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Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 87 Reflexões sobre o uso da categoria gêneroReflexões sobre o uso da categoria gêneroReflexões sobre o uso da categoria gêneroReflexões sobre o uso da categoria gêneroReflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasilnos estudos de História Medieval no Brasilnos estudos de História Medieval no Brasilnos estudos de História Medieval no Brasilnos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003)(1990-2003)(1990-2003)(1990-2003)(1990-2003) Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduaçâo em História Comparada (PPGHC) da UFRJ; Co-coordenadora do Programa de Estudos Medievais (PEM) da UFRJ; Pesquisadora do CNPq (www.ifes.ufrj.br/-frazao). Resumo: Neste artigo desejo verificar se, face ao crescimento dos estudos medievais no Brasil nos últimos anos, foram desenvolvidas investigações adotando a categoria gênero. Estas preocupa- ções surgiram no decorrer da pesquisa que venho realizando com o financiamento do CNPq, da qual tratarei de forma específica em outro ponto deste texto. Neste sentido, estou interessada em rastrear as regiões do país e o momento em que tais estudos foram realizados, se foram elaborados por pessoas isoladas ou por equipes, a natureza destes trabalhos (artigos, monografias, disserta- ções, teses, projetos de pesquisa etc), as concepções de gênero e os teóricos que tais materiais utilizam, analisando e discutindo os dados levantados. Palavras-Chave: Historiografia Brasileira, Concepções de Gênero, Medievalismo. Abstract: In this article I wish to verify if investigations in Brazil were developed in recent years, adopting the gender category due to the growth of the medieval studies. These concerns emerged during the research I am accomplishing with CNPq financing. I am interested to analyze and discuss the data, tracing the areas of the country and the moment in that such studies were accomplished, if they were elaborated by isolated people or by teams, as well as the nature of these works (goods, monographs, dissertations, theses, research projects etc), and the gender conceptions and the theoretical foundation of such materials. Keywords: Brazilian Historiography, Gender Conceptions, Medieval Period. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 88 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 É visível, nos últimos 13 anos, o desenvolvimento dos estudos medievais no Brasil.1 Até o fim da década de 90 haviam poucos doutores especializados em Ida- de Média atuando nas instituições de ensino superior no Brasil; eram raros os títulos sobre o medievo publi- cados por editoras brasileiras; não circulavam periódi- cos nacionais especializados exclusivamente no medie- valismo; as bibliotecas universitárias praticamente não possuíam em seus acervos periódicos e livros sobre temáticas medievais; não existia uma associação que agregasse, em nível nacional, os interessados no ensino e na pesquisa da Idade Média; núcleos de medievalistas locais e/ou regionais eram praticamente inexistentes.2 Este quadro começou a mudar no início dos anos 90, quando os estudos medievais começaram a ter maior visibilidade nos ambientes acadêmicos no Bra- sil. Em trabalho apresentado em 1991, na XI Reunião da Sociedade Brasileira de Estudos Medievais, Maria Sonsoles Guerras apontava dois fatores que, certamen- te, em muito estimularam o incremento do medievalis- mo nacional: os principais órgãos de fomento no Bra- sil, CNPq e CAPES, começavam a conceder Bolsas e Auxílios para os interessados em investigar sobre a Idade Média e diversas revistas acadêmicas abriam espaço para a publicação de artigos sobre o medievo.3 Assim, a despeito das muitas dificuldades, cresceu o número de estudiosos que nos últimos anos buscaram desenvolver projetos de caráter acadêmico sobre o período em questão. Segundo dados reunidos sob a coordenação do Prof. José Rivair Macedo4,de 1990 a 2002, 257 dissertações de mestrado, 71 teses de dou- torado e 5 teses de livre docência sobre temas referen- tes ao medievalismo foram redigidas e aprovadas em nosso país. Segundo informações publicadas pelo Jor- nal da Abrem em seu número 11, podemos con- tabilizar ainda mais 4 dissertações de mestrado e 6 teses de doutorado, apresentadas e aprovadas em di- versas universidades do país durante o primeiro se- mestre de 2003. 1 Considero como estudos medievais todos aqueles desenvolvidos nas diversas áreas do conhecimento, tais como História, Literatura, Filosofia, Linguística, Teo- logia, Arte, Música etc, e que analisam temas referentes a diversos aspectos do me- dievo. 2 Sobre os estudos medievais no Brasil desenvolvidos até o início da década de 90 ver GUERRAS MARTIN, M. S. A situação da pesquisa de História Geral no Brasil: História Medieval. In: WEST- PHALEN, C. M. (Org.). Reu- nião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 11, São Paulo, 1991. Anais... Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 1992. p. 13- 14; PEDRERO-SÁNCHEZ, M. G. Los estudios medievales en Brasil. Medievalismo, v. 4, n. 4, p. 223-228, 1994; MELLO, J. R. de A. O pesquisador em História Medieval e o públi- co brasileiro. In: RIBEIRO, M. E. de B. (Org.). Semana de Estudos Medievais, 2, Brasília, Outubro de 1994. Anais... Brasília: UNB, 1994. p. 43-46. 3 GUERRAS MARTIN, M. S. op. cit, p. 14. 4 MACEDO, J. R. (Org.). Os Estudos Medievais no Brasil. Ca- tálogo de dissertações e teses: Filo- sofia, História, Letras (1990- 2002). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p. 8. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 89 Examinando os dados reunidos por Macedo, é possível verificar que em muitos casos houve uma con- tinuidade na especialização na área de Idade Média, já que muitos dos que obtiveram o grau de mestre, pos- teriormente alcançaram o de doutor.5 Neste sentido, diferentemente do que ocorria no período anterior, há que destacar que se encontram atuando no ensino e na pesquisa de temas medievais, ao menos nas uni- versidades públicas de todo o Brasil, professores espe- cialistas, em sua maioria já doutores ou doutorandos, que, efetivamente, obtiveram a sua formação acadêmi- ca desenvolvendo investigações nesta área. Não só cresceu o número de especialistas e interes- sados nos estudos medievais no Brasil, como se ampli- aram, ou foram criados, espaços para o intercâmbio, o diálogo e a divulgação das pesquisas. Neste sentido, destaca-se a fundação, em 1996, da Abrem, Associação Brasileira de Estudos Medievais, que reúne hoje mais de 400 medievalistas nacionais e estrangeiros das mais di- versas áreas do conhecimento.6 A Abrem promove, bi-anualmente, os Encontros Internacionais de Estu- dos Medievais (EIEM),7 organizados em parceria com as universidades que sediam o evento; coordena pro- jetos coletivos de pesquisa, como o levantamento das fontes medievais escritas e impressas presentes nas bi- bliotecas das cidades mais importantes do país8 e das dissertações e teses defendidas no Brasil;9 estimula o intercâmbio com associações internacionais também dedicadas a temas medievais; apóia eventos realizados por núcleos locais em todo o país; é responsável pela publicação semestral, desde 1998, do Jornal da Abrem, um boletim informativo sobre as atividades da associ- ação e de tudo o que é desenvolvido no Brasil na área dos estudos medievais, e, desde 1999, da revista anual Signum, o primeiro periódico nacional a dedicar-se exclusivamente ao medievalismo. Outros indicadores também apontam para o desen- volvimento do medievalismo no Brasil: a organização de centros locais e/ou regionais de ensino, pesquisa e 5 Há que ressaltar também que muitos medievalistas bra- sileiros obtiveram o grau de doutor no exterior. Para só citar alguns exemplos de pes- quisadores da área de Histó- ria: Prof.ª Dr.ª Maria Cristi- na CorreiaLeandro Perei- ra (UFES), Prof.ª Dr.ª Fáti- ma Regina Fernandes (UFPR), Prof. Dr. Renan Friguetto (UFPR) e Prof. Dr. Marcelo Candido da Silva (USP), Prof.ª Dr.ª Maria Filomena da Costa Coelho (UPIS-DF). 6 Segundo dados apresenta- dos na assembléia geral da Associação Brasileira de Estudos Medievais (Abrem) durante o V Encontro In- ternacional de Estudos Me- dievais, cerca de 410 pessoas já se associaram a Abrem. 7 Os trabalhos apresentados durante os EIEM e selecio- nados são publicadas nas atas do evento. Cf. as Atas do I, III e IV EIEM. A única exceção foram as atas do II, quando só as conferências foram publicadas. 8 MONGELLI, Lênia Márcia (Org.). Fontes Primárias da Ida- de Média. Séculos V-XV. ABREM Associação Brasileira de Estu- dos Medievais. São Paulo: Íbis, 1999. 2 v. 9 MACEDO, J. R. (Org.). Os es- tudos Medievais no Brasil..., op. cit. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 90 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 extensão, tais como na UFSC, UFPR, UEL, UEM, PUCRS, UFRGS, UFBA, UNICAP, UFPA, UNB,UFG, UFES, USP, UNESP, UNICAMP, PUCMinas, UERJ, UFF e UFRJ;10 multiplicaram-se as publicações, tanto de autores nacionais quanto traduções, de trabalhos que tratam sobre aspectos diversos do medievo, incl- uindo as edições críticas de fontes;11 com a populari- zação da internet no Brasil, diversos núcleos de estudo e pesquisa em temas medievais construíram homepages, contendo materiais disponíveis on line,12 e encontra-se ativa, desde 1999, uma lista de discussão de caráter aca- dêmico coordenada pelo Programa de Estudos Me- dievais (Pem) da UFRJ; a cada ano são organizados, em todo o país, eventos de caráter científico ou ativida- des de extensão sobre temáticas medievais, tais como o Ciclo A tradição Monástica e o Franciscanismo, realizado de 7 a 11 de outubro de 2002 na UFRJ, evento promo- vido pelo Pem e o Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, ou o Curso de Extensão As reminiscências medievais no Brasil Colonial, realizado de 13 a 15 de maio de 2003 na Biblioteca Pública do Estado do Rio Gran- de do Sul, para só citar dois exemplos.13 Contudo, a despeito do crescimento dos estudos medievais no país, ainda há muito caminho a ser per- corrido. Além dos problemas de ordem mais geral, que afetam outras áreas do conhecimento, tais como a escassez de materiais atualizados e específicos nas bibliotecas universitárias, a ausência de concursos públi- cos que reverte na falta de professores nas IES, os constantes cortes de auxílios e de bolsas de estudo, há muitos outros problemas de caráter específico. Para citar apenas alguns: as temáticas medievais não são valorizadas no ensino fundamental e médio, o que não só leva a um desconhecimento quase total do período como também não estimula o interesse pelos estudos medievais ainda na infância ou na adolescência; a gran- de maioria das escolas não inclui, em sua matriz cur- ricular, disciplinas como o latim, não propiciando aos alunos uma formação básica fundamental para um 10 Sobre os diversos núcleos lo- cais/regionais dedicados ao medievalismo no Brasil ver o editorial do Jornal da Abrem número 10, publicado em 2002. 11 Para só citar alguns exem- plos recentes: OLIVEIRA, T. (Org.). Luzes sobre a Idade Mé- dia. Maringá: Editora da Uni- versidade, 2002; FERNAN- DES, F. R. Sociedade e poder na Baixa Idade Média portuguesa. Dos Azevedos aos Vilhena: as famílias da nobreza medieval por- tuguesa. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2003; PE- REIRA, R. H. S. Avicena. A via- gem da alma. São Paulo: Pers- pectiva-Fapesp, 2002; LAU- AND, J. Em diálogos com Tomás de Aquino. São Paulo: Mandru- vá, 2002; LE GOFF, J., SCHMITT, J-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/Edusc, 2002. V. 2; SIL- VA, A. C. L. F. et. al. A Vida de Santa Maria Madalena. Rio de Janeiro: Programa de Estu- dos Medievais, 2002; MON- GELLI, L. M., VIEIRA, Y. F. A estética medieval. Cotia: Íbis, 2003; COSTA, R. (Org.). Teste- munhos da História. Vitória: E- ditora da UFES, 2003; FRAN- CO JÚNIOR, H. Legenda Áu- rea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 12 Para só citar alguns sites: w w w. p e m . i f c s . u f r j . b r ; http://jean_lauand.tripod. com; www.hottopos.com; w w w. a b re m . h e . c o m . b r ; w w w. b r a t h a i r . c j b . n e t ; w w w. r i c a rdocos t a . com; w w w. g e o c i t i e s . c o m / pjchronos; www2.fe.usp.br/ ~cemoroc, www. revistami rabilia.com. 13 Para informações sobre os principais eventos locais e regionais organizados no país desde 1998 ver os diver- Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 91 posterior aprofundamento dos estudos sobre o me- dievo em diversas áreas; salvo no caso dos cursos de Graduação em História, em que há pelo menos uma disciplina obrigatória dedicada à Idade Média, os estu- dos medievais concentram-se nos programas de pós- graduação, com raras exceções.14 E mesmo na pós- graduação ainda representam uma minoria. Segundo dados apresentados por Lênia Márcia Mongelli no III EIEM, referentes ao Programa de Pós-graduação em História Social da USP, e que acredito serem uma importante amostragem do que ocorre em outras uni- versidades e continuam retratando a situação atual, até 1997 só 2,5% do total de trabalhos, entre dissertações e teses defendidas, eram sobre temas medievais.15 Destaco ainda a desigual distribuição dos centros dedicados aos estudos medievais pelo território nacio- nal; estes se localizam nos principais centros urbanos do Brasil, com realce para as regiões sudeste e sul, e encontram-se em universidades públicas, sobretudo federais, com exceção das universidades católicas. A desigualdade também faz-se presente no tocante às áreas de conhecimento em que o medievalismo é estudado. Há um claro predomínio dos estudos de li- teratura e lingüística, seguidos pelos históricos.16 E quan- to às temáticas de estudo e abordagens desenvolvidas nesses trabalhos? Todos os temas têm sido trabalhados ou há alguns predominantes e outros esquecidos? Neste artigo, discuto um pouco esta questão. Devi- do à minha formação acadêmica em história, vou me deter no estudo dos trabalhos desenvolvidos nesta área do conhecimento. Desejo verificar se, face ao cresci- mento dos estudos medievais no Brasil nos últimos anos, foram desenvolvidas investigações adotando a categoria gênero.17 Estas preocupações surgiram no decorrer da pesquisa que venho realizando com o fi- nanciamento do CNPq, da qual tratarei de forma espe- cífica em outro ponto deste texto. Neste sentido, estou interessada em rastrear as regiões do país e o momento em que tais estudos foram realizados, se foram elabo- sos números já publicados do Jornal da Abrem. 14 Sobre estas questões ver LEÃO, A. V. Os estudos me- dievais na atualidade brasi- leira: região sudeste e RI- BEIRO, M. E. de B. Os estu- dos medievais no Distrito Federal publicados em MA- LEVAL, M. A. T. (Org.). En- contro Internacional de Es- tudos Medievais, 3, 7 a 9 de julho de 1999, UERJ. Atas... Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001. p. 138-145, 155-158. 15 MONGELLI, M. L. de M. A quem se destinam os estu- dos medievais no Brasil? In: MALEVAL, M. A. T. (Org.). Encontro Internacional de Estudos Medievais, 3, 7 a 9 de julho de 1999, UERJ. Atas... Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001. p. 146-154. 16 Os dados presentes no Catá- logo de dissertações e teses, já men- cionado, apresentam uma importante amostragem des- sa desigualdade. Dos 333 tra- balhos listados, 147 são da área de Língua e Literatura (44%); 121 de História (36, 5 %); 60 de Filosofia (18 %); 1 de Mú- sica (0,3 %); 2 de Direito (0,6 %) e 2 de Teologia (0,6%). MA- CEDO, J. R. (Org.). Os estudos Medievais no Brasil..., op. cit. p. 9. 17 Também é inquestionável a expansão dos estudos de gênero no Brasil nos últi- mos anos: crescem os cen- tros de pesquisa, multipli- cam-se as publicações, são organizados eventos. Para um balanço referenteaos es- tudos de gênero e a história ver MATOS, M. I. S. de. Por uma história da Mulher. Bauru: Edusc, 2000. Faz-se impor- tante ressaltar que nenhum título sobre História Medie- val é citado pela autora. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 92 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 rados por pessoas isoladas ou por equipes, a natureza destes trabalhos (artigos, monografias, dissertações, teses, projetos de pesquisa etc), as concepções de gêne- ro e os teóricos que tais materiais utilizam, analisando e discutindo os dados levantados. Faz-se importante ressaltar que é grande o número de textos de História Medieval publicados nos últimos anos no exterior e que empregam a categoria gênero.18 Explorando documentos de variadas naturezas e tra- tando de aspectos tão diferenciados como santidade, vida religiosa, cruzadas, pobreza, reprodução, travestismo, alcoolismo, sexualidade, política etc, estes estudos discutem como tais fenômenos perpassam as construções culturais de gênero em diferentes momen- tos e espaços. Mais do que obras de síntese, os traba- lhos mergulham em reflexões sobre temas particula- res, formando grandes coletâneas, cujos textos foram redigidos, em sua maioria, por historiadores(as) ligados a centros de estudo anglo-saxões19 e, portanto, tratam preferencialmente de temáticas relacionadas à Inglaterra medieval.20 Os medievalistas brasileiros têm sido influ- enciados por tais trabalhos? Antes de apresentar e discutir a produção dos me- dievalistas brasileiros que elaboram suas pesquisas em História utilizando a categoria gênero, faz-se importante destacar o que entendo por estudos de gênero, visto que não há consenso entre os especialistas sobre tal ponto.21 Seguindo as propostas teóricas de Joan Scott e Jane Flax,22 considero estudos de gênero aqueles que partem de paradigmas pós-modernistas e estão atentos à análi- se de como, em diversas sociedades e momentos, um dado grupo ou indivíduo dá significação ao feminino e ao masculino. São estudos qualitativos que elegem o particular, sem buscar leis causais e universais para a explicação das diferenças sexuais, tratando homem- mulher ou feminino-masculino não como categorias fixas, mas constantemente mutáveis. A categoria gêne- ro, portanto, rejeita o determinismo biológico e sublinha 18 Utilizando como palavra-cha- ve o termo gênero e delimi- tando os anos de 2003 a 2001, realizamos uma pesquisa no site Feminae: Medieval Women and Gender Index (http://www. ha verford.edu/library/referen ce/mschaus/mfi/mfi.html), um banco de dados on line, organizado em 1996, que sele- ciona e reúne dados proveni- entes de artigos, resenhas de livros, capítulos de livros, te- ses e ensaios dos trabalhos considerados mais significa- tivos sobre as mulheres e gê- nero publicados em todo o mundo e em várias línguas. Foram listados 817 títulos, entre resenhas, obras coleti- vas, artigos em periódicos, e teses. Faz-se importante res- saltar que nenhuma referên- cia de trabalho elaborado em português figurou como res- posta à pesquisa. 19 Os medievalistas franceses e- laboram, sobretudo, trabalhos de História da Mulher, como um campo da História Social ou da História do Imaginário. Um claro exemplo desta ten- dência pode ser verificada na obra organizada por J. C. Schmitt e O. G. Oaxle, Les tendances actu- elles de l’histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne, atas refe- rentes aos colóquios de Sèvres (1997) e de Gottingen (1998) publicada em 2002. Dentre os temas selecionados para deba- te encontra-se “Pour une his- toire des femmes”. O termo gênero não figura. 20 Para só citar alguns trabalhos recentes: BENNETT, Judith M. England: Women and Gen- der. In: RIGBY, S. H. (Ed.) A Companion to Britain in the Later Middle Ages. Londres: Blackwell Publishing, 2003. p. 87-106; CLARK, Anne L. The priest- hood of the Virgin Mary: gen- Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 93 que a distinção sexual não é natural, universal ou invariante, a despeito das diferenças anatômicas entre machos e fêmeas na espécie humana, mas constrói-se discursivamente de forma inter-relacional, pressupon- do relações hierárquicas de dominação. Os estudos de gênero configuram-se como um campo da História Cultural e detém-se em discutir como uma dada visão de gênero construiu-se e impôs- se discursivamente num determinado grupo num certo momento, apontando para a sua historicidade, descons- truindo-a. Não são sinônimos da História das Mulheres nem da História Social das relações entre os sexos e visam, mais do que descrever e interpretar, analisar e explicar as construções de gênero, que implicam na configuração de instituições, representações e práticas pelas quais os grupos elaboram o masculino e o femi- nino, legitimando-as; em relações de dominação, em símbolos, em normas, em papéis sociais e em identida- des subjetivas e coletivas. Gênero, dentro desta perspectiva teórica, não é si- nônimo de sexo.23 É uma categoria que denomina a construção cultural da diferença sexual que está presente em todos os aspectos da experiência humana, constitu- indo-os parcialmente, e que, portanto, pode ser relaciona- do a outras categorias, como etnia, idade, religião etc. Esta reflexão sobre o uso da categoria gênero na produção histórica sobre o medievo no Brasil funda- menta-se, prioritariamente, em dados qualitativos. Não encontrei uma base de dados que contenha o registro de todas as produções bibliográficas em História da Idade Média elaboradas no Brasil de 1990 até 2003.24 Para as reflexões apresentadas aqui, utilizei um material que se encontra disperso, mas que representa uma amostragem significativa do que tem sido produzido pelos historiadores brasileiros sobre o medievo. Desta forma, consultei: o Jornal da Abrem, a Revista Signum e as Atas de eventos cuja temática referia-se unicamente ao medievo, que consideramos as principais publica- ções nacionais especializadas sobre o tema; informa- der trouble in the Twelth Cen- tury. Journal of Feminist Studies in Religion, v. 18, n. 1, p. 5-24, 2002; RICHES Samantha J. E., SALIH, Sarah (Ed.). Gender and Holiness: Men, Women, and Saints in Late Medieval Europe. Rou- tledge, 2002; RASMUSSEN, Ann Marie. Gendered Know- ledge and Eavesdropping in the Late-Medieval “Minnere- de”. Speculum, v. 77, n. 4, p. 1168- 1194, Oct./ 2002; MCCLA- NAN; Anne L., ENCARNA- CIÓN, Karen Rosoff (Ed.) The Material Culture of Sex, Procrea- tion, and Marriage in Premodern Europe. Nova York: Palgrave, 2002; SALIH, Sarah. Queering “Sponsalia Christi”: Virginity, Gender, and Desire in the Early Middle English Ancho- ritic Texts. New Medieval Lite- ratures, n. 5, p. 155-175, 2002; ASHLEY, Kathleen and CLARK, Robert L. A. (Ed.) Medieval Conduct. Minessota: University of Min- nesota Press, 2001; LAMBERT, Sarah, EDGINGTON, Susan B. (Ed.) Gendering the Crusades. University of Wales Press, 2001; CLARK, Elizabeth A. Woman, Gender, and the Stu- dy History. Church History, v. 70, n. 3, p. 395-426, 2001; MARTIN, A. L. Alcohol, Sex, and Gender in Late Medieval and Early Modern Europe. Nova York: Pal- grave, 2001; FARMER, S. Sur- viving poverty in medieval Pa- ris. Gender, Ideology, and the daily lives of the poor. Ithaca: Cornell University Press, 2002. 21 VARIKAS, E. Gênero, experi- ência e subjetividade: a pro- pósito do desacordo Tilly- Scott. Cadernos Pagu, n. 3, p. 63- 84, 1994; POMATA, G. His- toire des Femmes et “Gender History” (note critique). Anna- les ESC, n. 4, p. 1019-1026, ju- lho-agosto de 1993; TILLY, L. A. Gênero, História das Mu- Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 94 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 ções variadas disponíveis na internet; dados enviados através das listas de discussão mantidas pelo Programa de Estudos Medievais da UFRJ e pela Anpuh;25 publi- cações sobre estudos de gênero; e o já citadocatálogo de dissertações e teses. Em alguns casos, localizei so- mente a referência da publicação, sem ter tido acesso direto aos textos.26 Só reuni dados quantitativos seguros sobre as dis- sertações e teses produzidas no período, reunindo os dados presentes no catálogo já citado, a Plataforma Lattes e o Jornal da Abrem. Estas informações, por si só, podem ser consideradas uma importante amos- tragem da produção em História Medieval no Brasil nos últimos anos e é por elas que vamos começar. Encontrei dados referentes a 125 dissertações e teses apresentadas e defendidas em Programas de Pós- graduação em História do país entre 1990 até o primei- ro semestre de 2003. Destas, somente 4 empregam a categoria gênero, perfazendo somente 3,2% do total de trabalhos. A seguir, vou apresentar uma síntese de cada um desses trabalhos, por ordem cronológica das defesas. Segundo os dados encontrados, a Prof.ª Dr.ª Dulce Oliveira Amarante dos Santos, da Universidade Fede- ral de Goiás, é a pioneira no uso da categoria gênero em pesquisa de História Medieval no Brasil. Em um artigo publicado nas Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais, Imagens de mulheres nos reinos ibé- ricos de Leão, Castela e Portugal (1250-1350), afirma que sua pesquisa “insere-se num projeto mais amplo de composição de uma história global das mulheres e das relações de gênero”, pautando-se nas reflexões de Joan Scott, presente em seu artigo, já clássico, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, citado em nota.27 Entretanto, sua abordagem do gênero, em certos as- pectos, aproxima-se da Sociologia.28 Como informa neste artigo, em sua pesquisa, a referida professora analisaria documentos de naturezas diversas, como o Fuero real, as Siete Partidas, o penitencial lheres e História Social. Cader- nos Pagu, n. 3, p. 29-62, 1994; DIERKS, K. Men’s History, Gender history, or cultural History? Gender & History, v. 14, n. 1, p. 147-151, 2002. 22 SCOTT, W. J. Prefácio a Gen- der and Politics of History. Cadernos Pagu, n. 3, p. 11-27, 1994; ___. El género: una ca- tegoría útil para el análisis his- tórico. In: LAMAS, M. (Org.). El género: la construccion cultural de la diferencia sexual. Cidade do México: PUEG, 1996. FLAX, J. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, H. B. (Org.) Modernismo e Política. Rio de Ja- neiro: Rocco, 1991, p. 217-50. 23 Sobre as distintas constru- ções culturais sobre sexo e gênero ver LAQUEUR, T. In- ventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de Janei- ro: Relume-Dumará, 2001 e BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identida- de. Rio de Janeiro: Civiliza- ção Brasileira, 2003. 24 Há um levantamento sendo feito pelo Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade para o Inter- national Medieval Bibliography mantido para a University of Leedes, cuja consulta, porém, é restrita aos associados. Tam- bém consultamos a Platafor- ma Lattes, mantida pelo CNPq. Tomando a Idade Média co- mo palavra chave e limitando- nos à área de História e ao pe- ríodo posterior a 1990, chega- mos a 1230 entradas, entre ar- tigos completos em periódi- cos, resumos, trabalhos com- pletos em anais, participações em congressos, como pales- trante ou ouvinte, bancas, arti- gos em revistas e jornais de grande circulação etc.. Contu- do, muitas entradas figuram mais de uma vez, são conta- Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 95 de Martim Perez, o corpus satírico delimitado por Manuel Lapa. Sua investigação dividir-se-ia em duas etapas. Na primeira, faria um estudo do imaginário masculino sobre as mulheres. Em um segundo mo- mento, sua preocupação recairia na delimitação sexual dos campos de trabalho masculino e feminino. Como resultados desta pesquisa, a autora publi- cou alguns trabalhos,29 além de concluir a sua própria tese, em 1997, O corpo dos pecados: representações e práticas sócio-culturais femininas nos reinos ibéricos de Leão, Castela e Portugal (1250-1350), que foi orientada pelo Prof. Dr. Victor Deodato Silva e desenvolvida junto ao Pro- grama de Pós-graduação em História Social da USP. Na tese, segundo o Catálogo de dissertações e teses,30 são estudados diversos elementos que referendaram a construção de representações corporais masculinas e femininas, bem como dos pecados do corpo, por meio da análise de textos eclesiásticos de caráter mo- delador. Nos últimos anos, a professora Dulce tem explora- do novos objetos e fontes. Contudo, as suas preocupa- ções relacionadas às mulheres, ao imaginário masculino sobre o feminino e ao corpo permanecem. Neste sen- tido, em seu trabalho Egéria a peregrina numa carta de Valério de Bierzo, ressalta, dentre outros elementos, a contraposição pautada no gênero realizada por este autor eclesiástico entre o corpo frágil feminino e o corpo vigoroso masculino.31 Faz-se importante ainda ressaltar que esta pesqui- sadora participa do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq Historia, Política e Cultura, o único em que uma das linhas de pesquisa é Gênero e Cultura na Idade Média Ocidental. Em 1999, Milton José Zamboni obteve o grau de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em História da ciência da PUCSP, ao ter sua dissertação, O Fuero de Cuenca: uma interpretação das relações de gênero em fins do século XII, orientada pela Prof.ª Dr.ª Ana Maria Alfonso-Goldfarb. Infelizmente, só tivemos acesso a bilizados como trabalhos his- toriográficos aqueles proveni- entes de outras áreas, em espe- cial literatura e filosofia, mui- tos dados foram informados pelos pesquisadores de forma incorreta ou incompleta. 25 Quero agradecer aos colegas Dulce O. Amarante dos San- tos, José Rivair de Macedo, Ricardo da Costa, Valéria Fer- nandes da Silva, Carolina Coe- lho Fortes, que gentilmente enviaram dados para que eu pudesse utilizar neste artigo. 26 Refiro-me especificamente aos trabalhos SCHWEINBER- GER, Maria Luisa Tomasi. A mulher entre o individual e o coletivo no final da Idade Média. Varia Scientia, Cascavel, v.1, n.1, p.139-146, 2001; SAN- TOS, G. S. A Santa e o Lavrador: gênero e poder na Baixa Idade Média portuguesa (1282-1325). Acervo: Revista do Arquivo Nacio- nal, Rio de Janeiro, v.9, n.01- 02, p. 69-84, 1997; ___. A Rai- nha e os Pares do Rei. Arrabal- des Cadernos de História, Niterói, v. 1, p. 79-89, 1996. Nossas ten- tativas de contatar as autoras foram infrutíferas até o mo- mento de finalizarmos este artigo. 27 SANTOS, Dulce O. Amaran- te dos. Imagens de mulheres nos reinos ibéricos de Leão, Castela e Portugal (1250-1350). In: En- contro Internacional de Es- tudos Medievais, 1, 4 a 6 de julho. Atas...São Paulo: USP- UNICAMP- UNESP, 1995. p. 157-160. 28 Verificando o currículo da prof.ª Dr.ª Dulce O. Amarante dos Santos, disponível na Pla- taforma Lattes, nota-se, através das palavras-chaves que acom- panham a sua produção acadê- mica, uma oscilação teórica em sua produção entre uma história de gênero de matriz Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 96 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 um resumo do trabalho. Na dissertação, Zamboni analisou as relações de gênero e o controle do corpo a partir da análise do Fuero de Cuenca, texto jurídico ibérico do século XII. Como não tivemos acesso ao texto completo nem conseguimos contatar o autor, não sabemos que au- tores teóricos fundamentaram suas reflexões. Em fevereiro de 2001, a Prof.ª Ms. Valéria Fer- nandes da Silva teve sua dissertação de mestrado, Rela- ções de gênero no processo de construção do Mosteiro de São Damião, por mim orientada, apresentada e aprovada no Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ. Acompanhando a professora Valéria desde a graduação, juntas aceitamos o desafio de empregar a categoria gênero em seu trabalho de mestrado. Neste sentido, devo a esta minha ex-ori- entanda o despertar do meu interesse pelos estudos de gênero. Em seu trabalho, desenvolvido junto ao Programa de EstudosMedievais da UFRJ, Valéria F Silva voltou- se para os primórdios da Segunda Ordem Franciscana a partir do estudo das normas que o papado impôs à primeira comunidade de seguidoras de Francisco que se fixaram na Igreja de São Damião, em Assis, desde o início da comunidade até alguns anos após a morte de Clara. Ela analisa, em perspectiva comparativa, as regras beneditina e franciscana e as formas de vida32 de Hugolino, de Inocêncio IV e de Clara de Assis, empregando a categoria gênero tal como a define Joan Scott. Segundo destaca a autora, a tensão entre estes do- cumentos é evidente, já que as regras, escritas origina- riamente para grupos de homens, apresentam normas que se chocam com as adaptações presentes nas for- mas de vida redigidas especificamente para as mulheres e que respondiam a necessidades históricas imediatas. Valéria F. Silva conclui que na primeira metade do século XIII foram estabelecidas interdições compor- tamentais diferenciadas para os seguidores de Francisco sociológica e outra de caráter mais filosófico e linguístico, o que é muito frequente entre os que se dedicam ao estudo de gênero em todo o mundo. Esta questão, inclusive, tem sido tema de diversos artigos, como os citados na nota 20. 29 Dentre outros, O corpo dos pecados: as representações fe- mininas nos reinos ibéricos. Textos de História. Brasília, v. 9, n. 1/2, p. 13-30, 2001; Outros olhares sobre a jograria ibérica urbana. História Revista. Goiâ- nia, v. 5, n. 1/2, p.71-88, 2000; Práticas mágicas nos reinos ibéricos medievais. Estudos de História. Franca-SP, v. 6, n. 2, p. 11-22, 1999. 30 Op. cit., p. 120. 31 SANTOS, D. O. A. dos. Egéria a peregrina numa carta de Va- lerio de Bierzo. In: MALE- VAL, Maria do Amparo Tava- res (Org.). Encontro Interna- cional de Estudos Medievais, 3, Rio de Janeiro, 7 a 9 de ju- lho de 1999. Anais... Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001. p. 566-569. 32 A diferença entre regras e formas de vida é um aspecto destacado na dissertação da professora Valéria F. Silva. As regras são textos reconhecidos oficialmente pela Igreja e que apresentam as normas de co- mo um determinado grupo de pessoas, dedicados a vida religiosa, devem viver. Elas também fornecem base jurí- dica para o reconhecimento formal deste grupo. As for- mas de vida também são tex- tos de caráter jurídico, exigido o reconhecimento oficial da Igreja, que porém pode ser concedido por um bispo ou cardeal Possui caráter comple- mentar, funcionando como uma espécie de complemen- to à regra, adaptando-a a situa- Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 97 com vistas ao controle da prática religiosa, criando um discurso de gênero que buscava integrar homens e mulheres em um sistema de regras construídas, assi- métricas e hierarquizadas.33 Atualmente ela cursa o doutorado no Programa de Pós-graduação em História da UNB, pesquisando sobre a orientação da Prof.ª Dr.ª Tânia Navarro Swain. Como o título provisório de sua pesquisa revela, A Maternidade nos Escritos Franciscanos do Século XIII – Uma Abordagem de Gênero, continua a refletir sobre o me- dievo empregando a categoria gênero. Ainda em está- gio inicial, a pesquisa tem como objetivo estudar o processo de construção e disseminação de um modelo ideal de maternidade, e por extensão de um feminino, através dos textos hagiográficos, em especial aqueles produzidos no seio da Ordem Franciscana durante o século XIII. Em março de 2003, a dissertação de mestrado Os atributos masculinos das santas na Legenda Áurea: os casos de Maria e Madalena, redigida pela Prof.ª Ms. Carolina Coe- lho Fortes sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Leila Rodri- gues da Silva, foi apresentada e aprovada no Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ. Como esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ, pude acompanhá-la sistematicamente. Em sua dissertação, Carolina Fortes analisou a obra Legenda Áurea de Tiago de Vorágine, frade dominicano do século XIII. Seu objetivo era discutir como este autor caracterizou as santas e santos em sua obra. Para tanto, estudou as vidas de dois homens, Domingos e Vicente, para depreender seu perfil de santidade e contrapô-lo ao das santas Madalena e Maria, conside- radas pela autora como representativas dos modelos do feminino no cristianismo. A autora defendeu que em sua caracterização da santidade feminina, Tiago acabou por masculinizar as santas, ou seja, atribuiu a elas traços considerados mas- culinos na sociedade medieval ocidental, ainda que as ções específicas ou comple- mentando-as nos casos em que aquela é omissa. 33 Como etapas do desenvolvi- mento desta pesquisa ou seus desdobramentos, a pro- fessora Valéria F. Silva publi- cou Gênero e discurso: descons- truindo as fontes do primeiro século francicano. In: Tecendo Saberes. Rio de Janeiro: CFCH-UFRJ, 2000 (CD-ROM); No limiar da exclusão: das relações entre damianitas e o papado (1215- 1223). In: MALEVAL, M. A. T. (Org.). Encontro Interna- cional de Estudos Medievais, 3, 7 a 9 de julho de 1999. Anais... Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001. p. 609-613; Sa- ber e gênero: discutindo o lugar do “saber intelectual” para os fran- ciscanos nos escritos de Tomás de Celano. In: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da, SILVA, Leila Rodrigues da (Org.) Semana de Estudos Medievais, 4, 14 a 18 de maio de 2001. Rio de Janeiro: Pro- grama de Estudos Medievais, 2001. p. 304-309; O poder da fala e a imposição do silêncio: exer- cício da religiosidade laica e restri- ções de gênero no século XIII, em co-autoria com o Prof. Ms. Marcelo Pereira Lima, In: COSTA, S., SILVA, A. C. L. F., SILVA, L. R. A tradição monásti- ca e o franciscanismo. Rio de Ja- neiro: Programa de Estudos Medievais - Instituto Teológi- co Franciscano, 2003, p. 153- 161; Gênero e Hagiografia: Clara de Assis e a Construção de um novo modelo de santidade feminina no século XIII. In: Seminário Nacional Mulher e Literatu- ra, 9, 22, 23 e 24 de agosto de 2001. Atas... Belo Horizonte: UFMG, 2002. CD-ROM. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 98 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 tenha mantido com várias de suas características femi- ninas. A autora concluiu que o padrão de santidade apresentado pelo hagiógrafo dominicano pressupunha uma valorização dos elementos considerados mascu- linos naquela sociedade, que foram alçados à esfera de perfeição. Assim, o único meio das mulheres serem reconhecidas por sua santidade seria negando os atri- butos considerados como naturalmente femininos naquela sociedade e incorporando, à sua conduta, os masculinos. Há que ressaltar que, em sua introdução, fica clara a sua cautela em empregar a categoria gênero, seguin- do as propostas teóricas de Joan Scott. Nesse sentido, questionou: “é possível aplicar o conceito gênero ao período medieval, já que a quase totalidade das obras escritas o foram por homens?” A autora saiu deste impasse apontando que estudar gênero em perspetiva histórica, sobretudo em um período em que a docu- mentação é escassa e em sua grande maioria de auto- ria de homens, não significa que o pesquisador tenha que contemplar, necessariamente, tanto a visão da mu- lher quanto a do homem sobre um determinado assun- to, mas comparando perspectivas diferenciadas sobre os gêneros. No caso, vidas de santos e de santas.34 Além das dissertações e teses apresentadas, destaco o desenvolvimento de dois projetos de pesquisa. O primeiro, A ginecofobia medieval: mulher, sexualidade e relações de gênero nos contos dos séculos XIII e XIV, realizado entre março de 1997 a fevereiro de 1999, pelo Prof. Dr. José Rivair Macedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o apoio financeiro do CNPq através de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa. O objetivo da pesquisa era analisar a forma como as relações entre homens e mulheres são representados nos fabliaux, nos contos narrativos cômicos dos sécu- los XIII e XIV,dando destaque à sexualidade feminina e ao tratamento dado ao adultério. Segundo informações remetidas pelo pesquisador, como principais resultados desta investigação já foram 34 Enquanto realizava sua dis- sertação de mestrado, Caro- lina Coelho Fortes teve seu texto, O corpo e o sagrado, publicado. Nele, a autora dis- cute como, durante o medie- vo, os homens e mulheres utilizavam seu corpo de for- ma diferenciada na busca pe- lo sagrado. Cf. In: Jornada Científica do CMS Waldyr Franco, 3, 22 a 26 de outubro de 2000, Rio de Janeiro. Atas das 3ª e 4ª Jornadas Científicas do CMS Waldyr Franco. Rio de Ja- neiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - Secretaria Municipal de Saúde, Centro de Estudos do CMS Waldyr Franco, 2002. (CD-ROM) Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 99 publicados dois trabalhos e um terceiro está no prelo.35 O artigo A face das filhas de Eva: os cuidados com a aparên- cia num manual de beleza do século XIII,36 analisa o manual de beleza Ornatus mulierum, datado do século XIII. A partir desse documento, que apresenta diversas receitas de beleza, realizando uma verdadeira confluência entre os saberes circulantes no período, tanto formais como populares, estes últimos dominados, sobretudo, pelas mulheres, discute-se a visão feminina sobre seu próprio corpo. Neste trabalho a categoria gênero não é empre- gada e não é feita uma análise relacional ou compara- tiva contrapondo a visão de homens e mulheres quanto aos seus corpos. Sua abordagem, portanto, aproxima- se da história das mulheres. No texto Transgressão conjugal e mutilação sexual nos fabliaux do Século XIII,37 a partir da análise do conto Des treces, o autor traça considerações sobre as relações de gênero no casamento, discutindo as diferentes res- postas sociais na punição dos adúlteros, realçando o caráter conflituoso, violento e desigual destas relações. Apesar de usar o termo gênero como sinônimo de sexo e não citar, no corpo do texto ou na bibliografia final, autores teóricos que aplicam tal categoria, o autor analisa uma obra literária, aponta para as relações hierarquizadas de gênero e demonstra como, na socie- dade ocidental em fins da Idade Média, as diferenças culturais entre os sexos estavam bem marcadas, mas também haviam pessoas que transgrediam as regras de gênero hegemônicas. O segundo projeto de pesquisa que desejo apresen- tar, Santidade e Gênero na hagiografia mediterrânica do século XIII: um estudo comparativo, é de minha autoria. Desde 1998, em função da decisão de orientar a pesquisa de mestrado desenvolvida por Valéria Fernandes da Silva, como já assinalado, comecei a estudar a categoria gêne- ro.38 Só a partir de 2001 incorporei tal conceito como uma das diretrizes teóricas de minhas pesquisas indi- viduais. Assim, encaminhei para o CNPq o projeto de pesquisa citado, sendo agraciada com uma bolsa PQ 35 Amor e adultério no Tristan, de Béroul, a ser publicado no li- vro organizado por Hilário Franco Jr , O adultério na Idade Média, em preparação. 36 A face das filhas de Eva: os cuidados com a aparência num manual de beleza do século XIII. História (UNESP), v. 17-18, p. 293-314, 1998-1999. Disponível on line em www. abrem.he.com.br 37 Transgressão conjugal e muti- lação sexual nos fabliaux do Século XIII”. In: MALEVAL, M. A. T. (Org). Atualizações da Idade Média. Rio de Janeiro: UERJ-PPG de Letras, 2000. p. 187-222 Disponível on line em www.abrem.he.com.br. 38 Antes de 2001 eu já havia feito algumas incursões pelo cam- po da História das Mulheres. Assim publiquei A mulher segundo os clérigos medie- vais: reflexões acerca de uma exceção no Boletim do Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher, Uberlândia, ano 6, n. 12, p. 1-2, 2º semestre de 1998; e resenhas das obras M. BAR- TOLI, Clara de Assis, na Signum, São Paulo, ano 1, n.º 1, p. 235 - 239, 1999, e Hambly, Gavin R. G., ed., Women in the Medieval Islamic World: Power, Patronage, Piety, em português em Gênero em Pesquisa, Uberlândia, n. 14, ano 7, p. 3-8, 2º semestre de 1999 e em inglês em The Medie- val Review, University of Mi- chingan, 99.08.15 [www.hti/ umich.edu/b/bmr/]. No ano passado voltei à temática, es- crevendo Hildegarda de Bin- gen e as Sutilezas da Natureza das Diversas Criaturas, traba- lho apresentado na IV Jornada Científica do Waldyr Franco e publicado nas Atas do even- Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 100 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 nível 2C em agosto do mesmo ano. A pesquisa analisa, em perspectiva comparativa, as obras redigidas por dois contemporâneos: Gonzalo de Berceo, clérigo secular e poeta que viveu no Reino de Castela, e Tomás de Celano, natural do Reino de Sicília e franciscano. Dentre o conjunto da produção destes hagiógrafos, optamos por analisar os poemas berceanos Vida de Santo Domingo de Silos (VSD) e a Vi- da de Santa Oria (VSO) e as obras Vida I (1 Cel), a Vida II (2 Cel) e a Legenda de Santa Clara (LSC), re- digidas por Celano. A VSD narra a biografia de Domingo, que foi, sucessivamente, clérigo secular, eremita, prior do mosteiro emilianense e abade reformador do cenóbio de Silos. Já a VSO relata a vida de Oria, que, muito jovem, tornou-se reclusa no mosteiro de la Cogolla. A 1 Cel e 2 Cel apresentam a biografia e milagres de Francisco de Assis, fundador da Ordem Franciscana, e a LSC, a trajetória e os feitos milagrosos de Clara, a primeira mulher a seguir os ideais franciscanos.39 A biografia e a produção hagiográfica de Berceo e Celano possuem traços comuns: ambos viveram e produziram suas obras na primeira metade do século XIII; eram cultos; escreveram sobre santos e santas que foram contemporâneos e atuaram na mesma área geográfica. Porém, não obstante as diversas semelhan- ças, faz-se necessário destacar, também, as particulari- dades. O hagiógrafo ibérico compôs suas obras em romance, em forma de versos, a pedido de um mostei- ro que seguia a regra beneditina, celebrizando santos locais que viveram dois séculos anteriores à redação dos poemas e voltadas para um grande público. Quan- to às obras de Celano, foram escritas em latim; em prosa; a pedido de autoridades eclesiásticas; narra a biografia e os feitos maravilhosos de santos que conhe- ceu e para os quais aspirava o reconhecimento universal e tinham, como principal objetivo, divulgar, sobretu- do entre o corpo eclesial e os próprios membros da nascente Ordem Franciscana, o culto aos santos recém to em CD-ROM ( Atas das 3ª e 4ª Jornadas Científicas do CMS Waldyr Franco. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - Secretaria Muni- cipal de Saúde, Centro de Estu-dos do CMS Waldyr Franco, 2002). 39 Discutiu-se, durante algum tempo, quem seria o autor desta legenda. Pelas caracterís- ticas estilísticas, concluiu-se que foi Tomás de Celano, hi- pótese que hoje é consenso entre os pesquisadores. So- bre o debate quanto a autoria da LSC ver BARTOLI, M. Clara de Assis. Petrópolis: Vo- zes, 1998, p. 17, nota 24, e URIBE, F. Introducción a las hagiografías de San Francisco y Santa Clara de Asís (siglos XIII y XIV) . Murcia: Espigas, 1999. p. 461-462. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 101 canonizados oficialmente pela Igreja. Nossa pesquisa tem como principal objetivo rela- cionar o espaço de produção das VSD, VSO, 1 Cel, 2 Cel e LSC, a formação intelectual e a inserção na Igreja de Gonzalo de Berceo e Tomás de Celano e os discur- sos de gênero, à luz dos seguintes aspectos: as mudanças nas concepções de santidade verificadas entre os sé- culos XII - XIIII, a propagação, no século XIII, do projeto de sociedade idealizado pela Igreja sob a lide- rança papal, o crescimento da vida religiosa feminina e a sistematização do pensamento misógino eclesiástico ocidental neste mesmo período. Em nosso estudo, estamos articulando as categorias gênero e santidade. Entendemos por santidadeo con- junto de comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo são critérios para considerar um indivíduo como venerável, seja pelo reconhecimento oficial pela Igreja ou não. Ou seja, trata-se de um saber, uma construção histórica, que ganha nuanças e particulariza-se em diferentes culturas, espaços e períodos, assim como o gênero. No caso específico de nossa investigação, queremos discutir como uma dada concepção de santidade, que estava ao alcance de homens e mulheres nas sociedades me- diterrânicas ocidentais no século XIII, foi apreendida e direcionada a cada gênero. Quanto à categoria gênero, adotamos a definição, pautada em Joan Scott e Jane Flax, já apresentada neste artigo. Trata-se de uma pesquisa original, já que não exis- tem trabalhos que se preocuparam em comparar, de forma sistemática, a obra destes dois hagiógrafos, nem os analisaram sob a abordagem que escolhemos.40 Defendemos, como hipótese principal, que nas obra em análise, os hagiógrafos ressaltam as nuanças e particularidades da vida de homens e mulheres consi- derados santos, apontando que o caminho para a san- tidade pressupunha condutas específicas para cada gênero culturalmente instituídos. Como resultado do desenvolvimento destas pes- 40 Em nosso levantamento bi- bliográfico preliminar não encontramos nenhum traba- lho que compare as obras de Gonzalo de Berceo e Tomás de Celano. Localizamos al- guns textos, sobretudo arti- gos, que comparam aspectos isolados da obra de Gonzalo de Berceo com a de outros hagiógrafos, sobretudo ibéri- cos. No caso da obra de Cela- no, os trabalhos comparati- vos são ainda mais raros. En- contramos alguns poucos exemplares que, em sua maio- ria, contrapõem as obras de Celano às de outros hagió- grafos franciscanos. Estes tra- balhos, contudo, não objeti- vam conhecer o pensamento do hagiógrafo, mas recons- truir a biografia do santo de Assis. Quanto a estudos em- pregando o conceito de gê- nero, encontramos alguns poucos trabalhos. O interes- sante é que os autores dos materiais encontrados só se detiveram na análise das vidas das santas selecionadas. Além disso, tratam de aspectos iso- lados, não se configurando como trabalhos sistemáticos. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 102 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 quisas foram produzidas comunicações apresentadas em eventos científicos41 e realizada uma conferência,42 bem como foram redigidos textos,43 dois já publica- dos.44 Vamos nos deter nas conclusões parciais pre- sentes nesses textos já publicados. Em Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gê- nero, o objetivo era traçar algumas reflexões sobre o conceito de discurso, em especial dos discursos de gênero, apontando um possível caminho para a sua análise histórica. Neste sentido, incluí no texto um exemplo prático de estudo dos discursos, escolhendo como unidade de análise o relacionamento dos santos e santas com seus pais, ou seja, a paternidade e a mater- nidade. Verificamos que, em sua enunciação, Gonzalo de Berceo materializa um discurso de gênero, no qual há uma associação entre a santidade dos genitores e a de seus filhos, e que só se faz possível devido à liderança, moral e espiritual, dos homens na família, seguindo o topos hagiográfico da santidade herdada, típico de tais obras, e que reafirma o caráter hierárquico das relações de gênero no seio das organizações familiares na Ida- de Média. Quanto a Celano, na 1 Cel, utilizando o topos da santidade herdada às avessas, o autor adverte sobre a má influência dos pais na formação dos filhos, defen- dendo que o pecado do pai, como o da mãe, é a raiz dos pecados dos filhos. Na 2 Cel, a figura da mãe de Francisco é realçada, mas não é feita nenhuma associa- ção entre a santidade do filho e a santidade da mãe.45 Assim, sem associar a santidade de Francisco à educa- ção recebida por seu pai, parece preferir omitir este elemento. O discurso de gênero, neste caso, materializa- se por meio do silêncio. Na LSC, obra voltada para um público feminino, há destaque para a mãe da santa, que, apesar de casada, é vista como uma mulher piedosa. Segundo a obra, ela teria imprimido tal piedade à filha, que se tornou 41 Reflexões sobre os discursos de gê- nero e a representação do corpo na hagiografia mediterrânica do sécu- lo XIII, comunicação apre- sentada no Ciclo de Debates do LHIA-UFRJ, em novem- bro de 2002; A vida monástica e as diretrizes de gênero na obra berceana, comunicação apre- sentada no V EIEM na UFBA, em julho de 2003. 42 Gênero, Corpo e Sexualidade na Península Ibérica Medieval: uma leitura das obras Vida de Santo Domingo de Silos e Vida de Santa Oria, palestra proferida na UERJ em novembro de 2002. 43 Encontra-se no prelo Represen- tações da morte em Tomás de Celano, a ser publicado pelo Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina nos Cadernos do CEOM, nº 16, no dossiê Representa- ções do corpo e da morte. Este artigo foi escrito em par- ceria com minha orientanda Elisabeth da Silva Passos e dis- cute a forma como o hagió- grafo Tomás de Celano repre- senta as mortes de Francisco e Clara de Assis, um homem e uma mulher considerados santos, a partir de diretivas de gênero e à luz das relações de poder no seio da Ordem Fran- ciscana e da Igreja Romana. 44 Reflexões Metodológicas so- bre a análise do discurso em perspectiva histórica...., op. cit.; Moda, santidade e gênero na obra hagiográfica de Tomás de Celano. In: COSTA, S., SILVA, A. C. L. F., SILVA, L. R. A tradição monástica e o francisca- nismo. Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais - Insti- tuto Teológico Franciscano, 2003, p. 230-239. 45 Há que destacar que fazer uma relação entre a santidade de Francisco com a de seu pai era, certamente, impossível, já que os conflitos entre os dois eram de conhecimento geral. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 103 uma virgem consagrada a Deus, aperfeiçoando, de certa forma, a vivência da fé ensinada por sua mãe. Assim, na relação entre Clara e Hortolana os dois modelos ideais de comportamento feminino, a mu- lher casada devotada à fé e aos filhos e a virgem de- dicada a Deus, fazem-se presentes na enunciação de Celano, voltada prioritariamente às mulheres, seguindo os discursos de gênero presentes naquela sociedade. No artigo Moda, santidade e gênero na obra hagiográfica de Tomás de Celano, o objetivo é analisar os textos deste hagiógrafo contemporâneo ao nascimento da moda no Ocidente,46 a partir das duas categorias principais de análise que temos empregado em nossas investiga- ções: santidade e gênero. Mesmo tendo ingressado em uma ordem mendi- cante, e talvez até por ter abraçado os ideais francis- canos, Tomás de Celano não pôde ignorar esta con- juntura. A forma como ele apreendeu o surgimento da moda e os atos de Francisco e Clara face à produ- ção, comércio e consumo das indumentárias ficaram registradas em suas obras. Como outros hagiógrafos contemporâneos, ele considerou a renúncia à moda como uma expressão de santidade. Contudo, ele in- terpretou esta renúncia com diretivas de gênero: para Francisco, abandonar as vestes suntuosas foi, sobre- tudo, um símbolo de sua opção pela pobreza; para Clara, foi signo da negação de sua sexualidade. Finalizando esta apresentação, gostaria ainda de destacar as conclusões do artigo Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da condição feminina na Idade Média, escrito pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa, do Departamento de História da Universidade Fede- ral do Espírito Santo e por Priscilla Lauret Coutinho, aluna do curso de graduação em História desta mes- ma universidade. Sem utilizar o termo ou a categoria gênero, os autores estudam o nascimento do amor nos séculos XII-XIII. Ao fazê-lo, apresentam diferentes construções culturais sobre as relações entre homens e mulheres, a partir da análisede documentos icono- 46 Dentre outras acepções, mo- da pode ser definida como “conjunto de usos coletivos que caracterizam o vestuário de determinado grupo hu- mano num dado momento; a indústria ou o comércio da roupa; história, desenvolvi- mento e produção da roupa”. É neste sentido, de fenôme- no associado à produção, co- mércio, consumo e transfor- mações na indumentária, que podemos afirmar que a moda surgiu na chamada Baixa Ida- de Média. NOVO Aurélio. O Dicionário da Língua Portugue- sa. Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 (CD- ROM); DICIONÁRIO eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 (CD-ROM). Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 104 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 gráficos (iluminuras e uma tapeçaria) e escritos. Sem configurar-se como um estudo de gênero, o mérito deste trabalho é justamente questionar a “monocórdia imagem misógina no período”, contribuindo, assim, para desconstruir os discursos de gênero hegemônicos no período medieval que enfatizam apenas a produção clerical, oferecendo assim uma visão parcial da imagem feminina do período em questão. Fazendo um balanço dos dados encontrados, po- demos apontar que, a despeito do avanço dos estudos medievais, esta área ainda não está definitivamente consolidada em nosso país. No campo específico da História da Idade Média, no qual nos detivemos, ainda há muito o que ser explorado, tanto em termos temá- ticos, quanto em formas de abordagem, documentos a serem analisados, e na aplicação de diferentes teorias, métodos e técnicas de pesquisa, incluindo aí o uso da categoria gênero. Pelos dados inventariados, que representam uma amostragem qualitativa do que vem sendo pesquisado no Brasil no campo da História Medieval, podemos concluir que as pesquisas que incorporam a categoria gênero começaram a surgir em meados da década passada, mas ainda são quase pontuais. Em muitos casos, são trabalhos de conclusão de curso, como dis- sertações e teses, realizados como etapas da formação intelectual e nos quais há, efetivamente, a motivação para estudar temáticas ainda pouco desenvolvidas e aplicar teorias e métodos ainda não convencionais. Muitos destes trabalhos já ganham visibilidade nacional, já que suas conclusões foram apresentadas em eventos como os EIEM ou publicadas em periódicos de cir- culação nacional ou na internet, porém ainda não ultra- passaram as fronteiras nacionais. As pesquisas encontradas foram desenvolvidas por pesquisadores isolados e dispersos espacialmente (USP, UFG, PUCSP, UFRGS, UFRJ, UNB). O Pem da UFRJ é o núcleo que concentra o maior número de trabalhos, 3 dentre os 7 citados, ainda que não se con- Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 105 figure como um centro específico para os estudos medievais de gênero. Nestas investigações, Joan Scott apresenta-se como a teórica mais influente, o que pode ser explicado pelo fato dela ser uma historiadora e ter sido uma das pri- meiras autoras a refletir, de forma sistemática, sobre o uso da categoria gênero nas investigações históri- cas.47 Entretanto, é marcante a oscilação teórica, em muitos destes trabalhos, entre os estudos de gênero de matriz sociológica e os de caráter filosófico e lite- rário. Em outros casos, ainda que a abordagem se aproxime da dos estudos de gênero pós-modernistas, isto é feito de forma tímida, já que a categoria sequer figura nos textos. Como explicar o desinteresse dos historiadores brasileiros dedicados ao estudo da Idade Média pelo uso da categoria gênero? Em primeiro lugar, destaco o próprio caráter ainda marginal dos estudos medie- vais em muitas universidades do país. Mantendo os velhos argumentos de que no Brasil não houve Idade Média, ou que não há documentação e bibliografia disponíveis para a realização de pesquisa, muitos de nossos colegas historiadores desqualificam as pesquisas desenvolvidas sobre o medievo no Brasil. As próprias dificuldades inerentes à formação do medievalista nacional também levam a que muitos desistam no meio do caminho. Assim, se há poucos trabalhos sobre a Idade Média, logo teremos também poucos trabalhos que priorizem o gênero. Em segundo lugar, os estudos de gênero estão ain- da associados, mesmo nos meios acadêmicos, aos mo- vimentos feministas ou a grupos de homossexuais e lésbicas, e não são vistos como uma opção teórica. Além disso, muitos questionam a aplicabilidade desta categoria para os estudos medievais, pautados, sobre- tudo, no caráter relacional dos estudos de gênero e na ausência de documentação em que a voz feminina pos- sa ser ouvida. Estes autores, porém, esquecem que o gênero está presente em todos os aspectos da experiên- 47 Os trabalhos de Joan Scott são a principal referência te- órica para os historiadores em geral que estudam as ques- tões de gênero no Brasil. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) 106 Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 cia humana, constituindo-os parcialmente, e portanto, possível de ser analisado a partir de qualquer vestígio do passado. Em terceiro lugar, aponto para a pouca discussão e aprofundamento das questões teóricas nos trabalhos. O termo gênero é utilizado, mas as análises oscilam entre as abordagens pós-modernistas e ilu- ministas.48 Esta inconsistência teórica, em grande parte, pode ser explicada pelo fato de que os(as) historiado- res(as) brasileiros(as) são profundamente influencia- dos(as) pelos(as) medievalistas franceses e, como já assinalamos neste artigo, os estudos de gênero não tiveram grande acolhida na França. Grande parte dos trabalhos desenvolvidos no país sobre a temática gê- nero repousam suas reflexões em obras como as de George Duby, Cavaleiro a mulher e o padre, Idade média, idade dos homens, Eva e os padres, Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. Tais estudos, porém, não questio- nam as categorias de mulher e homem culturalmente construídas e privilegiam o estudo das mulheres e do feminino, em abordagens generalizantes e descritivas, o que é rejeitado pelos estudos de gênero.49 Em contra- partida, pouca acolhida ainda tem entre os medievalistas brasileiros a historiografia anglo-saxã, que efetivamente tem produzido estudos de gênero. Acredito que com a expansão da internet, este quadro tenderá a ser supe- rado nos próximos anos. E sinais desta mudança co- meçam a aparecer. Assim, já é possível encontrar, em alguns textos nacionais, reflexões e citações de trabalhos de medievalistas americanos que utilizam a categoria gênero em suas pesquisas, como Caroline Bynum, Catharine M. Mooney e Sarah Salih. Concluindo, ainda há um grande campo para os estudos medievais no Brasil e o emprego da categoria gênero poderá revolucionar as pesquisas. Pautando- se no estudo do qualitativo e do particular, valorizando a perspectiva do investigador e o trabalho analítico, dialogando com os especialistas estrangeiros, os estu- dos de gênero podem ser desenvolvidos no Brasil e ganhar respeitabilidade internacional a despeito das 48 Sobre os paradigmas ilumis- tas e pós-modernistas em História ver CARDOSO, C. F. História e Paradigma Rivais. In: ___. e VAINFAS, R. Domí- nios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 1-23. 49 Uma interessante critica pós- modernista aos trabalhos de George Duby pode ser en- contrada no texto SILVA, Paulo Thiago S. Gonçalves Idade Média, idade das “tre- vas”? Uma análise sobre a historiografia das mulheres medievais, publicado on line no número 1-2, julho/de- zembro 2002, da revista La- brys, Estudos Feministas, dispo- nível em www.unb.b/ih/his /gefem. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004 107 muitos dificuldades que se impõe aos medievalistas em nosso país.50 50 Agradeço aos professores Elias Nunes Frazão, Leila Rodriguesda Silva, e Maria Cristina Correia Leandro Pereira, que gentilmente leram os originais deste ar- tigo e deram excelentes su- gestões.