determinados pela ideologia do “desenvolvimento a qualquer custo” imposto à região e pela penetração do capital e da cultura de exportação. A análise de fatores como o desmatamento, a poluição e o assoreamento de rios e lagos, a poluição e a ameaça de extinção da fauna e da flora, colabora para a percepção da desumanização e degradação ambiental, visível nos muitos rostos de sofredores da região, frutos de um sistema que instrumentaliza o ser humano e banaliza os valores éticos e morais. Percebe-se que a globalização envolve todas as dimensões da vida humana e interfere em seu curso de diferentes modos. Ela comanda as relações das pessoas entre si e 13 com o meio natural. Caracterizado como um fenômeno transmundializado, impõe um modelo cultural que se acha capaz de resolver e de adaptar-se em todas as situações de vida de povos diversos. Oferece também modelos de desenvolvimento que se apresentam como passíveis de serem aplicados em qualquer parte do mundo. Porém, não consegue oferecer regulação que mantenha o equilíbrio entre as ações produtivas e o ambiente natural onde o empreendimento está assentado, mesmo oferecendo princípios reguladores da produção e da distribuição em larga escala. Isso demonstra que a concepção de desenvolvimento adotada na região interfere nos resultados de uma melhor ou pior regulação dos processos produtivos, na conservação da fonte natural de matéria-prima e na sustentabilidade das populações locais. As atividades antrópicas associadas ao desenvolvimento industrial, à agroindústria e à urbanização degradam a qualidade dos recursos hídricos. O desmatamento de responsabilidade nacional e as mudanças climáticas globais, cuja responsabilidade primeira recai sobre os países desenvolvidos, são processos caracterizados como ameaçadores ao ecossistema, causas da degradação socioambiental. A análise do colapso ecológico como um processo sugere a transformação da situação, antes que se transforme em resultado final, pois, tais processos, com o aumento populacional e com a intensificação do avanço tecnológico e industrial, ocuparão novas áreas, acelerando ainda mais a destruição dos ecossistemas intactos e colaborando para o colapso socioambiental planetário. A terceira unidade – que abrange o passo do julgar – põe em destaque as práticas simbólicas de povos diversos da humanidade, incluindo indígenas e amazônidas para perceber a construção da ordem cósmica e social. Aspectos da linguagem dos sistemas simbólicos são analisados, dando destaque para a expressão religiosa e para a mitologia que, em relação à água, oferecem imagens e representações antropológicas. Desse modo, o estudo quer fazer emergir matrizes éticas de convivência com o ambiente natural e com os outros seres, por meio do aproveitamento ético-teológico oferecido pelo imaginário simbólico de povos diversos. A reflexão acerca das narrativas da criação de alguns povos e do imaginário simbólico amazônico e a análise de pressupostos ético-teológicos por eles oferecidos sugerem para a ética cristã elementos básicos que colaboram para a expressão da fé no Deus criador de forma mais madura e segura. Ao mesmo tempo, imprime e desperta nas populações, especificamente da Amazônia, a consciência de sua participação nos processos históricos e na transformação das estruturas destruidoras da região. Nesse sentido, a cultura se impõe como 14 uma força das populações que atualiza, no ethos regional, princípios de convivência fraterna e de comunhão entre as pessoas e com a natureza. A reflexão aplicada à natureza e especificamente à água, recurso vital que está em processo de escassez, resgata para toda a humanidade a dimensão sagrada desse precioso líquido que, na maioria das religiões, é integrada aos seus aspectos de mistério tremendo e fascinante. Em muitas tradições espirituais a água tem um significado mais rico do que o seu conteúdo material. Ela simboliza a vida. No sudoeste da Ásia, desde tempos remotos, os hinduístas cultuam deuses e mitos com os quais se encontram de modo especial, quandose banham no rio Ganges ou em outros rios sagrados da Ásia. Eles se purificam através do banho ou em lagos e cultuam Vishnu e Varuna como divindades da água. Para as populações ribeirinhas e indígenas, mais ligadas à água, ela é venerada como fonte de vida. Nela se concentra o celeiro de recursos que mantém a subsistência. Muitas tradições afirmam que as pessoas foram feitas de água e dela saíram para a terra a fim de cuidarem da natureza. Outras tradições acreditam que a água é o ponto de relação entre o céu e terra. Os povos do semi-árido veneram a água como tesouro escondido ao qual almejam e do qual dependem. O segundo capítulo recupera a perspectiva ambiental incorporada na concepção judaico-cristã do mundo, fazendo perceber, nos relatos do Pentateuco e de outros textos bíblicos, pressupostos éticos e teológicos que vislumbram a dimensão da fé do ser humano, recontextualizando alguns signos bíblicos para evidenciar seu aporte ecológico. Nesse sentido, a abordagem oferece, a partir da reflexão teológica cristã, elementos caracterizados como matrizes éticas que estão impressas na força defensiva do imaginário simbólico e nos relatos do Gênesis que, por sua vez, oferecem critérios de defesa da vida e do meio ambiente e motivam a inserção de novos valores éticos na prática da humanidade. Analisando os primeiros textos do livro do Gênesis, percebe-se um conflito em que estão envolvidos a vida e a morte numa luta constante de oposição uma à outra, sem cair no dualismo que parece propor. Os textos opõem, por exemplo, a proposta de vida oferecida por Deus Criador, àquela arquitetada pelos homens, traduzida em seus projetos pessoais (Cf. Dt 30,18s). Assim como, oferecem uma visão solidária da natureza e dos seres vivos, em oposição a uma visão utilitarista que também se faz presente nos dias de hoje. Percebe-se, nos relatos bíblicos, que a vida constitui elemento indissociável do Criador que determina uma ordem cósmica que não pode ser colocada em risco. Com isso, 15 constata-se que não é orientação bíblica o dominar ou mesmo devastar a natureza como perversamente se acusa. Ao contrário, identifica-se uma orientação justamente oposta a tal posição, ao oferecer uma série de princípios defensivos da vida que se apresentam como forças que se opõem às práticas que desarmonizam uma ordem cuja origem é o Criador. Desse modo, a Bíblia não autoriza o domínio da natureza em vista de interesses individualistas, mas sim uma lógica do cuidado que recai sobre a própria interpretação da Bíblia, dentro da cosmovisão própria do povo que a ela pertence. Por outro lado, frente à vontade do Criador, assinala-se hoje a existência de elementos concretos no cotidiano que demonstram uma aliança perversa, voltada contra a vida e seus significados mais profundos. Esses elementos são encontrados na lógica da opressão que aflige o ser humano, principalmente os mais pobres, e perpetua a exploração e a destruição do ambiente natural. Diante disso, os textos bíblicos, desse modo, enaltecem uma ordem cósmica que deve ser zelada, e excluem dessa mesma ordem os predispostos a desarticulá-la. A releitura dos textos apresenta a opressão como algo detestável, indicando um entendimento teológico das situações de destruição da natureza como desdobramentos de várias situações opressivas. Ao mesmo tempo, desvenda um horizonte vital em que a ética- teológica, entendendo-se libertadora, debruça-se e oferece pressupostos teóricos que confrontam a realidade e despertam na pessoa de fé o compromisso de lutar pela vida e de se tornar guardiã da criação em todos os sentidos. Ao resgatar os textos bíblicos em uma aproximação ético-teológica, a teologia se apropria dos pressupostos éticos neles contidos em função da preservação da integridade da criação e da libertação de todos os homens e mulheres. A pesquisa dá ênfase à situação que desafia a humanidade no tocante à ecologia e destaca o que a Revelação diz sobre ela a partir da análise da ética cristã que, com todo o seu arcabouço teórico acumulado ao longo dos séculos, serve de auxílio na tentativa de levar ao bom termo a solução da crise reconhecidamente ecológica e ética. Com isso, pretende-se pôr as questões que envolvem a realidade socioambiental no centro do debate ético-teológico para asseverar que, embora se apresente como um problema da ciência e, em grau elevado da ética, é também um problema teológico. A quarta unidade – apresenta pistas para um agir – faz uma análise crítica da nova realidade que a humanidade está vivendo, dando um enfoque maior à situação amazônica, a partir das implicações da ética teológica para a degradação socioambiental. A realidade 16 apresentada, em seus vários aspectos, mostra as condições da humanidade em relação à água e tece críticas ao modelo de desenvolvimento adotado com as consequências que dele advêm para a compreensão da pessoa humana e de sua missão diante da criação. Desta feita, a pesquisa desenvolve uma crítica à realidade socioambiental que cria miséria humana e destrói o ambiente natural, vendo, nas condições precárias em que se encontra o ser humano, sinais da presença do pecado pessoal e estrutural engendrado na situação concreta de desumanização, vazio ético, quebra da comunhão e rejeição do ser imagem de Deus. Ao perceber o pecado, não abstrato, mas concreto, presente nas estruturas da sociedade, em sua dimensão pessoal e social, a pesquisa oferece como pistas indicativas orientações de vida para uma humanidade que está perdendo a gratuidade nas relações sociais e com o ambiente natural, apresentando uma proposta ética com valores que se contrapõem aos oferecidos pela sociedade. Esses novos princípios apresentados como formas de combater o mal e o pecado são o cuidado, o ser humano como sacerdote da criação, a comunhão com o criador e a solidariedade com o outro e ser imagem de Deus como vocação e compromisso libertador. No segundo capítulo a ética cristã, após apresentar os princípios a partir do confronto do querer de Deus e o papel específico do ser humano assumido dentro do seu projeto salvífico, expõe as funções a serem desempenhadas na nova realidade socioambiental e humana. Direcionadas a essas duas dimensões da vida, a teologia entende como funções suas o criticar e avaliar os ganhos e as perdas do avanço tecnológico, legitimar o valor da vida e a dignidade da pessoa humana e manter viva a esperança na plenitude possível. Ao desempenhar essa função, a ética cristã deve animar a esperança num mundo novo recriado pela força da glória de Deus que, fazendo-se presente na história humana e caminhando com ela, motiva-a a assumir a construção do novo céu e nova terra como compromisso e projeto de vida. Na Amazônia, situações que indicam a luta contra as formas destruidoras de pecado manifestadas na depredação dos ecossistemas informam o fracasso econômico, social e ecológico das políticas públicas aplicadas na região nas últimas décadas. Novos modelos de organização territorial não destrutivo e viável em longo prazo são atualmente estimulados. O extrativismo e as práticas tradicionais de sustentabilidade são também reconhecidos como alternativas ao desenvolvimento. Práticas simbólicas, do mesmo modo, são revalorizadas, em vista do resgate das muitas informações autóctones que visualizam traços culturais 17 potencialmente carregados de sinais pró-ecológicos que fundamentam a luta de defesa da vida e a salvaguarda da criação. Ao abordar de forma ampla a realidade amazônica, suas riquezas naturais e a adaptação do ser humano, percebe-se que o imaginário das populações, elemento fundamental que coopera para o relacionamento integrado homem-natureza, informa para a reflexão teológica matrizes éticas que se transformam em bases teóricas pertinentes que contribuem para a reflexão ético-teológica latino-americana.Baseando-se nisso, a relação entre mito e teologia ocupa um capítulo a parte na reflexão teológica cristã. Com fundamentos na tradição e no conhecimento dos antigos, trata-se de uma relação que prioriza a complementaridade e o apoio de uma em relação a outra. Assim, buscam-se elementos comuns que ampliam o conhecimento de Deus e sua revelação na história. A realidade abordada em todo o texto prioriza a interdisciplinaridade como um mecanismo que contribui para a compreensão a mais completa possível da realidade analisada. Com isso, a própria teologia reconhece que não pode entender e enfrentar os problemas humanos sozinha. Diante dos questionamentos, há de se chegar a uma disciplina ou a um pensar que, de modo organizado e sistemático, interroga-se pelo sentido último de todas as coisas, ao mesmo tempo em que procura dar respostas a partir da visão global do homem e da humanidade, cumprindo a sua missão específica. 18 Primeira unidade: águas amazônicas e globalização: potencialidades naturais, interesses e mitos subjacentes. Esta primeira unidade descreve as potencialidades naturais, a riqueza e diversificação dos diversos ecossistemas amazônicos e sua relação com o imaginário simbólico. Por estar inserida na região dos trópicos úmidos, cuja principal característica é compartilhar uma alta radiação solar, temperatura uniforme, alta pluviosidade e umidade, a Amazônia torna-se uma região privilegiada com características especiais. Essa realidade favorece uma multiplicidade de ecossistemas, fazendo surgir várias espécies da fauna e da flora, capazes de alimentar e sustentar populações numerosas. Os ecossistemas amazônicos representados pela riqueza aquática e florestal e a força do imaginário simbólico que imprimem visão e compreensão de mundo participam da construção do ethos regional e orientam o esforço de adaptabilidade frente às mudanças sofridas. A interdependência entre as duas dimensões faz ver que o real reproduz o que está no imaginário. Desse modo, a agressividade do avanço tecnológico e da globalização que ameaça os ecossistemas amazônicos com seus recursos naturais, levando-os ao desperdício e à extinção, do mesmo modo, pulveriza o imaginário das populações, alterando a relação entre ser humano e ambiente natural e abrindo espaços para a penetração de novos mitos da globalização, quase sempre de caráter destrutivo e predatório. Aspectos postos a seguir informam como esses processos agem na região amazônica, onde aparecem integrados ser humano e ambiente natural. Temas como ecossistemas e diversificação aquática, o ethos regional e as ameaças da globalização econômica e cultural, ao serem analisados, fazem ver que ao oferecerem seus signos com novos significados existenciais, imprimem os interesses subjacentes que colaboram para o favorecimento do colapso ecológico da água. I. Ecossistemas amazônicos: riqueza e diversificação Os ecossistemas amazônicos são formados pela variedade de nichos ecológicos florestais e aquáticos, e pela adaptabilidade humana nesses ambientes ecológicos. No interior desses mesmos ambientes e a partir deles, as populações construíram um ethos marcado profundamente pela integração com a natureza. É preciso conhecer essas realidades regionais 19 para a percepção de sua riqueza, pois, são elementos que influenciam sintomaticamente nas relações da população com a água. Neste capítulo, serão apresentados os diversos tipos de rios, caracterizados pelas cores das águas, as características da adaptabilidade humana nos ecossistemas várzea e terra-firme e a análise do ethos ecológico formador do imaginário simbólico do homem da região. 1. A diversidade das águas amazônicas A Amazônia brasileira recobre uma área de 6 milhões de km2 e corresponde a 61% do território do país. Possui o maior banco genético do planeta, incluindo os demais países com áreas amazônicas. Detém 1/5 de água doce do globo e 1/3 das florestas tropicais. As águas amazônicas têm suas diferenças, se observadas as suas nascentes e geomorfologia próprias. São rios que estão em constantes mudanças, dadas às alterações comuns numa região com diversidade de solos, climas e temperaturas. Aos diversos tipos de rios, caracterizados pela cor de suas águas, são somados os reservatórios naturais, como igarapés, lagos, igapós, aningais, paranás e restingas, cacimbas e poços, formadores do sistema aquático amazônico. Todo esse sistema caracteriza a diversidade biológica e a interação homem meio ambiente. A seguir, em detalhes, a caracterização dessa riqueza aquática natural. a) Os rios amazônicos A princípio convém assinalar que na Amazônia há duas bacias hidrográficas principais: a amazônica, com 3,89 milhões de km2, correspondendo a 45% da superfície do país, com mais de 13 milhões de habitantes (7% do total), cujos rios principais são o Amazonas, o Japurá, o Icá, o Negro, o Nhamundá, o Trombetas, o Jarí, o Javari, o Jutaí, o Juruá, o Purus, o Madeira, o Tapajós e o Xingu; e a bacia do Araguaia-Tocantins, com 757 mil km 2, com mais de 7 milhões de habitantes (3,5% do total), 8,9% da superfície do país, e cujos principais rios são o Araguaia, o Tocantins e o rio das Mortes. 1 Em função da variedade de formas de águas drenadas, na bacia amazônica distinguem- se três tipos de rios: os rios de águas brancas; os rios de águas pretas e os rios de águas azul- esverdeadas. 2 Os rios de águas brancas são mais recentes e têm a coloração barrenta, por isso, sua denominação. Esses rios nascem nos Andes e carregam sedimentos de alta fertilidade. Os rios de águas pretas, mais antigos, são oriundos de áreas dominadas por solos podzols de areia 1 Cf. FILHO, J. M. O livro de ouro da Amazônia. Mitos e verdades sobre a região mais cobiçada do planeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 41. 2 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana das populações da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 141; SIOLI, H. Amazônia. Fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 31. 20 branca com alta acidez e contém poucos minerais. Os rios de águas azul-esverdeadas drenam áreas do Planalto Central do Brasil e do Planalto das Guianas e possuem águas de qualidade média em termos de nutrientes. Esses tipos de água, provenientes de diferentes regiões, se conjugam e se misturam ao rio Amazonas, formando a grande bacia hidrográfica amazônica. Os rios de águas brancas. 3 Os rios de águas brancas ou barrentas têm a visibilidade de 0,1m a 0,5m, com pH próximo de neutro (de 6,5 a 7,0). São águas caracterizadas pelo aspecto barrento proveniente da quantidade de matérias orgânicas erodidas e nutrientes. Esses rios percorrem terrenos de fácil erosão, pois, são terrenos recentes. A pesca, nesses rios, é farta e boa parte da matéria orgânica é depositada anualmente nas várzeas do Solimões e do Amazonas, tornando-as bastante férteis. Os rios de águas pretas. 4 Os rios de águas escuras ou pretas são os de maior visibilidade, com mais de 4 m. Têm águas ácidas, com pH de 4,0 a 7,0 e são pobres em matéria orgânica. Apresentam águas escuras porque não carregam muito sedimento devido percorrerem terrenos antigos. Esses rios são formadores dos igapós, ao inundarem grandes áreas de florestas. Nesses locais, a matéria orgânica (folhas, galhos e frutos) decompõe-se rapidamente ao cair na água, razão de sua coloração. Também são características desses rios as nascentes se localizarem em áreas depoucas erosões e pouca matéria orgânica a transportar, mesmo no período das chuvas; além de suas margens serem imprecisas e inundadas. São rios de pouca pesca. Estudos apontam e caracterizam a água de rios de água preta como comparada a quase destilada do ponto de vista de conteúdo mineral. Outros indicam que a produtividade anual de lagos de água preta é de 15 a 19 vezes menor do que os de água branca. Morán assim caracteriza essas áreas: Áreas drenadas por rios de água preta podem ser considerados como ecossistemas únicos que devem ser analisados em seus próprios termos e não são comparáveis com outras áreas da Amazônia. Eles são dominados pela presença de solos de areias brancas muito pobres e caracterizam-se pelo alto conteúdo de matéria orgânica em suspensão devido à alta acidez da água. 5 As campinas, muito comuns em áreas de água preta, também são pobres em diversidade biótica, principalmente por motivos edáficos (refere-se à influência dos solos sobre as plantas). O rio Negro, proveniente de áreas cobertas por vegetação, porém, com solos predominantemente arenosos, possui pH 4,5, é pobre em nutrientes e apresenta cor escura, 3 Entre esses rios estão o próprio Amazonas e seus formadores (Marañon, Huallagao e o Ucaialy), o Japurá, o Napo (no equador), o Içá (Putumayo no Equador e Colômbia), o Juruá, o Purus, o Madeira e o Acre. 4 Entre esses estão o Negro, o Urubu, o Uatumã e o Trombetas. 5 MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 141. 21 devido às substâncias que transporta, as quais são produzidas pela decomposição incompleta da biomassa nos solos arenosos. Por outro lado, certas vantagens advêm para os habitantes de beiras de rios de água preta, tais como: a escassez de insetos, o que favorece a permanência adaptativa nas áreas com menos afetação de malárias e outras doenças transmissíveis por insetos comuns nas áreas menos ácidas. Os rios de águas azul-esverdeadas. 6 Os rios de águas azul-esverdeadas drenam áreas do planalto central do Brasil e do planalto das Guianas e possuem águas de qualidade média em termos de nutrientes. Têm visibilidade de 1,50 m a 2,50 m, com a presença de grande acidez, porém, com baixo teor de sais, apresentando o pH de 3,5 a 4,0. Apresentam, também, pouca erosão em suas nascentes, porém, no período das chuvas aumenta a quantidade de matéria orgânica. Têm as margens com formações de barrancos e com altitude elevada e estável. São rios com uma incidência de pesca maior que os de água preta, porém, inferiores aos de águas brancas. b) Igarapés, lagos, igapós, aningais, paranás e restingas Os igarapés, os lagos, os igapós, os aningais, os paranás e as restingas colaboram para a formação das planícies regionais de toda a Amazônia. De diferentes tipos, essa riqueza biótipa, descoberta há muitos tempos, tem a sua fertilidade e sua potencialidade pesqueira. Além disso, a fertilidade excepcional da planície está também relacionada com o trânsito dos sedimentos que vêm desde os Andes ou Pré-Andes. Nessas áreas extensas de solos úteis, as populações amazônicas tradicionais desenvolveram, “por meio de cultivo tipo vazante, criação de gado bovino e pesca em todas as correntes e massas fluviais.” 7 Igarapés. Os igarapés são “caminhos de canoa”. São como espelhos d’água que surgem no meio da floresta. Suas águas frias são ótimas para tomar banho. Mais do que isso, é, para alguns ribeirinhos de terra-firme, a única fonte de água para o uso no cotidiano. Alguns secam na época do verão. Nos igarapés amazônicos se encontram também as diferenças nas colorações de suas águas. Alguns têm a água escura por causa da grande quantidade de sedimentos depositados nos seus leitos e também devido a pouca luminosidade. Lagos. Há uma grande variedade de lagos na Amazônia, embora não sejam verdadeiramente lagos, mas resultados da alteração de cursos dos rios, que, por eles, são 6 São rios de águas azul-esverdeadas o alto Guaporé, o Tapajós, o Curuá-Una e o Xingu. 7 AB’ SÁBER, A. Problemas da Amazônia brasileira. Estudos Avançados, São Paulo. v. 19, n. 53, p. 13, 2005. 22 alimentados na época das enchentes, chegando a quase secarem na época do verão. Para Filho, Na época das secas a comunicação com os rios é menor, pelos furos, ou mesmo interrompida, quando secam. Em geral apresentam águas ácidas, o que os torna ambiente para poucas espécies, como o tucunaré e a piranha. Nas áreas de várzeas há lagos menores, que se formam nas épocas de chuva e secam nos períodos de estiagem. 8 O lago grande de Monte Alegre é um dos maiores da região do médio e baixo- amazonas. Também chamado de Gurupatuba, este lago mede cerca de 25 km de comprimento, com largura variada de 3 a 10 km. Igapós. Os igapós são áreas periodicamente inundáveis por ciclos anuais regulares de rios de água preta e clara, pobres em material suspenso e dissolvido, por não transportar sedimentos, o que causa baixa fertilidade. Esses solos são arenosos, com vegetação muito mais pobre do que a da várzea, baixa biomassa e menor diversidade de espécies. 9 Os igapós são vegetação de grande importância nas várzeas. Trata-se de áreas de florestas inundáveis para onde uma grande parte da fauna aquática dos principais rios procura refúgio na época das enchentes. As frutas produzidas pela vegetação arbórea dos igapós são as principais fontes de alimentação de espécies de grande porte como o tambaqui (colossoma macropomum), um peixe principalmente frugívoro. Os caboclos da várzea reconhecem o comportamento especializado dessa espécie e classificam tais árvores como “fruteiras do tambaqui”, usando- as como isca. 10 Os igapós dos rios de águas escuras apresentam uma vegetação que permanece sempre verde, com folhas largas, com árvores atingindo 20 metros. Há, nessas áreas, grande presença de cipós, plantas epífitas e outras diversas com raízes que as ajudam a respirar. 11 Aningais, paranás e restingas. As restingas são áreas de florestas localizadas nas terras mais altas, com uma presença muito grande de plantas aquáticas, sobretudo a aninga. Nessas áreas, denominadas de aningal há uma imensa proliferação de animais e plantas, servindo também como refúgio seguro para procriação. Os paranás são como “braços” laterais do grande rio que funcionam como um escoadouro natural. Na várzea, a restinga alta forma a maior diversidade de espécies, com um grande número de árvores por unidade de área. A 8 FILHO, J. M. O livro de ouro, p. 43. 9 Cf. BENATTI, J. H et al. A questão fundiária e o manejo dos recursos naturais da várzea: análise para a elaboração de novos modelos jurídicos. Manaus-AM: Edições Ibama/Pro Várzea, 2005. p. 18. 10 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 230. 11 Cf. FILHO, J. M. O livro de ouro, p. 54. 23 restinga baixa é a transição entre as áreas florestais da várzea, para o chavascal, cujo sub- bosque é frequentemente mais limpo, com boa visibilidade. 12 c) A cacimba e o poço A cacimba e os poços são formas de captação de água potável muito utilizada pelas populações da região amazônica. As cacimbas são construídas em locais úmidos ou no leito dos rios ou igarapés. Mesmo encontrando o olho d’água ou nascente a poucos centímetros, é necessário cavar alguns metros para ter água boa. Para ser consumida sem medo de doenças, precisa ser adicionado o hipoclorito de sódio que serve para purificar a água e torná-la boa para o consumo humano. Muitos municípios da região amazônica, apesar de estarem situados às margens dos rios com água em abundância, não dispõem de um serviço de abastecimento razoável do precioso líquido. Por isso, as populações, mesmo das vilas e até as das cidades, se arranjam com os sistemas de poços e cacimbas. Nos municípios onde a água é salgada ousalobra, a que é servida nas residências é proveniente de poços escavados há alguns metros de distância da casa de morada. 13 A água é retirada por um balde, por uma lata de manteiga ou uma vasilha qualquer de alumínio, com alça. Depois de retirada, é levada e colocada em um pote de barro que fica na cozinha sobre um tripé ou um pequeno banco. Na maioria das casas, a água é coada com um pano de malha fina que fica sempre preso na boca do vasilhame e, ás vezes, é usado para evitar entradas de insetos como baratas, moscas ou outro qualquer, bem como pequenos animais como ratos, rãs etc., durante a noite. Serve também como tampo uma folha de sororoca, bananeira, um pedaço de tábua ou o próprio caneco. É encontrada em algumas casas uma cuia de pitinga para beber água ou servir como tampa do pote ou talha. O modo sui generis de as populações captarem da natureza a água e o alimento deixa claro a criatividade de um povo que vive e sobrevive da natureza, numa relação de interdependência e de respeito. Os nichos ecológicos amazônicos, em suas modalidades aquáticas, oferecem diversas possibilidades de adaptação e sobrevivência. Os modos de manejo dos recursos naturais nas várzeas e na terra-firme, em constante renovação, são testemunhas do modo criativo de adaptabilidade na região. 2. Ecossistemas amazônicos e adaptabilidade humana 12 Cf. BENATTI, J. H et al. A questão fundiária e, p. 19. 13 Cf. BEZERRA, A. M. Amazônia: lendas e mitos. Curuçá: sua terra, sua gente. Belém/Pará/Brasil: BASA e Centro Cultural de Arte e Folclore da Amazônia – CECAFAM, 2005. p. 21. Caso típico é o do município de Curuçá, localizado na região do salgado no estado do Pará. 24 Os ecossistemas amazônicos constituem realidades que influenciam bastante na adaptabilidade humana que, por sua vez, está em íntima ligação com o ambiente ecológico. Eles influem decisivamente no relacionamento das populações com o meio e em suas técnicas de manejo, controle, utilização dos recursos naturais em vista da subsistência e de sua conservação. Entre os elementos fundamentais que interferem na adaptabilidade humana na Amazônia destacam-se as duas grandes realidades geofísicas da região: várzeas e terra-firme. Essas biomassas são caracterizadas pela época das grandes enchentes, o inverno, e pela época das vazantes, o verão, respectivamente. Em relação aos habitantes, são caracterizados pelos dois tipos de populações bem distintas: o “caboclo da beira” e a “gente da cidade”. A seguir, as relações que se dão no processo de adaptabilidade humana nos dois principais ecossistemas amazônicos são destacadas. a) A várzea e a terra-firme Ao contrário do que se pensa a Amazônia não é homogênea geograficamente, mas formada de dois ambientes naturais bem diferenciados que proporcionam formas diferentes de adaptação dos habitantes. Os dois ecossistemas principais dominantes na Amazônia são a várzea e a terra-firme. 14 Apesar das diferenças entre esses dois ecossistemas, a maioria dos ecólogos e antropólogos ainda depende basicamente dessa distinção. O entendimento dessa diferenciação de ecossistemas leva também à compreensão, que na Amazônia, as regiões de terras altas, acima de 600m de altitude apresentam uma alta escassez de proteína animal, enquanto que as regiões de terras baixas apontam abundância. As várzeas. As várzeas são áreas periodicamente inundáveis por ciclos anuais regulares de rios de água branca, ricas em sedimentos. Esses solos, submersos quase a metade do ano, possuem alto teor de nutrientes e são constantemente renovados. 15 As várzeas constituem somente 2% da bacia amazônica, num total de 64.000km2, mas têm uma importância desproporcional em relação à sua extensão. No rio Solimões, acima do rio Negro, a várzea ocupa cerca de 25 km de cada lado. No baixo-amazonas, aumenta para 50 km e, no estuário, chega a 200 km. As várzeas oferecem o surgimento permanente de nichos ecológicos, oferecendo às populações novas condições de sobrevivência, haja vista que esses nichos, tais como “restingas, lagos de várzea, igapós estão sempre sendo criados pela dinâmica dos rios.” 16 14 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 138. 15 Cf. BENATTI, J. H et al. A questão fundiária e, p. 18. 16 MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 137. 25 Os ciclos anuais são de ‘enchente’ e ‘vazante’. Nas demais regiões da Amazônia, estes ciclos são de ‘chuva’ (inverno) e ‘seca’ (verão). Durante as cheias, as várzeas são alagadas e a água do rio carrega grande quantidade de matéria orgânica para as matas e os campos. A deposição é lenta e ocorre no momento em que a água pára de invadir os espaços inundáveis e seu nível começa a baixar. 17 As várzeas podem ser classificadas em pelo menos três tipos: As várzeas altas (do alto- amazonas), várzeas baixas (do baixo e médio-amazonas) e as várzeas do estuário do Amazonas (várzeas do delta incluindo a ilha do Marajó e as demais ilhas). Esses três tipos de várzea são de importância tal que qualquer estudo relativo à adaptação humana na Amazônia deve levá-los em consideração. A várzea alta contém áreas ricas em nutrientes provindos dos Andes, favorecendo a agricultura e a sustentabilidade; por outro lado, apresenta problemas de altitude e declive que exige das populações práticas que reduzam o potencial erosivo das áreas e garantam a sustentabilidade de seus sistemas de cultivo. Há, nessas áreas, uma permanência de água por menos tempo; a vegetação, porém, tem condições de se desenvolver no seco, adquirindo maior altura. A várzea baixa apresenta aluvião rica em nutrientes, sendo favorecido pelo processo de enchente e vazante dos rios que nesta área é maior que nas áreas de várzea alta. Isso contribui para um maior aproveitamento agrícola das áreas, revelando um potencial não totalmente explorado no baixo-amazonas. Na várzea baixa, a vegetação se adaptou a ficar mais tempo embaixo d’água e é maior a presença de campos e vegetação arbustiva. O estuário apresenta influência da água salina pelas marés e pela riqueza aquática, chegando a influenciar as várzeas até a região do município de Óbidos, no baixo-amazonas, com mais de 1.000 km do mar. 18 Na ilha do Marajó, precisamente, há indícios da existência de antigos sistemas de controle de recursos hídricos. Trata-se de um mundo de água onde se encontra a floresta parcialmente inundada com seus períodos de enchentes e vazantes, e conforma os ecossistemas de várzea, manguezais e terra-firme. “É uma enorme área composta pelas embocaduras dos rios Amazonas e Tocantins, cuja biodiversidade e produtividade é altamente elevada em fitolâncton.” 19 As diferenças entre floras, faunas, o aluvião depositado, declive, altitude, a acidez do solo e a produção de biomassa, nestes três tipos de ecossistemas, favorecem ao homem 17 FILHO, J. M. O livro de ouro, p. 53. 18 Cf. Ibid., p. 46. 19 CASTRO, E. Mudanças no estuário amazônico pela ação antrópica e gerenciamento ambiental/projeto megam. In: ARAGÓN, L. E. (org.). Conservação e desenvolvimento no estuário e litoral amazônicos. Belém/PA: UFPA/NAEA, 2003. p. 128. 26 amazônico uma diversidade de usos e distintos modos de conservação. Há, no entanto, algo nas áreas de várzea compartilhada como característica comum: o ciclo de enchente e esvaziamento dos rios que, por sua vez, influi na flora, na fauna e nas estratégias das populações humanas. 20 A várzea é marcada, assim, pela multiplicidade de lagos e canais. Veja as características postas por Almeida: No verão, vastos campos por ela se estendem recobertos de ilhas de uma vegetação peculiar, o que torna a várzea comparável a um gigantesco parque que, não raro, se alonga numa enorme extensão, até a linha do horizonte, para deter-se apenas quando esbarra coma mata ciliar do Amazonas ou, terra dentro, quando se defronta com as elevações da terra-firme já mencionada. 21 Característico das várzeas é o fenômeno das “terras caídas”, chamadas na região de matupá. Os matupás são pedaços de terra com a vegetação que flutuam por algum tempo levando muito capim, galhos e às vezes árvores inteiras. Esses pedaços de terra foram arrancados das margens e curvas do rio. Essa dinâmica contribui para a fertilidade do solo, quando os sedimentos de argila e areia retirados das pequenas barreiras vão se misturar aos sedimentos que vêm de longe, através de um processo constante de comércio de sedimentação aluvial. 22 A borracha atraiu grande leva de migrantes para a Amazônia, sobretudo nordestinos que serviram de mão-de-obra no interior dos seringais. Alguns se estabeleceram nas áreas próximas a Belém, dando início a uma importante agricultura praticada em pequenas propriedades familiares. 23 Outra grande parte das pessoas que se dirigiram para a Amazônia veio mais tarde a ocupar as regiões da várzea, quando não retornavam para o nordeste. Essas populações egressas dos seringais irão reforçar as várzeas do médio-amazonas, onde irão desenvolver a agricultura de subsistência, o extrativismo vegetal e a pesca, sobretudo entre 1920 e 1940. 24 A terra-firme. A terra firme constitui 98% da bacia e inclui também uma grande variedade de habitats ou ecossistemas, destacando florestas pluviais, florestas decíduas, savanas bem drenadas, savanas mal drenadas, florestas antropogênicas e florestas montanhosas. 25 Afirma Morán: “As florestas de terra firme ocorrem em áreas não inundáveis 20 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 219. 21 ALMEIDA, J. B. Kondurilândia. Idéias e registros na gênese da nova unidade federativa no oeste do Pará. Oriximiná-PA: Fundação Ferreira de Almeida, 2001. p. 30. 22 Cf. AB’ SÁBER, A. Problemas da Amazônia brasileira, p. 12. 23 Cf. MONTEIRO, A et al. O espaço amazônico. Sociedade & meio ambiente. Belém: UFPA/NPI, 1997. p. 31. 24 Cf. GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, amazônias. São Paulo: Contexto, 2005. p. 37. 25 Cf. MORÀN, E. F. A ecologia humana, p. 137. 27 da Amazônia, incluindo um grande número de subtipos importantes, alguns dos quais merecem tratamento em separado.” 26 Filho 27 apresenta pelo menos quatro extratos de vegetação ou andares onde são encontradas diferentes espécies florestais na terra-firme. O primeiro extrato é o sub-bosque que chega ao chão com plantas rasteiras, samambaias e folhagens; o segundo extrato é o arbóreo inferior, com árvores adultas de troncos finos ou aquelas jovens que buscam os extratos superiores, medindo entre 5 m e 20 m. Nesse extrato, há uma grande presença de palmeiras jovens; o terceiro extrato é a abóbada foliar, entre 20 m e 35 m, onde as árvores disputam um lugar ao sol. É o extrato com árvores que aguardam uma clareira para se desenvolver. Aqui localizam-se as palmeiras e árvores que nunca formarão o dossel definitivo, como a imbaúba; por fim, o quarto extrato, o mais alto, também conhecido como a canópia, onde estão as árvores emergentes, que chegam a medir 55 m, como a castanheira- da-amazônia, a sumaumeira, o mogno, o angelim, o pau-mulato e o ipê. Sobre essas árvores encontram-se as plantas epífitas, como orquídeas, bromélias e cactus. Para o professor Aziz Ab’ Saber, 28 a exuberância da riqueza florestal na Amazônia ou o que ele denomina de “ordem da grandeza espacial da Amazônia”, é mostrada pelo conjunto de paisagens e ecologias da América do Sul setentrional. Outro destaque é dado aos leroinas continentais, ou seja, biomas que atravessam áreas muito grandes de um continente a outro e que reaparecem em continentes vizinhos. Caracterizadas pelos sistemas sofisticados de reciclagem de nutrientes, pela evolução de plantas adaptáveis às condições químicas do ambiente, bem como pelo manejo das populações pré-históricas e contemporâneas, as florestas de terra-firme são os ecossistemas mais ricos em diversidade de espécies na biosfera e com a maior produção de biomassa vegetal. Estando presentes na biomassa vegetal cerca de setenta por cento dos nutrientes, os solos dessas florestas são de qualidade variável, com predominância daqueles pobres e ácidos. 29 Com duas variantes predominantes, a mata baixa, em altitudes de menos de 600m acima do nível do mar e a mata alta, com altitudes bem abaixo de 300m, com temperaturas que variam entre 24 e 27 graus centígrados, as florestas de terra-firme estão presentes mais no oriente amazônico, diferenciando, dessa forma, da região ocidental e das regiões da periferia 26 Ibid., p. 142. 27 Cf. O livro de ouro, p. 55. 28 Cf. Problemas da Amazônia brasileira, p. 7-8. 29 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 193. 28 norte. Há, por isso, grande influência no volume de água que se precipita, considerando uma alta variabilidade de 1.800-2.000mm na parte oriental e central, a 3.000-4.000mm na área ocidental. 30 Verifica-se, por causa dessas características, uma biomassa vegetal e animal bem maior nas florestas baixas, criando diferentes condições de adaptabilidade para as populações que nelas habitam. Apesar de incompleta a identificação das espécies, já dá para fazer uma suposição de que a diversidade biótica nas florestas de terra-firme, em sua maior parte, é composta de componente dos detritívoros que tem a importante função de facilitar a reciclagem dos nutrientes provenientes da queda de folhas. Quanto à presença de mamíferos, é bem menor, considerando os diversos aspectos que colaboram para tal presença, como as leis da genética, estimando que a biomassa animal é de apenas 0,2% da biomassa vegetal.31 Por outro lado, a distribuição dessa riqueza é altamente desigual, em função da história das espécies, das condições edáficas, do regime pluvial e hidrológico e das densidades humanas. Quanto à estas, há uma pouca presença, estimando-se, segundo Denevan, em Morán, 32 uma população pré-colonial de 1.260.000 espalhada em quatro milhões de quilômetros quadrados. Esta presença é condicionada pelas variações demográficas, pela presença ou não de um período de seca que facilite a agricultura de corte-e-queima que funciona muito bem sob condições de baixa pressão demográfica que permite períodos de recuperação florestal suficientes. Sendo tradicionalmente menos habitável do que nas áreas dos cerrados e das várzeas altas e baixas, as áreas de terra-firme serviram de refúgio às populações indígenas, fugindo das incursões dos colonizadores. Os elementos abordados acerca dos ecossistemas amazônicos mostram que são muitas as possibilidades de adaptação e de sobrevivência do homem neles. Além disso, a análise apresentou uma região em transformações permanentes, com reservas para a multiplicação e renovação de diferentes espécies. Essa realidade vem ser enriquecida com os vários tipos de água, favorecendo a sobrevivência e a vida das populações locais. b) Adaptabilidade humana nas várzeas. As várzeas estão em estreita ligação com o período do verão e o período das chuvas, pois, dependem dessa realidade para formar seu biótipo. No período das chuvas o povo se recolhe aos sítios, aos povoados ou às cidades. Só trabalham os castanheiros, pois essa é a 30 Cf. Ibid., p. 193. 31 Cf. Ibid., p. 194. 32 Cf. Ibid., p. 194. 29 estação da safra, ou os canoeiros e tripulantes de barcos visto a “água” ser melhor de viajar e as cachoeiras darem passagem. É um tempo de fome, de esperar pela roça amadurecer. O peixe ganha o alto dos rios ou se espalha pelas lagoas e alagados; a caça deserta para dentro dos matos ou se entoca nas ilhas. O período do verão, por outro lado, é caracterizado por outra realidade bem distinta, isto é, pelaabundância de recursos alimentícios. É um tempo de mais fartura. É quando se faz a limpeza das estradas para o corte da borracha, do milho e dos legumes, de armar os cacuris para o peixe e de levantar barragem numa boca dos igarapés. O caboclo deixa as “aldeias” para entrar no mato. Os barracões e os tapiris voltam a ser povoados. As várzeas são formadas por três tipos diferentes de biomassas, com características próprias: as várzeas baixas, o estuário e as várzeas altas. Considerar essa diferença é conceber o potencial biológico e agrícola de cada uma separadamente. Para Morán, esta variedade de sistemas ecológicos sugere que a sua utilização e seu manejo pelo homem manifestam sensíveis diferenças. De fato, as várzeas do Amazonas apresentam um alto grau de dinamismo morfológico, onde os rios atravessam e modificam continuamente a área, fazendo com que, em períodos de seca, trechos das margens desapareçam rio abaixo. Esse processo eco- geológico, com o depósito de sedimentos acima das margens criando novas áreas de terras altas, favorece a formação das “restingas”, de lagos pequenos ou grandes, formando micro- ambientes de grande diversidade biótica. 33 As diferenças entre as três várzeas são facilmente demonstráveis. As várzeas baixas têm uma largura que varia de 20-100 km, com variação de inundação dos rios de 10-20m. Os rios da várzea baixa apresentam poucos meandros, mas numerosas ilhas em seu curso. Com exceção do Madeira, Xingu e Tapajós que são quase lineares, com várzeas e ilhas reduzidas. No médio e baixo-amazonas, onde começa claramente a várzea baixa, é predominante a presença de vegetação flutuante associada aos rios de água clara e branca. Essa vegetação acolhe diferentes espécies, sendo o pirarucu o mais facilmente encontrado. Os capins também influenciam na locomoção das populações, já que canoas e outras embarcações são frequentemente retidas por suas raízes e os pescadores as usam para segurar o barco, em casos de tempestades inesperadas. 34 A várzea baixa é uma área muito dinâmica, composta principalmente por terra recém- formada, colonizada predominantemente por plantas aquáticas, como a aninga, que detém 33 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 223. 34 Cf. Ibid., p. 226. 30 sedimentos e matérias orgânicas transportadas pelas marés. Outras plantas como o miriti, o anani, o mututi e o mangue, estabelecem o início da formação de terras. Para Furtado, a vegetação das várzeas baixas não oferece atrativos para a obtenção da madeira, devido ao valor marginal do terreno para a agricultura e agroflorestas. A grande densidade da palmeira miriti, por outro lado, com uma enorme produção de frutos, tornou as várzeas baixas áreas propícias para o forrageio dos porcos. 35 As várzeas do estuário que vão da foz do Xingu até a ilha de Marajó são formadas sobre solos barrentos apresentando uma abundância de palmeiras de um número ilimitado de espécies. As várzeas enchem duas vezes por ano, dominadas pelas enchentes das marés. A biomassa vegetal é riquíssima com presença de murumuru, jupati, açaí, inajá, bacaba, buriti ou miriti e ubim. Porém, a principal característica dessas áreas é, segundo Morán, a “constante sucessão secundária, pela queda frequente das árvores e a dinâmica aquática, facilitando atividades extrativas intensivas e sustentáveis.” 36 A característica das várzeas do estuário de conter inúmeros alimentos oferece uma cadeia alimentar variada aos ribeirinhos. A maior parte é composta de frutas, especialmente palmeiras. Há também uma abundância de sementes de várias plantas, o que colabora para a criação de aves e outros animais de pequeno porte. A população da região estuarina gera renda por intermédio da fabricação de paneiros, tijolos e telhas. Desenvolvem atividades como a pesca de camarão e peixes, extração de lenhas e retirada do açaí. Os animais são mantidos como investimento para uma ocasional compra ou para o período das festas. 37 As várzeas altas da Amazônia contêm sistemas com ausência de capins, com uma imensa riqueza nos rios, paranás e lagos, propícios para a pesca. Os solos que resultam de deposição dos rios que se originam nas cordilheiras do Peru oferecem alto teor de nutrientes, favorecendo a agricultura pelo escoamento das enchentes. Nessas áreas, o arroz é plantado quando o solo está ainda bem úmido para garantir que as raízes se fixem na terra. 38 Esses diferentes habitats cooperam para a sustentabilidade humana nas áreas de várzeas de diversos modos. As atividades dos moradores são desenvolvidas de acordo com os ciclos fluviais, sendo que as restingas bem drenadas são as principais áreas cultiváveis. As terras 35 CF. FURTADO, L. G (org.). Amazônia: Desenvolvimento, Sociodiversidade e Qualidade de Vida. Belém: UFPA/NUMA, 1997. p. 83-84. 36 MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 229. 37 Cf. FURTADO, L. G (org.). Amazônia: desenvolvimento, p. 91. 38 Cf. MORÁN, E. F. A ecologia humana, p. 250. 31 caídas criam instabilidade, fazendo com que campos de cultivos desapareçam de um ano para o outro. A várzea alta é caracterizada por um imenso mosaico de possibilidade de uso da terra. Trata-se de uma região propícia para a criação, especialmente de porcos, com uma grande produção de frutas, sementes e tubérculos. Nessa região se encontram a horta caseira, o roçado, a agrofloresta e vegetação secundária em diferentes fases de crescimento. A horta caseira fica localizada no terreiro que é o espaço que circunda a casa e é geralmente confinado, pelo menos de um lado, pelo rio. Nesses espaços e também nas plataformas das palafitas, na época da cheia do rio, são cultivados verduras, plantas medicinais, condimentos e plantas ornamentais. No terreiro também se encontram árvores frutíferas como a ameixeira, o taperebazeiro, a árvore de pão, o cacaueiro, o cupuaçuzeiro, a bananeira, o açaizeiro, a mangueira e outras. Também são encontradas plantas para a confecção de utensílios domésticos, como a cuieira e o arumã. O roçado é feito com o sistema tradicional de corte e queima seguido do plantio de cereais. Para alguns, o roçado serve apenas como uma fase para o preparo das agroflorestas, principalmente de açaí. Essas são transformadas a partir das capoeiras. O açaí é uma palmeira nativa da região encontrada em alta densidade ao longo dos rios costeiros, desde o Maranhão, se estendendo até o delta do rio Orinoco e Trinidade. A árvore começa a produzir a partir do quinto ano de vida, se estendendo por mais de 20. De cor verde claro a púrpura, quando madura, mede entre 1,0-1,5 cm de diâmetro. Árvores adultas, 6-10 anos de idade, produzem entre 30-50 kg de fruta por ano. 39 No açaizal, juntamente com o açaí, são encontradas também outras árvores produtoras de sementes ou frutas. Esses produtos se destinam à venda e ao consumo doméstico e para alimento de animais de criação. A semente da seringueira, do cacau, da manga, do miriti, do jenipapo, do taperebá e de outras árvores dispersadas entre os açaizeiros, complementa a fonte de renda dos habitantes e a dieta dos animais em épocas distintas. A criação de pequenos animais nas várzeas amazônicas é bem desenvolvida, por serem terrenos bem adaptados e depositários de grandes concentrações de produtos florestais e aquáticos que servem de alimentos. Aves, porcos e gado foram introduzidos, sobretudo, com a chegada dos europeus. Além de servir como fonte de alimento para as populações ribeirinhas, é muito utilizado como fonte de renda e movimenta a economia na região. 39 Cf. FURTADO, L. G (org.). Amazônia: desenvolvimento, p. 81-82. 32 A partir da década de 1960 as regiões da várzea do médio e baixo-amazonas despertaram as atenções para a sua importância na produção de grãos. Essas regiões foram vistas
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