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UNAMA ANANINDEUA PSICOLOGIA ANA SHIRLEY DOS SANTOS RABELO VANDILMA PAIXÃO DUTRA EWELLYN SILVA VASCONCELOS NONATO ALDINEIA DO SOCORRO OLIVEIRA MAIA PEREIRA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO COMUNIDADES VIRTUAIS COMO FONTE DE SUPORTE EMOCIONAL PARA MÃES DE CRIANÇAS ATÍPICAS Ananindeua 2023 ANA SHIRLEY DOS SANTOS RABELO VANDILMA PAIXÃO DUTRA EWELLYN SILVA VASCONCELOS NONATO ALDINEIA DO SOCORRO OLIVEIRA MAIA PEREIRA COMUNIDADES VIRTUAIS COMO FONTE DE SUPORTE EMOCIONAL PARA MÃES DE CRIANÇAS ATÍPICAS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para conclusão do curso de PSICOLOGIA da UNAMA ANANINDEUA Ananindeua 2023 Ficha catalográfica gerada pelo Sistema de Bibliotecas do REPOSITORIVM do Grupo SER EDUCACIONAL P436c Pereira, Aldineia do Socorro Oliveira Maia. Comunidades Virtuais Como Fonte de Suporte Emocional Para Mães de Crianças Atípicas / Aldineia do Socorro Oliveira Maia Pereira, Ana Shirley dos Santos Rabelo, Ewellyn Silva Vasconcelos Nonato [et al.].. - UNAMA: Ananindeua - 2023 64 f. : il TCC (Curso de Psicologia) - Unama Ananindeua - Orientador(es): Dr(a) Giane Silva Santos Souza 1. Análise do Discurso. 2. Comunidades Virtuais. 3. Dispositivos de Acolhimento Social. 4. Maternidade Atípica. 5. Suporte Emocional. 6. Atypicaç Motherhood. 7. Emotional Support. 8. Social Reception Devices. 9. Speech Analysis. 10. Virtual Communities. I.Título II.Dr(a) Giane Silva Santos Souza UNAMA - ANA CDU - 159.9 ALDINÉIA DO SOCORRO OLIVEIRA MAIA PEREIRA ANA SHIRLEY DOS SANTOS RABELO EWELLYN SILVA VASCONCELOS NONATO VANDILMA PAIXÃO DUTRA COMUNIDADES VIRTUAIS COMO FONTE DE SUPORTE EMOCIONAL PARA MÃES DE CRIANÇAS ATÍPICAS Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia pela Universidade da Amazônia - UNAMA, campus Ananindeua. Orientadora: Dra. Giane Silva Santos Souza BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Giane Silva Santos Souza (Orientadora) - Universidade da Amazônia ___________________________________________________________________________ Marina Baia de Sena (Banca interna) - Especialista em Desenvolvimento Infantil Intervenção ABA para Transtorno do Espectro Autista. ___________________________________________________________________________ Wania Lúcia Fonseca Bastos (Banca externa) - Especialista em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica. DEDICATÓRIA À todas as mulheres, mães e cuidadoras que enfrentam os desafios da maternidade atípica, cada uma constituída por narrativas e contextos únicos. Estas mulheres precisam mais do que elogios; merecem uma atenção cuidadosa voltada para suas próprias necessidades, muitas vezes ofuscadas pelas exigências da maternidade. Não são apenas objetos de estudo; são indivíduos a serem percebidos, compreendidos e dignificados. Que a análise acadêmica das suas experiências neste trabalho aponte o lugar daquelas que cuidam e que necessitam de cuidado, atenção, respeito e dignidade por meio de ações e políticas verdadeiramente direcionadas às suas necessidades. AGRADECIMENTOS Expressamos profunda gratidão a Deus pela dádiva da vida e pela beleza que permeia este mundo. À Professora Dra. Giane Souza, nossa orientadora, por sua paciência, respeito e apoio na realização deste estudo. Agradecemos especialmente por criar um espaço onde compartilhamos nossas fragilidades e enfrentamos os desafios da construção teórica. Aos nossos familiares e amigos, estendemos nossos sinceros agradecimentos pelo apoio fundamental durante todo o processo. Por fim, manifestamos nossa sincera gratidão aos docentes e discentes do curso de Psicologia da Universidade da Amazônia. As trocas e oportunidades de aprendizado foram verdadeiramente enriquecedoras, proporcionando um ambiente propício para nosso desenvolvimento acadêmico e profissional. É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca (Milton Nascimento) RESUMO Este estudo investiga a relação entre Dispositivos de Acolhimento Sociais e o suporte emocional a mães de crianças atípicas em comunidades virtuais, considerando os desafios inerentes à maternidade atípica. Essas mulheres enfrentam a necessidade de equilibrar responsabilidades familiares, muitas vezes abrindo mão de suas trajetórias profissionais, o que destaca a complexidade de suas experiências ao explorar os recursos disponíveis nessas comunidades virtuais. A pesquisa tem como foco analisar o papel das comunidades virtuais e seu impacto nas interações relacionadas à saúde mental. O objetivo geral é identificar os dispositivos de Acolhimento Social na relação entre as Comunidades Virtuais e as mães de crianças atípicas. Para atingir esse propósito, os objetivos específicos são compreender o papel das comunidades virtuais no suporte emocional, investigar os tipos de conteúdo compartilhados e analisar como as interações online podem influenciar a saúde mental. O estudo adotou uma abordagem qualitativa, concentrando-se em uma comunidade virtual do Facebook. A metodologia empregou a perspectiva foucaultiana para analisar discursos, destacando como as interações online formam redes de cuidado para a saúde mental. As escolhas metodológicas incorporaram conceitos foucaultianos, como a noção de poder como algo não apenas opressor, mas produtivo, atuando em níveis microfísicos, influenciando normatividades e condutas. A análise foucaultiana enfatiza as comunidades virtuais como dispositivos fundamentais de acolhimento social para mães de crianças atípicas, oferecendo suporte emocional e contribuindo para a formação de novas subjetividades e redes de cuidado. Dessa forma, este estudo aprimora a compreensão das dinâmicas sociais nesses grupos, ampliando o debate sobre os Dispositivos de Acolhimento como suporte emocional à saúde mental das mães de crianças atípicas. Palavras-chave: Maternidade atípica; Comunidades virtuais; Dispositivos de acolhimento social; Análise do discurso; Suporte emocional. ABSTRACT This study explores the relationship between Social Support Devices and emotional support for mothers of atypical children in virtual communities, considering the challenges inherent to atypical motherhood. These women grapple with balancing family responsibilities, often sacrificing their professional trajectories, highlighting the complexity of their experiences as they navigate available resources in virtual communities. The research focuses on analyzing the role of virtual communities and their impact on interactions related to mental health. The overall objective is to identify Social Support Devices in the relationship between Virtual Communities and mothers of atypical children. To achieve this, specific objectives include understanding the role of virtual communities in emotional support, investigating shared content types, and analyzing how online interactions can influence mental health. The study adopts a qualitative approach, focusing on a Facebook virtual community. The methodology employs a Foucauldian perspective to analyze discourses, emphasizing how online interactions form care networks for mental health. Methodological choices incorporate Foucauldian concepts, viewing power not only as oppressive but also as productive, operating at microphysical levels, influencing norms, and behaviors. Foucauldian analysis underscores virtual communities as fundamental devices for social support for mothers of atypical children, offering emotional support and contributing to the formation of new subjectivities and care networks. Thus, this study enhances understanding of social dynamics in these groups, expanding the discourse on Support Devices as emotional support for the mental health of mothers of atypical children. Keywords: Atypical motherhood; Virtual communities; Social reception devices; Speech analysis;Emotional support. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9 2. MATERNIDADE ATÍPICA: CUIDADO FEMININO, CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IMAGEM DA MULHER E SAÚDE MENTAL ........................................ 12 2.1 MATERNIDADE ATÍPICA: DESAFIOS E REFLEXÕES .............................. 12 2.2 O CUIDADO DA IMAGEM FEMININO E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MULHER ............................................................................................................................. 13 2.3 A MULHER-MÃE E O MERCADO DE TRABALHO .................................... 15 2.4 DESENVOLVIMENTO ATÍPICO EM CRIANÇAS ........................................ 16 2.4.1 Transtorno do Espectro Autista (TEA) ................................................... 17 2.5 MATERNIDADE ATÍPICA: DESAFIOS, NECESSIDADES E A IMPORTÂNCIA DO SUPORTE INTEGRAL À SAÚDE MENTAL ................................ 18 3. DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL E COMUNIDADES VIRTUAIS ............................................................................................................................... 20 3.1 DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL: PERSPECTIVAS E DEFINIÇÕES ....................................................................................................................... 20 3.2 COMUNIDADES VIRTUAIS ........................................................................... 23 3.2.1 Redes Sociais .............................................................................................. 24 3.3 RELAÇÃO ENTRE DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL E COMUNIDADES VIRTUAIS ............................................................................................. 25 3.4 O PAPEL DAS COMUNIDADES VIRTUAIS NO SUPORTE EMOCIONAL A MÃES DE CRIANÇAS ATÍPICAS..................................................................................... 26 4. ANÁLISE DO DISCURSO UMA VISÃO FOUCAULTIANA DAS RELAÇÕES DE PODER .............................................................................................................................. 28 4.1 CONCEITO ANÁLISE DO DISCURSO .......................................................... 28 4.2 CONCEITO DE BIOPODER ............................................................................. 29 4.3 BIOPODER E DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO PARA MÃES DE CRIANÇAS COM DESENVOLVIMENTO ATÍPICO: RELAÇÕES DE PODER E ANÁLISE DO DISCURSO.................................................................................................. 30 5. ANÁLISE DE DADOS ........................................................................................... 32 5.1 METODOLOGIA ............................................................................................... 32 5.2 CATEGORIAS UTILIZADAS PARA ANÁLISE DO DISCURSO ................. 34 5.2.1 Categoria 1. Suporte Emocional As comunidades Virtuais como Locais de Acolhimento ............................................................................................................... 34 5.2.2 Categoria 2: Emprego, Demissões e Angústias Como fatores que provocam o adoecimento mental ................................................................................... 43 5.2.3 Categoria 3: Comunidades Virtuais e a busca de informações ............. 45 5.2.4 Categoria 4: Estado; Dispositivos Sociais e Desamparo (O estado e a ausência de dispositivos de acolhimento sociais) ......................................................... 48 5.2.5 Categoria 5: Medicalização e Normalização do Corpo .......................... 51 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 54 7. REFERÊNCIAS...................................................................................................... 56 9 1. INTRODUÇÃO O presente estudo tem como foco principal abordar como as mães de crianças com desenvolvimento atípico buscam suporte emocional nas comunidades virtuais. O termo vem sendo empregado para indicar indivíduos com necessidades educativas especiais que manifestam limitações físicas ou intelectuais, ou prejuízo no acompanhamento do processo de ensino e aprendizagem por dificuldades e/ou deficiências que podem não estar vinculadas a uma causa orgânica, mas que requerem código de comunicação diferente do usado pela maioria dos estudantes. (CALLONERE; ROLIM; HÜBNER, 2011). Pais e/ou responsáveis por crianças atípicas frequentemente lidam com elevados níveis de estresse e carga física e mental excessiva. A mãe, em particular, a quem é socialmente atribuído o papel predominante de cuidadora, renuncia a sua carreira profissional, vida social e relações afetivas em favor dos cuidados maternos ao filho, que demanda atenção especial. Desse modo, surgem para ela sentimentos como incerteza, tristeza e desamparo (HILÁRIO, 2019). Assim, dispositivos de suporte tornam-se necessários para a preservação da saúde mental dessas mulheres, pois elas frequentemente dedicam-se quase que exclusivamente à maternidade, o que pode resultar em sofrimentos psicológicos em aspectos emocionais, sociais e relacionais (SMEHA; CEZAR, 2011). Sendo assim, como ser social, a mãe está inserida em grupos que se formam ao longo de sua vida: na esfera familiar, educacional, na comunidade, no ambiente de trabalho e nos relacionamentos que desenvolve. São essas relações que podem oferecer suporte e assistência nos cuidados com o filho atípico. Nesse contexto, as redes sociais de suporte se configuram como espaços de acolhimento, reconhecimento e enfrentamento para as questões que surgem durante a experiência da maternidade, podendo ser estruturadas nos âmbitos familiar, educacional, comunitário ou entre mulheres-mães que enfrentam desafios semelhantes (NUNES, 2021). Para Castells (2005), a sociedade em rede possui uma estrutura social que é fundamentada em tecnologias de comunicação, particularmente em redes digitais. Essas redes digitais desempenham um papel fundamental na geração, processamento e distribuição de informações. Na sociedade em rede, as pessoas integram essas tecnologias em suas vidas cotidianas e as conectam à realidade virtual. Isso implica que a tecnologia digital desempenha 10 um papel central na forma como as pessoas se comunicam, obtêm informações e interagem na sociedade contemporânea. A disponibilidade da internet permitiu que as pessoas se mantenham atualizadas sobre uma ampla variedade de assuntos de seu interesse. As redes sociais, em particular, desempenham um papel importante nesse processo, pois oferecem diversas possibilidades onde as pessoas podem consumir notícias, informações e conteúdo de maneira personalizada, de acordo com seus interesses e preferências (CASTELLS, 2005). Segundo Christmann et al. (2017), é imprescindível reconhecer que, para enfrentar esses desafios, as mães de crianças atípicas devem buscar suporte. Isso pode incluir a busca de recursos e redes de apoio dentro da comunidade, como grupos de pais de crianças atípicas, terapeutas, profissionais de saúde e educação, e outros pais que enfrentam desafios semelhantes. Portanto, nesta pesquisa, exploramos como as mães de crianças com desenvolvimento atípico buscam suporte emocional nas redes sociais. Nosso objetivo geral foi identificar os Dispositivos de Acolhimento Social na relação entre as Comunidades Virtuais e as mães de crianças atípicas. Isso nos conduziu a objetivos específicos, incluindo compreender o papel das comunidades virtuais no suporte emocional a mães de crianças atípicas, investigar os tipos de conteúdo mais compartilhados por essas mães, e analisar como as interações nas comunidades virtuais podem influenciar a saúde mental dessas mães, explorando os possíveis impactos dessas interações em seu bem-estar psicológico. Diante do exposto, o problema de pesquisa levantado foi: Quala relação entre Dispositivos de Acolhimento Social e as Comunidades Virtuais no suporte às mães de crianças atípicas? Este trabalho está subdividido em quatro capítulos. O primeiro Capítulo corresponde ao Maternidade Atípica: Cuidado Feminino, Construção Social da Imagem da Mulher e . Este capítulo é subdividido em cinco subitens, abordando a Maternidade Atípica, o Cuidado Feminino, a Construção Social da Imagem da Mulher e sua inserção no mercado de trabalho, o Desenvolvimento Atípico em Crianças, com ênfase no Transtorno do Espectro Autista (TEA), que foi o transtorno mais prevalente em nossa pesquisa e a importância do suporte à saúde mental dessas mulheres. No segundo capítulo, abordamos a dinâmica dos "Dispositivos de Acolhimento Social e Comunidades Virtuais" no contexto do suporte emocional oferecido às mães de crianças atípicas. Inicialmente, na seção 2.1, revisamos as perspectivas e definições associadas aos "Dispositivos de Acolhimento Social", incorporando uma abordagem foucaultiana para compreender sua influência nas dinâmicas sociais e na promoção da saúde mental. A seção 2.2 11 explora a evolução das "Comunidades Virtuais", com foco nas "Redes Sociais" (2.2.1), destacando o papel de plataformas como o Facebook na formação de comunidades online. A seção 2.3 estabelece a "Relação entre Dispositivos de Acolhimento Social e Comunidades Virtuais", unindo dimensões físicas e virtuais de suporte. Por fim, na seção 2.4, discutimos "O Papel das Comunidades Virtuais no Suporte Emocional a Mães de Crianças Atípicas", enfatizando como essas comunidades se tornam centros de identidade, resistência e diálogo político. O terceiro capítulo discutirá os conceitos de Análise do Discurso e do Biopoder e a relação desses conceitos com os Dispositivos de Acolhimento para mães de crianças atípicas. Por fim, no quarto capítulo, Análise dos Dados, apresentamos a metodologia utilizada e conectamos a teoria consultada a análise do discurso feito na comunidade virtual escolhida. 12 2. MATERNIDADE ATÍPICA: CUIDADO FEMININO, CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IMAGEM DA MULHER E SAÚDE MENTAL 2.1 MATERNIDADE ATÍPICA: DESAFIOS E REFLEXÕES A experiência da maternidade atípica, que descreve a vivência de mães cujos filhos fogem do desenvolvimento convencional, apresenta grandes desafios. Estas mães enfrentam jornadas maternas marcadas por demandas que ultrapassam as expectativas tradicionais, englobando desafios cognitivos, emocionais e físicos. Almeida (2023) destaca que o adoecimento mental delas não decorre apenas do cuidado com os filhos atípicos, mas também da exaustão ao terem que lutar cada vez que buscam acessar seus direitos como mães atípicas. Neste cenário, emerge a representação social da mulher-mãe pronta para atender às necessidades daqueles que dependem dela, destacando a relevância de compreender e apoiar a singularidade da maternidade atípica. Walchan (2023) sustenta que muitas mulheres-mães buscam a idealização de atender a uma variedade de exigências impostas pela sociedade contemporânea, o que as leva a assumir duplas jornadas de trabalho. Esse esforço resulta em esgotamento físico e mental, na tentativa de cumprir tantas responsabilidades. Historicamente, as mulheres foram direcionadas para ocupações relacionadas ao cuidado, como trabalhadoras domésticas, babás, cuidadoras de idosos, enfermeiras e professoras. Essas funções foram atribuídas às mulheres, e aquelas que buscaram avanço em suas carreiras frequentemente enfrentam julgamentos. No contexto da maternidade atípica, muitas mães dedicam integralmente seus dias ao cuidado dos filhos, o que as impede de buscar emprego ou participar de outras atividades. Essa dedicação extrema resulta na renúncia da carreira profissional, afetando também a vida social e as relações afetivas dessas mães (CONSTANTINIDIS; PINTO, 2020). Ao longo das décadas, o papel da mulher na sociedade tem sido alvo de intensas mudanças e evoluções, refletindo não apenas transformações culturais, mas também reconfigurações significativas nas estruturas familiares. Como observou Beauvoir (2014, p. 09), "Não se nasce mulher: torna-se mulher." Nesta afirmação, Beauvoir encapsula a ideia de que os papéis de gênero não são inerentes, mas construções sociais que as mulheres têm desafiado e transformado ao longo do tempo. Essa metamorfose social abrange desde a busca por direitos civis até a redefinição das expectativas familiares, permitindo que as mulheres desempenhem papéis mais diversificados e complexos na sociedade contemporânea. 13 Neste contexto, iniciaremos nossa exploração pelas raízes históricas e culturais do cuidado feminino, examinando como a tradição do cuidado estabeleceu uma base para a compreensão das demandas adicionais enfrentadas por essas mães. Em seguida, direcionaremos nosso olhar para a interseção entre a participação feminina no mercado de trabalho e os desafios associados à maternidade, delineando as tensões inerentes a essa dualidade de papéis. Finalmente, adentraremos a esfera da maternidade atípica, explorando não apenas o desenvolvimento atípico em crianças, mas também os impactos emocionais e psicológicos que essas mães enfrentam diariamente. 2.2 O CUIDADO DA IMAGEM FEMININO E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MULHER Na construção histórica e social, destaca-se a tendência para a feminização nas dinâmicas de cuidado. Esse fenômeno implica que as mulheres assumem uma série de responsabilidades no ambiente familiar, desde o lar e os filhos até o cuidado de idosos, doentes, animais de estimação e qualquer pessoa necessitada de assistência ou atenção. As incumbências associadas a esse cuidado abrangem desde a preparação e o serviço de refeições até a manutenção e organização da casa, lavagem de roupas, compras no supermercado, planejamento e gestão das finanças domésticas, gerenciamento de guarda-roupas, contratação de serviços domésticos ou babás, até mesmo a aquisição de novos itens para o lar, entre outras atividades cotidianas (SILVA, 2020). Zanello (2016) destaca que, mesmo quando uma mulher não tem filhos biológicos, a sociedade ainda a percebe como uma cuidadora inata, dotada de um "instinto materno". Essa percepção a habilita para exercer o papel de mãe em diversas esferas, seja em relação aos pais, irmãos, sobrinhos ou membros doentes da família. Esse padrão de cuidado contribui para a naturalização das responsabilidades domésticas, muitas das quais continuam a recair em grande medida sobre as mulheres, incluindo os afazeres domésticos. Não raro, uma mulher que não prioriza o cuidado com os outros (filhos, marido, família) é frequentemente avaliada como egoísta. Segundo o mesmo autor, esse padrão consolidou-se historicamente, especialmente a partir do século XVIII, quando a capacidade de cuidar foi associada ao desdobramento da capacidade reprodutiva. No contexto deste século, a implementação da biopolítica, conforme analisada por Foucault (2008), introduziu uma inovadora tecnologia de poder. A biopolítica, entendida como a expressão do poder estatal sobre a vida da população, visa estabelecer regras e normas que regem a sociedade. Essa abordagem caracterizou-se pela incorporação das características 14 biológicas essenciais da espécie humana, resultando na estatização da vida sob uma perspectiva biológica. Este controle estatal abrange não apenas as ações individuais, mas também a própria vida da população, uma vez que aspectos biológicos passam a ser objetos de regulação. Dentro desse panorama biopolítico, a sexualidade emergiu como um dispositivo para o controle e normalização dos sujeitos. É importante destacar que, segundo Foucault (2008), o propósito não é reprimir a população, mas estabelecer diretrizes em suas vidas. A sexualidade torna-se uma área na qual o poder pode atuar, não para sufocar, mas para criar normas e padrões que moldam o comportamento individuale coletivo. Nesse novo cenário de poder, o indivíduo feminino tornou-se um dos alvos das estratégias emergentes de normalização, ampliando a ênfase na atenção voltada para seu corpo e saúde. Esse redirecionamento do foco para a saúde e o corpo feminino é uma das maneiras pelas quais a biopolítica se manifesta na vida cotidiana. Guizzo (2012) aprofunda essa análise, destacando que a construção da imagem da mulher nesse período não se baseia apenas em suas características biológicas, mas é forjada por meio de um discurso que enfatiza sua condição de gênero culturalmente construído. Isso concentra-se, por exemplo, na questão da reprodução e das responsabilidades domésticas, consideradas exclusivamente femininas. Essa construção cultural do papel feminino, conforme discutido pelo mesmo autor, integra a figura feminina a uma esfera de poder recém-criada, atribuindo-lhe funções específicas derivadas tanto de seu corpo biológico quanto de seu papel social. Nesse contexto, as dinâmicas reforçam o dispositivo da sexualidade e dão origem a novas tecnologias de produção de gênero. Foucault (2010) ressalta a importância da análise da população com base em determinados dados como uma estratégia global de dominação. Uma das estratégias é a histerização do corpo feminino, na qual o corpo da mulher é examinado, categorizado e desqualificado como um corpo saturado de sexualidade. Esse corpo é incorporado ao âmbito das práticas médicas e conectado ao corpo social (responsabilidade pela fecundação), ao espaço familiar e à vida das crianças (responsabilidade biológica e moral). Esse processo faz com que o corpo feminino se torne um local para o exercício dos micropoderes, que investem, modelam e criam novos corpos sexuados, bem como novas construções de gênero. Gilligan (2011) traz uma perspectiva ética importante, diferenciando a "ética do cuidado" da "ética da justiça". Enquanto a "ética da justiça" prioriza os direitos individuais, noções de justiça e normas universais, a "ética do cuidado" fundamenta-se na empatia, na consideração pelo próximo, na promoção do bem comum e na preservação das relações de cuidado ao tomar decisões. Essa diferenciação destaca que, dentro de uma estrutura patriarcal, o cuidado é associado a uma ética tipicamente feminina. Nesse sentido, percebe-se que, na nossa 15 sociedade, as mulheres foram historicamente direcionadas para as tarefas de cuidado de tal forma que essas funções se transformaram em princípios éticos internalizados, frequentemente adotados sem serem alvo de questionamentos, uma vez que esses valores moldam a nossa percepção ética do feminino (SILVA et al., 2020). 2.3 A MULHER-MÃE E O MERCADO DE TRABALHO Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados em 2021 na segunda edição do estudo "Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil", referentes a 2019, revelam uma disparidade significativa na distribuição das responsabilidades de cuidado. Nesse período, as mulheres dedicavam, em média, 21,4 horas semanais a afazeres domésticos e cuidados, enquanto os homens contribuíam com apenas 11,0 horas nessas atividades (IBGE, 2021). A amplitude da tarefa de cuidar engloba diversos aspectos, como educação, orientação, acompanhamento e zelo pela saúde. Essa desigualdade na distribuição de responsabilidades de cuidado não apenas reflete uma sobrecarga para as mulheres, mas também perpetua a naturalização do trabalho doméstico e de cuidado. Esse cenário impacta diretamente a experiência da maternidade, desencadeando nas mulheres um processo de adoecimento devido à sobrecarga, muitas vezes invisibilizando a pessoa que existe para além do papel de mãe e de suas obrigações (WALCHAN, 2022). A partir da década de 70, houve um aumento notável na participação das mulheres no mercado de trabalho remunerado e no acesso à educação. Essas conquistas permitiram que as mulheres fossem em busca de formação profissional, e ingressarem no mercado de trabalho, tendo a oportunidade de construírem carreiras sólidas. Contudo, mesmo diante desses avanços, as mulheres continuam a enfrentar a sobrecarga de responsabilidades para além de suas carreiras e estudos, o que pode impactar negativamente sua saúde física e mental (ALVES, 2021). Ao integrar a função materna, a mulher enfrenta desafios distintos, cuja complexidade é acentuada no contexto da maternidade atípica (Bosa, 2006). Mães de crianças atípicas, além de lidarem com as demandas tradicionais associadas à maternidade, encaram responsabilidades adicionais no cuidado de seus filhos, sujeitando-se a incertezas decorrentes do diagnóstico e experimentando elevados níveis de estresse (Bosa, 2006). Essa realidade impacta consideravelmente a dinâmica da relação de trabalho, à medida que as mães de crianças atípicas frequentemente se veem compelidas a equilibrar as exigências laborais com a necessidade premente de atender às particularidades e demandas inerentes à condição atípica de seus filhos. 16 A luta por equidade de gênero no ambiente de trabalho e na distribuição de responsabilidades de cuidado é indispensável para criar uma sociedade justa e saudável. O reconhecimento e a valorização do trabalho materno, aliados a políticas públicas eficazes, assim como o acesso a informações seguras e corretas sobre seus direitos estabelecidos em leis e serviços amenizam desgaste e exaustão dessas mães. Estes são passos importantes para mitigar a sobrecarga enfrentada pelas mulheres-mães, permitindo uma vida mais equilibrada e saudável. Estes são aspectos da biopolítica através do controle dos corpos, disciplina e vigilância, sendo possível manter a subjetividade do sujeito FOUCAULT (2021). 2.4 DESENVOLVIMENTO ATÍPICO EM CRIANÇAS O desenvolvimento atípico refere-se a um atraso e/ou prejuízo significativo no desenvolvimento do indivíduo em relação à sua faixa etária, resultando em desafios físicos, cognitivos e psicossociais. O nível de desenvolvimento depende consideravelmente do grau de comprometimento da criança e do estímulo que recebe, caracterizando-se por um comprometimento biológico vinculado a um ambiente desfavorável ou a uma deficiência física e/ou cognitiva do indivíduo (CONCEIÇÃO, 2021). O Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais (American Psychiatric Association, 2014), também referido como DSM-V, classifica os transtornos do neurodesenvolvimento como um conjunto de condições que têm início durante o período de desenvolvimento, manifestando-se precocemente no processo de desenvolvimento, geralmente antes da criança ingressar na fase escolar. Esses distúrbios são caracterizados por déficits no desenvolvimento que impactam no desempenho pessoal, social, acadêmico ou profissional. As crianças com desenvolvimento atípico apresentam características e habilidades diferentes daquelas consideradas dentro dos padrões esperados pela sociedade, abrangendo desde superdotação até limitações que dificultam o acompanhamento das atividades curriculares, conforme mencionado por Minetto e Löhr (2016). Em cada área do desenvolvimento humano há padrões esperados fundamentados na maturação biológica do indivíduo, mas esses são influenciados pela estimulação do ambiente. O desenvolvimento que não segue a norma caracteriza-se como atípico. Diversos elementos podem estar associados ao progresso atípico, e um deles é a presença de transtornos mentais na infância. De acordo com Ebert, Lorenzini e Silva (2015), estima-se que, no Brasil, entre 10% e 20% das crianças e adolescentes apresentem transtornos mentais, sendo que aproximadamente de 3% a 4% necessitam de tratamentos intensivos. 17 Ao analisarmos a composição do grupo estudado, notamos que uma parcela significativa das mães, se identifica como cuidadora de crianças autistas. Essa predominância suscitou a necessidade de destacarmos em nosso estudo o TEA, evidenciando sua relevânciana dinâmica das comunidades virtuais de mães. Ressaltamos, entretanto, que nossa escolha de enfatizá-lo não implica a intenção de conduzir uma investigação mais aprofundada sobre o autismo, apenas uma breve apresentação, já que o nosso foco primordial reside nas mães que vivenciam diversas formas de atipicidade em seus filhos. 2.4.1 Transtorno do Espectro Autista (TEA) O Transtorno do Espectro Autista (TEA), conforme classificado pelo Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-V, APA, 2014), é um transtorno global do neurodesenvolvimento que se manifesta precocemente na infância. Crianças com TEA apresentam um desenvolvimento atípico que compromete a comunicação e interação social, acompanhado por padrões de comportamento repetitivos e estereotipados, além de apresentarem interesses ou atividades restritos (BRASIL, 2023). Para critérios diagnósticos, os déficits devem ser persistentes além de apresentar e causarem prejuízo clínico significativo, de acordo com o DSM-V (APA, 2014). As causas/ origens desse transtorno, ainda não estão totalmente esclarecidas, no entanto de acordo com estudos e várias evidências, as causas são multifatoriais, como alterações de ordem genéticas associados a fatores ambientais (BRASIL, 2023). O TEA é considerado um espectro de transtorno, por apresentar graus, tipos e gravidade variados. Dados do censo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, apontam que cerca de 2 milhões de Brasileiros apresentam o transtorno atualmente, o que significa que 1% da população brasileira estaria dentro do espectro, sendo quatro vezes mais comuns e prevalentes em meninos do que em meninas (IBGE, 2021). O TEA apresenta alguns sinais como dificuldades na interação social, dificuldade em compartilhar pensamentos e sentimentos; restrições na comunicação, podendo ser classificado como não verbal, ausência de contato visual e comprometimento de linguagem corporal e expressões faciais; resistência e inflexibilidade na mudança de rotinas; Interesses restritos e intensos; excessiva sensibilidade sensorial física, intolerância a texturas, cheiros e gostos desde os primeiros meses de vida (INSTITUTO NEUROSABER, 2020). Ainda de acordo com o mesmo Instituto; outra característica que algumas vezes passam despercebidas por seus cuidadores (as), são as restrições alimentares, provenientes da sensibilidade a estímulos, como os cheiros, gostos, textura, temperaturas e cores, fazendo com 18 que a criança recuse certos tipos de alimentos, ou recusa da alimentação em horários e locais diferentes do seu habitual. O diagnóstico do TEA é realizado por meio de uma avaliação com psicólogos, neuropsicólogos, através de testes padronizados (Questionário de Comunicação Social, para crianças e a Lista de Verificação Modificada para Autismo, em crianças) para a triagem do espectro, e junto aos relatos de pais e cuidadores, observados cuidadosamente (BRIAN, 2022). O acompanhamento deve iniciar precocemente, através da estimulação precoce de terapias adequadas e de forma contínua desde os primeiros sinais, até mesmo antes do diagnóstico para promover o melhor desenvolvimento da criança, assegurando melhor qualidade de vida (ANDRADE, 2022). A análise do Comportamento Aplicada (ABA), é uma terapia bastante utilizada com crianças autistas, pois estas são estimuladas através de reforçamento de habilidades funcionais e redução dos comportamentos inadequados. Estas crianças têm a oportunidade de adquirir e ou reforçar habilidades cognitivas, sociais de linguagem, comunicação e comportamento (MARQUES,1998). 2.5 MATERNIDADE ATÍPICA: DESAFIOS, NECESSIDADES E A IMPORTÂNCIA DO SUPORTE INTEGRAL À SAÚDE MENTAL Lidar com a atipicidade de um filho é uma jornada que transcende expectativas, transformando-se em um desafio que se assemelha a um processo de luto, com fases que incluem negação, tristeza, culpa e busca por explicações (Almeida, 2023). A vivência da maternidade associada a uma deficiência intensifica as pressões internas e externas sobre as mulheres que desempenham o papel de mães de crianças atípicas. Essas demandas são agravadas por necessidades financeiras, frequentemente resultando em jornadas de trabalho mais longas ou no abandono de trajetórias profissionais, além de enfrentarem desafios no cuidado com a criança, incertezas relacionadas ao diagnóstico e níveis elevados de estresse (FERREIRA, 2018). No estudo de Fávero e Santos (2005), feito através de uma revisão de literatura acerca do autismo infantil e estresse familiar, demonstrou-se que o impacto nos pais está vinculado ao prejuízo cognitivo, gravidade dos sintomas e comportamentos agressivos das crianças com Transtorno do Espectro Autista. A demora no diagnóstico, as dificuldades de compreensão e manejo do diagnóstico, o acesso limitado a serviços de saúde e a falta de suporte social contribuem significativamente para a sobrecarga emocional (GOMES et al., 2015). 19 As mães, em especial, enfrentam desafios diários decorrentes da falta de informações, da ausência de políticas públicas e da carência de apoio social. Essa realidade leva a uma dedicação exclusiva ao cuidado do filho atípico, resultando na perda de identidade, papéis e vínculos sociais (Almeida, 2023). A sobrecarga materna está intrinsecamente ligada à gestão contínua de comportamentos, enfrentamento de dificuldades na comunicação e lidar com padrões repetitivos e restritivos (Carvalho, 2019). O isolamento social, muitas vezes perpetuado pelo preconceito e estigma, acentua o sofrimento emocional das mães e de suas crianças atípicas (ZANATTA et. al, 2014). Num contexto tão desafiador, a indagação que se impõe é: qual o suporte disponível para aquelas que se dedicam ao cuidado constante? Enfrentar questões relacionadas à reabilitação, terapias e à qualidade de vida das crianças atípicas torna-se uma tarefa árdua quando as próprias cuidadoras estão fragilizadas. Reconhecer a importância da saúde mental dessas mães é essencial para garantir a concretização dos seus direitos e para proporcionar uma qualidade de vida que vai além do simples papel de mãe-cuidadora (VIVAS, 2021). Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de suporte integral a essas mães para lidar com a complexidade da maternidade atípica. Este suporte inclui não apenas auxílio emocional, mas redes de apoio financeiro, social e familiar. Torna-se evidente a necessidade de políticas públicas específicas que compreendam e atendam a essas demandas, garantindo um ambiente propício para o desenvolvimento saudável da criança e o bem-estar integral da mãe-cuidadora. 20 3. DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL E COMUNIDADES VIRTUAIS Este capítulo tem como objetivo aprofundar a compreensão das relações entre dispositivos de acolhimento social e comunidades virtuais, especialmente no contexto do suporte emocional voltado para mães de crianças atípicas. Inicialmente, abordaremos as perspectivas e definições relacionadas aos dispositivos de acolhimento social, indo além das estruturas físicas para contemplar discursos, práticas e tecnologias que desempenham papéis fundamentais na construção do suporte social. Em seguida, exploraremos o universo das comunidades virtuais, destacando o papel em ascensão das redes sociais e sua influência na formação de laços online. A análise não se restringirá apenas às perspectivas tradicionais, mas também examinará como esses espaços digitais oferecem um terreno fértil para o desenvolvimento de redes de apoio emocional. A interseção entre dispositivos de acolhimento social e comunidades virtuais será explorada, delineando como esses dois domínios interagem e se complementam. Por fim, será enfatizado o papel das comunidades virtuais no fornecimento de suporte emocional às mães que enfrentam desafios específicos associados à criação de crianças atípicas. Este capítulo busca ofereceruma compreensão integrada desses elementos, lançando luz sobre as complexas redes de suporte que se manifestam tanto no mundo físico quanto no ambiente digital. 3.1 DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL: PERSPECTIVAS E DEFINIÇÕES O termo "dispositivo" assume significados amplos e múltiplos, como observado no Dicionário Online de Português (2019), sua definição abrange funções diversas, podendo representar instrumentos, mecanismos de ação para mudanças, aparelhos adaptados, peças, prescrições, ordens ou instrumentos para executar ações ou funções. Na perspectiva foucaultiana, o termo "dispositivo" vai além de meras mudanças, abarcando o exercício de controle, organização e o uso de ferramentas de poder em contextos sociais. Sales (2016), aprofunda essa compreensão, destacando-o como um elemento dual: um instrumento de poder que normatiza subjetividades e uma potência que ensaia modos experimentais de subjetivação. Nesse contexto teórico, o conceito de "dispositivo" transcende as definições convencionais, incorporando discursos, instituições, regulamentações e práticas que exercem influência na dinâmica social. Essa concepção ampliada, intrinsecamente ligada ao exercício 21 do poder, manifesta-se como uma ferramenta multifacetada capaz de induzir transformações e exercer controle (FOUCAULT, 2008b). No âmbito de nossa pesquisa, o termo "dispositivo" é empregado para descrever uma ferramenta metodológica e institucional destinada a acolher mães de crianças atípicas em suas vivências, experiências e subjetividades, sendo concebido como um mecanismo de acolhimento social. Paralelamente, é possível observar sua aplicação como um instrumento multifuncional que desempenha papéis tanto no controle quanto na promoção e manutenção da saúde mental dessas mães. Jorge et al. (2009) sugerem que os dispositivos presentes nos serviços de saúde mental proporcionam uma compreensão mais profunda das experiências vivenciadas no espaço micropolítico, permitindo que os indivíduos se apropriem desses conceitos e potencializem suas subjetividades. Os autores Romanini, Guareschi e Roso (2017) descrevem o termo Dispositivo como uma prática de acolhimento social. Definem o acolhimento como um encontro entre as partes envolvidas, ressaltando sua capacidade de construir o comum, manifestando-se nos encontros diários entre profissionais e usuários. No contexto brasileiro, a noção de acolhimento não é recente, especialmente após 2004, quando o Ministério da Saúde reconheceu a prática do acolhimento como estratégia de recepção no SUS (Sistema Único de Saúde). Destacado na Implementação da Política Nacional de Humanização (PNH) e do Humanizasus, o acolhimento é considerado uma das diretrizes éticas, estéticas e políticas mais relevantes. A prática de acolher está intrinsecamente relacionada à ideia de "estar com" e "estar próximo", onde a escuta e o vínculo constituem um processo de promoção de saúde nos serviços públicos (BRASIL, 2010). A prática e a ideia de acolhimento não são novas na psicologia e na saúde mental, remontando às reformas sanitária e psiquiátrica. Constituem uma tecnologia de cuidado que visa aliviar imediatamente situações de sofrimento, reconhecendo problemas principais e recursos pessoais acionáveis em contextos específicos. Em alguns casos, a recepção é percebida a partir de uma lógica hierarquizante, como uma ação de menor status no campo da psicologia e da saúde (QUADROS, 2020). Em suma, o acolhimento social é compreendido como uma ferramenta de apoio e cuidado. Aplicado em diversos contextos sociais, especialmente na área da saúde, busca humanizar o atendimento, garantir o acesso, escutar as necessidades dos usuários e oferecer respostas efetivas para seus problemas. Pesquisas realizadas por Oliveira, Tunin e Silva (2008) evidenciam a relevância do acolhimento social como um dispositivo fundamental para a 22 promoção do bem-estar, autonomia, qualidade de vida e produção de subjetividade, criando ambientes acolhedores, empáticos e solidários. Nessa perspectiva, Jorge et al. (2009) destacam o acolhimento como um direito à singularidade, possibilitando o acesso às tecnologias que melhoram a vida e a construção da autonomia dos sujeitos. Ressaltam que o acolhimento não está necessariamente ligado a um espaço físico, mas sim a um encontro entre diferentes setores, proporcionando uma escuta atenta e experiências vividas que promovem intervenções no cuidado, estabelecendo uma conexão significativa entre a pessoa e o mundo vivido. Dessa forma, os dispositivos de acolhimento são compreendidos como mecanismos que constroem subjetividades, oferecendo olhares livres de julgamento, escuta atenta e espaços adequados que promovem o bem-estar dos sujeitos em sofrimento, atendendo às suas demandas em um ambiente acolhedor e terapêutico. No estudo de Faro (2019), que analisou mães de crianças autistas, evidenciou-se que participar de grupos terapêuticos e de apoio a mães atípicas é um fator que reduz o estresse. Diante disso, os dispositivos de acolhimento social desempenham um papel crucial na vida das mães de crianças atípicas, oferecendo suporte diante da sobrecarga diária resultante dos cuidados com seus filhos. A Rede de Apoio Psicossocial (RAPS) é citada como exemplo de dispositivo de acolhimento, orientada por diretrizes específicas do Ministério da Saúde (2018). No entanto, é necessário investir na infraestrutura desses locais, especialmente aqueles destinados às mães atípicas, por meio de políticas públicas que promovam e ofereçam suporte adequado aos usuários da RAPS (BRASIL, 2015). Em vista desse cenário, a disponibilidade de dispositivos de acolhimento social adequados é fundamental. Esses dispositivos devem ser espaços seguros, acolhedores e terapêuticos, nos quais as mães possam compartilhar experiências, receber orientação e trocar informações com outras pessoas em situações semelhantes. Minetto (2010) ressalta a necessidade de redes de apoio específicas e eficientes para pais de filhos com desenvolvimento atípico, a fim de reduzir o estresse e orientar práticas educativas. Além disso, é essencial que haja investimentos em políticas públicas voltadas para o fortalecimento e ampliação desses dispositivos, garantindo acesso igualitário e de qualidade a todas as mães atípicas que necessitam de apoio. Ao promover um acolhimento adequado, é possível contribuir significativamente para a saúde mental, bem-estar e qualidade de vida não apenas dessas mães, mas também de seus filhos e famílias. Programas dessa natureza colaboram para a redução do estresse parental, favorecendo a elaboração de estratégias de enfrentamento 23 de situações adversas e contribuindo para a vida social e educacional (MINETTO; LÖHR, 2012). A falta de investimento do Poder Público nessas iniciativas leva, contudo, muitas mães a buscar outras formas de apoio. As comunidades virtuais se apresentam, nessa perspectiva, como alternativas de suporte para lidar com as adversidades do cotidiano do cuidado de uma criança atípica (COLOMÉ; DANTAS; ZAPPE, 2023). 3.2 COMUNIDADES VIRTUAIS Historicamente, o ser humano buscou estratégias de sobrevivência para assegurar a continuidade de sua espécie, estabelecendo conexões com outros indivíduos e formando pequenos agrupamentos, comunidades e, eventualmente, uma civilização. Com o advento da Internet e da World Wide Web (www), esse conceito de comunidade transcendeu os limites físicos e geográficos, ganhando destaque nos novos ambientes virtuais, conhecidos como ciberespaço. Nesses espaços de virtualidade, as pessoas podem construir laços sociais sem a necessidade de estarem conectadas fisicamente (LISBÔA; COUTINHO, 2011). A expressão "comunidade virtual" tornou-se proeminente desde os primeiros anos deste século, especialmente com o avanço da economia digital. No entanto, a falta de consenso na definição desse termoé evidente, dada sua inserção em um campo de conhecimento multidisciplinar, o que resulta em diversas interpretações moldadas por perspectivas sociológicas e tecnológicas distintas (NUNES, 2020). Uma das definições mais amplamente aceitas para "comunidade virtual" é oferecida por Rheingold (1996). Ele descreve uma comunidade virtual como um conjunto social que emerge na rede digital, quando um grupo de indivíduos inicia uma conversa pública com extensão e vigor adequados para criar conexões pessoais no ciberespaço. A partir dessa definição observamos uma notável expansão na produção de textos que exploram o conceito de comunidades virtuais. Embora a expressão seja de compreensão acessível, sua delimitação revelou-se desafiadora. No artigo de Nunes (2020), mesmo diante da ausência de um consenso consolidado sobre a definição, diversos autores de distintas áreas do conhecimento sustentam os elementos fundamentais que caracterizam uma sociedade digital, incluindo: comunidades de aprendizado, que se referem a grupos de indivíduos reunidos no espaço virtual com a intenção de realizar uma atividade específica e alcançar resultados definidos; comunidades orientadas para a prática, que são aquelas em que uma extensa coletividade de indivíduos compartilha interesses em uma 24 prática comum, promovendo a troca de experiências e conhecimentos especializados; e comunidades voltadas para o desenvolvimento do conhecimento, que buscam especificamente avançar o conhecimento científico através de processos de discussão e intercâmbio de ideias. Observa-se que comunidades virtuais orientadas para a prática, como as redes sociais, tornam-se uma manifestação dessas transformações, constituindo coletivos de indivíduos com interesses comuns. Um exemplo notório é encontrado nas redes sociais de compartilhamento de vivências, onde mães atípicas dividem suas dificuldades e angústias, buscando apoio e solidariedade com pessoas que compartilham experiências semelhantes. Esses espaços virtuais não apenas ampliam as possibilidades de interação, mas também desempenham um papel fundamental na construção de redes de apoio e na promoção do compartilhamento de vivências (LISBÔA; COUTINHO, 2011). 3.2.1 Redes Sociais O termo "rede social" foi inicialmente empregado em 1954 por Barnes em uma análise sociológica das conexões interpessoais. Segundo Barnes (1987), uma rede social é definida pela análise e descrição dos processos sociais que englobam conexões além dos limites de grupos e categorias. A ideia surge a partir de interações interpessoais entre indivíduos que buscam compreender eventos específicos. A universalização de interesses em uma discussão pode ser discernida dessas interações, exigindo a reconstrução de um espaço crítico, aberto e plural. As redes sociais são caracterizadas com base nessas interações, considerando atores (sujeitos) e suas conexões (relações interpessoais). Quando fundamentadas em intercâmbios de informações, suporte emocional e apoio afetivo (e/ou financeiro), são identificadas como redes de apoio social. A concepção de rede social é uma metáfora para observar um conjunto social, configurado pelos vínculos sociais que integram o grupo (MORAIS; LACERDA, 2010). As redes sociais online têm sido amplamente utilizadas globalmente, facilitando o compartilhamento de experiências e conhecimentos, configurando-se como ambiente propício para a interação entre usuários e promovendo a aprendizagem colaborativa. As tecnologias digitais desempenham papel estratégico de suporte (Cabral, 2020), organizando-se como estruturas de relações pautadas em associações. Participantes nas interações encontram oportunidades para discutir e fortalecer identidades políticas e sociais, guiadas por afinidades. Uma rede social fortalecida, para além de afinidades e interesses compartilhados, organizada para proporcionar respaldo, é crucial para a promoção da saúde mental. A expressão de afetividade é indispensável para a construção do coletivo (Carvalho, 2019), pois o apoio 25 social e emocional ganha destaque, configurando-se como um intrincado conjunto de conexões interpessoais. Essa malha une pessoas e facilita o fluxo de suporte, atuando como proteção contra os riscos de doenças relacionadas ao estresse (FERREIRA, 2018). Portanto, vamos explorar não apenas a função das redes sociais, mas também sua capacidade de transcender o virtual e influenciar nossa realidade de maneiras significativas. Ao considerarmos esse papel complexo, torna-se essencial diferenciar as plataformas rotuladas como redes sociais das verdadeiras redes sociais. Conforme destaca Araújo (2012), as plataformas digitais servem como meios de expressão dessas redes, construídas sobre relações reais de conexão e interação, desmistificando a concepção de virtualidade. Num mundo cada vez mais interconectado, em que a influência das redes sociais ultrapassa as barreiras físicas e molda interações sociais e emocionais, é fundamental compreender como esse fenômeno impacta coletiva e individualmente, fortalecendo a inteligência coletiva. Conforme ressaltado pela mesma autora, é fundamental destacar a diferença entre as redes sociais e os sites e aplicativos rotulados como tais. Essas plataformas são simplesmente meios digitais usados para expressar uma rede social, ou seja, os laços sociais, e não constituem redes sociais em si. As verdadeiras redes sociais residem nas relações de conexão e interação que abrigam e proporcionam. Destacamos o Facebook, considerado por Recuero (2009) não apenas como uma plataforma, mas como um verdadeiro hospedeiro de redes sociais autênticas. Hine (2016) ressalta o papel significativo do Facebook como facilitador essencial em pesquisas realizadas em grupos digitais. Essa plataforma dinâmica, acessível por diversos equipamentos, desempenha uma função importante na análise de comunidades, conforme discutido por Markham (2017). Aprofundaremos essa análise para compreender como o Facebook transcende as fronteiras da conectividade digital. 3.3 RELAÇÃO ENTRE DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO SOCIAL E COMUNIDADES VIRTUAIS Ao abordarmos a natureza dos dispositivos de acolhimento social nas comunidades virtuais, é necessário considerar uma interpretação ampla do conceito de "dispositivo", conforme apresentado anteriormente. Sob a definição expandida de Foucault (2008b), que engloba não apenas mecanismos físicos, mas também discursos, práticas, instituições e 26 tecnologias que moldam relações de poder e subjetividades, as comunidades virtuais podem ser enquadradas nessa categoria. Dessa perspectiva, as comunidades virtuais, ao oferecerem espaços de interação online, transcendem meramente a função de plataformas tecnológicas. Esses ambientes configuram-se como palcos para diversas práticas discursivas, trocas de experiências e construção de identidades. Ademais, eles proporcionam um terreno onde formas específicas de poder e controle podem se manifestar, ainda que de maneira sutil. Assim, as comunidades virtuais podem ser compreendidas como dispositivos que exercem influência nas dinâmicas sociais e subjetivas de seus participantes (ALENCAR, 2021). Os estudos de Pereira Neto et al. (2015) destacam a capacidade única das comunidades online em oferecer suporte, resolver dúvidas e proporcionar um espaço para a troca de apoio. O anonimato e a distância desempenham papéis relevantes na influência das interações e na comunicação entre os participantes desses ambientes. Nesse sentido, as comunidades virtuais podem configurar-se como ambientes seguros ou espaços para a expressão de estilos de vida e identidades. Na dinâmica das comunidades virtuais, destaca-se a relevância da troca de experiências entre os membros, especialmente quando relacionadas ao enfrentamento de desafios, como é o caso das situações envolvendo mães de crianças atípicas. A partilha de saberesnesses ambientes online não apenas envolve informações práticas e objetivas, mas vai além, conectando-se ao universo empírico e cultural dos participantes (FERNANDES; CALADO E ARAÚJO, 2018). Dentro desse contexto, os grupos virtuais emergem como espaços propícios não apenas para o compartilhamento de informações, mas também para a expressão de narrativas pessoais e a valorização das nuances, promovendo uma abordagem mais integrada e sensível aos desafios enfrentados pelos participantes. 3.4 O PAPEL DAS COMUNIDADES VIRTUAIS NO SUPORTE EMOCIONAL A MÃES DE CRIANÇAS ATÍPICAS A presença de uma condição crônica, inevitavelmente impacta as interações do indivíduo com seus círculos sociais, que incluem família, comunidade, escola e profissionais de saúde (Ferreira e Smeha, 2011). Nessas situações, as mães de crianças atípicas buscam suporte em redes sociais para enfrentar as dificuldades, uma vez que os espaços físicos de acolhimento são escassos. Essas redes virtuais oferecem um ambiente onde compartilham experiências, desabafam sobre suas sobrecargas e encontram suporte emocional. 27 Essas comunidades virtuais assumem um papel crucial para essas mulheres, proporcionando suporte, reconhecimento, conexão e estabilidade na experiência materna. Além de serem pontos de identidade psicológica e apoio emocional, as redes sociais focadas em mães que compartilham realidades semelhantes também se configuram como um movimento político de conscientização e ampliação das discussões sobre a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade (CASSELATO, 2015). Nesse sentido de resistência, as comunidades virtuais se tornam não apenas locais de apoio individual, mas também espaços de diálogo e engajamento social. Ao participarem de redes sociais centradas na maternidade atípica, as mães encontram fortalecimento emocional, sentindo-se parte de um grupo organizado que busca seus direitos nas esferas social, acadêmica e política (Soares e Carvalho, 2017). As conexões formadas nessas comunidades variam, envolvendo diferentes dinâmicas, perspectivas e interações. Embora amizade, compreensão e companheirismo possam ser elementos presentes, é relevante destacar a diversidade de opiniões e experiências que caracterizam esses ambientes. Constantinidis e Pinto (2020), em seu estudo sobre mães de crianças com autismo, enfatizam a identificação através do sofrimento, resultando na formação de uma rede de apoio. Em vez de permanecerem resignadas diante dos desafios, o grupo de mães atua de maneira ativa, envolvendo-se com sua dor e respondendo às situações angustiantes. O compartilhamento da experiência de maternidade atípica em comunidades virtuais contribui para a saúde mental dessas mães, ampliando conexões e fortalecendo a noção de uma rede de apoio. Esse compartilhamento não apenas favorece o suporte emocional individual, mas cria uma resistência coletiva contra estigmas e preconceitos relacionados à maternidade atípica. Nessa perspectiva de comunicação, as redes sociais associadas às políticas públicas apresentam um potencial para uma comunicação dialógica entre o Estado e a sociedade civil. Essa dinâmica vai além da disseminação de informações, focando na co-criação de espaços colaborativos para a troca de experiências e reflexão coletiva sobre a realidade da rede de saúde e suas complexidades (CARVALHO, 2019). Sob uma abordagem pragmática, as redes sociais podem desempenhar funções como dispositivos de capacitação, criação de comunidades, estímulo ao diálogo e ativação de redes construídas a partir da experiência. A análise destaca que essas redes podem ser instrumentos essenciais para a formação em saúde, construção de acervo de experiências/conhecimentos, colaboração clínica, disseminação e co-criação de espaços para compartilhar experiências no desenvolvimento das políticas públicas de saúde (FERIGATO, 2018). 28 4. ANÁLISE DO DISCURSO UMA VISÃO FOUCAULTIANA DAS RELAÇÕES DE PODER 4.1 CONCEITO ANÁLISE DO DISCURSO De acordo com a visão de Foucault (2008a), a linguagem desempenha um papel fundamental como uma das principais ferramentas de poder. Nessa perspectiva, a análise do discurso se torna uma maneira relevante de compreender como essa ferramenta é utilizada para controlar as ideias e ações das pessoas. Foucault também destaca que o discurso não é apenas uma expressão das lutas ou sistemas de dominação existentes, mas é o próprio objeto das relações de poder que permeiam a sociedade. Dessa forma, a análise do discurso desempenha um papel importante ao revelar os mecanismos de poder presentes nos discursos que circulam em nossa sociedade. Sob esse olhar, é fundamental compreender que o discurso não pode ser encarado como algo neutro, mas sim como uma construção profundamente influenciada pelo contexto social e histórico em que é produzido e recebido. Segundo Foucault (2008b, p. 08), "O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual poderosa ferramenta utilizada para moldar e manter relações de poder na sociedade, indo além de uma simples transmissão de informações de forma neutra e objetiva. De acordo com Foucault em "A Ordem do Discurso" (1996), o discurso não se resume a uma mera representação de conflitos ou sistemas de dominação; é, na verdade, uma batalha pela conquista do poder almejado. O discurso emerge como uma ferramenta poderosa para moldar e perpetuar relações de poder na sociedade, indo além da simples transmissão neutra e objetiva de informações. Essa perspectiva ampliada nos leva a reconhecer que as palavras não são apenas veículos de comunicação, mas instrumentos ativos que participam ativamente na construção e negociação do poder dentro das dinâmicas sociais. Ainda em sua obra acerca do discurso, Foucault indica a existência de um "discurso de verdade" que está presente em nossa sociedade. Este discurso emana de indivíduos que detêm expertise em determinado tema ou ocupam uma posição de privilégio e poder, fazendo referência aos pensadores da Grécia Antiga (Foucault, 1996). Para aqueles desprovidos de poder ou controle sobre suas palavras, ou que não filtram e investigam os conteúdos e informações que consomem, resta o senso comum. O senso comum ouve repetidamente a mesma declaração e a aceita como verdade, mesmo sem compreender seus contextos. 29 Nesse entendimento, a análise do discurso, fundamentada nas contribuições teóricas de Foucault (2008b), nos possibilita uma compreensão mais aprofundada das dinâmicas de poder presentes nos discursos e das formas como eles influenciam nossas vidas e relações sociais. Ao desvelar os mecanismos de poder subjacentes aos discursos, podemos desenvolver uma consciência crítica e promover transformações que visem a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. 4.2 CONCEITO DE BIOPODER O conceito de biopoder desenvolveu-se a partir do século XVII em duas formas principais, as quais não são excludentes, mas sim complementares (Foucault, 1988; Dreyfus, 1995) A primeira surgiu no século XVII e assumiu a forma da anatomopolítica do corpo e dos procedimentos disciplinares. Esses procedimentos tinham como objetivo extrair do corpo sua força útil, utilizando uma tecnologia de poder centrada no corpo enquanto máquina. Ou seja, o corpo era visto como passível de ser treinado e ampliado para gerar força de trabalho para o sistema econômico, resultando na produção de um corpo dócil direcionado à produção. Esse controle sobre o corpo individual caracteriza o poder disciplinar (RABINOW, 2006). A segunda forma emergiu um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, e concentrou-se na retirada da vida da espécie do corpo individual. Nesse caso, o poder passou a se interessar pela vida do ser vivo em seus processos biológicos, como a capacidade de reprodução, taxas de natalidade/mortalidade,longevidade, entre outros fenômenos relacionados à vida, que passaram a ser objetos de intervenção política. Esse controle sobre o corpo-espécie caracteriza a biopolítica. A conexão entre o poder sobre o corpo-individual e o poder sobre o corpo-espécie, estabelecida a partir do século XIX, define o termo "biopoder". Trata-se de um poder cuja tecnologia integra dois elementos fundamentais para o controle da vida: os desempenhos do corpo e os processos vitais (ZORZANELLI E CRUZ, 2018). O conceito de biopoder, conforme abordado por Maria Muhle (2021) em seu artigo "Uma genealogia da biopolítica: a noção de vida em Canguilhem e Foucault", baseia-se nas ideias desenvolvidas por Michel Foucault ao longo de sua obra. Segundo a autora o biopoder refere-se ao exercício do poder sobre a vida e os processos vitais da população, e representa uma mudança significativa em relação ao poder soberano, que se concentrava na punição e na morte. O biopoder é um poder produtivo, além de repressivo. Ele não apenas controla e regula a vida, mas também busca maximizar a eficiência e a produtividade da população. Nesse 30 sentido, as políticas de saúde pública, os programas de assistência social e os dispositivos de controle populacional são exemplos de estratégias biopolíticas que visam melhorar a qualidade de vida e garantir a sobrevivência da sociedade como um todo (MUHLE, 2021). No entanto, o biopoder também levanta questões éticas e políticas importantes. A centralização do poder sobre a vida coloca em risco a autonomia e a liberdade individual, uma vez que impõe normas e padrões que nem sempre correspondem aos desejos e necessidades das pessoas. Além disso, o biopoder cria relações assimétricas de poder, nas quais alguns grupos são privilegiados em detrimento de outros (MUHLE, 2021). centralizado apenas no Estado, mas está disperso em várias instituições e práticas sociais. Ele explora como o conhecimento é uma forma de poder e como as instituições, incluindo o Estado, exercem controle através do saber. Isso se manifesta nas instituições disciplinares, como escolas, prisões e hospitais, onde o conhecimento é utilizado como uma ferramenta para normalizar e controlar corpos e comportamentos. Além disso, Foucault discute a biopolítica, onde o Estado exerce poder sobre a vida da população, não apenas nos níveis individuais, mas também nas questões relacionadas à saúde, reprodução e gestão populacional. Nesse contexto, o saber torna-se uma ferramenta crucial para governar e regular a vida. Diante disso, o conceito de biopoder proposto por Foucault (1975) e explorado por Muhle (2021) nos convida a uma reflexão crítica sobre as implicações do poder sobre a vida e os corpos. Ele nos alerta para a necessidade de questionar as estratégias de controle e regulação implementadas, bem como de buscar formas de resistência e de reivindicar a autonomia e a liberdade diante do poder biopolítico. 4.3 BIOPODER E DISPOSITIVOS DE ACOLHIMENTO PARA MÃES DE CRIANÇAS COM DESENVOLVIMENTO ATÍPICO: RELAÇÕES DE PODER E ANÁLISE DO DISCURSO A aplicação da análise do discurso de Foucault e do conceito de biopoder no estudo dos dispositivos de acolhimento social para mães de crianças com desenvolvimento atípico abre espaço para uma investigação crítica das dinâmicas de poder presentes nesse contexto. Através da análise do discurso, é possível examinar como práticas e discursos institucionais constroem noções de normalidade e anormalidade, influenciando as expectativas em relação às mães e suas crianças (Muhle, 2021). 31 Foucault (1975) argumenta que os dispositivos de poder não se restringem apenas à repressão, mas também operam por meio da regulação e produção da vida. Nessa perspectiva, os dispositivos de acolhimento social para mães de crianças com desenvolvimento atípico podem ser entendidos como estratégias biopolíticas que visam normatizar e controlar essas vidas, buscando a regulação dos corpos e comportamentos das mães, bem como a maximização da eficiência e da normalização social. Ao examinarmos os dispositivos de acolhimento social sob a ótica da análise do discurso de Foucault, podemos compreender como práticas e discursos presentes nesses espaços constroem noções de normalidade e anormalidade, moldando as expectativas em relação às mães e suas crianças. Conforme apontado por Muhle (2021), esses discursos têm o poder de influenciar a percepção das mães sobre si mesmas e sobre seus filhos, podendo contribuir para a criação de identidades estigmatizadas ou patologizadas. O conceito de biopoder, segundo Foucault (1975), nos incita a questionar como esses dispositivos atuam na gestão da vida. O biopoder de acordo com o referido autor refere-se, nesse sentido, ao controle exercido sobre a vida dos indivíduos e das populações, com o objetivo de moldar e regular a vida em termos de eficiência, produtividade e normalização. No contexto dos dispositivos de acolhimento social para mães de crianças com desenvolvimento atípico, podemos perceber a presença desse biopoder, que não se limita apenas a oferecer apoio, mas também busca moldar comportamentos e atitudes das mães. É importante considerar que a regulação da vida materna por meio desses dispositivos pode restringir a liberdade e a autonomia das mães, impondo expectativas sociais e limitando suas escolhas, conforme nos alerta o estudo de Muhle (2021). O biopoder envolve a sujeição dos corpos individuais e a gestão das populações, com o propósito de buscar a normalização e a maximização da vida. Nesse sentido, os dispositivos de acolhimento social podem ser vistos como mecanismos de poder que visam governar e regular as vidas das mães e suas crianças, estabelecendo padrões e normas de conduta. Assim, ao abordar os dispositivos de acolhimento social para mães de crianças com desenvolvimento atípico à luz dos conceitos de Foucault, desvelamos não apenas práticas regulatórias, mas também o impacto significativo dessas dinâmicas nas vidas das mães. Essa compreensão mais profunda é essencial para fomentar reflexões críticas e propor alternativas que respeitem a diversidade de trajetórias maternas, afastando-se de padrões normativos que, muitas vezes, perpetuam desigualdades e estigmas. 32 5. ANÁLISE DE DADOS 5.1 METODOLOGIA Para a metodologia optamos por uma abordagem qualitativa e exploratória com análise do discurso utilizando como base a teoria de Michel Foucault. Para entender como funciona a dinâmica das comunidades virtuais de apoio às mães atípicas, fizemos o estudo em uma rede social, o Facebook como plataforma de investigação devido a eficaz interação entre membros e à organização das postagens, que simplifica a identificação de grupos de apoio e movimentos relacionados por meio de perfis especializados. Essa característica facilitou a localização de comunidades relevantes para a nossa pesquisa, justificando a escolha do Facebook em detrimento de outras plataformas. A finalidade do estudo foi compreender o papel das comunidades virtuais no suporte emocional a mães de crianças atípicas e analisar as interações entre as mães de crianças atípicas como rede de cuidado para a saúde mental. Como observadoras não participantes, aplicamos a análise do discurso influenciada pela perspectiva de Michel Foucault para desvendar os significados subjacentes e as complexas dinâmicas de poder presentes nessas interações online. Nesse contexto, a abordagem foucaultiana para a análise do discurso se revelou fundamental, ao destacar a importância das práticas discursivas na construção de objetos de conhecimento e como os discursos produzem verdades que afetam as subjetividades e os modos de existir dos sujeitos (Foucault, 2008). Além disso, nossas escolhas metodológicas incorporaram conceitos foucaultianos, como a noção de poder como algo não apenas opressor, mas produtivo, que age em nível microfísico, influenciandoas normatividades e condutas (FOUCAULT, 2008b). dessa comunidade no Facebook decorreu de uma pesquisa orientada pelas palavras-chave "apoio a mães atípicas". A decisão de focar nesse grupo específico foi motivada por diversas características distintivas. Dentre essas, destaca-se o considerável número de membros, contando com aproximadamente 13,2 mil participantes, o que reflete uma comunidade ativa e significativa. Adicionalmente, é relevante mencionar a continuidade de suas atividades ao longo de um ano, demonstrando estabilidade e consistência. A confiabilidade das discussões no grupo foi reforçada pelas diretrizes que proíbem a divulgação de conteúdo relacionado a questões religiosas, políticas e quaisquer manifestações de preconceito. Essas orientações tornaram o grupo relevante para nossa pesquisa, e sua 33 característica de ser de acesso público simplificou a obtenção de conteúdo sem a necessidade de aprovação prévia. Para coletar dados dentro da comunidade escolhida, realizamos uma pesquisa utilizando a ferramenta de busca do Facebook com palavras-chave específicas, tais como 'apoio selecionamos postagens e comentários dos últimos 6 meses do ano de 2023- maio a outubro - devido ao curto prazo para análise de dados para realização do TCC. Neste prazo foram coletados 27 postagens de acordo com os descritores e critérios de inclusão adotados que foram as postagens e comentários que abordassem claramente o uso das redes sociais para apoio emocional e busca de informação e os critérios de exclusão foram postagens e comentários de perfis comerciais; as que não tinham o intuito de buscar informações e apoio emocional; e as que não eram publicadas por mães atípicas. Após essa etapa, fizemos o recorte e seleção de 18 postagens e 18 comentários. A extração de dados foi feita por meio de prints de tela do computador. Ao realizar esse processo, tivemos o cuidado de preservar o anonimato do pesquisador e dos integrantes da comunidade virtual. Por essa razão, foram apagados nomes, fotos e dados de endereço e telefone presentes nas postagens e comentários de todos os participantes. Para seleção configuramos os filtros de pesquisa para abranger qualquer data de publicação, dentro deste período estabelecido independentemente do autor, em qualquer local dentro do grupo, incluindo publicações que tínhamos e não tínhamos visualizado, bem como publicações recentes e não recentes. Essa abordagem foi adotada com o propósito de assegurar a precisão e a abrangência da coleta de dados, além de mitigar possíveis ambiguidades na seleção dos conteúdos pertinentes. Consideramos as questões éticas relacionadas à coleta e análise de dados. Como essa pesquisa foi conduzida em uma comunidade pública e não identificamos membros específicos, não foi necessário obter consentimento individual. Isso é consistente com o princípio de preservação da privacidade dos participantes, pois não divulgamos informações pessoais. Diante de muitas narrativas de mulheres-mães devido ao engajamento dos membros no grupo, as falas lidas serão analisadas por meio da análise do discurso, de cunho foucaultiano. Os discursos foram separados em 5 categorias: Categoria 1 - Suporte Emocional As comunidades virtuais como locais de acolhimento; Categoria 2 - Emprego, Demissões e Angústias Como fatores que provocam o adoecimento mental; Categoria 3 - Comunidades Virtuais e a busca de informações; Categoria 4 - Estado; Dispositivos Sociais e Desamparo (O Estado e a ausência de dispositivos de acolhimento sociais); e Categoria 5 - Medicalização e Normalização do Corpo. 34 A escolha dessa abordagem metodológica permitiu uma análise aprofundada das interações nas comunidades virtuais de apoio a mães atípicas, contribuindo para uma compreensão mais detalhada das dinâmicas de poder, da construção discursiva e das práticas sociais presentes nesse contexto. A segmentação dos discursos em categorias específicas ofereceu uma visão mais completa das diferentes dimensões das experiências das mães, enriquecendo nosso entendimento sobre o papel dessas comunidades no suporte emocional e nas estratégias de enfrentamento diante das complexidades do desenvolvimento atípico infantil. 5.2 CATEGORIAS UTILIZADAS PARA ANÁLISE DO DISCURSO 5.2.1 Categoria 1. Suporte Emocional As comunidades Virtuais como Locais de Acolhimento As postagens revelam um cenário complexo em que mães compartilham suas experiências emocionais, destacando a sobrecarga, a solidão e o esgotamento físico e psicológico enfrentado no cuidado de filhos com necessidades especiais. A teoria foucaultiana pode ser aplicada para entender como esses discursos refletem dinâmicas de poder e construção de conhecimento dentro do grupo. Postagem 1 Comentário 1 35 Comentário 2 Nessa primeira postagem podemos ver o desabafo de uma mãe atípica e que houve uma grande quantidade de comentários (46) e de reações (72) demonstrando mobilização e acolhimento de outras mães do grupo para respondê-la e apoiá-la. Esta narrativa apresenta o discurso de uma mãe angustiada e esgotada psicologicamente. Essas mães atípicas vivem e são as protagonistas da experiência e compartilham simultaneamente essas vivências através de postagens e comentários em um espaço público como a Comunidade do Facebook, que acaba funcionando como o ambiente virtual comunitário de muitas mulheres-mães. Em outras palavras, é a contextualização de uma experiência que se desenrola fora de nós (por ocorrer no Facebook), mas que também encontra seu lugar na pessoa que vivencia a experiência e, por conseguinte, é capaz de narrar. Notavelmente, ambas as mães que comentam a Postagem 1 trazem consigo relatos de suas experiências de maneira subjetiva. São vivências singulares, reflexivas e que não são consideradas como verdades universais e absolutas. Considerando os comprometimentos e atrasos que pode acarretar no desenvolvimento da criança, de acordo com Russa et al. (2015), o autismo pode ser considerado como um estressor potencial, sendo observado que famílias de crianças com esse diagnóstico tendem a apresentar maiores níveis de estresse comparativamente a famílias de crianças típicas ou com outros tipos de deficiência. Portanto percebe-se no discurso dessas mães esses estressores do dia a dia. Pesquisadores de diferentes regiões e países identificam a presença de estresse agudo em famílias que contam com um membro diagnosticado com autismo. Particular destaque tem sido dado ao estresse enfrentado pelas mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), devido ao papel central de cuidadora que ainda lhes é designado em nossa sociedade (CHRISTMANN, et.al, 2015). Essas mulheres-mães trazem em suas narrativas o contexto da experiência nos seus lares, as dificuldades que carregam consigo e por isso buscam externalizar para outras pessoas que podem estar passando por vivências parecidas, a fim de encontrar apoio. Diante disso, as postagens revelam um cenário complexo em que mães compartilham suas experiências emocionais, destacando a sobrecarga, a solidão e o esgotamento físico e psicológico enfrentado no cuidado de filhos com necessidades especiais. Foucault (2002) argumenta que o poder não 36 é apenas coercitivo, mas também produtivo, moldando subjetividades e criando normas. Nesse contexto, as mães, ao compartilharem suas experiências, participam na criação de uma narrativa coletiva que influencia a percepção do que é ser mãe de uma criança atípica. A citação, "Juro que estou além do meu limite," expressa a intensidade do estresse vivenciado por essa mãe. Ao analisar a fala à luz da teoria foucaultiana, podemos entender que a mãe está envolvida em um discurso que não apenas descreve suas dificuldades, mas também participa na construção de uma narrativa coletiva sobre as pressões enfrentadas pelas mães de crianças atípicas. O compartilhamento