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ENCONTRO DE ETNOMATEMÁTICA DO RIO DE JANEIRO Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 482 MOVIMENTO DO OLHAR: UMA EXPERIÊNCIA ETNOMATEMÁTICA Alcione Marques Fernandes Universidade Federal do Tocantins alcione@uft.edu.br Leila Chalub Martins Universidade de Brasília leilachalub3@gmail.com Resumo: Este trabalho apresenta o desvelamento do meu campo de pesquisa de doutorado por meio do movimento do olhar. O olhar como instância de percepção em que a paisagem cotidiana se apresenta de forma repentina despertando o inusitado, definido por três instâncias: ver, olhar e ter visto. O artesanato de barro branco confeccionado por Dona Pretinha às margens da rodovia que corta o município de Arraias (Tocantins) proporcionou-me esta percepção provocando a procura pelo conhecimento por meio da etnomatemática, ancorado na metodologia de pesquisa etnográfica. O invu, n[ã]o-visto é definido como uma cegueira temporária contendo em suas características fundamentais tanto a negação da visão como sua inclusão e no caso da descoberta do artesanato de barro branco representa o invisível que percebi nesta arte tradicional. Palavras-chave: etnomatemática; artesanato de barro branco; movimento do olhar. 1. Introdução Existe uma relação de reciprocidade entre o desvelamento do campo de pesquisa e a capacidade do pesquisador em se colocar como sujeito, observador participante, vivendo um processo relacional intenso com a produção de saberes que se estabelece. Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 483 Esta reciprocidade torna o pesquisador implicado com sua pesquisa de forma a ser considerado membro, como sugerido por Roberto Macedo: O membro, aquele que domina a linguagem natural, conforme define a etnometodologia é o ator/autor que (co)define sua pergunta de pesquisa em função de sua inserção social, dos seus pertencimentos, dos seus desafios históricos, define também sua meta a partir dessa perspectiva (MACEDO, 2012,p.45). Meu campo de pesquisa foi nascendo num processo lento, quase como um parto não programado, apenas intuído a partir de experiências que foram sendo construídas ao longo de minha trajetória acadêmica, e também pelas experiências vividas por outras percepções, como o olhar. Ao chegar a Arraias (Tocantins) trilhando a BR 050 sentido Brasília (DF)/Tocantins deparei-me com o artesanato de barro branco às margens da rodovia, numa prateleira de madeira em frente à casa de Dona Pretinha. Muitas e muitas vezes fiz este percurso, olhei aquele artesanato de beleza ímpar e apenas o apreciei como paisagem. Karina Dias (2010) aborda em seu livro o interior do olhar como uma paisagem labiríntica alternando-se entre o visto e o não visto, afirmando que: “A experiência da paisagem no cotidiano se forja, então, na junção entre uma maneira de olhar e os espaços percorridos” (DIAS, 2010, p. 113 ). O que é visto torna-se algo quase invisível, como se o ato de olhar continuamente não permitisse enxergar a realidade. A autora questiona: “Como então interromper, mesmo que momentaneamente, nossa percepção visual rotineira para que se instale uma percepção inusitada?” (DIAS, 2010, p.113). Experimentar a paisagem cotidiana pode ser encontrar novos pontos de vista como elos que se aproximariam e se distanciariam. A possibilidade que se apresenta é a noção do invu, o n[ã]o-visto: “[...]é se dar conta de que vemos e, de que, acima de tudo, não vemos; de que, na rotina, experimentamos frequentemente um estado de cegueira” (DIAS, 2010, p.115). O movimento do olhar pode ser compreendido por meio de três instâncias: ver, olhar e ter visto. O primeiro movimento é representado por um sobrevoo, como se neste momento quiséssemos captar tudo o que nossa vista alcança, são os olhos faróis de Platão. O olhar é intencional, ele se atém ao que lhe clama conhecimento, toda sua intencionalidade está ligada à focalização. Por fim, o terceiro movimento: ter visto é Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 484 uma pausa, quando se analisa o que foi visto, armazena o instantâneo e está ligado diretamente à memória. Estas três instâncias do movimento do olhar não são hierarquizadas, não possuem tempo determinado para acontecerem, são instâncias flexíveis e dão sentido ao que se apresenta a nós (DIAS, 2010). O movimento do olhar acontece a todo instante e segundo Karina Dias são: “ Instâncias móveis, flexíveis e inesperadas, enraizadas no corpo e no espaço, na carne do mundo, como pensa Merleau-Ponty, esse lugar onde se entrelaçam o corpo vidente e o corpo visível” (DIAS, 2010, p.206). Meu contato com a produção artesanal de cerâmica de barro branco às margens da BR 050 no município de Arraias, Tocantins, foi construído como olhar-em- paisagem. Inicialmente apenas vi, sobrevoei a paisagem rústica e tranquila daquela propriedade rural estabelecida numa rodovia de pouco tráfego, na prateleira de madeira em frente à cerca vários potes e botijas sendo oferecidos aos viajantes que por ali trafegam. Lentamente, ao conhecer a história de vida daquela mulher artesã, comecei a olhar a cerâmica de modo completamente novo, despertou-me interesse pela forma como são produzidas as peças e de como esta técnica tão rudimentar conservou-se ao longo de anos. Este despertar aconteceu em parte por causa de meu contato com a Etnomatemática, que torna possível a ponte entre a matemática e a antropologia (D’AMBROSIO, 2009). Como também em virtude de questões de vida que foram se tornando questões de pesquisa: Qual é o conhecimento dessa mulher artesã que é da ordem da etnomatemática? Como esse conhecimento opera? Com é transmitido e atualizado? Existe alguma evidência de diálogo ainda que inconsciente, desse conhecimento etnomatemático e o conhecimento escolarizado? Este foi o movimento de olhar intencional clamando pelo conhecimento. Em setembro de 2012 visitei Dona Pretinha como pesquisadora interessada em seu trabalho e fui acolhida com muito carinho. Ela apresentou-me seu esposo, auxiliar no preparo do artesanato, amassando (pilando) o barro seco, ele é o responsável pelo trabalho pesado. Ao manifestar o interesse em pesquisar seu artesanato, obtive seu consentimento imediato afirmando que já foi entrevistada por muitas pessoas interessadas em sua arte e isso a enche de orgulho, mostrou-me uma reportagem sobre seu trabalho publicado na revista “Almanaque Cultural do Tocantins” em abril de 2001 e uma entrevista mais recente publicada no Jornal do Tocantins. Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 485 Pessoa simples, falante que em menos de uma hora de conversa, contou-me alguns fatos relevantes de sua vida: mãe de muitos filhos (19 tendo criado apenas 12), sendo dois partos de gêmeos, suas dificuldades em conseguir o barro para a confecção do artesanato, pois este barro é encontrado em algumas fazendas da região, e muitos fazendeiros negam-se a fornecer a matéria prima para o artesanato, porém foi graças a venda dos jarros e botijas que conseguiu criar seus filhos de maneira digna. Mostrou-me o torno artesanal e as formas que usa para confeccionar as botijas, os jarros, as fruteiras e às vezes panelas. Tudo muito rústico e extremamente artesanal, utiliza sabugos de milho de diferentes tamanhos para alisar as peças. Mostrou-me o forno onde as peças são cozidas e também as peças que foram encomendadas e acabaram quebradas, lascadas, segundo ela por causa da “macumba” colocada por sua cunhada também artesã. Aprendeu o artesanato olhando sua mãe fazer as peças quando tinha apenas oito anos de idade. Usou um fruto de marmelo do cerrado para servir de forma, embrulhou-o num pano e a partir de seu contorno arredondado confeccionoua sua primeira peça, bem pequena e depois foi aperfeiçoando sua técnica. A partir deste primeiro encontro com o artesanato de Dona Pretinha o meu olhar iniciou o terceiro movimento: ter visto. Por meio da Etnomatemática iniciei um diálogo interdisciplinar com este conhecimento tradicional, carregado de significações. A minha pesquisa representa este caminho de análise do saber comum, construído cotidianamente através do manuseio do barro. Os saberes comuns são marcadamente locais, feitos de rotina, do conhecimento comum que circula pela vida cotidiana dos denominados homens comuns, cidadãos do mundo nos lugares. Isso significa que os saberes comuns têm assento na ordem do cotidiano, na escala dos lugares, da existência (HISSA, 2007). Em meu segundo encontro com Dona Pretinha, tempos depois, sua receptividade foi outra, reclamou das dificuldades em manter seu artesanato, reclamou da sua saúde, da fama que não lhe trouxe nenhum benefício, atualmente desconfia das pessoas que a procuram interessadas em conhecer mais de perto suas habilidades de artesã. Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 486 Aceitou participar de minha pesquisa etnomatemática, mas não esconde seu cansaço diante das adversidades, seu caminho de artesã é solitário, sua arte não foi incorporada por seus herdeiros. 2. Etnomatemática A ciência moderna derivada do pensamento grego possui suas raízes estabelecidas no solo da matemática, ela se tornou para nossa civilização a principal ferramenta de desenvolvimento do pensamento racional sendo utilizada pelas demais ciências como a física, a química, a biologia, entre outras. Segundo D’ Ambrosio (1998, p.10): Enquanto nenhuma religião se universalizou, nenhuma culinária nem medicina se universalizaram, a matemática se universalizou, deslocando todos os demais modos de quantificar, de medir, de ordenar, de inferir e servindo de base, se impondo, como modo de pensamento lógico e racional que passou a identificar a própria espécie. A universalização da matemática representa também a imposição de um pensamento hegemônico, dominante, em que se estabelece como regra a mesma matemática para todos os povos, independentemente de suas origens étnicas e culturais. Esta hegemonia da racionalidade científica é o principal combustível que move o paradigma tradicional estabelecendo seus princípios e axiomas sobre os quais a sociedade fortalece sua epistemologia reguladora. O Programa Etnomatemática concebido por Ubiratan D´Ambrosio (2009) permite que seja estabelecido um diálogo entre distintas concepções matemáticas, integrando cognição, História e Sociologia do Conhecimento e Epistemologia Social possibilitando uma dinâmica entre o saber e o fazer de diferentes culturas. Ao estabelecer o diálogo interdisciplinar entre ciências consideradas estanques, permite que as diferentes matemáticas praticadas por grupos culturais sejam resgatadas enquanto expressões não apenas culturais, mas principalmente como conhecimento científico. Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 487 profissionais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos( D’AMBROSIO, 2009,p.45). A possibilidade de nos aproximarmos do cotidiano de distintos grupos culturais por meio da Etnomatemática revela os saberes e fazeres de cada cultura, pois a capacidade de quantificar, medir, classificar não pode ser considerada universal e única (D´Ambrosio, 2009). Diferentes grupos culturais ou mesmo diferentes comunidades desenvolvem estas habilidades de formas completamente distintas, por sua vez a ciência tradicional tende a desconsiderar este conhecimento matemático baseado na diversidade cultural, silenciando as vozes daqueles que já são normalmente excluídos. É o caso de Dona Pretinha, mulher simples que frequentou a escola por pouco tempo, apenas o suficiente para assinar seu nome e colocar preço em suas peças artesanais, dotadas de beleza estética e geométrica extremamente desconcertante. Mas este saber tradicional encontra-se distante dos meios acadêmicos, foi excluído como conhecimento. 3. Invu: o n[ã]o-visto Nas três instâncias do olhar mencionadas acima existe ainda algo que fica fora desse enquadramento, como se fosse o invisível dentro do visível, é o invu, o n[ã]o- visto pulsando à espera de ser encontrado e esta possibilidade acena tantos encontros e desencontros que um novo universo descortina-se, Zona sombreada e indefinida que habita o espaço entre cada porção de coisa vista, entre cada enquadramento feito pelo nosso olhar. O invu, o n[ã]o-visto, se situaria à beira dos limites que constituem a trama do visível, aquela grade caótica e impermeável confeccionada pelo nosso olhar (DIAS, 2010, p.225). O invu, n[ã]o-visto é como uma cegueira temporária contendo em suas características fundamentais tanto a negação da visão como sua inclusão: “Como Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 488 designar o que está lá, em qualquer parte, indefinido e informe, “na escuridão”, à espera de que nossos olhos o encontrem?” (DIAS, 2010, p. 223). Portanto, o invu no caso de minha pesquisa de registro da produção artística e cultural da cerâmica do barro branco de Dona Pretinha oferece a oportunidade de envolvimento com a singularidade cultural desta prática antiga, projetando-se no limiar entre o visível e o invisível que suplanta o olhar. Este movimento do olhar decifrado por instâncias, que mesmo sendo instâncias, não podem ser hierarquizadas, define um processo interno em que eu enquanto pesquisadora compreendo minha centralidade “É aqui que compreendemos como centralidade, que os mundos humanos são construídos a partir de outros mundos humanos” (MACEDO, 2012, p. 47). O mundo humano descortinado pelo movimento de meu olhar permitiu delinear o conhecimento etnomatemático presente nas botijas, jarros e panelas de Dona Pretinha desafiando todas as adversidades de sua vida humilde e preservando um saber tradicional, distante da matemática acadêmica. 4. Considerações Finais Meu olhar fez o movimento de captar a paisagem cotidiana sob um novo ângulo e o que estava escondido, o invu do artesanato de barro branco de Dona Pretinha despertou de maneira intensa clamando conhecimento. A pesquisa etnográfica em curso pretende trazer à luz esta zona sombreada e indefinida dessa arte tradicional, decifrada pelo filtro da Etnomatemática. A metodologia buscará a interação da história de vida e da história oral, utilizando a abordagem transversal da escuta sensível, tendo como fundamentação a pesquisa participante em que: A composição de saberes, a construção de interpretações, a transposição de distâncias sociais, culturais e psicológicas que o diálogo pode produzir dependem das posições dos protagonistas da pesquisa: transformação e confrontação de identidades e alteridades no interjogo de diferenças são a atmosfera do diálogo (SCHMIDT, p.36, 2006). Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25 a 26 de setembro de 2014 489 Enfim, meu olhar experimentando a paisagem cotidiana desvelou o mundo humano de Dona Pretinha e a etnomatemática de seu artesanato. O movimento do olhar em suas três instâncias permitiu que minha pesquisa desabrochasse em toda sua plenitude e desvelasse o invu circunscrito a um universo de saberes. Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro Niterói, de 25a 26 de setembro de 2014 490 5. Referências D´AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1998. 88 p. ______, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 112 p. DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: Programa de Pós-Graduação em Arte, Universidade de Brasília, 2010. 300 p. HISSA, Cássio Eduardo Viana. Fronteiras entre ciência e saberes locais: arquiteturas do pensamento utópico. COLÓQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA, 9., 2007, Porto Alegre. Los problemas del mundo actual: soluciones y alternativas desde la geografía y las ciencias sociales. Barcelona: Ed. Universidad de Barcelona; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. Não paginado. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/9porto/cahissa.htm>. Acesso em 31 de mar. 2014. MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa implicada: pertencimento, criação de saberes e afirmação. Brasília: Liber Livro, 2012.168 p. SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval. Pesquisa participante: alteridade e comunidades alternativas. Revista Psicologia USP, São Paulo. V. 17, n. 2, p. 11-41, jun. 2006. Disponível em http://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/41889 . Acesso em 8 abr. 2014. http://www.ub.es/geocrit/9porto/cahissa.htm http://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/41889