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Definindo o conhecimento científico

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Pedro Demo
etodologia do
Conhecimento Cien11gjgQ ;g©$p
M
SAO}UULO
EDITORA ATLAS S.A. - 2015
l
Definindo Conhecimento
Cienti.fico
I SOBRE"DEFINIR"
Entre as expectativas ditas p6s-modernas este a de que toda definigao 6
apenas aproximativa, porque nenhum fen6meno tem contornos nitidos, muito
menos fen6menos sociais e hist6ricos. Definir 6 colocar limites. Quanto mais algo
este fechado entre limites, mais claro se torna. Assim fazendo, entretanto, tam-
b6m podemos empobrecer o fen6meno ou mesmo deturpar, porque o reduzimos
ao que pode ser encarcerado dentro de limited. Deturpamos sua natural "comple-
xidade", em particular sua dinfmica. De uma parte, para "ver" melhor, 6 mister
simplificar, olhar s6 para um ponto, de prefer6ncia o ponto central. De outra,
qualquer fen6meno reduzido a seu ponto central pode estar mais descaracterizado
do que desvendado. Precisamos estabelecer compromisso: 6 fundamental definir
bem, mas saber que toda definigao bem feita 6 aquela que reconhece seus limites
e incongru6ncias. Se jf soub6ssemos de antemio qual 6 o ponto central, sequer
necessitarfamos deflinir. Coma nio sabemos, arquitetamos hip6teses de trabalho
que sugerem centralidades sempre questionfveis, ja que nunca podemos decidir
totalmente se o que vemos como central 6 central no fen6meno ou central por-
que vemos melhor. Nesse sentido, definir conhecimento cientifico sup6e o ponto
de vista de quem define. Tanto 6 assim que, dependendo da metodologia cientffi-
ca emjogo - positivista, dia16tica, alternativa, moderna, p6s-moderna -, obtemos
resultados muito diferentes, por vezes irreconciligveis. Todos querem, no fundo,
definir o mesmo fen6meno, mas o "aprisionam" de maneiras diversas, ressaltan-
do supostos centros que sio mais o centro das suposig6es do que os centros do
14 METODOLOGiA DO CONHEClhaENTO CIENT(FICO DEFININDO CONHECIMENT0 CIEN'HFICO 15
fen6meno. A pr6pria id6ia de complexidade recomenda duvidar da expectativa de
apenas um centro.
Usamos aqui abordagem dia16tica, entre outras raz6es, p6rque se afi-
na bem melhor com a complexidade dos fen6menos e sua dinfmica n5o linear.
Ao mesmo tempo, essa postura reconhece seu contexto hermen6utico, acei-
tando esse limite natural de todo o processo definit6rio: ao definir termos, usa-
mos termos ainda nio definidos. coda definigao inclui regressao ao infinito, ra-
zio pda qual nunca 6 completa, cabendo-the constante revisio. Se demos da rea-
lidade visio linear, transparente, dimples, esperamos poder ver judo, ou, pelo
menos, ver o centro, com base no qual as outras panes podem ser entendidas por
decorr6ncia. A dia16tica considera a realidade intrinsecamente contradit6ria, por-
que sua dinfmica 6 tipicamente contrgria. N3o existe apenas a dinfmica linear,
que vai de ponto a ponte em linha reta, ou a dinfmica circular, que gira em torno
de ponto de modo uniforme, mas sobretudo a complexa e nio linear, que, mesmo
manifestando regularidades, 6 dinfmica por causa das irregularidades. Essa 6
questao fundamental da discussio metodo16gica atual, e tentaremos dar conga dela
aos poucos, reservando espago ulterior para "definirmos" dia16tica, sobretudo em
confronto com ouuas vis6es metodo16gicas. Por isso mesmo, aproximagao dia16tica
sup6e que todo fen6meno, por ser dinfmico sobretudo de modo complexo e nio
linear, nio se deixa aprisionar totalmente em definigao, pois esta 6, no fundo, tam-
b6m artiffcio do discurso, a comegar pelo fate de que o mais dizivel nem sempre
6 o mais real.
Definir significa interfer6ncia do sujeito no objeto, nio apenas olhar aten-
to que busca descobrir sem tocar. Como bem coloca a Ffsica Quantica, a dimples
observagao das pardculas acarreta-lhes desvios dinamicos, passando a fazer par-
te de seu comportamento.: Embora tenhamos em mente captar o fen6meno, nio
existe definigao que n5o tenha, por trgs, sujeito definidor. Captar o fen6meno do
modo mais objedvo possivel 6 boa intengao necessgria, mas 6 boa intengao: em
seu lado positivo, significa a dedicagfio honesta de deturpar o mfnimo possivel;
em seu lado negative, significa a ingenuidade de dar conta de complexidade que
nio cabe propriamente nos limites pretendidos. A rigor, definir o complexo 6 tomg-
lo menos complexo, isto 6, mexer nele de modo artificial, violentg-lo at6 certo
ponte, obriga-lo a alustar-se a nossas expectativas metodo16gicas. Ao mesmo tem-
po, se nio fizermos isso, nada saberemos do complexo.
Reponta aqui tema metodo16gico crucial sobre a vocagao analftica do
conhecimento cientffico. O m6todo maid caracterfstico do procedimento cientifi-
co 6 a anflise. Na origem etimo16gica, analisar significa decompor um todo nas
panes, desfiando uma a uma, em particular as tidas por mais importantes. Trata-
se de atividade desconstrutiva que admite ser o todd apenas o ajuntamento das
panes, tanto assim que, desfazendo parte por parte, nada resta do dodo, a n5o ser
suas panes. Fazendo o caminho de volta, ao ajuntar as panes, obtemos de novo o
todo, de maneira reversivel. Assim 6 o re16gio: 6 monte de panes concatenadas,
desmontgveis uma a uma. O relqoeiro tem do re16gio visio sint6tica, sem a qual
nio saberia conceber as panes, mas o constr6i por panes. O re16gio nio existe nas
panes desmontadas, mas estas, uma vez montadas, sio o re16gio. Elsa percepgao
linear da realidade ffsica animou a ci6ncia a apostar no esforgo analitico: a reali-
dade 6 intelidvel pda via de sua decomposigao nas panes, como sucedeu com a
Fisica e Quimica, que, ao final das contas, descobriram a estrutura at6mica. A
descoberta da estrutura at6mica insinua algumas expectativas metodo16gicas
paradigmgticas da modernidade :
Dal nio segue que definir 6 coisa irrelevante. Muito ao contrgrio. Segue
que precisamos definir com tanto maior cuidado, buscando termo m6dio entre
definig6es que apenas simplificam, e outras que apenas complicam. Eis desafio
grduo: simplifica=r, de um lado, para ver melhor, complicar de outro, para serjus-
to com a riqueza do fen6meno. Uma das raz6es para esse cuidado 6 que fen6me
nos complexos nio lineares, a16m de nio possufrem limites estanques, permane-
cem os mesmos enquanto mudam, ou seja, agridem seus pr6prios limited. A ino-
vagao prov6m exatamente dessa agressao ou dessa desconstrugao. Por exemplo,
s6 aprendemos algo quando comparando a situagao anterior com a posterior,
notamos nesta aldo novo. Se apenas reproduzimos conhecimento, temos o mes-
mo antes e depois, possivelmente at6 menos depois, porque ainda mais deturpa-
do. lbr isso, dizemos que aprender 6 reconstruir, no sentido preciso de que a apren-
dizagem aut6ntica desconstr6ie reconstr6i constantemente seus limites. Depara-
mos aqua com situagao tipicamente dia16tica: trabalhar com objetos bem defini-
dos 6 mandamento central do conhecimento cientffico, mas objetos bem defini-
dos podem ja ser maid artefatos metodo16gicos do que reais, pois realidade bem
definida 6 mais inventada do que real. Esse 6 um dos "dramas" das teses de p6s-
gradugao - se nio tiverem objeto bem definido, nio servo aceitas, mas, com isso,
tornam-se tanto mais "mero exerc(cio acad6mico", nio servindo para mais do que
como rito de passagem.
a
b.
c.
d
e.
f.
as realidades nio possuem "ess6ncia" que nio sejam apenas suas par-
decompondo as panes, damos conta de toda a realidade;
sobretudo, nas panes desmontadas descobrimos a realidade, sempre
redutivel a aldo mais simples;
esse algo mais dimples 6 tamb6m mais real, porque mais invariante;
donde segue que a dinfmica 6 apanhada pelos modos como se repete;
explicar a realidade 6 fazer dela projegao simplificada, dimples e
invariante, como sao, de modo gerd, as teorias.
tes;
N5o foi por outra razio que chamamos as panes mfnimas da materia de
"gtomos", porque imagingvamos que eram o ponto final da decomposigao (fto-
l GILMORE, R. Alice no pak cio quanmm. Rio de Janeiro : Zahar, 1998
16 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTj FICO DEFINiNDO CONnECiMnNTO ciENTf rico 17
mo significa, em prego, nio divisfvel). Observando a materia a olho nu, nio ve-
mos itomos. A primeira vista, nio esperariamosque algo t5o diversificado, con-
fuso mesmo, pudesse ser desfeito em panes simples e sempre as mesmas. Embo-
ra possamos discutir sobre o ndmero final dos ftomos, acredita-se que sio em
ndmero Hnito, o que permitiu construir a tabela at6mica, dentro da mesma ima-
gem analftica da mtisica: sua variagao exuberante nio passa da combinagao varig-
vel dos 12 semitons invariantes. O Estruturalismo Antropo16gico - d Zal,dvi-Saauss
- adotou essa maneira de ver com extremo impeto para analisar mitos, linguagem
e a pr6pria hist6ria, levando ao paroxismo a postura dita positivista. Entretanto,
a hist6ria acabou mostrando que o navel at6mico, ao contrfrio de ser ponto final
dimples, transparente, analiticamente dominado, 6 outro universo abs61utamen-
te complexo e surpreendente, marcando passo fundamental da metodologia
cientifica: cada nova descoberta nunca 6 final por definigao; pois apenas abre ou-
tro horizonte. O conhecimento cientjfico abre e supera horizontes. Nunca identi-
ficamos com nenhum deles como passo final. E isso coloca problema intestino para
o esforgo definit(brio: horizontes bem definidos j£ n5o sio cengrios dinamicos,
porque o procedimento definit6rio petrifica-lhes a transitoriedade.
Perante o desafio de captar a dinamica, a anflise apresenta-se com expec-
tativa contradit6ria, pois espera poder descobrir nela o lado invariante da dinf-
mica. Acredita que somente entendemos a variagao quando descobrimos coma
invariavelmente varia. Aposta que s6 entendemos o varifvel sobre pane de funds
invariante e que o esforgo propriamente cientffico significa precisamente essa
proposta: levantar as regularidades mais universais possivel que as ci6ncias ditas
exatas e naturais chamam de "leis". Leia exatamente o que nio pode ou deveria
ser mudado. Essa discussio ganhou novas facetas muito interessantes com as
descobertas bio16gicas de que nosso c6rebro 6 mgquina dedicada a descobrir, no
fluxo da realidade complexa e muitas vezes pouco inteligivel, padr6es recorren-
tes. Como n5o conseguimos dominar a complexidade como tal da realidade.
reduzimo-la a padr6es regulares, at6 o ponto de idendficarmos o "conhecido" com
o "regular". Por certo, surpresa traz-nos inseguranga, e risco 6 sobretudo a carac-
terfstica de fen6meno que nio dominamos. De certa maneira, o conhecimento
religioso, ao oferecer-nos padr6es eternos da fe, busca produzir a tranqtiilidade
de esperajf decidida.: A ci6ncia procede, nesse sentido, da mesma forma: faz de
tudo para sacar leis da realidade, e n3o 6 sem razio que seu m6todo mais decan-
tado s5o os matematicos, porque estes garantiriam que toda dinfmica 6 feita de
algoritmos, ou sega, de pedagos recorrentes. Muitos estruturalistas e positivistas
concedem que as teorias nfo retratam diretamente a realidade, porque sio mo-
delos mentais e discursivos, mas, mesmo assim, fazem-the justiga, porque, no fun-
do, toda realidade 6 simpler e invariante. Nesse sentido, a cata de algoritmos dentro
do fluxo da dinfmica tem efeito reducionista, mas que 6 compensado fartamente
pda crenga de que neles este a parte central da realidade.
Visio mais dia16tica poder6 conceder que o caos da realidade 6
"estruturado", ou seja, existe alguma ordem nele, at6 porque o mundo nio se re
cria toda hora.3 dodo fluxo flub de certa maneira. Sua flexibilidade 6 relativa ao
que neue 6 inflexivel. Entretanto, a dia16tica acentua a unidade de contrfrios: se a
flexibilidade 6 apenas manifestagao secundfria, passageira, n3o paisa de apar6n-
cia. homo acreditamos que a realidade 6 intrinsecamente flexivel, s6 6 deveras
flexfvel o que consegue transgredir a inflexibilidade, assim como s6 6 autentica-
mente dinfmico o que 6, a rigor, nio totalmente previsfvel. Nio conseguimos
entender caos que nio seja minimamente estruturado, porque, sendo conceito,
id6ia, imagem, ja significa aldo de certa forma ordenado. E impraticgvel id6ia
ca6tica do caos, como 6 impraticgvel melodia que n5o seja seqti6ncia de notas, por
mais surpreendente que possa parecer-nos quando a ouvimos pda primeira vez.
Contudo, nio podemos perder de vista que a id6ia de caos 6 fundamental para
dar conta da dinamica, que s6 6 de fato dinfmica se tamb6m for lidimamente
ca6tica. Dinfmico 6 o que nunca 6 dinfmico do mesmo jeito.
A anglise tem seu charme, 6 claro. Primeiro, legou-nos enorme processo
de conhecimento controlado que, entre outras coisas exuberantes, produziu as
tecnologias sofisticadas que dominam o mundo atual. Tecnologia 6, no fundo, a
perfcia dos algoritmos, trechos bem aprisionados da realidade que estio sob nos-
so controle mais ou ments precise. Com isso, fabricamos avi6es com incid6ncia
tio pequena de problemas graves que at6 os usamos. Sabemos que este domrnio
6 relativo, porque 6 impossfvel dar conta da complexidade completa - complexi-
dade completa 6 contradigao nos termosl - do fen6meno "v6o". Todavia, nio cus-
ta reconhecer que o conhecimento cientffico deu-nos grandiosa oportunidade,
usada, 6 claro, para fins tamb6m muito duvidosos constantemente. Segundo, a
anflise empurrou o conhecimento cientifico para a questao do m6todo, deixando
o conteddo em segundo plano. O que a ci6ncia faz nio 6 o que mais poderia inte
ressar ao ser humano, mas o que melhor alcanga analisar, quer dizer, o que maid
facilmente cabe em seus m6todos. Daf a tend6ncia positivista de reduzir a reali-
dade aquilo que podemos mensurar com maior controle. A cientificidade este
menos no brilho, na criatividade da id6ia, do que em seu tratamento sistematico,
de prefer6ncia empiricamente controlado. E claro que reduzir a realidade a sua
face mais quantiflcgvel e analitica 6 grosseiro reducionismo, mas tamb6m 6 claro
que esse m6todo trouxe-nos avangos cientfficos de extrema relevancia, como 6 o
cano not6rio da medicina. Visio mais complexa e rica da vida humana dina sem-
pre que a medicina analitica s6 sabe tratar do corpo, e nele s6 das varigveis mais
quantificgveis, mas tamb6m 6 diffcil negar que hole sabemos tratar bem melhor
2 SHERMER, M. How we believe: the search of God in an age of science. W H. New York
1999
Freeman
3 COMBS, A. 7'he radiance cr being: complexity chaos and the evolution of consciousness
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18 METODOLOGIA DO CONHECIMENT0 CiKN'HPiCO nEpiNiNoo CONnnCiMZNTO CIENT( rico 19
do corpo, ocorrendo avangos seguidamente impressionantes. Zerceiro, a anflise
combina bem a capacidade 16gica dedutiva com a indutiva, exigindo tanto a
sistematicidade do pensamento, quanto a necessidade de controle empfrico. E,
nesse sentido, demonstragao inequivoca da racionalidade, em dupla diregao: par-
tindo do sujeito, coloca o desafio tipicamente 16gico produgao de discurso
logicamente consistente e coerente - tendencialmente entendido como neutro;
partindo do objeto, coloca o desafio da objetividade - controlar o fen6meno tal
qual 6, por meio, sobretudo, da decomposigao de suas panes constituintes. A ang-
lise serra m6todo neutro e objetivo, possibilitando o encontro frudfero entre su-
jeito capaz de pensar logicamente e realidade desvendada objetivamente. Quar-
to, a anglise tem a grande vantagem de proceder pda simplificagao, dando sem-
pre a impressao alentadora de que explicar 6 simplificar. O que 6 analisgve16 tam-
b6m compreensivel, porque raciocinar 6 it por panes. O complexo nio 6 vislvel
em si. Apenas aos pedagos. A maneira maid samples de simplificar 6 levantar os
pedagos recorrentes, supondo que o recorrente possa coincidir com o mais rele-
vante. Seria bom demais se a relevfncia surgisse da mera simplificagao. No en-
tanto, 6 ineggvel que bom analista v6 mais rapido, classifica logo o assunto e seus
componentes, levanta relag6es mais regulares e, por vezes, apresenta explicag6es
que nos parecem consistentes. Quinta, analisar 6 sobretudo a arte de definir.
Cientista 6 principalmente quem tem id6ias claus, conceitos delimitados, teol.ias
uansparentes. Usa-os sempre da mesma forma, e ipsoexigimos dos alunos. Uma
das contradig6es mais combatidas nas teses 6 usar termos nio definidos, mudd-
los no decorrer do texto ou combinar asserg6es contradit6rias. Nio s6 construi-
mos cercas, como tamb6m vivemos dentro delas. A vantagem 6 que, dentro de-
gas, judo 6 conhecido, visto e sabido. Em certo sentido, dominamos melhor o que
sabemos definir. Entretanto, "dominar melhor" nem sempre tem o sentido de des-
vendar a realidade, porque pode predominar a manipulagao.
Por isso, a anglise tem tamb6m seus limites. Definir nio 6 apenas deixar
claro o que este dentro. E tamb6m excluir o que mica de fora. Por vezes e sem per-
ceber, deixamos de fora o mais relevante, s6 porque nio cabe nos m6todos de
captagao. Por vezes e de caso pensado, manipulamos a realidade, subljugando-a
aos m6todos, sobretudo is ideologias. As id6ias sio tanto mais claus, quando mais
esque16ticas, estereotipadas, ass6pticas. Na areia limpa, nio cresce nada. Todavia,
ipso nio pode conduzir-nos ao extremo de nio querer definir. Fazer ci6ncia 6, em
certo sentido e em primeiro lugar, saber definir. ramos, por isso, tentar "definir"
conhecimento ciendfico.
razfo de implicar, desde logo, que 6 um entre outros tamb6m possiveis, como
sabedoria, bom-denso e mesmo denso comum, a16m de admitir hist6rias diferencia-
das. Pode ser sin6nimo de "ci6ncia", desde que nio se afirme ser esta necessaria-
mente superior e totalmente diversa dianne de outros tipos e hist6rias. Ci6ncia,
quando conectada com "tecnologia", transmite sobretudo o pano de fundo ociden-
tal, extremamente relacionado aos processes de colonizagao e hoje ao sistema
produtivo neoliberal competitive. "Ci6ncia e tecnologia" representam a vantagem
comparativa decisiva em termos de crescimento econ6mico e domfnio do mundo,
da natureza, da sociedade e da economia.' Dentro da tradigao ocidental, em par-
ticular da dita racionalista, ci6ncia 6 procedimento frontalmente diferente de ou-
tras formas de conhecer, universal, superior e definitivo, tendencialmente volta-
do para as "ci6ncias exatas e naturais", donde tamb6m segue o desaprego por outras
culturas e seus modos de conhecer. Embora mantenhamos o termo ci8ncia nas areas
sociais e humanas, persiste a expectativa de que seu uso mais correto ocorre ape-
nas nos ramos que possibilitam utilizagao concentrada de procedimentos mate-
mgticos e emplricos, que seriam, ademais, garantias de objetividade e neutralida-
de. Nesse caso, ci6ncia e tecnologia formam dupla insepargvel e imbativel, repre
sentando possivelmente a identidade cultural mais forte da hist6ria ocidental.s Em
seu extremo, substituem a religiao, no sentido de que apenas nelas se "cr6". Quanto
a conhecimento cienz:gtco, a expressao envolve sua variabilidade natural no tempo
e no espago, aludindo menos a pretens6es de universalidade que a diferengas es-
pecfficas de m6todo. E, pois, tipo de conhecimento, mesmo se tendo feito
avassalador, a ponto de poder tornar-se "senso comum" com o tempo, como dina
Segundo, preferimos reconstruir a "construir" conhecimento. Modernas
teorias da aprendizagem apontam para o cargter construtivo do conhecimento,
em contraposigao ao instrucionismo que insiste na simples transmissio reprodutiva.
No entanto, podem exagerar na dose, quando sup6em excessiva criatividade, como
se partfssemos do nada. Na prgtica, conhecemos com base no que ja este conheci-
do, aprendemos do que outros ja aprenderam. Sobretudo nos ambientes escola
res e universitarios, por mais que sega.essencial praticar a pesquisa como estrat6
gia central de aprendizagem, dificilmente construimos conhecimento tipicamen-
te novo. O que mais fazemos 6 retomar o conhecimento disponivel e refaz6-1o com
m5o pr6pria. Entretanto, nio se trata de procedimento adequado, quando ape-
nas reproduzimos conhecimento, como 6 o cano freqtiente do "fichamento de li-
vros", se por isso entendermos a simples compilagao de id6ias dos outros sem
Santos.60
2 TENTATIVADEDEFINIQA0 4.
5.
6.
DEMO, P Educafdo e desenvoZvimento: mita e realidade de uma relagao posslvele fantasiosa.
Campinas : Papyrus, 1999.
NAISBITT J. High tech, high touch; technology an our search for meaning. New York : Broadway
Books, 1999.
SANTOS, B. S. Toward a new common sense: law:, science and politics in the paradigmatic
transition. New York : Routledge, 1995.
Primeiro, sera conveniente distinguirmos termos como cidncia, conhecimen-
to cierln©co, tecnoZogia, pesquka, tamb6m em relagao is diferentes areas (ci6ncias
naturais e humanas). A expressao que preferimos 6 conhecimenro ciend@co, pda
20 METODOLOGIA DO CONHECIMENT0 CIENT(FICO OEpiNTNoo CONnECIMnNTO DENT(FICO 21
qualquer elaboragao pr6pria. Reconstruir conhecimento significa, portanto,
pesquisar e elaborar, impreterivelmente. Pesquisa 6 entendida tanto como
procedimento de fabricagao do conhecimento, quanto como procedimento de
aprendizagem (princfpio cientlfico e educativo), sendo parte integrante de todo
processo reconstrutivo de conhecimento.'
Terceiro, consideramos pouco 6til a distingao entre teoria e prgtica, pda
razio de que o conhecimento cientifico 6 o que existe de mais prgtico em nossas
sociedades, principalmente por conta das tecnologias. Por vezes, ainda identifica
mos a "academia" como mundo a parte, torre de marfim, em que figuras pouco
praticas usam seu tempo para apenas pensar, elucubrar, especular. O termo./tZo-
scPa 6 usado nesta acepgao facilmente, insinuando que "n3o serve para nada",
mesmo que se admita inteligente. Tamb6m 6 impr6pria a expectativa utilitaria,
porque imediatista. Fazer teoria pode, a primeira vista, parecer aldo ocioso. To-
mando, por6m, em conta que os dais termos necessitam um do outro, teoria que
finalmente nada tem a ver com a prftica, tamb6m n5o 6 teoria de coisa nenhuma,
e pratica que nio retorna a teoria jamais se renova. Por exemplo, defender sese
sobre o conceito de mai6utica em S(icraZ:es pareceria diletantismo acad6mico, mas
pode servir como fundamento para imimeras praticas pedag6gicas atuais, sem friar
em seu aspecto reconstrutivo que admitiria tratamento alternativo do que muitos
outros ja estudaram. Outra coisa 6 o "teoricismo", also que pode ser aplicado a
maioria dos cursos acad6micos, porque fazem com que os alunos engulam um
monte de teorias - sem pesquisa e elaboragao pr6pria - destitufdas de sentido
prgtico. O campus universitgrio pode espraiar esta id6ia vazia: mica no outro lado
da cidade, em lugar fechado, tipo mundo da Lua. Muitas vezes, "estudar" tamb6m
pode inspirar esta expectativa: 6 atividade especial, em tempo especial, idade es-
pecial, lugar especial; 6 preciso "paras" para estudal, interromper o dia ou a ju-
ventude, fair da vida normal. Vis6es p6s-modernas recomendam desconstruir tais
dicotomias, seja porque o que nio tem utilidade imediata pode t6-la mediata, seja
porque no contexto em sua totalidade 6 de alguma forma dtil, ou, no minimo, faz
sentido dentro da sociedade. Caso contr6rio, as pessoas nio fariam cursos, mes-
mo quando tachados de te6ricos em excesso. Nesse caso, haveria que desfazer o
excesso, nio a fundamentagao te6rica. Da mesma forma, agregar sentido pratico
aos cursos, sem cair no ativismo, tamb6m poderia acrescentar-the qualidade.
Embora cada termo tenha seu lugar, des moram no mesmo lugar.
Quarto, podemos, para fins de sistematizagao, distinguir quatro tipos de
pesquisa:
plicitos, e, depois, para termos condig6es mais adequadas de nos con-
trapor, se for o cano; nio se faz antes isto ou aquilo, mas ao mesmo
tempo, tendo em vista a relevincia crucial de saber manejar criticamen-
te conceitos e suas prgticas; trata-se de desconstruir teorias, para re-
construi-las em outro patamar e momento;
pesquisa metodo16gica: a que 6 dedicada a inquirer m6todos e pro-
cedimentos a servigo da cientificidade, po16micas e paradigmas meto-
do16gicos, usos e abusos, tanto em Ambito mais epistemo16gico, quanto
de controle empirico; sera sempre importante, e tamb6m dtil, estudar-
mos as implicag6es do positivismo, por exemplo, bem como o manu-
seio de dados e seus testes de qualidade;a disputa entre metodologias
mais qualitativas e mais quantitativas pode ser vazia em muitos senti-
dos, como pode igualmente deter modos mais e menos pertinentes de
abordar a realidade; a feta de preocupagao metodo16gica 6, geralmen-
te, o primeiro indfcio de mediocridade, porque tendemos a aceitar
qualquercoisa;
pesquisa empirica: a que 6 dedicada a tratar a face empirica e fatual
da realidade, de prefer6ncia mensuravel; produz e analisa dados, pro-
cedendo sempre pda via do controle empirico e fatual, cujo extremo
ja se torna empirista; entretanto, 6 sempre adequado pretender abor-
darmos a realidade pelo prisma empirico, desde que n5o a reduzamos
is express6es empiricas; nem sempre, ou - diriam alguns - raramente
o empfrico coincide com o relevante, ja que a realidade costuma es-
conder-se; a pr6pria id6ia de anflise sup6e que 6 mister it a16m do que
aparece a primeira vista; disso n5o segue que pesquisas empiricas de-
vam ser superficiais, at6 porque podem atingir sofisticag6es meto-
do16gicas notgveis, sobretudo em seus testes estatfsticos;
pesquisa pratica: a que 6 ligada a prgxis, ou seja, a prgtica hist6ri-
ca em termos de usar conhecimento cientifico para fins explicitos de
intervengao;8 nesse sentido, nio esconde sua ideologia; ao contrgrio,
reconstr6i conhecimento a servigo de certa ideologia, sem com ipso
necessariamente perder de vista o rigor metodo16gico; alguns m6to-
dos ditos qualitativos advogam essa diregao, em particular a pesquisa
participante e, em certa medida, a pesquisa-agro,9 esta, coma regra,
b
c.
d.
a. pesquisa te6rica: a que 6 dedicada a reconstruir teorias, conceitos,
id6ias, ideologias, po16micas, tendo em vista, em termos imediatos,
aprimorar fundamentos te6ricos e, em termos mediatos, aprimorar prg-
ticas; por exemplo, podemos estudar o conceito de "neoliberalismo
competitivo", primeiro, para entender melhor o que se inclui nessa
designagao, suas po16micas e acordos, seus conteddos explicitos e im-
7
8
9
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22 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTf FICO OEnNiNoo CONUECiMXN'rO clENTfnco 23
pede apenas que o pesquisador devolva os dados a comunidade estu-
dada e permita interveng6es, sem necessariamente participar delas; hg,
por6m, outros exemplos perdnentes, coma a atividade do Dieese (6r-
gao t6cnico da CUT),'' que se dedica, entre outras coisas, a monitorar
a inflagao da maneira maid cientifica possivel, mas para flins ostensi-
vamente politicos de contra-ideologia; nem por ipso, os dados do Dieese
estariam sob suspeita, porque coda ideologia inteligente sabe que, se
for para manipular dados, 6 mister antes de mais nada t6-1os da ma.
neira mais segura possivel; em outra diregao, a "tecnocracia" - a es-
trutura t6cnica do Estado e dos governos - pode alocar-se nessa cate-
goria de pesquisa.
parted.ra leica, usando muitas delas, a16m do conhecimento transmitido de gera-
gao em geragao, apelos mfticos e magicos, enquanto hole 6 muito mais comum
recorrer ao m6dico. Disso nio segue que o senso comum seja aldo desprezivel;
muito ao contrgrio, 6 sobretudo com ele que organizamos nossa vida digria, mes-
mo porque seria impraticgvel comportarmo-nos apenas como a ci6ncia recomen-
da, seja porque a ci6ncia nio tem recomendagao para tudo, seja porque nio po-
demos dominar cientificamente tudo; dirigimos, por exemplo, nosso carro com
album conhecimento, mas principalmente pele denso comum - se ele para no ca-
minho, chamamos um mecanico, porque, como regra, nosso conhecimento ja 6
insuficiente para dar conta da questao. Em termos gen6ricos, o senso comum 6 a
bagagem cultural e evoluciongria que trazemos conosco, por meio da qual sabe-
mos constituir familia, educar os filhos, alimentar-nos, cuidar da sadde, sem ne-
cessariamente sermos pedagogos ou m6dicos; nem este assegurado que, sendo
pedagogo ou m6dico, saibamos melhor nos educar e curar; essa bagagem, em
condig6es normais, nio 6 colocada em questao e, por isso, faz parte da aceitagao
comum. O conhecimento cientlfico representa a outra diregao, por vezes vista como
oposta, de derrubar o que demos por vglido; mesmo assim, em todo conhecimen-
to cientffico ha sempre componentes do senso comum, a medida que nele nio
conseguimos definir e controlar tudo cientificamente
Segundo, nio 6 sabedoria ou bom-denso -- porque estes apreciam com-
ponentes como conviv6ncia e intuigao, a16m da pr6tica historicamente compro-
vada em sentido moral. Sfbio 6 quem, "curtido" pda vida, aprendeu o que 6 im-
portante, nfo se preocupa mais com o que nio 6 importante, mistura todos os
saberes disponlveis, possuia serenidade de quem ja passou por todos os proble-
mas e deles deu conta razoavelmente; 6 ments critico do que organizador dos
saberes disponlveis, razio pda qual pode deter a confianga da comunidade ou das
pessoas em gerd, sendo, comumente, exemplo de vida. Bom-senso tem da sabe-
doria a serenidade do olhar, mas possui, ademais, grande intuigao, para encon-
trar, para o momento, a solugao mais apropriada, nem sempre brilhante, mas que
cabe e resolve. Tem sentido prftico eminente e, como a sabedoria, sabe que a vida
nem sempre 6 16gica e matemgtica, valendo mais a experi6ncia vivida na convi-
v6ncia social e comunitgria. A sabedoria pode ter alguma elaboragao, quando,
passada e reorganizada atrav6s das gerag6es, encontra seus "fi16sofos", no senti-
do de genre que sistematiza propostas de conteddo moral de grande reconheci-
mento, como 6 a "sabedoria oriental" e seus gurus.12 Nesse sentido, a relagao moral
6 clara, evitando-se empregarmos tais termos para atividades colonizadoras e
prepotentes. Nio prima a sabedoria, entretanto, pelo espfrito crftico, porque sua
conte 6 mais a experi6ncia e a intuigao. Sobretudo no caso da sabedoria, pode existir
certa tend6ncia ao conservadorismo, seja porque sfbio 6 sempre algu6m maid
velho, seja porque sua moral propende para certo realismo mais conformista. Pode,
Dito ipso, 6 mister logo acrescentarmos que nenhum tips de pesquisa 6
auto-suficiente. Na prgtica, mesclamos todos, acentuando maid este ou aquele tipo.
sodas as pesquisas sio ideo16gicas, pelo menos no sentido de que implicam
posicionamento implfcito por trfs de conceitos e mimeros; a pesquisa prftica faz
isso explicitamente. ladas as pesquisas carecem de fundamento te6rico e meto-
do16gico e s6 t6m a ganhar se puderem, a16m da estring6ncia categorial, apontar
possibilidades de interveng5o ou localizagao concreta. Nas areas das ci6ncias so-
ciais e humanas, 6 comum encontrarmos acad6micos que professam id6ias revo-
luciongrias, mas vivem concretamente muito longe delay. Esse poderia ser o caso
do teoricismo ou academicismo, quando encobrimos prgdca conservadora sob a
capa de linguagem transformadora. De certa maneira, 6 mister dizer que nio po-
demos ter peoria maior que a prftica, nem pratica sem teoria, se nio quisermos
perdera credibilidade publica. '
Entrando agora no problema da demarcagao cientfnica, trata-se de
definirmos conhecimento cientffico, levando em conta as observag6es ja tecidas
anteriormente. No campo cientifico, 6 sempre mais facil apontarmos o que as coi-
sas nio sao, razio pda qual podemos comegar dizendo o que o conhecimento
cientffico nio 6. Pdmeiro, nio 6 denso comum - porque este se caracteriza pda
aceitagao nio problematizada, muitas vezes cr6dula, do que afirmamos ou temos
por.vglido. BacheZard notabilizou-se pda id6ia de "corte epistemo16gico", para
designar a diferenga - tendencialmente radical- entre o ciendfico e o nio cientf-
fico; autores p6s-modernos bachelardianos, como Santos, ja nio insistem na
radicalidade deste corte e chamam a atengao para o cato de que o proprio conhe-
cimento cientlfico vai tornando-se, na sociedade do conhecimento, mais ou me
nos senso comum, a medida que faz parte da vida comum das pessoas ja.:: Anti-
gamente, era senso comum que a gestagao e o parto faziam-se sob o olhar de
10
11
Dep.lkabalhadores (CUT) I de Estudos Estadsticos e Socioecon6micos (Dieese). Central Unica
SANTOS, B. S. Ina'odufdo a uma cignciap(is-modema. Rio de Janeiro : Grad, 1989. JAPIAssl J,
H. Para Zer BacheZard. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976. '
12. DALAI-LAMA. O caminho da jeZicidade: um guia prgtico aos estggios da meditagao. Rio de Ja
neiro : AgiB 1998.
24 METODOLOGIA DO CONHECIMENT0 CiENTf FICO
nEFiWiNOO CONnECTMENTO ciKNTiFico 25
por6m, deter invej6vel profundidade, tanto na mod6stia de que sabe que pouch
babe, quanto no descortino de propostas morais hist6rica e culturalmente muito
comprovadas e apreciadas. Nesse sentido, o conhecimento cientffico s6 teria a
ganhar se, em vez de apenas combater sabedoria e bom-senso coma posturas cr6-
dulas, adotasse sua sensibilidade humana.
Zerceiro, nio 6 ideologia - porque esta nio tem como alvo central tratar
a realidade, mas justificar posig5o politica.:' Faz parte do conhecimento cientifi-
co, porque todo ser humana, tamb6m o cientista, gesta-se em hist6ria concreta,
politicamente marcada. N5o vemos a realidade de modo neue'o, mas postados em
album lugar da sociedade, tendo por trfs de si hist6ria que ja passou, e a frente
de si hist6ria que este por vir. Ideologia 6 o conhecimento forjado para justificar o
poder, nosso ou de outrem, usando para tanto, de prefer6ncia, conhecimento
cientffico, donde prov6m sobretudo a dificuldade de distinguir os doin, muitas ve-
zes. Ideologia inteligente 6 a que sabe polar de ci6ncia, para provocar tanto
maior acato, de prefer6ncia sem resist6ncias. Possivelmente, a refer6ncia mais ade-
quada para entender ideologia 6 sua relagao com o fen6meno do poder, tanto para
mostrar como se diferencia, como tamb6m para mostrar como se iguala ao conhe-
cimento cientffico. Diferencia-se porque, enquanto o conhecimento cientffico busca
usar metodologias que - pelo ments na intengao salvaguardam a captagao da
realidade, a ideologia dedica-se a produzir discurso marcado pda justificagao.
lguala-se, por6m, porque a presenga do poder 6 sempre ineggvel tamb6m no co-
nhecimento cientifico, pda simples razio de que 6, cada vez mais, fonte de po-
der. Coma 6 componente intrfnseco de todo discurso humana, ideologia sempre
esb presente, mormente de modo implfcito, escondido, e af reside seu perino.
Ideologia que se escancara 6 mais facil de ser controlada, enquanto a sibilina 6
feita para influir sem ser notada. Nesse caso sobretudo, 6 fundamental usarmos
conhecimento cientrfico para poder manipularmos da maneira mais efetiva possf-
vel, como 6 o caso da media com seus efeitos subliminares. No entanto, ideologia
nio tem apenas seu lado negativo. Coma contra-ideologia significa ajustificagao
de mudangas sociais e a alimentagao de processos de luta, como 6 empregado no
contexto de Gramsci. :4 O exemplo mais concreto pode ser visto na pesquisa prf-
tica que pretende sustentar certa prgxis hist6rica, como vimos anteriormente. Nio
conv6m assumirmos ideologia em sentido espraiado como se fosse sistema de cren-
gas, mundivisao, manuseio de id6ias, porque ainda Ihe falta a relagao mais nftida
com poder. Embora as disting6es nunca sejam, nem possam ser, claus, 6 sempre
importante atribuirmos significados convergentes aos termos, pelo menos para
saber do que estamos, de cato, falando. Assim, nio faz sentido reduzir religiao a
ideologia, embora sempre nela comparegam laivos ideo16gicos, porque podemos
encontrar prgticas religiosas que se destinam a satisfazer a religiosidade das pes-
soas, n3o apenas sua fnsia de poder.
Quarts, nio 6 paradigma especffico - como se determinada corrente pu-
desse comparecer como tlnica herdeira do conhecimento cientffico, muito embo
ra Ihes sega inerente essa tend6ncia.:5 Com maior realismo, conhecimento cientf-
fico 6 representado pda disputa dinfmica e intermingvel de paradigmas, que vio
e voltam, somem e transformam-se. Com isso, dizemos que n3o 6 produto acaba-
do, mas processo produtivo hist6rico, que nio pode identificar-se com m6todos
especfficos, teorias datadas, escolas e cultural. O conhecimento cientfflco afirmou
se nos dltimos s6culos no Ocidente, tornando-se dominante, mas sempre 6 bom
lembrar que houve e ha outras formas de conhecimento, nio menos nobres e dig
nas, embora sem a verve tecno16gica ocidental.:' O conhecimento ja esteve uma
vez a frente na China, antes do s6culo XVll, e muitas culturas produziram tipos
respeitgveis de conhecimento, como a babi16nica, a egipcia, a grega etc. Conheci-
mento cientifico nio pode ser visio como "porto seguro", lugar de chegada e per-
man6ncia, mas como turbilhio sempre em chamas, como mostra a pr6pria discus-
sio p6s-modema, na qual alguns mais excitados pretenderiam enterrar, sem mats,
o passado. Ademais, soa infantil a pretensao de declararmos certas areas come
donas mais legftimas do conhecimento, como a disputa etern& entre ci6ncias so-
ciais e naturais, ja que ambas fazem parte da mesma realidade. Ao mesmo tem-
po, n5o 6 arguto declarar certos m6todos como perempt6rios, porque a complexi-
dade da realidade 6 de tal ordem que precisamos de todos, quantitativos e quali-
Tendo rabiscado o que conhecimento nio 6, podemos aniscar dizer o que
6. Do ponto de vista dia16tico, conhecimento ciendfico encontra seu disdntivo maior
na paixao pelo questionamento, alimentado pda ddvida met6dica. Questio-
namento como m6todo, nio apenas como desconfianga esporgdica, localiza-
da, intermitente. Os resultados do conhecimento cientffico, obtidos pda via do
questionamento, permanecem questiongveis, por simples coer6ncia de origem.
Antes de mais nada, cientista 6 quem duvida do que v6, se diz, aparece, e, ao mesmo
tempo, nio acredita poder afirmar algo com certeza absoluta. E comum a expec-
tativa incongruente de tudo criticar e achar que se pode oferecer algo ja nio
criticgvel. No contexto da unidade de contrarios, o caminho que vail o mesmo
que volta; criticar e ser criticado sao, essencialmente, o mesmo procedimento
metodo16gico. A proposta moderna de ci6ncia caiu nessa armadilha, ao preten
der derrubar sodas as crendices pda via implacgvel da razao, sem perceber que
estava entronizando outra crendice, outra religiao, representada pelo mundo das
certezas racionais. A anglise - bem olhando - tamb6m acredita nisso, embora, a
tatlvosa V
13
14.
EAGLETON, T. /deoZogla. Sio Paulo : Boitempo, 1997. THOMPSON, J. B. /deoZogia e cuZtura
modema: peoria social critica na era dos meios de comunicagao de massa. Petr6polis : oozes,
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Massachusetts : The Belknap Press of Harvard University Press, 1998.
26
METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTf FIDO
nEplNiNoo CONnECiMENTO cinNTfpico 27
trabalho meticulosamente delimitada e a argumentagao reflita pelo menos certa
dose de originalidade em sentido reconstrutivo. Sistematizando, podemos arro-
lar
a coer6ncia -- crit6rio mais propriamente 1(5gico e formal, significando
a aus6ncia de contradigao no texto, flu6ncia entre premissas e conclu-
s6es, texto bem tecido como pena de pano sem rasgos, dobras, bura-
cos; uma coisa puxa outra, como se tudo derivasse passo a passe, co-
megando do comego e terminando no fim; embora, assim colocada, a
coer6ncia possa ser procedimento relativamente vazio, tem sua face
charmosana orquestragao bem feita dos conceitos e dados, imprimin-
do-lhes a marca da amarragao s61ida; as pegas encaixam-se bem, sem
desafinagao, os capftulos fluem elegantemente, as conclus6es jorram
sem dificuldade, quase que como necessgrias, inevitgveis, inequfvocas;
em sua face positiva, coer6ncia representa crit6rio importante, tanto
pelo exercicio de 16gica formal, como pda habilidade demonstrada de
uso sistemftico de conceitos e teorias;
sistematicidade - parceira da coer6ncia, significa o esforgo de dar
conga do tema amplamente, sem exigirmos que se esgote, porque ne-
nhum fema 6, propriamente, esgotgvel; supomos, por6m, que se tenha
estudado por todos os angulos, se tenham visto todos os autores rele-
vantes, se d6 conta das discuss6es e po16micas mais pertinentes, se
passe por todos os meandros te6ricos, sobretudo se reconstruam me-
ticulosamente os conceitos centrais; nada pode ser suposto como en-
tendido, no que concerne ao espectro nodal da tese, nio bastam "con-
siderag6es gerais", introdug6es que nem comegam, nem acabam, "re
flex6es" perdidas que sempre comegam por Adio e Eva e nio chegam
a lugar nenhum; 6 exigido que se trate o assunto, sem mais, buscando
'matar o fema"; incluimos nisso, sempre, que o texto seja enxuto, di-
reto, clara, feito para engender-se na primeira leitura, evitando-se es-
tilos herm6ticos, enrolados, empolados; admitimos que a profundida-
de do conhecimento combina melhor com a sobriedade;
consist6ncia - revere-se a capacidade do texto de resister a contra-
argumentagao ou, pelo menos, merecer o respeito de opini6es contrf-
rias; em certa medida, fazer ci6ncia 6 saber argumentar, nio s6
como t6cnica de domfnio 16gico, mas sobretudo como arte recons-
trutiva; saber argumentar comega com a capacidade de estudar o co-
nhecimento disponfvel, teorias, autores, conceitos, dados, prgticas,
m6todos, ou seja, de pesquisar, para, em seguida, colocar tudo em ter-
mos de elaboragao pr6pria; saber argumentar coincide com saber fun-
damental alegar raz6es, apresentar os porqu6s; vai a16m da descrigao
do tema, para aninhar-se em sua explicagao, ou sqa, queremos saber
nio apenas o como das coisas, mas sobretudo suas raz6es, seus por-
b
3 CRITERloS FORMAIS DA DEMARcaiGAo CIENTfFICA
C
b.
28 METODOLOGIA DO CONHECIMENT0 CIENTf FICO DEFININDO CONHECIMENTO CIENTJFICO 29
qu6s; o conhecimento nem sempre consegue it muito longe na busca
das causas para poder dominar os efeitos, mas assume isso como pro-
cedimento metodo1(5gico sistemftico; tudo o que 6 afirmado precisa ter
base, primeiro, no conhecimento existence e considerado vflido. e.
segundo, na formulagao pr6pria do autor;
originalidade - revere-se a expectativa de que todo discurso cientf-
fico corresponda a alguma inovagao, pelo menos no sentido recons-
trutivo; nio 6 aceito discurso apenas reprodutivo, copiado, ja que faz
parte da 16gica do conhecimento questionador desconsuuir o que existe
para o reconstruir em outro navel; a originalidade 6 aldo relative, nio
esperamos propriamente que, numa tese, seja "construldo" conheci-
mento novo, pelo menos como regra; basta demonstrarmos capacida-
de de interpretagao pr(5pria; entretanto, ipso ja exide que os autores e
teorias nio sejam apenas "revisados", como costumamos dizer; espe-
ra-se que sejam desconstrufdos literalmente, analisados a fundo, con-
ftontados com rigor, para que, a partir dal, seja possfvel alguma for-
mulagao pr6pria; n5o podemos passar ao lado, por ama, mas por den-
tro das teorias e autores;
objetivagao - revere-se ao esforgo -- sempre incompleto - de tratar a
realidade assim como ela 6; nio se trata de "objetividade", porque
impossfvel, mas do compromisso metodo16gico de dar conta da reali-
dade da maneira mais pr6xima possivel, o que tem instigado o conhe
cimento a ser "experimental", dentro da 16gica do experimento; essa
colocagao nio precisa coincidir com vfcios empiristas e positivistas, mas
aludir apenas ao intento de produzir discursos controlados e contro-
lgveis, a fim de evitarmos meras especulag6es, anil'mag6es subjetivistas,
montagens te6ricas fantasiosas; embora a ci6ncia trabalhe com "oboe
to construfdo" -- nio com a realidade diretamente, mas com expecta-
fazemos em ci6ncia deve poder ser refeito por quem duvide; daf nio
segue que somente vale o que tem base empirica, mormente se enten-
demos por ela apenas sua face quantificfvel, mas segue que tamb6m
as teorias necessitam ser referenciadas a realidades que permitem re
lativo controle do quese diz;
discutibilidade -- significa a propriedade da coer6ncia no questio-
namento, evitando a contradigao performativa, ou seja, desfazermos
o discurso ao faze-1o, como seria o casa de pretender montar conheci-
mento critics imune a crftica; trata-se de conjugar crftica e autocritica.
dentro do principio metodo16gico de que a coer6ncia da crftica este na
autocrftica; conhecimento cientifico 6 o que busca fundamentar-se de
todos os modos possfveis e imagingveis, mas mant6m consci6ncia crf-
tica de que alcanga este objetivo apenas parcialmente, nio por defei-
to, mas por tessitura pr6pria do discurso cientifico; todo argumento
cont6m componentes nio argumentados, assim como coda estruturagao
16gica encobre passos menos 16gicos, alguns at6 mesmo i16gicos; essa
aparente precariedade 6, no funds, sua grande virtude, porque retina
da{ sua formidgvel capacidade de aprender e de inovar-se; as funda-
mentag6es precisam ser tio bem feitas que permitam ser desmonta-
das e superadas.
d
Tail crit6rios podem ser sistematizados certamente de outras formas, mas
sempre t6m em comum o prop6sito de formalizagao. Dentro de nossa tradigao
cientffica, cabe em ci6ncia apenas o que admite suHciente formalizagao, quer
dizer, pode ser analisado em suas panes recorrentes. Pode ser vista como po16mi-
ca tal expectativa, mas 6 a dominante, e, de modo gerd, a dmca aceita. Por trig
dela, este a expectativa muito discutivel de que a realidade nio s6 6 formalizgvel,
mas sobretudo 6 mats real em suas panes formais. O racionalismo positivista vive
dessa crenga e por isso aposta muitas vezes em resultados definidvos e parametros
metodo16gicos absolutizados. Os movimentos em torno da pesquisa qualitativa
buscam confrontar-se com os excessos da formalizagao, mostrando-nos que a
qualidade 6 ments questao de extensio do que de intensidade. Deixg-la de fora
seria deturpagao da realidade. Que a ci6ncia tenha dificuldade de a tratar 6 pro '
blema da ci6ncia, nio da realidade. Tem sido chamada de "ditadura do m6todo"
essa imposigao metodo16gica feita a realidade, relevando nela apenas o que pode
ser mensurado, ou melhor, reduzindo-a is varigveis que mais facilmente sabemos
tratar cientificamente. O behaviorismo, por exemplo, notabilizou-se por reduzir
o comportamento humano a suas manifestag6es externas.
Menos que retratar adequadamente a realidade, a formalizagao ja 6 tipo
de interpretagao, selecionando na realidade seus algoritmos, ou sqa, os pedagos
recorrentes. Alimenta-se a crenga de que a din&mica s6 pode ser entendida quan-
do estabilizada em m6dulos repetitivos, correspondendo, assim, ao objetivo de
anilise. Todavia, decompondo um todo em suas panes, perdemos sua dinamica,
obviamente. Decompondo o c6rebro em suas panes mlnimas, nio encontramos
mais a dinfmica do pensamento, da emogao, da esperanga, mas apenas reagoes
qulmicas neuronais. Imagina-se que s6 entendemos a variagao, quando descobri-
mos como invariavelmente varia. Parte dessa afirmagao pode ser mantida coma
correta: toda variagao nio varia ao 16u, de qualquer maneira, disparatadamente,
mas dentro de certo modo recorrente de ser. Podemos igualmente aludir a expec
tativa da Biologia que tende a ver o c6rebro como mgquina processadora de pa-
dr6es diante da realidade extremamente complexa. At6 certo ponto, a formahzagao
6 tipo de defesa diante da confusio indomada, servindo para proporcionar - por
vezes muito ilusoriamente - certo senso de seguranga. lsso ocorre tamb6m nas
pesquisas qualitativas, quando usam, por exemplo, questiongrio aberto ou entre-
vistas gravadas.Antes de colher o material, 6 preciso formalizar as perguntas de
e
f.
30
METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTfFICO
OEFiNiNOO CONnnCiMENTO ciKNTfrico 31
sempre quer dizer grande associagao.:' Nio 6 assim que a militgncia n5o possa
ser formalizada, porque todo fen6meno dia16tico tamb6m 6 16gico, mas 6 bem maid
diflcil, e os instrumentos disponfveis de mensuragao sio abusivamente redu-
cionistas. Entretanto, formalizar a militfncia implica igualmente reconhecermos
que esse intento 6 impraticgvel at6 ao fim, porque sua dinfmica maid viva este para
a16m do formalizgvel eja seria somente compreensjvel pda vida da exclusio. Esse
reconhecimento 6 interessante para notarmos que o senso comum tem menos
dificuldade de reconhecer a militancia, porque nio usa apenas instrumentos
ass6pticos de captagao, mas tamb6m outros, como a conviv6ncia mais duradou-
ra, a percepgao intuitiva, a experi6ncia bem vivida. Essa situagao pode levar a que,
para o senso comum, algu6m seja reconhecido como feliz sem maiores dificulda-
des, enquanto a ci6ncia seria incapaz de confirmar Entretanto, como regra, o re-
conhecimento do senso comum 6 ainda menos garantido que o do conhecimento
cientffico.
Formalizar, portanto, nio 6 em si intento espdrio, pelo menos se acredi-
tarmos na biologia humana em voga, mas 6 sempre mister ter em mente o que
ganhamos e perdemos com tais procedimentos. De um lado, ganhamos a tecno-
logia, o que n5o 6 pouch. Sabemos voar, processar informagao, produzir alimen-
tos, curar doengas porque somos capazes de analisar formalmente tais fen6me-
nos, distinguir seus algoritmos e reconstruf-los de modo bastante confifvel, tanto
mais quanto couberem em estruturag6es matemgticas. De outro, perdemos a "ra-
zio sensfvel" como diriaAla#ksoZ{,i9 ou o "mundo da vida", como dina .fiabermas,20
ou a "complexidade" da realidade, como dina Morin,2: ou a "teia da vida", como
dina Capra,22 ou o "saber cuidar", como dina Bcl#:23 Em parte, o mundo estranho
do conhecimento cientifico pode ser captado pda separagao esquisita entre do-
mlnio cientifico e aplicagao prgtica: 6 perfeitamente cabivel que pedagogo com
PhD deja mau educador de seus pr6prios filhos, assim como economista doutor
nio saiba fazer suas contas em casa, gastando todo m6s mais do que ganha. Po-
derfamos explicar essa distfncia surpreendente pelo faso de que o tratamento for-
malizado da realidade nio inclui necessariamente sua viv6ncia. Saber muita edu-
cagao nem de longe 6 saber educarl Ihra bom-senso e sabedoria, coisa de loucol
Ademais, os crit6rios formais facilmente se desligam dos contetidos. A
mentira pode ser 16gica, o assalto bem planejado, a manipulagao da consci6ncia
alheia extremamente criativa. Muitas vezes, encontramos esse problema nas te-17.
18.
19.
20.
21
22.
23.
Vega exemplo de anglise da qualidade participativa com base em dados empfricos: DEMO, P
Cidadania manor: algumas indicag6es quandtadvas de nossa pobreza polftica. Petr6polis : Ma-
zes, 1992. DEMO, P AvaZiafdo quaZitatfva. Campinas : Autores Associados, 1999.
MAFFESOLI, M. EZogio da razdo sensfveZ. Petr6polis : oozes, 1998.
HABERMAS, J. Consci2ncta moral e agar comunicativo. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro,1989.
MORIN, E. Cfgncia com comct8zzcia. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil,1996.
CAPRA, EA leia da vida: uma nova compreensao ciendfica dos sistemas vivos. Sio Paulo : Cultrix,
BOFl! L. Saber cuidar -- 6dca do humano -- compa&fio reza terra. Petr6polis : Mazes, 1999.
1997
32 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTf FICO OEFiNiNOO CONnECiMnNTO ciENTfFico 33
ses: de si, idiotas, mas formalmente bem feitas. judo este em seu devido lugar,
dentro do figurino estritamente, mas nada diz de importante que merega a aten-
gfio. Entretanto, essa crftica 6 repelida por outras correntes que v6em nisso exata-
mente uma das virtudes da ci6ncia: sua neutralidade e objetividade. O crit6rio de
validade universal dos conceitos, embora possa fazer deles "almas penadas" que
vagueiam sem lugar e tempo, 6 muito apreciado pda 16gica formal ' Em seu lada
positive, permite-nos eludir o argumento de autoridade: toda teoria sera vglida
por suas qualidades internas 16gicas e formais, nio porque foi feita ou dita por tal
personalidade, escola ou paradigma. O p6s-modernismo tende a realgar hoje seus
lados mats negativos, por vezes recaindo no relativismo. Como no meir, a16m da
mediocridade, geralmente tamb6m este a virtude, recomendamos nem tanto ao
mar, nem tanto a terra. Seja como for, torna-se problema candente o abuso do
conhecimento ciendfico para fins eticamente escusos, a comegar por tipo de cres-
cimento econ6mico delet6rio ao meio ambience, a16m de espoliativo'das maio-
rias.24 A tecnologia 6, em si, neutra, como faca pode cortar verdura pam o almo-
go e assassinaB mas, no mundo prgtico, dificilmente encontramos etta clgusula "em
si". Se da baca podemos dizer isso, nio dg para dizer da bomba at6mica, das ar-
mas quimicas: dos 'defensivos agrfcolas", da "indtisuia dojogo e do prazer", e assim
por diante. Disso decorre certamente que o conhecimento cientifico nio pode ser
aquilatado apenas por crit6rios formais. ' '
"0 que distingue a sociedade do conhecimento acima de tudo do
ponto de vista de suas precursoras hist6ricas 6 que se trata de sociedade
que 6, a navel sem precedentes, o produto de sua pr6pria agro. A balanga
entre natureza e sociedade, ou entre fatos a16m do controle dos humanos
e aqueles submetidos a seu controle, elevou-se de modo impressionante.
Elevou-se mais e mais para as capacidades que sio construfdas socialmente
e permitem que a sociedade opere por si mesma" (p. 19).
Todavia, como logo apontam os autores, isso representa um lado; no ou-
tro lado, continua a desigualdade, muitas vezes exacerbada por aquilo que julgg-
vamos ser o maior instrumento de emancipagao, a medida de sua submissio ao
mercado neoliberal, como mostra ..4ronowitz em sua obra sobre a "ffbrica do co-
nhecimento" universitgrio subserviente,26 sem falar na prepot6ncia de sua vers3o
ocidental profundamente colonizadora, como mostra Harding em sua discuss3o
sobre a multiculturalidade da ci6ncia.27
Para reduzir a possivel estranheza dessa discussao, sera o caso de definir-
mos melhor o que entendemos porpoZft:ico, tamb6m porque, pelo menos entre n6s,
tem mf fama por conta de nossos "politicos" profissionais. Poderfamos partir da
id6ia depoZiz:icidade, tipica da obra de Paulo Freire e de um de seus int6rpretes mais
abalizados, torres,:' no campo da educagao e da aprendizagem. Significa o espa-
go do sujeito como ator, em contraposigao ao espago externo superveniente, ou
sega, o espago que 6 capaz de criar para a16m daquele que encontra dado em sua
hist6ria ou inerente em seu processo evolucionfrio. Podemos distinguir duas prin-
cipais circunstfncias externas que moldam o ser humano: sociedade e natureza.
dodo ser humano nasce dentro de certa sociedade, com determinada cultura, eco
nomia, estrutura de poder, organizagao politica, bem como 6 produto do proces
so evoluciongrio da natureza, da qual faz parte. Essas circunstfncias sio "dadas",
porque as encontramos em nosso caminho, e as chamamos comumente de "oboe
tivas", nesse sentido. O outro espago aponta para as condig6es subjetivas, que
permitem que o sujeito, em certa medida, "se faga" - desenha oportunidades pr6-
prias e sobretudo desenha-se a si mesmo como "oportunidade". Trata-se do espa-
go da emancipagao do ser humano, que replete, na contraluz, o fen6meno da
manipulagao. A hist6ria e a sociedade podem ser feitas, peso menos em parte, e
alguns diriam que estamos chegando ao limiar de -- em certa medida - fazer a
natureza, por conta dos avangos do conhecimento ciendfico.29 0 11uminismo via
4 CRIT£RIOS POLITICOS DE DEMARCAi$Ao CIENTfFiCA
Aos olhos do modernismo, falar de crit6rios politicos pareceria heresia.
Diante das propostas de objetividade e neutralidade, a imisgao poHtica soa coma
deturpagao estranha ao ambiente pretensamente ass6ptico da produi$o cientiH.
ca. Afinal de contas, o que chamamos de "m6todo" implica, entre outras coisas e
sobretudo,distfncia diante do objeto, manuseio objetivo, controle completo das
variaveis, mensuragao exata, representagao fidedigna da realidade. Todavia, difi-
cilmente haveHamos de desconhecer que conhecimento cientffico 6 um dos fen6-
menos politicos mais contundentes e marcantes da sociedade, no senddo de que,
com ele, estamos cada vez mais "fazendo" nossa hist6ria, em vez de apenas sen-
do conduzidos externamente por ela. Ihrte central do conhecimento cientflico 6
o domfnio da natureza e da sociedade, tornando-se hoje forma produtiva crucial,
ja mais decisiva que simples trabalho, e, aos poucos, talvez 'mais decisiva que o
proprio capital. Como dizem Bdhme e Sre/zr, falando da "sociedade do conhecimen-
to", conhecimento tornou-se "forma produtiva imediata".2s
26.
27.
28.
29.
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higher learning. Boston : Beacon Press, 2000.
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MADDOX, J. What remains to be dkcovered: mapping the secrets of the universe, the origins of
life, and the future of the human race. New York : Simon & Schuster, 1999. HORGAN, J. The
24.
25 $R J }ii u :
34 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTfFICO
OEFiNiNoo CONnECiMENTO ciENTf pico 35
e, ou pelo menos este imediatamente exposto, ao contexto estrat6gico, porque
entendemos consenso, nio como a tranqtiilidade linear no fundo cr6dula, mas
como a negociagao sempre precgria dos desentendimentos. Nio podemos perder
de vista que o consenso, mesmo sendo necessgrio para a conviv6ncia social, nio
escapa do.questionamento dia16tico. f nesse sentido que verdade como preten-
sio de validade aponta para refer6ncia dti] em termos metodo]6gicos, porque, a
par de jamais negar os crit6rios formais, busca combing-los com os politicos den-
tro da precariedade de consensos sempre alimentados pda dia16tica do poder, pam
a16m dos rigores metodo16gicos cientificos. '
Para que teoria seja considerada vflida, nio basta ser 16gica, sistemftica,
bem formulada. Precisa ainda "ser aceita". O caso mais ostensivo dessa relagao este
no paper .do "orientador" das teses de p6s-graduagao. Ao final, o que mats conta
nio 6 a virtude 16gica do aluno, mas a aceitagao por parte do orientador, em pn-
meiro lugar, e, depois, dos paradigmas dominantes. Usa-se muitas vezes o tempo
irzz:ersub/etividade para designar esse fen6meno, aludindo ao consenso dominante
entre os cientistas. N5o se grata apenas de "consenso", mas principalmente do
"dominance". Em casos extremos, tamb6m ocorre que aluno brilhante consegue
defender tese contrfria ao paradigma do orientador, mas isso exige que o orien-
tador valorize outras relag6es que n5o apenas as 16gicas e cultive crengas demo-
crgticas considergveis. A pr6pria expressao d({jesa de tess trai seu pano de fundo
portico, insinuando que pode nio s6 ser contestada por quest6es formais, mas
igualmente polfticas. E constante a rejeigao de propostas formalmente bem mon-
as, porque nio se encaixam nas expectativas paradigmfticas, sendo a maid
not6ria a condenagao de GaZiZeu. Os ambientes acad6micos certamente pregam a
cientificidade, e, em muitos deles, a vocagao questionadora, mas praticam nluito
naturalmente a censura, ou a "patrulha", como dizemos entre n6s, pois, a medida
que certas propostas passam a ser dominantes, temas e metodologias sio evita-
dos, procedimentos especiais sio preferidos. Por exemplo, em departamento que
presta consultoria paga pelo governo, torna-se problemftico publicar material
critico. As anglises tenderio a ressaltar o lado positive, mesmo que os dados indi-
quem todo o contrgrio.
A discussio de Kizhn sobre paradigma cientffico constitui-se hoje em pena
particularmente apta a mostrar a politicidade do processo de produgao de conhe-
cimento cientffico.33 Embora essa interpretag5o de Kizhrz possa ser po16mica, ad-
mite que o d6bito social da ci6ncia sempre comparece a cena, sobretudo sob a forma
de padr6es dominantes de cientificidade, o que pode ser observado na hist6ria de
qualquer departamento universithio, seja no sentido de que os professores tidos
como mais importantes "dio as cartas", sqa no sentido de alguma filiagao prefe
rencial em termos te6ricos. A Psicologia at6 hoje briga em torno de sua perteng
mats aut6ntica ao mundo da Biologia e ci6ncias naturais, ou das ci6ncias sociais.
enoadway Booksclng 7.e limits of knowledge in the twilight of the scientific age. New York :
::'
33. KUHN, T. S. A esH'utura das revoZuf6es cierza©cas. S5o Paulo : Ihrspectiva, 1975
36 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO CiKNTiPiCO OEFiNiNOO coNnECiMENTO ciKNTfnco 37
Em Sociologia, o alinhamento ideo16gico foi regra em certa 6poca: ou todos eram
marxistas, ou nio marxistas. Em educagao predomina o discurso em torno da
'transformagao", mesmo onde se pratica a mais reles pedagogia reprodutivista.
No centro mais caracterfstico da ci6ncia, em que se fazem as Brandes tecnologias
e as interveng6es na sociedade e na natureza, sio muito mais espetaculares; a
relagao com o poder 6 flagrante, a comegar pelo financiamento. E mesmo na
Matemgtica - o reins da objetividade a toda prova --, surgem vozes cada vez mais
insistentes sobre sua relagao com o poder, destacando-se hoje a obra de Kosko sobre
a 16gica difusa.34 Confundida com a linearidade, a Matemgtica teria contribufdo
para o pensamento linear, tipico das ditaduras. renta mostrar que nio se trata
apenas de mau uso da Matematica, mas igualmente de concepgao da realidade e
da hist6ria humana, sempre mais facilmente a servigo de sistemas fechados. Seja
como for, a ang]ise de ]<uhrl permite-nos colocar o seguinte:
maneira surpreendente pda id6ia de Collins em torno da "sociologia de filoso-
fias", ao estudar, de modo comparative, vgrias tradig6es cientificas, inclusive
orientais, como a chinesa e a indiana.3s Ressalta que a "vida intelectual 6 em pri-
meiro lugar conflito e desacordo", tanto assim que negar isso 6 exemplificar, ou
sqa, negar 6 logo expressao desse desacordo (p. 1) . A assim dita comunidade aca-
d6mica 6 menos comunitgria do que se imagina ou prega e 6 por isso que as po16
micas metodo16gicas nio estio isentas de intrigas e fofocas, como em todo lugar
onde vivem seres humanos que negociam steMS politico. Ao mesmo tempo, o co
nhecimento faz-se por redes, menos do que por g6nios isolados, mostrando a tra-
ma complexa de acessos, seleg6es e exclus6es, bem como o funcionamento de
paradigmas dominantes, em que nio falta o concurso das "energias emocionais"
(p. 8). Um dos sinais de envelhecimento este no fato de que comega a ser repeti-
do em excesso, mesmo que sega em termos de seu refinamento, mas ja enclau-
surado em si mesmo. A criatividade intelectual este concentrada em cadeias de
contatos pessoais, passando energia e capital cultural de uma geragao para outra,
movendo-se sempre por oposig6es. Contudo, ao girar tendencialmente apenas em
porno de si mesma, comega a dar sinais de cansago, motivando o surgimento de
propostas concorrentes. A concorr6ncia nio se traduz apenas pelos avangos
metodo16gicos, porque dais avangos tamb6m dependem de condig6es sociais, sem
falar que muita velharia pode ser mantida a prego de pressao espdria. Por exem-
plo, sempre tendemos a considerar a Asia como ex6tica, embora historicamente
falando devesse ser o contrgrio, porque antes dos avangos ocidentais mais com-
pactos a ci6ncia na China estava bem mais a frente. Com os movimentos do s6cu-
lo XVll, que acabaram estabelecendo as pretens6es do esclarecimento racionalista
do Ocidente, nio s6 encontramos m6todos mais produtivos de conhecimento ci-
entffico, como tamb6m conseguimos realizar o proleto colonizador, para o qual o
papel da ci6ncia sempre foi absolutamente central. O pr6prio contexto cultural
dominante do Cristianismo --, segundo o qual a religiao cat61icaseria, por defi-
nigao, universal (cat(iZico, do greco, significa universal), nio s6justificou a censu-
ra por vezes muito violenta, como tamb6m alimentou a id6ia de que fora da Eu-
ropa nio existe salvagao, nem ci6ncia, nem intelig6ncia.
Entretanto, a politicidade do conhecimento cientffico ganhou ultimamen-
te outro aliado extremamente forte, que 6 a base bio16gica crescente do fen6me-
no da intelig6ncia e da aprendizagem, que veremos mais detidamente no Capitu-
lo 3.36 Embora em meio a po16micas altissonantes, podemos dizer que aprender 6
intrinsecamente fen6meno reconstrutivo politico, porque representa a habilida-
de humana de forjar hist6ria pr6pria, tamb6m em sentido evoluciongrio.37 dodo
a
b.
a ci6ncia tende sempre a constituir-se em paradigmas dominantes,
girando em porno de propostas consideradas mais vflidas a 6poca;
a sua tessitura metodo16gica, cientifica, agregamos, pois, o contexto
de sua validade reconhecida; com efeito, certas escolas sio tidas por
mais importantes e produzem mais seguidores; muitas vezes, existe no
reconhecimento a anglise cientffica adequada, resultando em reconhe-
cimento por conta do m6rito; outras vezes, vemos tamb6m cientistas
com rama indevida, escolas que mais negociam favores do que argu-
mentos;
o mais importante da discussao, entretanto, este no fato de que a ten-
d6ncia da ci6ncia a girar em torno de paradigma dominante 6 con-
traditada peso envelhecimento do mesmo paradigma; a medida que o
paradigma 6 maid seguido do que questionado, petrifica-se, e come-
gam a surgir vozes contrarian; a revelia, os "discipulos" enterram o
paradigma;
o novo paradigma tamb6m 6 paradigma, ou sqa, ao lada de oferecer
novo espago da pesquisa e da produgao do conhecimento encaixa-o na
rede hist6rica do poder, buscando ngo s6 argumentar e questionar, mas
igualmente ser reconhecido; nessa rota, como todo paradigma domi-
nante, caminha para o envelhecimento.
C
d
Essa maneira de ver, desde que suficientemente dia16tica, visualiza a in-
terfer6ncia de crit6rios politicos coma naturalmente inerentes ao processo de pro-
dugao cientffica, ao lado das pretens6es metodo16gicas. Se essas fossem as 6nicas
vglidas, perderiamos de vista o fato de que os cientistas sio seres humanos e de
que ci6ncia 6 produto hist6rico cultural tamb6m. Essa perspectiva foi captada de
35.
36.
37
COLLINS, R. Tate sociology of philosophies: a global theory of intellectual change. Cambridge
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Books, 1975.
38 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO ciENTirico onnNINoo CONnECiMENTO CIENTfnCO 39
ser vivo 6, de certa forma, vivo porque aprende, nio se reproduz apenas mecani-
camente como sempre a mesma entidade, mas vai agregando hist6ria pr6pria, na
qual a adaptagao deixa de ser apenas passiva, para incluir espago pr6prio at6 cer-
to ponto conquistado. Dentro de circunstfncias por vezes muito adversas, o ser
vivo procura o lugar onde pode mellor sobreviver e reproduzir-se, e, fazendo isso,
aprende a contornar problemas, conseguindo sempre maid dominar seu ambien-
ce. Nesse processo, usa conhecimento ou informagao disponivel, retina-os, inova-
os, sempre de modo reconstrutivo, porque o c6rebro e sobretudo a mente huma-
na nio s6 recebem informagao de fora, mas sobretudo a interpretam e nisto a
reconstroem. Esse procedimento permite-nos nio s6 compreender a realidade a
seu modo, mas igualmente dar conta dela, domini-la. A sobreviv6ncia do mais forte
nem sempre coincide com forma, porque a forma maior do ser viva nio 6 a ffsica.
mas a da mente.
Essa perspectiva permite-nos observar com cdma que o argumento de
autoridade, considerado esp6rio por crit6rios formais, sempre comparece de
alguma forma a cena, mesmo entrando como regra pda porta dos fundos. Com
efeito, em termos 16gicos, qualquer argumento deve valer por sua constituigao
interna, nio pda fama de quem o formula. A afirmagao de que a hist6ria 6, em
dltima instancia, condicionada pda infra-estrutura econ6mica deveria ter o mes-
mo peso formal, quer deja pronunciada por aluno iniciante do curso, quer porMam.
O problema 6 que nio 6 possivel comparar o aluno com Mam, em termos sociais.
Marx, para chegar a esse resultado, pesquisou e elaborou muito, o que jf Ihe con-
fere m6rito que o aluno ainda nio tem, nem talvez venha a ter. Todavia, maior
peso que isso este no fato de que Mam ocupa a posigao de um dos clfssicos maid
prevalecentes das ci6ncias sociais, o que ja induz o aluno a reverencig-lo, ao lada
de tamb6m o estudar criticamente. Nada de errado nisso. f condigao hist6rico-
social comum. Errado seria vicar apenas com a "autoridade", como se, tendo sido
dito por swam, jf nio haveria o que discutir. Por isso, costumamos citar autores
em nossas teses, e isso 6 exigido como procedimento formal, porque 6 mister co-
nhecer as teorias clgssicas e em uso, 6 fundamental, antes de inventar moda, dar
conta do saber e dos dados disponfveis, 6 prudente aprender de quem mostrou
saber aprender bem. Nio custa, por6m, perceber que vai nisso tamb6m o reconhe
cimento do d6bito social da ci6ncia, ou sega, nio apenas amontoado de afirma-
g6es e resultados 16gicos, mas igualmente conquista muito tortuosa hist6rica e
culturalmente plantada. Por vezes, fazemos apenas "revisio bibliogrgfica", na qual
nio vamos a16m de desfilar autores, em ato de tfpica vassalagem ritualista.
Assim, n3o conseguimos liwar-nos do argumento de autoridade. Melhor
6 tomarmos sob crivo critico, para podermos controlar melhor, nio para extirpar.
Onde o conhecimento t6cnico especializado 6 necessgrio, constitui-se para os n5o
iniciados em argumento inescapfvel de autoridade. Se estamos desconfiados que
o avigo este com defeito, digamos, nos motoren, procuramos especialista e con-
Hamos na palavra dele. Se disser que podemos voar, fazemo-lo. O avigo nio cai,
ngo 6 porque o especialista assim disse, mas porque os motores funcionam bem.
Quer dizer, os crit6rios internos formais sio essenciais e absolutamente decisivos.
Contudo, af este o problema: sendo o acesso a dais crit6rios algo muito especializa-
do, este fora do alcance do senso comum. Com isso, dizemos que crit6rios exter-
nos nunca substituem os internos. Nio podemos aceitar como professor na escola
algu6m apenas "indicado" pelos politicos, pois professor det6m conhecimento t6c-
nico necessgrio que nio prov6m de indicagao politica. Forgando a barra: nio se
pode eleger entre os passageiros de um avigo quem vai ser o piloto, por amor a
democracia. Podemos fazer v6o mais democratico, mas com extrema probabilidade
de nio dar certo, porque piloto nio se faz pele voto. Nesse caso, podemos aceitar
sua "autoridade", sobretudo porque foi construida por m6rito t6cnico e experi6n-
cia professional.
Somos tentados a distinguir, assim, entre crit6rios internos e externos,
imaginando que os internos sejam os formais e sempre mats importantes. Nio 6
bem assim. Primeiro, porque essa distingao traduz dicotomia irreal entre tais ter-
mos - misturam-se maid facilmente do que se separam. Segundo, porque dada a
engender que a politicidade seria espana, enquanto 6 constitutiva. Essa conjun-
gao dos dois crit6rios tem hist6ria mais tonga do que costumamos ver, porque existe
desde a ret6rica dos gregos. Nela, ao lado de argumentar, buscfvamos conven-
cer. De tanto abusar dela, sobretudo pelos politicos profissionais - que sabidamente
se especializaram em mentir para a populagao --, demos hoje visio negativa dela,
porque predominaria a busca de convencimento a qualquer prego, sobretudo sem
argumentagao. Perelman reintroduz a ret6rica no mundo atual,;' buscando mos-
trar essa combinagao fundamental entre saber argumentar e convencer, dentro do
mesmo processo, relembrando em certa medida o contextode Habermas. Para que
o discurso seja discutjvel, 6 imprescindivel que seja 16gico, quer dizer, bem feito,
sistematico, claro, fundamentado. Nio podemos discutir bem fda desconexa, mal
inventada, contradit6ria. Entretanto, nio falamos para n6s mesmos, mas para a
sociedade, em que esperamos ser ouvidos. Nio 6 diHcil encontrarmos cientistas
que escrevem para nio serem entendidos, tamanha 6 a distfncia entre seu esfor-
go de argumentar e a capacidade de comunicar-se. Essa capacidade de comuni-
car-se necessita, impreterivelmente, da validade do discurso com base em refer6n
das formais, mas nio necessita menos que seja aceito. "Ser aceito" deveria ser
apenas questao 16gica na academia, mas como esta tamb6m 6 de carne e osso, nem
sempre acontece dessa forma. Quando a sese 6 aceita pecos examinadores, gosta-
riamos de apostar que os crit6rios formais prevalecem, e que seria aceita em qual-
quer outro ambiente acad6mico, mas o que conta, ao final, 6 a "aceitagao". A tese
aceita nio implica apenas o bom uso da argumentagao, mas igualmente o reco-
nhecimento social. dodo aluno que faz tese aprende, por vezes a contragosto, que
38. PERELMAN. C. Ret6ricas. Sio Paulo : Martins Fontes, 1997. PERELMAN, C., OLBRECHTS
TYTECA, L. Tratado da argumenrafdo: a nova ret6rica. Sio Paulo : Martins Fontes, 1996.
40 METODOLOGIA DO CONHECIMENTO cinNTf FICO DEFINiNDO CONHECIMENT0 CtENTiPiCO 41
6 preciso ser "ret6rico" no bom e por vezes no mau sentido, porque todd o esfor-
go se perde se, por qualquer motivo, a proposta nio for aceita.
Um dos problemas para reconhecermos a politicidade este na tend6ncia a
entender o fen6meno do poder como extrfnseco, como interfer6ncia de fora. A
relagao com o poder nio se intromete no conhecimento cientifico, porque ja este
metida lg dentro intrinsecamente. As relag6es sociais sao, naturalmente, relag6es
de poder, e 6 a panir dal que construlmos a dia16tica aplicada a sociedade. Os ceres
humanos nio apenas convivem, como tamb6m se confrontam, por vezes civi-
lizadamente, por vezes violentamente. Os novos estudos sobre a evolugao ressal-
tam essa propriedade, talvez com certo exagero agora, como 6 o caso do "gene
egofsta" de Dawkins. Em vers5o bem maid palatfvel, Wright, procurando engen-
der a hist6ria evolucionhia do ser humano como "soma nio zero", aponta para a
nio-linearidade das relag6es humanas - a linearidade seria a soma zero - que, no
c6mputo gerd, deixa resultados mais positivos que negadvos para o aprimoramen-l
to da esp6cie, pelo menos em sua complexificagao crescente.39 Pretende colocar
de novo em discussio a direcionalidade da evolugao, como uma vez pretendeu
Charmin. Embora isso seja extremamente po16mico, 6 interessante notarmos o
realce conferido a energia do desequilfbrio inovador, que, em vez de progredir
apenas na diregao do desequilfbrio, alcanga situag6es mais complexas de equilf-
brio sempre periclitante. Essa 6, na verdade, imagem realista do poder como soma
nio zero. As quotas de poder - por assim dizer - das pessoas somadas n5o dio
zero, como se fossem relag6es aritm6ticas lineages, porque no relacionamento entre
si estabelecem barganhas, negociag6es de todo tipo, escondem cartas na manga,
buscam convencer e comandar de tal modo que a obedi6ncia assim nio deja sen-l
tida, como bem mostrou FotzcauZz: com respeito is manhas e artimanhas do poder.
At6 mesmo o "auto-interesse" pode levar a cooperagao, porque 6 impossivel so-l
breviver sozinho. E que facilmente inventamos o idiHio da troca desinteressada,
quando na pratica trocamos por interesse. Forjamos o mesmo idiHio do cientista
desinteressado, fechado em seu laborat6rio para nio softer qualquer influ6ncia
espana, por puro amor a verdade. Jf vimos que, sendo verdade pretensao de va-
lidade, nio pode ser definida fora do contexto hist6rico-social e em sua relagao
com o poder. As verdades cientificas tamb6m sao, em alguma medida, negocia-
das, por vezes mercantilizadas, e tamb6m honestamente gestadas e gerenciadas.
Morando a relagao de poder dentro da casa da ci6ncia, nio demos outra
safda que nio seja conviver com ele, coma 6 tamb6m o caso da ideologia. Nio ha
que meter-se a extirpar, mas a controlar crftica e autocriticamente. Analisando a
realidade, precisamos manter a imisgao politica, em termos, dentro do contexto
de deturpag6es controladas e controlgveis. Expurgar da ci6ncia os valores n5o 6,
ao contrfrio do que se sup6e por vezes, ser objetivo, mas deturpar o suJeito e por
vezes a realidade (pelo menos a social), neutralizando relag6es que gostadamos
de ver exclufdas. A discussio evolui entgo para a disputa aberta entre deturpag6es
concorrentes. Nio 6 diffcil mostrar que a ci6ncia avanga a passos mais largos em
Homentos de guerra e no contexto do mercado. Se fosse fen6meno assim objeti-
vo e neutro, deveHamos colher a mesma media atrav6s dos tempos, o que nio 6
de modo nenhum o caso. A ci6ncia como estrat6gia de manipulagao, lucre, con-
quista, colonizagao, competigao e concorr6ncia supera imensamente a id6ia
fantasiosa de ser a busca desinteressada da verdade, em nome da solidariedade
gerd e irrestrita. Ha que reconhecer diferengas entre o espago das ci6ncias natu-
rais - em que o objeto nio 6 entidade polltica" - e o das ci6ncias sociais, em que
encontramos a relagao de poder tRnto no sujeito, quanto no objeto. Todavia, o
objeto cientffico nio existe sem a presenga do sujeito e a presenga deste 6 maid
que suficiente para marcar o fen6meno da politicidade. Extirpar a relagao de po-
der coincidiria com extirpar o proprio sujeito. Assim, 6 mister buscar o caminho
do controle consciente e sempre limitado. Em grande parte, o crit6rio formal da
objetivagao pretende essa meta.
Fen6meno t5o manhoso como poder nio pode ser reprimido pura e sim-
plesmente, porque apenas se esconde momentaneamente, repontando em outro
canto com tanto maior viru16ncia, como 6 precisamente o problema da repressao
de emog6es desagradaveis na psicanalise. Certa dose de neurose 6 sinai de saade,
nio de doenga, porque a pessoa perfeitamente equilibrada -- soma zero - seria
fantoche. Para controlamlos a neurose, 6 mister faze-la consciente e saber que nio
podemos acabar com toda e qualquer neurose, pois esta pretensao seria o cdmulo
da neurose. Para controlarmos a imisgao do poder em ci6ncia, 6 mister, primeiro,
reconhecer sua presenga, sobretudo fluida, dispersa, geralmente impercepdvel, em
today as suas dobras. Segundo - e a{ a questao do m6todo 6 fundamental --, bus-
car tratar o objeto de modo que a realidade assim como ela 6 esteja acima da rea-
lidade assim como gostarfamos que fosse. Se soub6ssemos a realidade assim como
ela 6, n5o necessitariamos fazer ci6ncia. Quer dizer, a realidade 6 suficientemente
complexa para nio caber em nenhuma peoria, razio pda qual a captamos em par
tes e parcialmente. Todavia, 6 fundamental essa pretensao, pelo menos como uto-
pia da ci6ncia: buscar a realidade, mais que a ideologia. Podemos arquitetar tipo
de argumento 16gico: se fosse para deturpar a realidade da maneira mais efetiva
posslvel, o ponto de partida da ideologia n3o seria a anflise que apenas deturpa,
mas aquela que deturpa menos. Mente melhor quem melhor sabe o que diz. Par-
tir de fatos mentirosos como se fossem verdadeiros 6 mau neg6cio para o menti-
roso. Ao conhecimento cientffico interessa captar a realidade impre
terivelmente, porque, se isso nio ocorrer de modo suficiente, tamb6m n5o se rea-
lizam as pretens6es do poder. A aviagao n5o foi inventada para aludar os pobres
ou para proporcionar ferias gerais para todos em qualquer parte do mundo. Con-
tudo, mesmo no espago de tamanho interesse econ6mico, o avigo precisa voar e
39. WRIGHT R. Nonzero: the logic of human destiny. New York : Pantheon Books, 2000.
40 Elsa expectativa encontra hole resist6ncia nos que imaginam poder falar de
reza", como 6 o cano not6rio de Prigogine, como veremos adiante.
;dia16tica da natu
42 METODOLOGIA DO CONHECIMENT0 CiENTiPiCO OEpiNiNoo CONnECiMENTO CiKNTfnCO 43
este desafio exide tamb6m resposta t6cnica especificamente. Os engenheiros,

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