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Júlia Bistane - Interseccionalidade em Angela Davis e Judith Bulter

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
 
 
 
JULIA SECAF BISTANE 
 
 
 
 
 
 
 
 
Contra “a mulher universal”: as contribuições de Davis e Butler para a teoria crítica 
feminista 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Campinas 
 2022
 
JULIA SECAF BISTANE 
 
 
 
 
 
Contra “a mulher universal”: as contribuições de Davis e Butler para a teoria crítica 
feminista 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Instituto de 
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade 
Estadual de Campinas como parte dos requisitos 
exigidos para a obtenção do título de Mestra em 
Filosofia. 
 
 
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Monique Hulshof 
 
ESTE TRABALHO 
CORRESPONDE À VERSÃO 
FINAL DA DISSERTAÇÃO 
DEFENDIDA PELA ALUNA 
JULIA SECAF BISTANE, E 
ORIENTADA PELA PROFA. 
DRA. MONIQUE HULSHOF. 
 
 
 
 
 
Campinas 
2022 
 
 
 
 
 
 
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
 
 Bistane, Julia Secaf, 1988- 
 B545c BisContra "a mulher universal" : as contribuições de Davis e Butler para a
teoria crítica feminista / Julia Secaf Bistane. – Campinas, SP : [s.n.], 2022.
 
 
 BisOrientador: Monique Hulshof.
 BisDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
 
 
 Bis1. Butler, Judith, 1956-. 2. Davis, Angela Y. (Angela Yvonne), 1944-. 3.
Teoria feminista. 4. Teoria crítica. 5. Feminismo negro. I. Hulshof, Monique,
1982--. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.
 
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Against "the universal woman" : Davis and Butler's contributions to
feminist critical theory
Palavras-chave em inglês:
Feminist theory
Critical theory
Black feminism
Área de concentração: Filosofia
Titulação: Mestra em Filosofia
Banca examinadora:
Monique Hulshof [Orientador]
Nathalie de Almeida Bressiani
Rurion Soares Melo
Data de defesa: 24-02-2022
Programa de Pós-Graduação: Filosofia
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: https://orcid.org/ 0000-0001-7585-501
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2935255293312595 
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
 
 
 
 
 
 
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos 
Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 24 de fevereiro de 
2022, considerou a candidata Julia Secaf Bistane aprovada. 
 
 
 
 
 
Profa. Dra. Monique Hulshof 
Profa. Dra. Nathalie de Almeida de Bressiani 
Prof. Dr. Rurion Soares Melo 
 
 
 
 
 
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas das membras encontra-se no SIGA e na 
Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências 
Humanas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
À Capes e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Em especial 
à FAPESP, pelo suporte financeiro para a realização do mestrado (processo nº 2019/01319-7); 
À professora Monique Hulshof, por ter acolhido esse projeto, pelas palavras certas, pelo 
incentivo contínuo e também por ter me permitido navegar só quando preciso; 
Aos professores Rúrion Melo e Ingrid Cyfer, pela generosidade da leitura e pelas sugestões 
decisivas no exame de qualificação; 
À professora Nathalie Bressiani, pelas discussões fomentadas, pelas leituras cruciais e pelo 
aceite da banca; 
Às professoras Ina Kerner e Jeanette Ehrmann, pela paciência em tantas trocas de email, e que 
se não fosse pela pandemia teriam tão bem me recebido; 
A todos os funcionários do IFCH, e em particular a Daniela, pela sempre disponibilidade e por 
todo auxílio fundamental para essa pesquisa; 
Ao grupo pioneir@s, sem o qual o primeiro texto da qualificação não teria saído; 
A todo grupo de feminismo e teoria crítica da UFABC, por terem me acolhido entre vocês e 
possibilitado diálogos indispensáveis para essa pesquisa; 
Ao grupo NÓS, pelos encontros sempre produtivos; 
À amiga Laís, pelas trocas e pelos comentários precisos; 
À amiga Sarah, que dividiu comigo desde boas conversas em noites mal dormidas às angústias 
crônicas da escrita e da pesquisa; 
A todes com quem compartilhei a paixão e a pista do derby, que me ajudaram a também sair de 
mim; 
Ao companheiro joão, que dividiu caminhadas, café e escuta nos dias mais difíceis; 
Aos meus pais e minha irmã, sem os quais eu não teria vindo até aqui; 
À minha avó, de quem tive de me despedir e queria que estivesse aqui; 
E à dedé, com quem eu divido a vida. Principalmente, pela paciência e pelo cuidado necessário. 
Sem você não seria possível. 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
 
 
Assumindo a crítica que Angela Davis e Judith Butler formularam à universalidade da categoria 
“mulher” presente no feminismo como ponto de partida, essa dissertação tem por objetivo 
analisar as contribuições que as duas autoras trazem para a teoria crítica feminista. Para tanto, 
reconstruiremos os deslocamentos provocados pelas duas obras em relação às posições 
hegemônicas que elas criticam. No caso de Davis, a perspectiva das mulheres negras adotada 
em Mulheres, Raça e Classe evidenciou os pontos cegos dos feminismos radical e socialista. 
Butler, por sua vez, ao escrever Problemas de Gênero, apontou para os limites da distinção 
sexo/gênero operando no feminismo. Portanto, embora as duas autoras partam de diferentes 
contextos, influências e quadros teóricos, enfatizaremos como as duas reformulam e atualizam 
os modelos de diagnóstico das relações de opressão na teoria feminista. 
 
 
 
Palavras chave: Teoria feminista; Judith Butler; Angela Davis; Teoria crítica. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
Taking Angela Davis' and Judith Butler's critique of the universality of the category "woman" 
present in feminism as a starting point, this dissertation aims to analyze the contributions that 
both authors bring to feminist critical theory. To do so, we will reconstruct the displacements 
provoked by both works in relation to the hegemonic positions they criticize. In Davis' case, 
the perspective of black women adopted in Women, Race, and Class highlighted the blind spots 
of radical and socialist feminisms. Butler, in turn, in writing Gender Trouble, pointed to the 
limits of the sex/gender distinction operating in feminism. Therefore, although the two authors 
come from different contexts, influences, and theoretical frameworks, we will emphasize how 
the two reformulate and update the diagnostic models of oppressive relations in feminist theory. 
 
 
 
Key words: Feminist theory; Judith Butler; Angela Davis; Critical theory. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sumário 
 
INTRODUÇÃO 9 
CAPÍTULO 1 - DESLOCANDO O SUJEITO DO FEMINISMO 19 
ANGELA DAVIS E A PERSPECTIVA DAS MULHERES NEGRAS 19 
DAVIS E O MOVIMENTO NEGRO 19 
COMBAHEE RIVER COLLECTIVE E O MOVIMENTO FEMINISTA NEGRO ESTADUNIDENSE 25 
MULHERES, RAÇA E CLASSE 30 
JUDITH BUTLER E AS FRAGMENTAÇÕES NO FEMINISMO 41 
O SISTEMA SEXO/GÊNERO 43 
OS LIMITES DA POLÍTICA REPRESENTATIVA 47 
O PROBLEMA DA IDENTIDADE 49 
O PROBLEMA DA ANTERIORIDADE 52 
CAPÍTULO 2 – INTEGRANDO RAÇA, CLASSE E GÊNERO 57 
O PONTO CEGO DO FEMINISMO RADICAL 61 
O PONTO CEGO DO FEMINISMO SOCIALISTA 66 
ANÁLISE INTEGRADA, UM FEMINISMO NEGRO MARXISTA 73 
CAPÍTULO 3 – A DESCONSTRUÇÃO DO “SEXO” E DO SISTEMA BINÁRIO 79 
PODER COMO SUBJETIVAÇÃO 80 
GÊNERO COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL, MAS, E O SEXO? 83 
PERFORMATIVIDADE: UM MODELO ANTI-EXPRESSIVO DO GÊNERO 89 
FEMINISMO QUEER, OU COMO ENXERGAR AS REPETIÇÕES SUBVERSIVAS 96 
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COMO LÓCUS POLÍTICO 100 
CONCLUSÃO 105 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 107 
 9 
IntroduçãoAo enfrentar os problemas que percebia no movimento feminista dos anos 70 e 80, 
bell hooks1 escreve em seu primeiro livro, e eu não sou uma mulher?: mulheres negras e 
feminismo, publicado em 1981: “Todos os movimentos de mulheres nos Estados Unidos, desde 
o princípio até o presente, foram construídos sobre fundação racista - um fato de que maneira 
alguma invalida o feminismo como ideologia política" (HOOKS, 2020, p. 200). Embora 
soubesse que o feminismo era necessário para enfrentar a opressão sexista, ela dirige seu olhar 
crítico às posições assumidas pelo movimento de mulheres nos Estados Unidos em atuação 
desde o século XIX, de modo a apontar para a contradição entre o discurso de libertação das 
mulheres e uma prática racista que excluía parte delas. 
Para bell hooks, a presença do racismo e do classismo no feminismo branco se 
mantinha como a principal força que afastava as mulheres negras e de outras “minorias” étnicas 
e impedia uma ação radical e fiel aos supostos princípios feministas2. Nesse sentido, o título de 
seu livro, e eu não sou uma mulher?, era uma referência direta ao discurso proferido por 
Sojourner Truth, abolicionista e ativista dos direitos da mulher, em 29 de maio de 1851 na 
Convenção pelos Direitos das Mulheres em Akron (HOOKS, 2020, p. 252-3), Ohio, nos 
Estados Unidos. Do mesmo modo como Truth teve de enfrentar, para se opor ao sexismo, a 
violência das próprias mulheres brancas que queriam impedi-la de falar, hooks estava 
disputando o significado do feminismo, que até então se mostrava indiferente à realidade das 
mulheres negras e trabalhadoras. Dessa forma, ao invés de tomar a posição de uma recusa 
integral do feminismo operante naquele momento, por ele não considerar ou incluir as 
diferenças de raça e classe social, hooks questionava como um discurso racista e classista 
poderia ser considerado feminista, uma vez que ela entendia os objetivos do feminismo como 
 
1 bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins. O nome “bell hooks” foi escolhido em homenagem à sua 
avó, Bell Blair Hooks. O diminutivo, além de diferenciá-la de sua avó, foi escolhido porque a autora queria dar 
importância para as suas obras e suas ideias, mais do que para sua pessoa e sua personalidade. 
2 No capítulo “Racismo e feminismo”, hooks analisa como o racismo sempre fez parte do movimento de mulheres 
nos Estados Unidos. Como ela vai dizer: “A estrutura do movimento contemporâneo de mulheres não foi diferente 
daquela do antigo movimento pelos direitos das mulheres” (HOOKS, 2020, p. 218). A diferença, contudo, foi que, 
se antes ele se expressava de modo explícito, durante o movimento então contemporâneo das liberacionistas 
brancas, o racismo se manifestava de maneira mais sutil: “o racismo delas não assumiu forma de clara expressão 
de ódio; era muito mais sutil. Tomou a forma de simplesmente ignorar a existência de mulheres negras ou escrever 
sobre elas usando os usuais estereótipos sexistas e racistas. Do livro A mística feminina de Betty Friedan ao The 
Remembered Gate, de Barbara Berg, e publicações mais recentes, como Capitalist Patriarchy and the Case for 
Socialist Feminism, organizado por Zillah Eisenstein, a maioria das escritoras que se considerava feminista 
mostrou, na escrita, ter sido socializada para aceitar e disseminar a ideologia racista” (HOOKS, 2020, p. 219-220) 
 10 
“a libertação dos padrões de papéis sociais, da dominação e opressão sexistas” (HOOKS, 2020, 
p. 307) para todas as pessoas, mulheres e homens3. 
Para levar adiante esse projeto, hooks retomou os diversos equívocos ocorridos ao longo 
da história do movimento de mulheres. Ao olhar para o processo histórico deste movimento a 
partir da perspectiva das mulheres negras, hooks buscou evidenciar de que modo a prejudicial 
invisibilização e discriminação das mulheres negras nos Estados Unidos era o produto de uma 
estrutura da qual muitas mulheres brancas dentro do feminismo ainda se beneficiavam, 
conscientemente ou não. Essa reflexão acerca da especificidade da história política das 
mulheres negras presente no livro de hooks também apareceria em outra publicação do mesmo 
ano, o livro Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis. Assim como hooks, Davis lança o seu 
olhar sobre o movimento feminista atuante naquele momento, alertando para o fato de que as 
mulheres brancas no feminismo hegemônico estavam repetindo os mesmos erros cometidos 
pelas líderes do movimento de mulheres um século antes e diversas outras vezes durante esse 
intervalo4. Ao refletir sobre um desses momentos, Davis reitera como “as ativistas pelo direito 
ao aborto do início dos anos 1970 deveriam ter analisado a história de seu movimento. Se 
tivessem feito isso, talvez houvessem compreendido por que tantas de suas irmãs negras 
adotaram uma postura de suspeita em relação à causa” (DAVIS, 2016, p. 217). Assim, por mais 
grave que fossem as falhas recorrentes do movimento, no sentido de não alcançarem os 
objetivos esperados ou mesmo só se dirigirem a uma parcela específica, as críticas de Davis 
também apontavam como essas mulheres estavam reproduzindo e perpetuando a mesma 
opressão contra a qual protestavam5, ou seja, como suas ações reproduziam ainda mecanismos 
específicos do sexismo que tinham como efeito a manutenção da opressão contra a qual se 
dirigiam. Para tanto, ela reconstrói ao longo do livro o crescente fortalecimento das estruturas 
 
3 Para bell hooks, o racismo interno ao feminismo branco significava uma contradição na luta contra o sexismo, 
uma vez que a raça e sexo são facetas inseparáveis da identidade: “É uma contradição que as mulheres brancas 
tenham estruturado um movimento de libertação das mulheres que é racista e exclui várias mulheres não brancas. 
No entanto, a existência dessa contradição não deveria levar qualquer mulher a ignorar as questões feministas. 
Com frequência mulheres negras me pedem para explicar por que eu digo que sou feminista e, ao usar esse termo, 
aceito me aliar a um movimento que é racista. Digo, ‘a pergunta que devemos fazer repetidas vezes é como as 
mulheres racistas podem dizer que são feministas’” (HOOKS, 2020, p.306). 
4 Embora essas críticas serão tratadas com mais cuidado no prosseguir do texto, é importante apontar aqui algumas 
posições criticadas por Davis dentro do feminismo contemporâneo, como a luta antiestupro e na campanha pela 
legalização do aborto, ambas desprovidas de uma análise que abordasse o gênero vivido através da raça. 
5 Como exemplo disso, Davis aponta a forma como as mesmas mulheres que lutavam pelo fim do sexismo 
limitavam suas pautas à condição das mulheres brancas de classe média, de forma que não perdessem os seus 
privilégios de raça e classe dentro do mercado de trabalho: “Nos programas das feministas “de classe média” do 
passado e do presente, a conveniente omissão dos problemas dessas trabalhadoras em geral se mostrava uma 
justificativa velada – ao menos por parte das mulheres mais abastadas – para a exploração de suas próprias 
empregadas” (DAVIS, 2016, p. 104) 
 11 
de opressão a partir de sua imbricação e como as ideologias correspondentes influenciaram as 
decisões tomadas dentro do movimento das mulheres6. Ou seja, a questão não era somente um 
erro estratégico, de teor prático, nem mesmo um obstáculo objetivamente externo, mas um erro 
das teorias e das ideologias subjacentes. Para Davis, essas falhas significavam, acima de tudo, 
que para combater o sexismo era preciso entender como ele operava em conjunção com o 
racismo e a opressão de classe e adotar uma perspectiva que desse conta desse conjunto de 
relações simultaneamente. Ou seja, ao adotar uma análise integrada que busca conta do 
movimento histórico e da relação entre as diferentes formas de opressão, Davis mostrou como, 
embora aparentemente as mulheres brancas estivessem lutando contra o sexismo que sofriam, 
enquanto não compreendessem essa dinâmica, estariam agindo contra seus próprios interessesenquanto mulheres, pois estariam perdendo de vista a dimensão estrutural e sistemática da 
opressão de gênero7. Por isso, como ela defende, a solidariedade não deve ser “uma 
preocupação com a caridade ou por princípios morais gerais”, mas uma questão de alianças 
necessárias em uma luta conjunta contra o sistema que organiza essas mediações e reproduz 
suas ideologias. 
Nesse sentido, de acordo com Davis, a noção de uma mulher universal era marcada 
por uma ideologia da feminilidade que ocultava sua estreita relação com o racismo e impedia 
uma articulação entre as mulheres que pudesse ser verdadeiramente revolucionária. Assim, 
como objeção à invisibilização e exclusão que as mulheres negras sofriam dentro do feminismo, 
mas, principalmente, na sociedade, projetava-se nessa obra uma outra perspectiva feminista, 
que, para usar os termos de hooks, retirava das margens seu recurso crítico (HOOKS, 2019). 
Isto é, ao fazer esse movimento de trazer a perspectiva da mulher negra para o centro da análise, 
Davis reivindicava, assim como hooks, o próprio significado do feminismo. Dessa forma, 
motivada pela ausência de análises centradas no papel e na experiência das mulheres negras na 
sociedade estadunidense, Davis mostrou a insuficiência dos quadros de investigação 
dominantes no feminismo para captar a multidimensionalidade das mulheres negras e a forma 
particular de sua opressão. Ao fazer uma consideração sobre o que a levou a escrever o livro, 
Davis afirma: 
Se, e quando, alguém conseguir acabar, do ponto de vista histórico, com os mal-
entendidos sobre as experiências das mulheres negras escravizadas, ela (ou ele) terá 
prestado um serviço inestimável. Não é apenas pela precisão histórica que um estudo 
 
6 Isso fica evidente em trechos como o seguinte: “Com a chegada do século XX, um casamento ideológico sólido 
uniu racismo e sexismo de uma nova maneira. A supremacia branca e a supremacia masculina, que sempre se 
cortejaram com facilidade, estreitaram os laços e consolidaram abertamente o romance” (DAVIS, 2016, p. 127). 
7 Consequentemente, isso também era necessário na luta contra o racismo e o capitalismo. 
 
 12 
desses deve ser realizado; as lições que ele pode reunir sobre a era escravista trarão 
esclarecimentos sobre a luta atual das mulheres negras e de todas as mulheres em 
busca de emancipação. Como leiga, posso apenas propor algumas hipóteses que talvez 
sejam capazes de orientar um reexame da história das mulheres durante a escravidão 
(DAVIS, 2016, p. 17). 
 
Dessa forma, o que se desenvolve na obra de Davis é uma análise mais complexa e 
historicamente fundamentada da formação e composição das classes sociais e do papel da 
mulher negra na história nos Estados Unidos. Tendo como pano de fundo a sua participação no 
movimento negro dos anos 60 e 70 e seu envolvimento com o partido comunista e com o 
feminismo marxista, Davis dificilmente poderia ser acusada de defender uma pauta identitária 
às custas de uma reflexão sobre a luta de classes e sobre os modos de produção. As categorias 
de raça, classe e gênero não são, para Davis, abstrações, estáticas e pré-sociais, que poderiam 
ser explicadas de antemão à sua contextualização e sua historicização. Pelo contrário, seu livro 
explicita, do ponto de vista histórico, como se organiza a profunda relação entre raça, sexo e 
classe e como esses fatores convergem na experiência da mulher negra inserida na sociedade 
capitalista estadunidense. É importante, portanto, notar como Davis realiza e consolida um 
modo de análise integrativo, que não determina a precedência de um sistema de opressão sobre 
os outros, mas que constrói sua articulação entre eles a partir de uma análise das relações de 
produção e reprodução da vida, o que se manifesta com mais clareza em suas críticas à estreiteza 
dos quadros teóricos presentes no feminismo radical e socialista. Nesse sentido, ao colocar a 
experiência da mulher negra como ponto de partida e como centro da análise, Davis permitiu 
uma radicalização da luta contra o sexismo através de uma análise antirracista e anticapitalista 
comprometida com uma transformação revolucionária da sociedade. 
Apesar do papel fundamental de Davis para a construção do feminismo negro 
interseccional8 e marxista, ela não estava sozinha. Nos anos 80, viu-se uma intensificação na 
produção de trabalhos teóricos de mulheres negras e de outras "minorias" étnicas, muitos dos 
quais decorriam do envolvimento na política dos movimentos sociais nas duas décadas 
anteriores e de atividades de conscientização em torno da forma como as múltiplas formas de 
opressão se interconectavam em suas vidas (COLLINS E BILGE, 2016). É desse modo que, 
embora o termo interseccionalidade só tenha sido cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, o 
paradigma crítico e analítico ao qual o conceito faz referência já se apresentava em uma 
 
8 Essa definição de feminismo surge posteriormente às discussões aqui apresentadas, uma vez que o termo só é 
estabelecido em 1989 com a publicação do texto “Mapping the Margins”, de Kimberlé Crenshaw. Ademais, nem 
sempre as autoras se auto identificam como feministas interseccionais, embora (quase) sempre se afirmem como 
feministas negras. 
 13 
variedade de trabalhos produzidos nos anos 80. Entre esses trabalhos se encontram as obras de 
Patricia Hill Collins, Audre Lorde, bell hooks, Angela Davis, Barbara Smith, entre outras. 
Assim, embora o feminismo negro não tenha surgido como um modelo posterior de reação ao 
feminismo branco, e menos ainda uma forma de derivação9, de certa forma, muitas de suas 
autoras se preocuparam em desenvolver uma crítica profunda ao feminismo branco de classe 
média, e ao modo como este atuava para a manutenção do próprio sexismo contra o qual diziam 
se opor. Ao fazer isso, elas evidenciavam a total inabilidade deste movimento para oferecer 
uma análise mais complexa, inclusiva e relacional, que de fato contemplasse a condição das 
muitas mulheres negras e trabalhadoras. 
De certa forma, essas contestações feitas ao feminismo hegemônico nos anos 80 
compõem parte do pano de fundo do livro Problemas de Gênero de Judith Butler, publicado 
em 1990. Isto porque, além do feminismo negro, haviam outras perspectivas de feminismo 
exigindo e provocando redefinições do significado e do uso da categoria “mulher”. Deste modo, 
problematizando a sensação de fracasso que identifica dentro dos debates feministas10, Butler 
busca direcionar um outro ponto de partida para a sua prática política. Como Butler aponta, 
essas contestações podem, contra aquelas que as percebiam como uma ameaça ao feminismo, 
servir como uma oportunidade para se refletir sobre a própria “necessidade de se construir um 
sujeito do feminismo”. Assim, Butler propõe "uma investigação radical sobre as construções e 
as normas políticas da própria identidade" (BUTLER, 2016, p. 10), que, para ela, estava barrada 
no movimento de busca ou afirmação de uma identidade comum e ou primária entre as mulheres 
como condição para a continuidade da tarefa política do feminismo. Como ela afirma: 
 
em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma identidade definida, 
compreendida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os interesses e 
objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo 
em nome de quem a representação política é almejada (BUTLER, 2016, p. 17-8). 
 
9 Davis aponta para a origem em comum dos movimentos de mulheres brancas e negras no século XIX como 
consequência da politização durante o movimento abolicionista. Nesse sentido, talvez possamos dizer que, mais 
uma vez, a politização massiva da juventude durante os anos 1960 levou à formação de novos movimentos sociais, 
entre eles, os movimentos feministas. 
10 Se em Problemas de Gênero esse contexto aparece como pano de fundo, e condição para as próprias elaborações 
que se seguem, em entrevistas posteriores Butler tornaessa estrutura mais explícita: “Acho que no final dos anos 
80 havia várias de nós, principalmente feministas brancas, que reclamávamos de fendas no movimento feminino 
[...]. E eu vi um esforço para territorializar o feminismo como esta organização unificada, ao mesmo tempo em 
que vi estas várias contestações serem consideradas como ameaças à unidade e não como apelos para rearticulações 
de unidade em alguma base mais plausível. Assim, acho que passei a esperar que sempre que houvesse um evento 
feminista, haveria aqueles que se levantariam e não se reconheceriam nos termos em que as feministas estavam 
falando. E isso aconteceu dentro de grupos de mulheres de cor, assim como dentro de grupos de lésbicas e dentro 
de grupos de feministas heterossexuais brancas. Então, comecei a entender isto como uma espécie de tema (motif) 
recorrente” (BUTLER, 1993). 
 14 
 
Assim, ao invés de tomar a mulher como um dado biológico ou social e buscar uma 
definição a partir desse ponto, Butler se dedica à construção de uma “genealogia feminista da 
categoria ‘mulheres’” que seja capaz de evidenciar as práticas de exclusões geradas pela própria 
naturalização que estabiliza essa posição como fundamento, dando ênfase aos pressupostos 
heterossexuais na teoria feminista. Não se trata de redefinir o que significa “ser” mulher, mas 
de como as incontáveis redefinições ocorrendo permitem uma investigação dos modos e 
relações de poder que circunscrevem essa categoria à estrutura binária da heterossexualidade 
compulsória e a um modelo jurídico de poder. A crítica de Butler é direcionada tanto aos 
paradoxos dessa estrutura de representação política, quanto às tentativas de se opor a ela por 
meio da representação de um sujeito anterior à lei ou à cultura. Sua intenção com essas críticas 
era a de mostrar como o gênero não só é construído, como também funciona como uma ficção 
reguladora, produzindo um campo de inteligibilidade que condiciona quem pode ser 
reconhecido como um sujeito. Ou seja, Butler busca mostrar como a construção se dá a partir 
de exclusões constitutivas, o que exige que as identidades não sejam assumidas como dadas, 
mas que sejam consideradas campos de luta política. Assim, sem passar pela crítica 
genealógica, as categorias mobilizadas correm o risco de reproduzir estas mesmas exclusões, 
barrando a participação de “mulheres” que o termo supostamente deveria representar. Nesse 
sentido, ao problematizar o “sexo” como fundamento, Problemas de Gênero importa para esta 
pesquisa, principalmente, porque tornou as análises sobre a constituição e significação das 
diferenças sexuais, de gênero e sexualidade inescapáveis ao feminismo, ampliando o campo do 
político. 
Portanto, considerando as críticas que Davis e Butler fazem à universalidade da 
noção de “mulher” e os deslocamentos provocados a partir dessas perspectivas, a presente 
dissertação tem por objetivo analisar as contribuições que as duas autoras trazem para a teoria 
crítica feminista, em especial o modo como suas obras, Mulheres, Raça e Classe e Problemas 
de Gênero, permitem reformulações e atualizações dos modelos de análise das relações de 
opressão na teoria feminista. A questão que as une, para nós, está nas contribuições que as duas 
autoras trazem para pensarmos a teoria crítica feminista, uma vez que as duas apontam para os 
problemas teóricos subjacentes à prática política. Dessa forma, pelo menos quanto ao 
diagnóstico, ao desenvolverem suas críticas à universalização da “mulher” como categoria, as 
duas mostram como deve-se pensar a realidade através das identidades concretas, mesmo 
quando essa é considerada uma construção. Assim, se Davis aponta para a parcialidade, e os 
problemas, de uma perspectiva que não considerasse as diferenças raciais e de classe para 
 15 
identificar e combater a opressão das mulheres como o ponto cego do feminismo marxista e o 
feminismo radical – além do feminismo liberal –, Butler, por sua vez, está preocupada com a 
heterossexualidade pressuposta como ponto de partida ontológico e epistemológico dos 
discursos feministas e os domínios de exclusão que aparecem como ininteligíveis. 
Em contraposição às leituras que poderiam estabelecer entre as duas uma 
substituição de paradigma11, a hipótese que sustenta essa pesquisa é de que, embora elas partam 
de diferentes contextos, influências e quadros teóricos, ambas autoras têm um papel 
fundamental para identificar, pensar e desbloquear os impasses políticos dos discursos 
feministas. Ainda que não seja nosso objetivo realizar uma síntese ou um quadro que integre o 
trabalho de Davis e Butler, analisaremos de que modo se desenvolve nas duas obras uma 
objeção à parcialidade presente em diferentes posições feministas, tendo como resultado a 
produção de novas ferramentas para uma crítica ampliada e mais sofisticada das injustiças de 
gênero, já que, como diz Audre Lorde, “o futuro de nossa terra pode depender da capacidade 
das mulheres de identificar e desenvolver novas definições de poder e novos modelos de 
relacionamento em meio às diferenças” (LORDE, 2019, p. 152). 
No primeiro capítulo, mapearemos e analisaremos as principais críticas e reflexões 
desenvolvidas por Davis em Mulheres, Raça e Classe e por Butler em Problemas de Gênero a 
respeito dos discursos e das práticas feministas no momento em que publicam as suas obras. 
Uma vez que estamos analisando as contribuições das duas autoras para a possibilidade de 
“diagnósticos” mais precisos e sofisticados, reconstruiremos o presente histórico, tal como ele 
aparece no texto de cada uma delas. Isto é, não é uma tentativa de reconstruir o contexto em 
 
11 Em “Feminismo e pós-modernismo: uma aliança complicada” (1991), Benhabib começa seu ensaio afirmando 
que havia ocorrido uma mudança de paradigma do marxismo para o pós-modernismo no interior da teoria 
feminista. Dentro desse quadro, Davis poderia ser considerada uma representante do primeiro momento e Butler 
do segundo. Assim, como Benhabib sustenta, em referência ao texto de Heidi Hartmann, após a infeliz união das 
teóricas feministas com o marxismo, o pós-modernismo estaria assumindo esse lugar. Como ela afirma: “Hoje em 
dia, com a teoria marxista em retirada no mundo todo, as feministas não mais se preocupam em salvar sua infeliz 
união. Agora é uma nova união, ou desunião – dependendo da perspectiva de cada um -, que provou ser mais 
sedutora” (BENHABIB, 2018, p. 35). Ao afirmar isso, ela parece concordar com a posição inicial de Hartmann, a 
saber, que havia uma perigosa assimetria nessa relação, que teria colocado o feminismo em segundo plano. 
Hartmann conclui, portanto, que era preciso adotar uma teoria dualista que combinasse igualmente o feminismo e 
o marxismo. Benhabib, em sua atualização do debate, defende que precisamos combinar o feminismo com o pós-
estruturalismo, de modo que haja uma relação recíproca. No entanto, sua posição faz parecer que (1) feminismo e 
pós-estruturalismo são duas teorias com corpos distintos, assim como o seriam o feminismo e o marxismo, (2) o 
marxismo é uma teoria que teria sido completamente abandonada e que (3) em nenhum dos quadros é possível 
unir marxismo e pós-estruturalismo. Nesse sentido, como define Fraser, Benhabib parece produzir algumas falsas 
antíteses. O que é problemático, principalmente considerando que, como ela mesma afirma, nenhuma dessas 
categorias é meramente descritiva, mas “são termos constitutivos e avaliativos” (BENHABIB, 2018, p. 36). 
Considerando isso, mesmo não buscando uma integração ou síntese entre Butler e Davis, também evitamos 
enquadrar as duas como teorias lineares e/ou excludentes. 
 
 16 
que elas se encontram tal como ele se deu – tarefa impossível, mas de como ele se manifestou 
no pensamento das duas autoras, ou seja, entre e contra quais posições elas se situam. 
Assim, como ponto de partida, recuperaremos alguns temas que Davis já vinha 
abordando anteriormente e que a levamàs formulações em seu livro. Uma vez que ela entende 
a teoria e a prática como atividades imbricadas e dialéticas, indicaremos de que modo seu 
pensamento se mostra indissociável de seu ativismo. Nesse sentido, a próxima e ambivalente 
relação de Davis com os movimentos sociais do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970 
nos ajudará a olhar para a construção de Mulheres, Raça e Classe. Por isso, analisaremos o 
texto “Reflections on the Black Woman’s Role in the Community of Slaves”, publicado em 
1971. Considerando que nesse texto Davis realiza um primeiro exame sobre a especificidade 
da opressão da mulher negra na sociedade estadunidense, nosso interesse, ao fazer essa análise, 
está em reconstruir o desenvolvimento dos argumentos que reaparecerão em seu livro posterior. 
Essa reconstrução, por sua vez, será melhor entendida considerando a articulação entre o 
trabalho de Davis e um dos textos mais significativos para a formação do pensamento feminista 
negro nos anos 1970, o manifesto do Combahee River Collective, no qual já se desenvolvia a 
simultaneidade das opressões como ferramenta crítica e analítica. As duas obras, analisadas em 
conjunto, permitem uma maior compreensão dos deslocamentos da autora. Dessa forma, como 
discutiremos, ao escrever Mulheres, Raça e Classe, Davis enfrenta mais diretamente, a partir 
da revisão histórica do movimento de mulheres nos Estados Unidos desde o século XIX, as 
contradições na teoria e na prática feministas. Essas análises foram fundamentais para fornecer 
alternativas aos modelos aditivos de dominação. Ao expor a diferença entre as experiências das 
mulheres, problematizaram não só o conteúdo da categoria “mulher”, mas também a sua função 
como marcador prioritário para entender a opressão de gênero. Esse isolamento do sexismo de 
outras relações de poder, reduzido a um modelo de oposições binárias, reforçaria uma 
“compreensão simplista da historicidade da dominação” (DORLIN, 2008), ocultando outros 
modos de opressão. 
A partir desse quadro de disputa em torno do “sujeito” do feminismo, 
examinaremos como Butler, além de apresentar críticas aos pressupostos heterossexuais na 
teoria feminista, deslocou o problema da identidade orientando os movimentos sociais para um 
questionamento acerca do quadro político subjacente. Ou seja, ao politizar a constituição das 
identidades, Butler busca ampliar o que é entendido como um domínio do político. Dessa forma, 
nosso intuito será mostrar como, ao fazer uma crítica à identidade como fundamento da 
representação política, Butler oferece um quadro teórico que permite não só analisar as supostas 
fragmentações do feminismo, mas, principalmente, e de certa forma em consonância com as 
 17 
feministas negras e com as análises que já vinham sendo desenvolvidas, apontar como os 
discursos feministas, com seus pressupostos sexuais (e binários), ainda naturalizam outros 
modos de discriminação e a opressão. Por isso, embora ela se mostre cética e desconfiada com 
relação às consequências das políticas de identidade, observar isso não é tão simples como 
afirmar que ela compartilha de uma recusa total do uso político da categoria de identidade – 
isto é, como se fosse possível fazê-la12. Portanto, ao apresentar essa análise, buscaremos 
enfatizar como o principal alvo da crítica à identidade Butler não são as minorias, e suas 
supostas “políticas identitárias”, mas, pelo contrário, as posições de hegemonia no interior do 
feminismo que invisibilizam, engessam e totalizam seu ponto de vista 
No segundo capítulo, portanto, analisaremos os últimos ensaios de Mulheres, Raça 
e Classe, por conterem as críticas centrais direcionadas às correntes feministas vigentes no 
início dos anos 1980, com as quais Davis ainda assim tem pontos em comum: o feminismo 
radical e o feminismo socialista do Wages for Housework. Nosso objetivo consiste em mostrar 
de que forma Davis, ao assumir as especificidades da mulher negra nos Estados Unidos, 
explicita as deficiências tanto teóricas quanto políticas operando nesses feminismos. Assim, em 
contraste com a parcialidade que Davis critica nessas duas perspectivas, buscamos compreender 
a importância de uma análise que considere as categorias de raça, gênero e classe 
conjuntamente. Mais do que isso, considerando que essa análise pode ser formulada de diversos 
modos, trata-se de explicitar como Davis compreende a articulação entre elas, ou seja, qual é a 
abordagem que ela desenvolve em sua crítica. Mostraremos como já se formulava em suas 
análises uma saída tanto para os modelos unilaterais aparentes nesses feminismos quanto para 
os modelos aditivos. 
No terceiro capítulo, dando continuidade à tarefa de reformulação dos modelos de 
crítica disponíveis, reconstruiremos a análise das relações de poder que Butler apresenta em 
Problemas de Gênero, visto que pensar o poder é fundamental para esquadrinhar e especificar 
não só as formas de opressão e subordinação às quais ela se opõe, mas também as possibilidades 
de ação, tanto individual quanto coletiva, que esses conceitos contêm (ALLEN, 2016). 
Assumindo a leitura que Allen faz de Butler como ponto de partida, analisaremos como se 
apresenta no livro de Butler a analítica foucaultiana do poder e qual é o seu papel na sua 
formulação sobre a constituição de gênero e os atos performativos. Para tanto, retomaremos a 
 
12 Segundo Butler, “a noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa 
especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a "especificidade" do feminino é mais uma vez totalmente 
descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de 
relações de poder, os quais tanto constituem a "identidade" como tornam equívoca a noção singular de identidade” 
(BUTLER, 2016, p. 22) 
 18 
crítica que Butler faz à dualidade mente/corpo em Beauvoir, relacionada à sua própria leitura 
da distinção sexo/gênero operando no feminismo. Butler, percebendo como o corpo é 
concebido nessas distinções como matéria bruta, facticidade muda e superfície passiva, busca 
desconstruir a aceitação do “sexo” como categoria natural e apontar para os efeitos restritivos 
dessa naturalização. Reconhecendo a importância de Wittig em sua formulação, analisaremos 
também de que forma Butler identifica os limites da autora, para os quais ela busca uma 
reformulação que não recaia no binarismo. Ou seja, mostraremos como Butler apresenta a 
noção de performatividade como um modelo de funcionamento do poder que permite pensar a 
construção do gênero além do impasse entre determinismo e livre-arbítrio, que neste livro 
aparecem como os grandes pontos cegos das autoras das quais ela se aproxima. Por fim, 
mostraremos, em contraposição às críticas feitas por Fraser, como esse conceito permite uma 
compreensão realmente maior de uma das operações do poder em sua dimensão subjetiva. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 19 
Capítulo 1 - Deslocando o sujeito do feminismo 
 
Angela Davis e a perspectiva das mulheres negras 
Davis e o movimento negro 
 
Angela Davis é uma ativista e filósofa crítica estadunidense. Sua formação 
acadêmica durou toda a década de 60, sendo interrompida abruptamente com a sua demissão 
como professora assistente da Universidade da Califórnia em 1969, enquanto Davis concluía 
sua tese de doutorado com orientação de Herbert Marcuse. O motivo da expulsão, coordenada 
pelo então governador Ronald Reagan, foi o seu vínculo com o partido comunista. De toda 
forma, seria exatamente a combinação entre o marxismo, a teoria crítica e a literatura negra que 
caracterizaria seus trabalhos futuros. Em dezembro de 1971, enquanto estava presa13, Angela 
Davis escreveu e publicou “Reflections on the Black Woman's Role in the community of 
Slaves”. No começo do texto, Davis se opõe ao relatório Moynihan e aponta para os efeitos 
prejudiciais queele produzia na e contra a comunidade negra. Publicado em 1965, no meio de 
uma década marcada pelo movimento pelos direitos civis, por Malcolm X, Martin Luther King 
e o Partido dos Panteras Negras, este relatório, chamado The Negro Family: The Case for 
National Action, era parte de um imenso aparato ideológico sustentado pelo Estado com a 
missão propagandística de justificar as raízes da opressão do povo negro nos Estados Unidos 
ao defender que predominava um modo de estrutura familiar matriarcal, e, por isso, patológico, 
que teria se constituído durante o período da escravidão. 
Para Davis, a tese da matriarca negra, invocada pelo relatório como um produto da 
escravidão, era, na verdade, um produto calculado de uma elite branca para enfraquecer a 
comunidade negra como um todo e seus avanços na luta por transformação social. Davis 
buscava mostrar como o mito responsabilizava as mulheres negras tendo como pressuposto o 
papel dominante dos homens dentro de uma estrutura patriarcal, ocultando as verdadeiras 
causas dos problemas sociais. Como ela vai dizer posteriormente, em uma entrevista, “o 
Relatório Moynihan tentou explorar e distorcer a relação homem/mulher dentro da comunidade 
negra, que, embora informado pelo sexismo, ao mesmo tempo teve uma qualidade muito mais 
igualitária do que na comunidade branca” (DAVIS e BHAVNANI, 1989, p. 70). Por ter 
participado e presenciado as mudanças na consciência negra durante os movimentos por 
 
13 Angela Davis esteve presa de outubro de 1970 a fevereiro de 1972, acusada de acusada de conspiração, sequestro 
e homicídio, por uma suposta ligação com uma tentativa de sequestro com o objetivo de negociar a liberdade dos 
irmãos Soledad. Essa história é mais bem contada por ela, em sua autobiografia (DAVIS, 2019). 
 20 
libertação nos anos 1960, Davis identificava um potencial de liberdade e igualdade que estaria 
sendo barrado pelo mito do matriarcado negro internalizado pela comunidade negra. Como 
forma de desbloquear este potencial, Davis busca desmascarar as distorções disseminadas por 
esse mito. Como ela aponta, sua relação com George Jackson foi fundamental para que ela 
entendesse como esse mito operava não só oprimindo as mulheres, mas enfraquecendo a 
comunidade negra como um todo e o próprio movimento por libertação. Em suas palavras: “ele 
parecia ter internalizado as noções de mulheres negras como matriarcas dominadoras, como 
castradoras, noções associadas ao Relatório Moynihan. Pude detectar isso nos comentários que 
ele fez em suas cartas, especialmente nos comentários sobre sua mãe” (DAVIS e BHAVNANI, 
1989, p. 75). Ao confrontar a presença dessas imagens negativas com uma outra perspectiva a 
respeito do papel da mulher na comunidade negra, Davis teria conseguido mostrar para um 
George Jackson ainda capturado pelas distorções recorrentes, que era preciso se libertar de 
qualquer resíduo dos mitos divisores e destrutivos que alegavam representar as mulheres 
negras, mas que na verdade operavam como arma de uma guerra ideológica, que atingia toda a 
comunidade negra. 
A partir da experiência com o sexismo presente desde o movimento negro até o 
processo judicial que ela estava vivenciando, Davis começa a pesquisar o papel da mulher negra 
durante a escravidão, enquanto ainda permanecia presa, publicando este artigo, que foi seu 
primeiro texto sobre o tema. O problema naquele momento, como ela identifica, era tanto a 
escassez de literatura sobre a mulher negra (que a tomasse como centro da análise, e não como 
um mero acessório) quanto a presença, nos poucos trabalhos existentes, de estereótipos racistas 
pelos quais as mulheres negras continuavam a ser percebidas. Dadas as dificuldades em que se 
encontrava para pesquisar os materiais, a autora apresenta seu texto como um ponto de partida 
para que outros estudos pudessem continuar o trabalho de desmistificar essas imagens negativas 
e reificadas. Tratava-se de encontrar um modo de enquadramento que conduzisse uma 
investigação rigorosa da mulher negra a partir de suas interações com sua comunidade, sua 
posição nos modos de produção e o ambiente opressivo em que ela se encontrava durante a 
escravidão. Além disso, Davis fazia, também, um chamado para que outras mulheres negras 
assumissem a responsabilidade de destruir tais imagens e contribuíssem para a construção de 
uma nova perspectiva progressista. 
Como ela vê, um dos objetivos de seu trabalho era, portanto, recuperar e desfazer 
as supostas raízes históricas do mito da matriarca negra. Dessa forma, Davis vai dedicar todo 
seu texto ao período de escravidão nos Estados Unidos e às condições que teriam supostamente 
originado tais imagens negativas. Portanto, ao refazer os contornos históricos e sociais da 
 21 
mulher negra, Davis desvela, em seu lugar, o importante papel que elas exerceram, e ainda 
exerciam, na comunidade negra, e os efeitos cruciais dessa atuação para a luta contra a 
escravidão assim como contra o racismo. Nesse sentido, para Davis, somente a desmistificação 
do mito do matriarcado poderia iluminar a matriz histórica da opressão da mulher, ao mesmo 
tempo que evocaria suas variadas e, por vezes, heroicas respostas à dominação (DAVIS, 1998, 
p.112). De modo a expor esse argumento, Davis defende que seria um erro considerar a 
possibilidade de relações familiares estruturadas em torno do poder da “matriarca”. Mais ainda, 
seria um erro cruel, pois ignoraria os profundos traumas que as mulheres negras sofriam. 
Para que esse modelo matriarcal de fato existisse, a mulher deveria representar um 
símbolo de autoridade dentro da comunidade de escravizadas – o que, para Davis, andava lado 
a lado com a suposição do papel dessas mulheres como colaboradoras do sistema escravista. 
Contudo, como Davis procura mostrar, isso não seria minimamente factível dentro da lógica do 
sistema escravista, uma vez que a classe dominante não estava disposta a reconhecer nenhum 
tipo de “poder” no interior da comunidade escravizada, que, uma vez concedido, poderia ser 
usado contra ela. Por isso, para exercer a opressão e a expropriação total, o sistema escravista 
considerava os homens e as mulheres como iguais no campo de trabalho. Como afirma Davis, 
o homem e a mulher “dividiam a igualdade deformada da igual opressão” (DAVIS, 1998, 
p.117). 
Davis sustenta, portanto, que não há contradição entre sustentar a importância do 
lugar da mulher negra e rejeitar a ideia do matriarcado. Em outras palavras, não seria o caso de 
afirmar a passividade e docilidade da mulher negra para se combater o mito da matriarca. Contra 
essas duas posições, que funcionam conjuntamente, Davis procura retratar, com base nos 
poucos recursos e materiais disponíveis, o papel da mulher negra em suas múltiplas faces e 
funções, mas, principalmente, a singularidade de sua função nas lutas de resistência durante a 
escravidão e a relação desse papel com a sua condição como trabalhadoras. No entanto, Davis 
enfatiza também que, apesar da igualdade objetiva entre o homem e a mulher negra, 
comprometidos igualmente com a luta pela libertação, a natureza infinitamente onerosa da 
dupla opressão não deve nunca ser negligenciada. 
De acordo com Davis, desde meados dos anos 1950, mesmo período do movimento 
pelos direitos civis, apresentava-se um renovado interesse por revelar a magnitude e os efeitos 
da resistência do povo negro à escravidão. Contudo, na medida em que esses estudos buscavam 
demonstrar como as rebeliões faziam parte da tessitura da escravidão tanto quanto as condições 
de servidão, seu alcance e profundidade continuariam limitados enquanto não explicitassem 
também as dimensões aparentemente triviais e cotidianas em que a resistência acontecia e que, 
 22 
inclusive, criavam a força e o espaço necessários para que as rebeliões maiores pudessem 
irromper em um ambiente tão hostil. 
O texto de Davis investiga, portanto, como a sujeição da mulhernegra escravizada, 
condicionada tanto pela exploração de seu trabalho nas plantações junto aos homens, quanto 
pelo trabalho doméstico, sustentado pela ideologia supremacista da sociedade branca, a 
colocava em uma posição essencial para a sobrevivência da comunidade. Uma vez que nem 
todos conseguiam sobreviver em um sistema que tratava seus trabalhadores como mercadoria, 
a sobrevivência se tornava um modo particular de resistência e, principalmente, a condição de 
todos os outros modos de resistir. Além disso, essa sobrevivência/resistência era mantida pela 
mulher negra em duas vias. A primeira, pelo próprio papel que exercia na vida doméstica, uma 
vez que, como Davis aponta, em um sentido material, este era o único espaço em que os 
escravizados podiam afirmar o mínimo de liberdade que ainda mantinham. Assim, como ela 
afirma, “a mulher estava desempenhando o único trabalho da comunidade escravizada que não 
podia ser diretamente e imediatamente reivindicado por seu opressor” (DAVIS, 1998, p. 116). 
Nesse sentido, Davis continua, “o trabalho doméstico era o único trabalho significativo para a 
comunidade negra como um todo” (DAVIS, 1998, p. 116), uma vez que era neste espaço que 
se nutria alguma autonomia e de onde se tirava as forças necessárias para enfrentar o sistema 
da escravidão. Sobre a especificidade do trabalho doméstico para a comunidade escravizada, 
Davis diz: 
 
Foi justamente por meio dessa labuta – que há muito tem sido expressão central do 
caráter socialmente condicionado da inferioridade feminina – que a mulher negra 
escravizada conseguiu preparar o alicerce de certo grau de autonomia, tanto para ela 
como para os homens. Mesmo submetida a um tipo único de opressão por ser mulher, 
era levada a ocupar um lugar central na comunidade escrava. Ela era, assim, essencial 
à sobrevivência da comunidade (DAVIS, 1998, p.116). 
 
Dessa forma, dada a sua centralidade na sobrevivência e manutenção da 
comunidade por meio do trabalho doméstico, também não eram concedidas à mulher negra os 
“duvidosos benefícios” compensatórios da ideologia da feminilidade, tais como a segurança e 
despreocupação com a luta desesperada por sobrevivência fora da esfera doméstica. Pelo 
contrário, todos os atributos da feminilidade eram anulados. Isto porque, por um lado, dentro 
de um sistema de oposições, o reconhecimento dos atributos de tal paradigma – tais como a 
passividade, a fragilidade e a sensibilidade – significaria conceder também aos homens negros 
os seus atributos opostos e a autoridade decorrente desse reconhecimento, o que não poderia 
ocorrer na ideologia supremacista branca. Assim, Davis afirma que “a mulher negra tinha que 
 23 
ser anulada como mulher, isto é, como mulher em sua posição histórica de proteção sob toda a 
hierarquia masculina”. A fim de “funcionar como escrava”, ela era obrigada a trabalhar no 
campo e sofria, na mesma medida que seus companheiros, a expropriação absoluta daquilo que 
produzia, além das diversas formas de violência física impostas pelo trabalho exaustivo na 
plantação e pelo açoite. É a partir dessas constatações que Davis afirma, portanto, que a mulher 
negra era “duplamente oprimida”. 
Entretanto, para Davis, a ironia desse sistema foi que, ao anular a mulher negra 
como mulher, ela também se liberava das amarras do mito da feminilidade. Sua intenção, com 
essa análise, é mostrar como a mulher negra não pode ser definida por suas responsabilidades 
unicamente “femininas” e em função de uma ideologia da feminilidade que opera como 
marcador racial. Desse modo, ao exercer o trabalho mais duro, também se imprimia em sua 
consciência a natureza particular de sua opressão e a sua habilidade de mudar o mundo. Partindo 
da conjunção desses fatores, Davis percebe como a relação entre a opressão e a resistência para 
a mulher negra durante a escravidão nos Estados Unidos se dava de modo dialético: as próprias 
características materiais de sua condição de opressão – sua força e consciência sobre o seu 
trabalho e sua função social – criavam as ferramentas e as possibilidades de sua recusa. Como 
Davis aponta, esta recusa então se dava tanto por meio de fugas e rebeliões, como através de 
atos menores de sabotagem – tais como o envenenamento, o fogo e a morosidade no trabalho – 
, tecendo “na urdidura e na trama da vida doméstica uma profunda consciência de resistência” 
(DAVIS, 1998, p.117). Assim se constituía a segunda via através da qual as mulheres negras 
garantiam a sobrevivência de sua comunidade. 
Através dessa análise que toma como ponto de partida as experiências das mulheres 
negras sob o sistema escravista, Davis expõe como uma complexa dialética da opressão e da 
libertação da mulher negra, em que as condições de sua subjugação se tornavam a fonte de seu 
esforço pela liberdade. Ela afirma: 
 
aquilo que era recebido como um status brutal de igualdade, era, na prática, 
transformado em um novo conteúdo ao inspirar e participar em atos de resistência de 
toda forma e cor. Ela dirigia a arma da igualdade na luta contra o sistema escravista 
que tinha somente gerado uma caricatura da igualdade na opressão (DAVIS, 1998, 
p.126). 
 
Assim, fundamentada pela ideia de que o status da mulher mede o desenvolvimento 
de uma sociedade, sua intenção também é destacar como essa igualdade objetiva foi a condição 
para os níveis intensos de resistência historicamente mantidos pelas pessoas negras. Por isso, 
para Davis, a verdadeira face revolucionária do movimento negro só seria descoberta uma vez 
 24 
que o mito do matriarcado fosse conscientemente repudiado como mito e a mulher negra e seus 
verdadeiros contornos históricos fossem estabelecidos (DAVIS, 1998). 
Em “Revolução do Feminismo Negro”, ao apresentar o percurso historiográfico do 
movimento feminista negro desde meados do século XIX, Elsa Dorlin delineia as problemáticas 
que moveram as mulheres negras durante mais de um século de lutas nos Estados Unidos. 
Podemos identificar no texto de Davis a presença de duas das principais problemáticas que, 
segundo Dorlin, animam o movimento feminista negro entre os anos 1970 e 1980. A primeira, 
que tematiza o separatismo “racial” do feminismo – resultado de uma lealdade das mulheres 
negras com o movimento negro – aparece tanto em forma, como em conteúdo. Nesse primeiro 
texto de Davis é evidente o seu comprometimento com o movimento negro, tendo em vista o 
seu silêncio a respeito do feminismo branco, que não é nenhuma vez endereçado nesse 
momento. A segunda problemática, que tematiza o mito do “matriarcado negro”, constitui-se 
como questão central no texto de Davis. Além disso, mais do que a presença dessas duas 
problemáticas, Davis também demonstra o estreito vínculo entre elas, isto é, a maneira como 
tal mito tem “permitido manter o sexismo e o racismo numa lógica comum de efetuação e 
perpetuação” (DORLIN, 2019, p. 70). 
Nesse sentido, publicado dez anos antes de Mulheres, Raça e Classe, o texto 
“Reflections on the Black Woman's Role in the community of Slaves” já contém o embrião de 
muitas ideias que serão desenvolvidas em seu livro. Com efeito, essas ideias não só retornam, 
como se tornam fundamentais já no primeiro capítulo do livro, intitulado “O Legado da 
Escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher”. Contudo, se no texto de 1971 
Davis parecia se destinar ao movimento negro, de modo a corrigir as distorções que minavam 
seu potencial emancipatório, no livro de 1981, Davis parece ampliar a direção de seu trabalho 
para outros movimentos e para as alianças entre eles, dando mais destaque em sua análise ao 
papel do movimento de mulheres. Assim, ao longo do livro, ela enfatizará como esses 
movimentos devem estar articulados, uma vez que, como mostra sua análise, esse é o modo 
como operam os respectivos sistemas de opressão aos quais eles se opõem. Nesse sentido, 
podemos nos perguntar: o que aconteceu nesse intervalo de 10 anosque levou o pensamento de 
Davis a essa inflexão? 
Para responder a essa pergunta contextualizaremos o momento de nascimento da 
obra Mulheres, Raça e Classe, tendo, como fio condutor, a formação e a publicação do 
manifesto do coletivo Combahee River. Com essa contextualização, pretendemos mostrar como 
as análises desenvolvidas por Davis fazem parte de um momento de intensa discussão e 
atividade política, que problematizavam e buscavam solucionar a insuficiência das análises até 
 25 
então disponíveis para compreender a condição específica das mulheres negras nos Estados 
Unidos. Além disso, esse “ponto cego” evidenciava os limites das análises existentes para 
compreender a amplitude e a complexidade dos sistemas de opressão. Dessa forma, as 
integrantes do coletivo indicavam, como disse Davis, que “talvez a mensagem mais significante 
para o movimento das mulheres existente seja essa: a última face da opressão da mulher é 
revelada precisamente onde ela é mais drástica” (DAVIS, 1998, p. 186). Isso significava, tanto 
para Davis quanto para as ativistas do coletivo, “descobrir as linhas/tramas conectando a 
opressão das mulheres com outros antagonismos sociais visíveis” (DAVIS, 1998, p. 162) e 
forjar as bases para uma aliança revolucionária entre os movimentos sociais. 
 
 
Combahee River Collective e o movimento feminista negro estadunidense 
 
Pode-se dizer que, assim como Angela Davis, outras mulheres negras envolvidas 
com os movimentos sociais dos anos 60 tiveram seu pensamento moldado por essas 
experiências políticas. Como resultado surgiram produções importantes para a formação do 
pensamento negro feminista e estadunidense, que lançaram as bases para discussões que 
ganhariam ainda mais força na década seguinte (COLLINS E BILGE, 2016). 
Nos anos 60, os movimentos sociais, incluindo os feminismos, em grande maioria 
tinham o marxismo como ponto de partida. No entanto, de modo bem geral, pautados em uma 
explicação demasiadamente “economicista” da opressão, limitada às relações de produção e da 
extração de mais-valia, acreditavam que com o fim do capitalismo e o advento do comunismo, 
toda a opressão contra as mulheres também acabaria. Dessa posição marxista ortodoxa e da sua 
dificuldade para explicar outros modos de opressão para além das relações de produção, várias 
segmentações foram ocorrendo, principalmente buscando complementar essa teoria com outras 
fontes e ferramentas que permitissem dar conta da complexidade dos sistemas de opressão na 
sociedade capitalista (RUBIN, 2003, p.158). Esse foi o caso de Barbara Smith, Beverly Smith, 
Gloria Akasha Hull e Demita Frazier. Depois de já terem acompanhado o desenvolvimento do 
movimento pelos direitos civis e participado ativamente de organizações tais como o partido 
dos Panteras Negras, o movimento anti-guerra e o grupo dos “estudantes para uma sociedade 
democrática”, elas identificaram a insuficiência política das análises e ações de organizações 
que priorizavam um único eixo de opressão para abordar os problemas que enfrentavam em 
suas vidas. Por essa razão, em 1974, elas se reuniram e criaram o Coletivo Combahee River. 
 26 
Provenientes da organização nacional do feminismo negro (NBFO), elas teriam 
reconhecido, na presença da homofobia e na falta de uma perspectiva da classe trabalhadora, 
os limites desse movimento para a construção de uma política radical. Ao mesmo tempo, as 
militantes do CRC não concordavam com os grupos lésbicos separatistas, pois não viam como 
podia ser possível isolar as opressões sexuais daquelas de raça e classe, uma vez que, elas 
afirmam, elas as viviam simultaneamente. Portanto, insatisfeitas com as organizações 
existentes, elas buscavam um lugar onde, como disse a Barbara Smith, elas poderiam ser tudo 
que elas eram e serem valorizadas por isso, e isso só seria possível a partir da auto-organização 
de um grupo de mulheres negras, lésbicas e socialistas. Assim, três anos depois da sua fundação, 
em 1977, elas publicaram um manifesto, “The Combahee River Collective Statement” (O 
manifesto do Coletivo Combahee River), que abordava quatro questões: 1) a gênese do 
feminismo negro contemporâneo; 2) o domínio específico de sua política; 3) os problemas de 
organização das feministas negras, incluindo uma história curta do coletivo; 4) as questões e 
práticas do feminismo negro. Em conjunto, as quatro dimensões do texto ofereceram um novo 
tipo de enquadramento que impactaria significativamente a forma como as opressões eram 
percebidas e descritas. 
Ao adotar um modelo de “opressões simultâneas”, esse texto oferecia então uma 
posição crítica ao “modelo aditivo”, que via as opressões como manifestações de sistemas 
paralelos, análogos e independentes que se somavam na experiência dos indivíduos. Diferente 
deste modelo, que assumia o sexismo como uma mesma opressão comum a todas as mulheres, 
ou seja, assumia que o sexismo sempre se expressava da mesma forma, independente das outras 
variáveis, as autoras enfatizavam como as mulheres negras não podiam medir e descrever sua 
opressão somente nos termos já conhecidos do sexismo e do racismo, pois a convergência 
desses sistemas que definia o modo como as mulheres negras sofriam não poderia se capturada 
nessas análises. Dessa forma, ao buscar dar forma a essa experiência a partir de palavras como: 
interlocking, manifold, simultaneous e synthesis, o manifesto oferece uma análise da opressão 
da mulher negra como resultado de operações combinadas dos principais sistemas de poder que 
formam uma estrutura social complexa de desigualdade. Mais importante, as autoras 
argumentam como, na sociedade capitalista, o cruzamento desses sistemas recai com maior 
intensidade sobre as mulheres negras. Dessa forma, elas dizem: 
 
A afirmação mais geral de nossa política no momento atual seria que estamos 
ativamente comprometidas em lutar contra a opressão racial, sexual, heterossexual e 
de classe, e vemos como nossa tarefa particular o desenvolvimento da integração da 
análise e da prática com base no fato de que os principais sistemas de opressão estão 
interligados. A síntese dessas opressões cria as condições das nossas vidas. Como 
 27 
mulheres negras, vemos o feminismo negro como o movimento político lógico para 
combater as opressões múltiplas e simultâneas que todas as mulheres de “minorias 
étnicas” enfrentam (COLLECTIVE, 2017, p. 15). 
 
Considerando, portanto, a experiência das mulheres negras e suas opressões 
específicas como medida, elas percebiam quão estreitas eram as agendas das organizações do 
feminismo branco e do movimento negro por libertação. Enquanto o movimento de mulheres 
igualava a noção de “mulher” com a mulher branca, o movimento negro igualava a noção de 
negro com o homem negro. Como resultado, as mulheres negras eram um grupo invisível em 
ambos movimentos cuja realidade e demandas eram negligenciadas. O aspecto crítico do 
argumento do CRC, portanto, não se limitava somente a uma maior compreensão das raízes das 
opressões das mulheres negras, mas indicava também o que as afastavam dos movimentos 
políticos, uma vez que, não só dificilmente tinham suas questões centralizadas, como também 
tinham que lidar com a separação e a consequente sobrecarga ou a escolha entre os dois 
movimentos. 
Em relação ao feminismo, elas identificavam dois principais problemas políticos. 
O primeiro era o racismo e o elitismo internos a algumas organizações e a consequente 
inabilidade da maioria delas em lidar com as diferenças entre as mulheres. O segundo, e talvez 
mais importante para essa análise, já que também está presente no argumento de Davis, era a 
incompatibilidade das próprias vidas com uma construção do feminismo que as colocasse 
contra os homens em geral e, em particular, contra os homens negros. Elas defendiam que o 
fim de sua opressão deveria estar necessariamente vinculado com o desenvolvimento 
econômico e político de todoo povo negro. O que certamente não justificava o sexismo dos 
homens negros, mas evidenciava a necessidade de uma posição simultaneamente antirracista e 
antissexista, que beneficiaria a comunidade negra como um todo. Como elas dizem: 
 
Embora sejamos feministas e lésbicas, sentimos solidariedade com os homens negros 
progressistas e não defendemos o fracionamento que as mulheres brancas que são 
separatistas demandam. Nossa situação como povo negro exige que tenhamos 
solidariedade em torno do fato da raça, que as mulheres brancas não precisam ter com 
homens brancos, a não ser que seja a sua solidariedade negativa como opressores 
raciais. Nós lutamos junto com os homens negros contra o racismo, enquanto nós 
também lutamos com os homens negros sobre sexismo (COLLECTIVE, 2017, p. 19). 
 
No lugar da afirmação de uma sororidade de princípio entre todas as mulheres como 
base para a mobilização contra o sexismo, o manifesto vai priorizar a compreensão da relação 
das mulheres negras com a sua comunidade e com a luta antirracista. Para isso, elas defendem 
 28 
a construção de uma política de coalizão entre os diferentes movimentos, que de fato pudesse 
direcionar a luta para uma transformação radical da sociedade. 
Pelo mesmo motivo que rejeitam o separatismo, ao considerar a posição econômica 
em que a comunidade negra se encontrava, elas também percebem que a libertação de todos os 
oprimidos necessitaria a destruição dos sistemas político e econômico do capitalismo e do 
imperialismo. Nesse sentido, elas se definem como socialistas. Mas, indo além, elas dizem, 
“nós não estamos convencidas, entretanto, de que uma revolução socialista que não seja 
também uma revolução feminista e antirracista garantirá a nossa libertação” (COLLECTIVE, 
2017, p. 20). Considerando, dessa forma, um entendimento das relações de classe que leve em 
conta a posição de classe específica da mulher negra, elas reivindicam uma expansão da teoria 
marxista. Esta teoria teria de ser reformulada de modo considerar a situação de classe de pessoas 
que não são meramente trabalhadores sem raça e sem sexo, mas pessoas para quem a opressão 
racial e a sexual são determinantes de suas relações e situações econômicas14. 
Visto que nenhum dos movimentos progressistas se mostrava preocupado com as suas 
opressões específicas, elas defendiam a necessidade de auto-organização das mulheres negras 
para que, primeiramente, elas pudessem fazer um trabalho de conscientização política que, ao 
examinar e priorizar a textura multifacetada de suas vidas, abriria caminhos para a entrada das 
mulheres negras no ativismo. Assim, para o Coletivo, colocar as experiências das mulheres 
negras no centro da análise15 significava colocar a identidade racial, sexual e de classe no centro 
da política. Ou seja, de modo análogo à análise que Davis faz com relação à natureza dialética 
da opressão da mulher negra, aqui a própria posição social que as tornam desproporcionalmente 
suscetíveis à pobreza, doenças, assédios sexuais e outras formas de violência e exploração, 
também fazia com que estivessem em condições de sustentar uma perspectiva política mais 
complexa e radical, pois exigia olhar para a simultaneidade e interrelação entre os diferentes 
modos de opressão. Pode-se dizer, por fim, que o caráter revolucionário dessa posição stá 
 
14 Na avaliação de Silvio Almeida, “o que as militantes do Coletivo Combahee River fizeram foi chamar as 
esquerdas para assumirem uma postura coerente com o materialismo histórico” (ALMEIDA, 2019, p. 10), uma 
postura que desafiasse o reducionismo de um conceito vazio de classe. 
15 Para tanto, elas teriam formulado e usado pela primeira vez o termo “política de identidade”: “Esse foco em 
nossa própria opressão está materializado (embodied) no conceito de política de identidade. Acreditamos que a 
política mais profunda e potencialmente mais radical vem diretamente da nossa própria identidade, em vez de agir 
para acabar com a opressão de outra pessoa” (COLLECTIVE, 2017, p. 19). Dessa forma, elas defendiam o caráter 
particularmente revolucionário do conceito de política de identidade quando este se referisse às mulheres negras. 
Keeanga-Yamahtta Taylor, reforçando essa ideia, vai dizer que a noção de “política de identidade” no manifesto 
sustentava tanto a importância de se considerar a forma como as opressões baseadas na identidade – seja ela racial, 
de gênero, de classe ou sexual – convergiam na posição social das mulheres negras, tornando-as 
desproporcionalmente suscetíveis aos danos do capitalismo, quanto a possibilidade de uma política radical e 
revolucionária (TAYLOR, 2017). 
 29 
necessariamente vinculado a outra afirmação feita no manifesto, a de que “se as mulheres 
negras fossem livres, isso significaria que todos os outros teriam que ser livres, pois nossa 
liberdade exigiria a destruição de todos os sistemas de opressão” (COLLECTIVE, 2017, p. 23). 
Por um lado, isso ganha sentido uma vez que, por estarem na base da estrutura 
social, sua libertação exigiria uma reorganização total da sociedade baseada nas necessidades 
coletivas dos mais oprimidos. Por outro lado, como a posição estrutural compartilhada 
especificamente pelas mulheres negras na sociedade capitalista manifestava a convergência dos 
sistemas de opressão racial, sexual e de classe, sua luta não se opunha a uma frente ou duas, 
mas a toda uma gama de opressões16. Como reflete Barbara Smith posteriormente: 
 
O que estávamos dizendo é que temos direito como pessoas que não são apenas 
mulheres, que não são unicamente negras, que não são apenas lésbicas, que não são 
apenas da classe trabalhadora, ou trabalhadoras – que somos pessoas que 
incorporaram todas essas identidades e que temos direito de construir e definir a teoria 
e prática políticas baseadas nessa realidade... Isso é o que quisemos dizer com política 
de identidade. Não estávamos dizendo que não ligávamos para ninguém que não fosse 
exatamente como nós (TAYLOR, 2017, p. 61). 
 
Dessa forma, embora fosse sobre uma posição específica, era na medida em que 
essa identidade incorporava ou se vinculava a diferentes identidades. Portanto, em razão da 
simultaneidade das opressões em suas vidas, elas não viam como a sua própria situação pudesse 
estar desvinculada da situação de outras mulheres, trabalhadores e pessoas de minorias étnicas, 
na medida em que a causa dessas opressões era a mesma. Como consequência dessa posição 
política, elas coordenavam o trabalho do coletivo em duas frentes, inseparáveis e 
interdependentes: a prática política de coalizão com outros grupos e a auto-organização das 
mulheres negras. Sobre esta última, elas acreditavam que ela se fortaleceria através da escrita e 
distribuição de trabalhos que demonstrassem a realidade dessa política para outras mulheres 
negras, que até então podiam estar isoladas e separadas, afastadas do ativismo político pelos 
mesmos motivos que elas demonstraram no próprio manifesto17. 
 
16 Para as autoras, a solidariedade e a formação de alianças eram essenciais para a análise e estratégia política 
progressista. Como afirma Asad Haider, “a proposta inicial do CRC era exatamente superar essas divisões 
degradantes e despolitizantes” (HAIDER, 2019, p. 50). 
 
17 Nesse sentido, uma das continuidades do trabalho sustentado pelo CRC foi a criação da editora The Kitchen 
Table: Women of Color Press, que teve, entre as suas fundadoras, Barbara Smith e Audre Lorde. Considerando a 
falta de publicação de mulheres negras e de “minorias étnicas” e o racismo existente no feminismo hegemônico, 
elas viram na criação da editora uma forma de combater sua exclusão sistemática e tornar visíveis a escrita, cultura 
e a história dessas mulheres. Embora fosse, por muito tempo, a única editora dirigida autonomamente por mulheres 
negras, a sua criação contribuiu para o fortalecimento das narrativas e perspectivas de mulheres negras, que 
também estavam sendo publicadase distribuídas por meio de outra autora e editora, Toni Morrison, que 
incentivaria Angela Davis a escrever e publicar, ainda em 1974, a sua autobiografia. 
 30 
Entre os 10 anos que separam o texto de 1971 da publicação de Mulheres, Raça e 
Classe, com o desgaste entre os movimentos sociais e o marxismo ortodoxo, o feminismo negro 
também foi um movimento teórico e politico em crescimento, consolidando uma corrente de 
pensamento político, cada vez mais forte e sofisticada, que moldava o feminismo a partir de 
um ponto de vista sobre a dominação de gênero inseparável do olhar para o racismo e para as 
relações de classe (DORLIN, 2019, p. 71). Esse ponto de vista ou modelo de análise, atento aos 
entrelaçamentos entre as estruturas sociais, apesar de suas variações de acordo com as 
abordagens de cada autora, seria então estabilizado e sintetizado em conceito em 1989, quando 
Kimberlé Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade. Portanto, definido como o 
cruzamento, convergência ou interação entre diferentes marcadores sociais, de modo a produzir 
formas específicas de opressão, tem em Davis e no Coletivo Combahee River suas precursoras, 
sempre atentas ao papel central do capitalismo como modo de organização (BOHRER, 2019). 
 
Mulheres, Raça e Classe 
 
Ao escrever Mulheres, Raça e Classe, publicado pela primeira vez em 1981, Davis 
dava continuidade ao trabalho que havia começado em seus primeiros textos, durante seus anos 
na prisão: recuperar tanto a opressão específica quanto as contribuições realizadas pelas 
mulheres negras, frequentemente ignoradas ou esquecidas, com prejuízo para as lutas 
progressistas nos Estados Unidos. Todavia, se no texto “Reflections on the Black Woman's 
Role in the community of Slaves”, Davis assumia como ponto de partida a relação entre o 
movimento negro pela libertação e o papel da mulher na comunidade negra, em Mulheres, Raça 
e Classe, ela se concentra na história do movimento de mulheres nos Estados Unidos e na 
relação entre esse movimento e as lutas abolicionistas e antirracistas. Esse deslocamento, 
contudo, manteve de seu trabalho anterior, como o próprio título do livro indica, a questão da 
inseparabilidade entre as experiências da opressão de sexo, raça e classe. A maior diferença 
entre os dois, então, é a qual movimento social Davis se dirige. De modo geral, em Mulheres, 
Raça e Classe, Davis levanta diversas objeções ao posicionamento do feminismo então 
hegemônico, composto em sua maioria por mulheres brancas de classe média, e oferece, em 
contraposição, uma outra abordagem da opressão das mulheres, não mais fundamentada 
unicamente pela diferença sexual. Como ela pontua, “em primeiro lugar, é importante 
reconhecer que o sexismo nunca pode ser visto isoladamente. Ele tem que ser colocado no 
contexto de suas interconexões com o racismo, e especialmente com a exploração de classe” 
(DAVIS, 1982, p. 6, ênfase nossa). 
 31 
Assim, Davis investiga materiais históricos e teóricos que, aliados à sua própria 
experiência como ativista e então membro do partido comunista, ajudassem-na a reescrever a 
narrativa sobre o movimento de mulheres a partir da experiência das mulheres negras e de 
outras “minorias étnicas”, que haviam sido, frequentemente, rejeitadas e apagadas. Para Davis, 
seu trabalho era uma forma de expor e combater a falta de conhecimento, predominante desde 
as lutas abolicionistas, relativo às contribuições feitas pelas mulheres afro-americanas e de 
outras “minorias étnicas”. Atenta seriamente às divisões, segmentações e hierarquizações dos 
movimentos sociais e políticos, Davis acredita que precisamos olhar para a história para 
entender melhor a situação presente e, nesse processo de recuperar o que foi negado, encontrar 
outras perspectivas para os impasses políticos atuais. 
Considerando a preocupação de Davis com os movimentos de mulheres ao longo 
de todo o livro, podemos também dizer que os dez anos separando os dois trabalhos de Davis 
provocaram um maior interesse pela especificidade da luta contra o sexismo. No entanto, ao 
investigar os fracassos do movimento feminista daquele momento em incorporar as pautas das 
mulheres negras, Davis busca as causas desse problema nos mesmos mitos e ideologias que 
prejudicavam o movimento negro por libertação, de modo que o primeiro capítulo de seu livro 
é quase um desdobramento de “Reflections...”. Não só isso, ele serve também como prisma 
para as análises que se desenvolverão em seguida, isto é, estabelece os parâmetros, do que será 
apresentado nos ensaios seguintes. 
Dessa forma, analisaremos, primeiramente, como as mesmas questões apresentadas 
no seu trabalho anterior permanecem relevantes, uma vez que, como Davis afirma, apesar do 
aumento de trabalhos sobre a escravidão a partir das vivências da comunidade escravizada, “a 
situação específica das mulheres escravas permanecia incompreendida” (DAVIS, 2016, p. 
15)18. Além disso, da comparação entre os dois textos, sublinharemos também onde há nuances 
e deslocamentos. Essa discussão é importante porque, ao olharmos para essas questões de modo 
a considerar sua importância para a teoria feminista, percebe-se de forma ainda mais aguçada 
como Davis desenvolve uma análise da interconexão dos sistemas de opressão ao investigar as 
condições materiais específicas das mulheres negras na sociedade estadunidense. Isso porque, 
 
18 No parágrafo seguinte, Davis cita alguns desses trabalhos: “Durante os anos 1970, o debate sobre a escravidão 
ressurgiu com vigor renovado. Eugene Genovese publicou A terra prometida. Também foram editados The Slave 
Community [A comunidade escrava], de John Blassingame, o malconcebido Time on the Cross [Tempo 
crucificado], de Robert Fogel e Stanley Engerman, e o monumental The Black Family in Slavery and Freedom [A 
família negra na escravidão e na liberdade] de Herbert Gutman. Em reação ao ressurgimento desse debate, Stanley 
Elkins decidiu que era hora de publicar uma edição ampliada de seu estudo Slavery [Escravidão], de 1959. Nessa 
onda de publicações, é evidente a ausência de um livro especificamente dedicado à questão das mulheres escravas” 
(DAVIS, 2016, p. 16). 
 32 
para ela, é fundamental, para desobstruir uma política de alianças revolucionária entre as 
mulheres brancas e as mulheres negras, desafiar o racismo interno ao movimento feminino. Por 
fim, mostraremos como essa análise se mostra ainda mais aguda quando contrastada com a 
agenda do movimento feminista branco contemporâneo à elaboração do livro. 
Se em “Reflections...” Davis buscava um retrato verdadeiro do papel da mulher 
durante a escravidão, como indicado já no título desse texto, no primeiro capítulo de Mulheres, 
Raça e Classe, Davis pretende, ao olhar para a situação das mulheres escravas, tornar manifesto 
o seu legado e projetar os parâmetros ali identificados para “uma nova condição da mulher". 
Joy James, ao escrever sobre Angela Davis, destaca um momento de sua autobiografia em que 
a autora evoca Janus e suas duas faces, voltadas uma para trás e outra para frente. A primeira, 
desconsolada, contempla o passado de aflição e violência da repressão dos negros nos Estados 
Unidos. A segunda, ávida e apreensiva, mira um futuro de luta pela liberação do povo negro 
que irradia desafio, mas também abriga a possibilidade da derrota (DAVIS, 2019, p. 115). 
Como diz James, Janus também representa para Davis a existência simultânea em mundos 
sociais até então aparentemente excludentes – o mundo da privação de direitos e da pobreza do 
povo negro e o mundo dos privilégios e da educação entre os brancos –, representando a sua 
posição dialética entre a teoria e a resistência na luta revolucionária (DAVIS, 1998, p. 1-2). Ao 
pensar em Mulheres, Raça e Classe, acrescentamos outro sentido a essa passagem: Janus 
também significa a encruzilhada a partir da qual Davis olha ao mesmo tempo para a história 
das mulheres negras nos Estados Unidos

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