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ASCARIS E ANCILOSTOMOSE Ascaridíase A morbidade pelo Ascaris lumbricoides tem relação positiva com a carga parasitária, apesar dessa relação não ser linear. Ela pode ser resumida, de forma geral, em três fases: pulmonar, intestinal e de complicações. A fase inicial, pulmonar, é caracterizada pela passagem das larvas do A. lumbricoides dos capilares aos alvéolos pulmonares e ocorre de 4 a 16 dias após ingestão dos ovos maduros. Tal passagem induz inflamação local, a qual permanece por 2 a 3 semanas. A migração dos vermes e sua invasão tissular podem induzir à formação de granulomas, à eosinofilia local e periférica, e a reações de hipersensibilidade. Nesta fase, pode ser detectada a eosinofilia em exames de sangue, apesar desta não ser específica. Além de sintomas pulmonares agudos e não específicos, como respiração ofegante, tosse, dispneia, hemoptise (tosse com sangue) e quadro asmático, pode-se encontrar sintomas periféricos, tais como manifestações cutâneas do tipo urticária demográfica em aproximadamente 20 a 25% dos indivíduos, angioedema, dor abdominal e vômitos. Esta eosinofilia apresenta caráter agudo, sendo possível notar seu decréscimo logo quando se cessa a migração, e o verme estabelece barreiras ao sistema imune humano. Quando a reação pulmonar eosinofílica é muito significativa, pode-se ter um quadro de pneumonia eosinofílica, “crepitações à ausculta pulmonar” a qual é considerada, por muitos autores, como sinônima de síndrome de Loeffler. Essa síndrome ocorre entre 10 e 14 dias após a infecção pelo helminto, e apresenta caráter autolimitado, sendo restrita à etapa de migração larval no tecido pulmonar. Ela é caracterizada por tosse, dispneia, infiltrado pulmonar “o raio-X de tórax revelou infiltrado hilar difuso e peri-hilar”, aumento de eosinófilos no sangue “eosinófilos/mm3 3.000 (100 a 400)”, podendo, porém, permanecer assintomática ou leve. Além do mais, broncoespasmo e infecção bacteriana também podem ocorrer de forma secundária. Encontra-se ainda, na literatura, quadros de pneumonia por Ascaris que resultaram em pneumotórax espontâneo e hemorragia alveolar. A fase intestinal da infecção por Ascaris é usualmente assintomática. Todavia, infecções de maiores cargas parasitárias podem ser relacionadas a sintomas intestinais e gerais inespecíficos, tais como: dor; distensão e desconforto abdominal “o abdômen estava distendido e a criança sentiu dor durante a apalpação”; náuseas e vômitos; diarreia; alteração dos hábitos intestinais; diminuição ou falta do apetite; perda de peso; astenia; má absorção de nutrientes devido ao dano em mucosas, diminuindo obtenção de, por exemplo, vitamina A, gordura, lactose, nitrogênio e albumina, assim como intolerância temporária à lactose. Na literatura, a relação entre A. lumbricoides e a anemia é controversa: há artigos que relatam associação positiva entre tal verme e a diminuição nos níveis de hemoglobina e aumento da prevalência de anemia, especialmente em infecções de carga parasitária moderada e alta, enquanto outros evidenciam falta de relação positiva entre ambas. É possível que tal quadro anêmico, se presente, esteja relacionado a sangramentos na mucosa do trato digestório superior ou à inflamação generalizada da mucosa. A fase de complicações é dividida em complicações crônicas e agudas. As complicações crônicas estão relacionadas à morbidade e à manutenção do ciclo de pobreza e doença associada, e incluem: diminuição no apetite; desnutrição crônica e consequente retardo no crescimento, diminuição na taxa peso-altura, no IMC, na espessura de dobras cutâneas e na circunferência do braço; deficiência intelectual; déficit cognitivo “criança estava letárgica e não apresentava capacidade cognitiva condizente com a idade” e educacional, diminuição da performance e frequência escolar. Tais condições clínicas e socioeducacionais apresentam maior prevalência em crianças com carga moderada a grave do verme e podem ser resolvidas ou permanecerem como sequelas após tratamento com anti-helmínticos. Nos adultos, o impacto da ascaridíase pode interferir em sua produtividade, especialmente em áreas rurais, podendo levar a faltas no trabalho a depender do grau da sintomatologia da infecção. Além de complicações crônicas, o Ascaris também pode levar a complicações agudas. Quando um indivíduo é infectado com uma grande carga parasitária, pode ocorrer obstrução intestinal, a qual é mais prevalente em áreas endêmicas, e acomete principalmente crianças com menos de 5 anos de idade. Isso ocorre provavelmente pelo menor volume intestinal de crianças, e pela maior carga parasitária que normalmente os infecta, e o íleo é o segmento mais acometido. Em casos severos, a agregação massiva de vermes pode levar ao infarto e à gangrena intestinais, sendo necessária hospitalização e imediata cirurgia de ressecção do segmento acometimento. A significativa presença de vermes adultos no intestino pode acarretar em perfuração, vólvulo e intuscepção intestinal, o que também requer cirurgia de emergência. As complicações cirúrgicas da ascaridíase são mais frequentes em crianças, e podem ser fatais. Outra complicação é a obstrução dos ductos hepatobiliares. Apesar do habitat do Ascaris ser o intestino delgado, ele tende a migrar e explorar aberturas existentes no trato gastrointestinal. Assim, pode penetrar nos ductos pancreático e hepatobiliares pela ampola, obstruí-los, e levar a quadros de colangite aguda, colecistite aguda, pancreatite aguda, abscesso hepático. A depender da síndrome clínica, pode haver icterícia “criança se apresentava amarelada”, febre e rigidez abdominal associadas. Este fenômeno é mais prevalente, de forma geral, em adultos. Dentre eles, mulheres grávidas são particularmente mais acometidas, o que está possivelmente relacionado ao relaxamento e à dilatação do orifício ampolar induzidos por hormônios, facilitando assim a passagem do verme. Há, também, maior prevalência da ascaridíase hepatopancreática em áreas endêmicas. A presença do verme no ducto biliar pode também levar ao quadro de colangite recorrente piogênica, caracterizada por sepse biliar recorrente, estenose biliar inflamatória e cálculos intra hepáticos. Esse quadro apresenta a seguinte sintomatologia: dor em hipocôndrio, febre, e até icterícia, podendo se repetir. Da mesma forma que pode obstruir os ductos hepatopancreáticos, os vermes adultos podem migrar e penetrar no lúmen do apêndice e peritônio, podendo gerar quadro de apendicite e peritonite acompanhado de choque séptico, respectivamente. Além das complicações agudas intestinais, o A. lumbricoides pode levar à obstrução respiratória letal. Ancilostomose Após a penetração das L3 pela pele, o primeiro sintoma é o aparecimento imediato de erupções papulovesiculares pruriginosas eritematosas “Durante a anamnese, a mãe informa que esta é a segunda vez que aparecem estas marcas, que coçam muito, mas desta vez está pior. No exame fisico. a médica observa intensas marcas eritematosas e pruriginosas nas regiões interdigitais das mãos e dos pés da criança”. A gravidade das erupções pode variar de acordo com a infecção primária ou reinfecção, desde o aparecimento de simples pápulas eritemato- sas até o surgimento de pápulas vesiculadas, com edema generalizado e inchaço de linfonodos locais. Os sinais e sintomas sequenciais são decorrentes da migração larval inicial, geralmente observados pela tosse “que tem tossido muito” “que tossia com frequência”, inflamação na garganta e febre “temperatura aferida foi de 38°C”, ou pela presença do parasito no pulmão, que pode desencadear febre transiente em 2 a 4 semanas após a infecção. Durante a migração no trato respiratório, sinais e sintomas incluindo coriza, faringite, laringite, sensação de obstrução da garganta e dor ao falar e deglutir foram descritas na ancilostomose. Já na migração no trato gastrointestinal, é relatada dor epigástrica relacionada com a presença das L3e, em razão da presença e do desenvolvimento do verme adulto, podem ocorrer diminuição do apetite, indigestão, cólicas, náuseas, vômitos, flatulência, diarreia, melena “conta que o cocô do filho estava muito escuro, com cheiro forte” e emagrecimento e, em casos mais graves, ulceração intestinal e colecistite. Após o estabelecimento no hábitat final, a laceração da mucosa e da submucosa pelos aparatos bucais cortantes dos vermes adultos, acompanhados por sucção na mucosa, secreção de enzimas hidrolíticas e agentes anticoagulantes, pequenas hemorragias residuais que ficam quando os parasitos mudam seus pontos de fixação, resultam em uma intensa perda de sangue intestinal. Essas perdas variam com a espécie presente, sendo o volume médio perdido para cada Necator na ordem de 0,03-0,06 ml/dia. Com A. duodenale, a perda é de 0,15-0,30 ml/dia. A perda sanguínea aumenta com a carga parasitária. Do sangue evacuado pelos helmintos, 30-40% do ferro são reabsorvidos pelos intestinos. O resto deve provir da dieta do paciente. Senão, as reservas hepáticas de ferro, que é de 900 mg, vão diminuindo até se esgotarem; e a produção de hemoglobina cai de forma progressiva “hemoglobina (g/dL) 5,3 (13,5 a 18)”. Se em função da ingestão de ferro e da espoliação feita por 700 Necator houver um déficit diário de 4 mg de ferro, serão necessários 900/4 = 225 dias para que a anemia comece a manifestar- se. Essa é a principal razão pela qual os indivíduos parasitados podem apresentar uma taxa normal de hemoglobina durante um longo período. As principais manifestações clínicas da ancilostomose são consequentes da perda crônica de sangue, acarretando em anemia por defi- ciência de ferro e hipoalbuminemia. A anemia microcítica e hipocrômica e a eosinofilia coincidem com o estabelecimento dos vermes adultos no intestino e são proeminentes durante a infecção. A hipoalbuminemia estaria associada à diminuição da capacidade de síntese da albumina no fígado, à perda de plasma durante a hematofagia e à desnutrição do hospedeiro. A hipoproteinemia é outro sinal clínico da doença, que se acompanha de atrofia da mucosa intestinal, redução ou achatamento das vilosidades, e diminuição da absorção intestinal. Ela parece resultar tanto das perdas sanguíneas como da ingestão insuficiente de proteínas, mas também da atividade deficiente do fígado devido à anóxia que resulta da anemia. Este mesmo efeito da anemia pode ser sentido por outros órgãos e tecidos. Lesão renais podem causar albuminúria e hematúria. Indivíduos com baixa carga parasitária (de acordo com a Organização Mundial de Saúde, infecções com carga entre 1 e 1.999 ovos por grama de fezes) são usualmente assintomáticos, infecções moderadas (entre 2.000 e 3.999 ovos por grama de fezes) e altas (carga parasitária acima de 4.000 ovos por grama de fezes) resultam em dores epigástricas recorrentes, náusea, dispneia, palpitações, dores no esterno e juntas, dor de cabeça, fadiga e impotência. Alguns indivı́duos podem desenvolver a alotriofagia “ele tem comido terra” (também conhecida por síndrome de Pica) que consiste em um apetite compulsivo por substâncias não nutritivas ou não alimentares como solo, argila, tijolos ou areia. Finalmente, anemia e subnutrição podem afetar a produtividade e a capacidade dos indivíduos doentes. CHAGAS Alterações no Coração. Este órgão é o que se encontra afetado com maior frequência, se bem que as lesões possam ser leves nas formas benignas da doença. Os parasitos formam "ninhos de amastigotas", às vezes bastante grandes e de formato alongado, ao se multiplicarem no interior das fibras musculares. Mas, como vimos, enquanto estas não se romperem, não haverá sinais de inflamação no local. Depois, as fibras cardíacas apresentam-se parcialmente dissociadas pelo edema intersticial. Em torno das que estão sendo destruídas, forma-se um infiltrado inflamatório que está presente também em outros pontos do miocárdio. Além das lesões inflamatórias, veem-se outras, isquêmicas, com produção de infartos microscópicos, em função das alterações arteriolares. As fibras cardíacas podem apresentar intensa degeneração das miofibrilas. As células nervosas ganglionares ficam quase sempre lesadas. A miocardite aguda é mais frequente em crianças do que em adultos e pode levar a dilatação cardíaca, a congestão passiva, a edemas e derrames cavitários, como consequência da insuficiência circulatória. A morte pode ocorrer então. Em outras ocasiões, as lesões da fase aguda continuam-se com as da fase crônica; ou pode haver melhora, com diminuição da parasitemia, da dilatação cardíaca e desaparecimento dos sintomas clínicos, por tempo variável. Na fase crônica, uma fibrose difusa ocupa o lugar das áreas inflamadas e necrosadas, sobretudo no ventrículo esquerdo, onde também se produzem tromboses com maior frequência. Interpondo-se aos processos de cicatrização e reparação, novas áreas inflamatórias podem surgir. A substituição dos elementos musculares por tecido conjuntivo vai acarretar redução da força de contração do coração e pôr em marcha mecanismos compensadores, tais como: • Aumento do diâmetro das fibras musculares cardíacas, tanto mais acentuado quanto mais extensos forem os focos inflamatórios crônicos e maiores as sequelas fibróticas; • Aumento do volume cardíaco: dilatação das cavidades e hipertrofia das paredes do órgão (Figuras 3.11 e 3.12); • Taquicardia. O comprometimento do sistema autônomo regulador das contrações cardíacas (nódulo sinusal, nódulo atrioventricular e feixe de His) traz como consequência uma grande variedade de perturbações, tanto da formação dos estímulos cardíacos, como de sua propagação. Daí resultam arritmias sinusais, extrassístolia “extrassístoles ventriculares isoladas”, bloqueio da condução em um dos ramos do feixe de His (principalmente do direito) “bloqueio completo de ramo direito”, bloqueio atrioventricular (com ritmo ventricular de 40-50 batimentos por minuto), fibrilação atrial etc. Quando os mecanismos de compensação cardíacos se tomam incapazes de superar as deficiências de sua força de contração, aparece a insuficiência circulatória, pois passa a haver um déficit no volume de sangue e na quantidade de oxigênio que chegam por minuto a cada órgão ou tecido, inclusive ao miocárdio, comprometendo o metabolismo local. Isso traduz-se clinicamente por dispneia aos esforços, insônia, congestão visceral e edema dos membros inferiores, que terminam, como nas insuficiências cardíacas de outras etiologias, em assistolia. Devido às lesões vasculares, aos microinfartos ou às embolias, a morte pode ser súbita. Alterações do Sistema Digestório. Os parasitos são encontrados na musculatura lisa, nas células nervosas e em outros elementos da parede do tubo digestivo. Porém, sempre em pequeno número. As lesões podem produzir-se em qualquer sítio, mas predominam no esôfago, nos cólons e sigmoide, ou no intestino delgado. São processos subagudos e crônicos de miosite (focal e intersticial), que se acompanham de: • Formação de granulomas; • Arterites necrosantes, lesando a camada média arteriolar; • Destruição dos plexos nervosos da parede (plexos de Meissner e de Auerbach); • Inflamação crônica em diferentes fases. A destruição dos neurônios ganglionares parece desempenhar papel relevante nas alterações do trânsito esofágico e intestinal (que se tomam cada vez mais lentos e difíceis) “era comum ter dificuldade para engolir qualquer alimento que fosse mais “duro”, como carne, e que, sempre que isso acontecia, ela bebia uma boa quantidade de água pra ajudar”, bem como na hipertrofia muscular e, finalmente, na dilatação e atonia desses órgãos, conhecidos respectivamente por megaesôfago (Fig. 3.13) e megacólon (Fig. 3.14). O que caracteriza a disfunção do esôfago é a incoordenação motora, de modo que não se observa a propagação da onda contrátil ao longo do órgão, nem o reflexo de abertura do cárdia, após o ato da deglutição. A mesmaincoordenação é responsável pela estagnação do bolo fecal no intestino grosso e consequente hipertrofia e dilatação das paredes do cólon distal, sigmóide e reto. Alterações no Sangue. A parasitemia toma-se patente entre o quarto e o quadragésimo dia (em geral, entre o oitavo e o décimo segundo dia), após a infecção, e dura cerca de um mês. Às vezes, o hemograma dos pacientes nessa fase mostra uma ligeira leucocitose, com linfocitose, mas há tendência à leucopenia. A anemia pode ser particularmente grave, em alguns casos. Na fase crônica, o exsudato inflamatório mostra predominância de linfócitos T (sobretudo CD8+) e poucos linfócitos B ou macrófagos. Alterações do Sistema Nervoso. No sistema nervoso central pode-se encontrar: — Congestão e edema, com escassos focos hemorrágicos; — Discreta infiltração perivascular de células inflamatórias; e — Formação de numerosos nódulos (granulomas) disseminados pelo cérebro, cerebelo e pedúnculos cerebrais. Nas células nervosas ou outras, degeneradas, encontram-se ninhos parasitários. A destruição dessas células e a disseminação dos flagelados conduzem a uma meningoencefalite difusa. Há também necroses focais. Lesões em Outros Órgãos. O fígado apresenta muitas vezes, na fase aguda, aumento de volume, assim como congestão e degeneração gordurosa das células parenquimatosas. O baço, também, pode estar aumentado. Os linfonodos são sede de inflamação satélite (que acompanha o chagoma de inoculação) ou de uma adenite generalizada, durante a fase aguda. Nos músculos esqueléticos há ninhos parasitários com amastigotas, focos inflamatórios e edema difuso. Esse edema inflamatório encontra-se em quase todos os órgãos e somente regride quando cai a parasitemia, por volta de 6 a 12 semanas após o início da doença. A doença de Chagas é considerada uma importante causa de doença cardíaca na gravidez, apresentando prevalência geográfica variável (2-11% nos centros urbanos e 4-16% em áreas endêmicas, embora alguns índices evidenciem até 54% de gestantes com doença de Chagas). Pode apresentar transmissão materno-fetal. A taxa de infecção varia de 1,6-10,5% em nascidos vivos de mães chagásicas, sem levar em consideração os natimortos e os abortos. O prognóstico materno- fetal está diretamente relacionado ao grau de comprometimento miocárdico e do sistema de condução elétrica, sendo pior o prognóstico quanto maior for esse acometimento. FASE AGUDA No início, a tripanossomíase americana pode apresentar uma sintomatologia frustra ou tão fugaz que passa inteiramente despercebida. Na maioria das vezes, a fase aguda é oligossintomática, decorrendo com febre, pouco característica, e apresentando uma reduzida resposta celular a antígenos de T. cruzi (teste intradérrnico). Os sintomas manifestam-se geralmente em indivíduos jovens e sobretudo os que se encontram nos primeiros anos de vida. Correspondendo ao período em que os tripanossomos são facilmente encontrados no sangue, essa fase caracteriza-se clinicamente por febre, sensação de fraqueza, poliadenite, aumento do fígado e do baço. A febre, no início da doença, algumas vezes é pouco elevada, outras chega a 39 ou 40°C, para manter-se depois abaixo de 38°C. Pode ser de tipo contínuo, remitente ou irregular, e acompanhar-se de outros sintomas gerais como astenia, cefaleia, dores pelo corpo e anorexia. O período febril dura 30 a 45 dias. O edema bipalpebral e unilateral, que marca o começo da doença, não ocorre em todos os casos, pois é função da penetração do parasito pela região ocular ou suas imediações. Sua frequência não deve ser maior que 10%. Nas formas agudas graves, surgem quadros de miocardite, com taquicardia ou outras alterações do ritmo, abafamento de bulhas, aumento da área cardíaca e sinais de insuficiência circulatória (edemas de estase, congestão hepática, falta de ar aos esforços etc.). Em crianças com menos de cinco anos, a mortalidade é elevada. Outras formas graves, mas raras, são as que se acompanham de meningoencefalite aguda. Ocorrem quase sempre em lactentes e sua evolução termina em geral pela morte do paciente, ao fim de poucos dias. FASE CRÔNICA Em certa proporção de casos, que varia com a região considerada e outros fatores desconhecidos, o parasitismo pelo T. cruzi desenvolve-se de forma assintomática assumindo caráter latente desde o início. Tais casos assintomáticos (só com reação sorológica ou xenodiagnóstico positivos) são designados por alguns autores como formas indeterminadas, pois têm um prognóstico incerto: tanto podem evoluir para as formas crônicas típicas, como permanecer latentes (sem sintomas, com eletrocardiograma normal e com radiografias normais de coração, esôfago e cólons). A forma indeterminada é a mais frequente entre os pacientes crônicos, representando 50 a 70% dos casos, nas áreas endêmicas da tripanossomíase americana, no Brasil. Há pacientes com sintomatologia pobre e, por isso, são casos difíceis de diagnosticar: formas oligossintomáticas. Esses doentes são descobertos ocasionalmente, durante inquéritos epidemiológicos, pelo achado de parasitos no sangue ou por reações sorológicas positivas. Em outros pacientes, as formas crônicas sintomáticas podem seguir-se imediatamente ao período agudo; ou instalar-se depois de um intervalo assintomático de duração variável: muitos anos, às vezes. Também podem instalar-se sem que tenha havido um quadro agudo característico, como se observa frequentemente nas áreas endêmicas. Duas formas clínicas são muito importantes pela frequência com que ocorrem e pela gravidade que podem apresentar: (a) a cardiopatia crônica devida ao T. cruzi; (b) os "megas": megaesôfago e megacólon, principalmente. Cardiopatia Crônica Devida ao Trypanosoma cruzi. Apresenta-se com grande variedade de quadros clínicos, que nada têm de específico, a não ser sua etiologia. Observamos, nesses casos, desde simples arritmias até os sinais e sintomas de uma insuficiência cardíaca compensada ou descompensada. Há pacientes que têm apenas palpitações e astenia, mostrando aos exames alterações eletrocardiográficas (principalmente perturbações da condução e da repolarização ventricular), extrassístolia, área cardíaca normal ou ligeiramente aumentada. Os pacientes com arritmias queixam-se de palpitações, sensação de parada do coração e vertigens. Nos casos de bloqueio atrioventricular, há bradicardia acentuada, com crises vertiginosas e, por vezes, ataques convulsivos (síndrome de Stoke-Adams), decorrentes da má irrigação cerebral. Outra caracterização da fase crônica é o aumento do coração. Se o tamanho do órgão é normal, ou pouco aumentado, melhor é o prognóstico. Quando o aumento das cavidades é global, ou quando predomina no ventrículo direito, a dispneia ou não se manifesta ou, pelo menos, não está em proporção com a gravidade do padecimento cardíaco. Ela pode apresentar-se só tardiamente. Nos casos mais graves, a insuficiência cardíaca descompensada acompanha-se dos mesmos sintomas que aparecem nas cardiopatias de outras etiologias (edemas, derrames cavitários, congestão visceral, dispneia). Entre os acidentes mais sérios que podem sobrevir nessa fase estão as tromboses e as embolias por destacamento de trombos parietais, que são levados a outros órgãos. Os Casos com Megas. As perturbações funcionais do esôfago e do cólon começam a manifestar-se, em alguns casos, apenas decorridos um a três meses da fase aguda. Em outros, esse intervalo é inferior a dois anos. Por essa razão o megaesôfago tem sido encontrado mesmo em crianças. Os primeiros sintomas são sempre de disfagia. O paciente tem dificuldade de deglutir alimentos sólidos, como arroz, e bebe água para ajudar a descer. Surge depois uma tendência à regurgitação. Nos casos mais avançados a disfagia é substituída pela sensação de plenitude intratorácica retroesternal. Outras manifestações clínicas são: dor epigástrica ou retroestenal, que melhora com a ingestão de líquidos; soluços,intensa salivação e emagrecimento. No esôfago, quando a destruição neuronal compromete pelo menos 50% dos neurônios do plexo mientérico, desorganiza-se a atividade motora do órgão; se a destruição atinge 90%, surge dilatação progressiva. No cólon, a dilatação se inicia quando 55% dos neurônios mientéricos são destruídos. Todavia, há casos de esôfagos não ectásicos com acentuada ou completa desnervação do plexo mientérico. As lesões intestinais (colopatias) da tripanossomíase americana causam inicialmente constipação, que se vai agravando pouco a pouco. O doente começa fazendo uso de laxativos suaves e termina por necessitar de catárticos e lavagens intestinais. No megacólon, que frequentemente está associado ao megaesôfago, constata-se ainda: meteorismo e timpanismo do hipocôndrio esquerdo; o sigmoide é palpável, volumoso e com aspecto tumoral, devido aos fecalomas (nas fases avançadas), além de outros sintomas da doença. LEISHMANIA Aspectos clínicos Os parasitos adotam diferentes estratégias para estabelecer a infecção, podendo gerar três tipos de resposta do hospedeiro: (1) destruição local e eliminação dos parasitos, com resolução do processo infeccioso; (2) resposta tecidual inflamatória com fagocitose dos parasitos e/ou persistência deles em forma latente; (3) disseminação dos parasitos para órgãos ricos em células do sistema fagocitário mononuclear (SFM), sendo fatores de risco estado imunitário, associação com outras doenças, infecções respiratórias, desnutrição etc. A LV é uma afecção espectral com um polo hiperérgico, que traduz resposta eficaz do hospedeiro contra a infecção, e um polo anérgico, resultado de resposta imunitária deficiente. Com base no padrão de resposta, as formas de apresentação clínica da doença são: — Infecção assintomática, que ocorre em indivíduos que vivem em áreas endêmicas, sem história ou sinais de doença clínica aparente e que têm reações sorológicas e/ou testes intradérmicos positivos para leishmânias. — Infecção subclínica ou oligossintomática, associada a manifestações inespecíficas como febrícula, tosse seca, diarreia, sudorese, adinamia e hepatoesplenomegalia discreta. O quadro pode regredir espontaneamente ou evoluir para doença manifesta. — Forma aguda, em geral com duração inferior a dois meses, com febre alta, tosse, diarreia, hepatoesplenomegalia discreta e alterações hematológicas, sendo marcante a elevação de globulinas séricas, com anticorpos IgM e IgG específicos. — Forma clássica ou plenamente manifesta. A instalação da doença é insidiosa e de curso crônico, com período de incubação de dois a seis meses, mas com relatos de casos extremos de dias ou anos. Se não tratada, é doença fatal. O paciente apresenta febre diária, anorexia, fraqueza, emagrecimento, sinais de desnutrição (pele seca, cabelos secos e quebradiços, cílios longos). Há ainda edema das mãos e dos pés e aumento progressivo do volume abdominal, do baço e do fígado. São frequentes manifestações gastrointestinais (particularmente diarreia), fenômenos hemorrágicos (epistaxe, gengivorragia) e tosse seca. Manifestações não habituais incluem linfonodomegalia, petéquias, púrpuras e hemorragia na retina ou no sistema nervoso central. Em casos de longa duração, icterícia é sinal de mau prognóstico. Podem ser notadas variações clínicas regionais, como pigmentação escura da pele, observada no calazar indiano, e tonalidade pardacenta nas Américas. É constante pancitopenia periférica com hipergamaglobulinemia. Os pacientes apresentam reação de Montenegro negativa. — Forma plenamente manifesta em pacientes imunocomprometidos, que surge em indivíduos com coinfecção LV/HIV (a LV é infecção oportunista), transplantados ou imunossuprimidos em virtude de tratamento por neoplasias. Nesses casos, as manifestações clínicas são atípicas, como ausência de esplenomegalia, comprometimento dos pulmões com intenso parasitismo e falta de resposta ao tratamento com antimoniais. A LV em geral resulta de reativação de infecção anterior. A reação de Montenegro é negativa. Lesões em órgãos As lesões morfológicas são semelhantes em diferentes áreas endêmicas do mundo, embora existam particularidades clínicas relacionadas com as características dos diferentes ecossistemas. A LV é uma doença que se caracteriza primordialmente por comprometimento do sistema fagocitário mononuclear (SFM), no qual os parasitos permanecem, multiplicam-se e disseminam-se. Frente ao parasitismo, o SFM exibe hipertrofia e hiperplasia. O interstício dos diferentes órgãos participa também de maneira importante no processo, com modificações de seus componentes celulares, fibrilares e da matriz extracelular, que se associam a infiltrado inflamatório e reatividade vascular. Os sinais e sintomas mais exuberantes da doença plenamente manifesta relacionam-se justamente com o acometimento de órgãos ricos em SFM, como fígado, baço e medula óssea. Fígado O comprometimento hepático na LV reflete a resposta espectral do hospedeiro à infecção. São descritos os seguintes padrões de alterações morfológicas: (a) padrão típico, que corresponde à doença plenamente manifesta; (b) padrão nodular, que está ligado ao polo de boa resposta; (c) entre os dois, existem situações intermediárias; (d) padrão fibrogênico, com fibrose intralobular que pode culminar com a chamada cirrose de Rogers e por último, (e) padrão reacional, secundário à infecção sistêmica. O padrão típico é visto na forma disseminada, sintomática e grave da LV. O órgão está aumentado de volume e ocupa grande parte da cavidade abdominal, levando ao deslocamento de outras vísceras. Em geral, a superfície é lisa e ficam mantidas a consistência e as características das bordas. Microscopicamente, nos ácinos hepáticos existem focos de infiltrado linfoplasmocitário em correspondência com macrófagos fagocitando o parasito; os hepatócitos mostram esteatose macro e microgoticular difusa, sem distribuição preferencial nas zonas acinares. São observadas raras figuras de apoptose e de necrose de hepatócitos. Os espaços portais estão moderadamente expandidos por infiltrado de linfócitos, plasmócitos e macrófagos (alguns parasitados), mas a placa limitante lobular e os ductos biliares permanecem preservados. Há ainda hipertrofia e hiperplasia difusa das células de Kupffer, muitas das quais se encontram parasitadas por numerosas formas amastigotas. A imuno-histoquímica evidencia grande quantidade de material antigênico particulado no citoplasma das células de Kupffer, nos macrófagos intralobulares e portais e, raramente, nos hepatócitos. Material antigênico livre pode ser detectado também no estroma portal e nos espaços de Disse; nestes observa-se deposição de IgM, IgG e IgA. A análise ultraestrutural evidencia ativação das células de Kupffer, que exibem aparelho fagocítico muito desenvolvido. Os vacúolos fagocitários contêm amastigotas íntegros ou em desintegração. O órgão mantém consistência firme e ocasionalmente mostra congestão passiva. Ocorre hiperplasia e hipertrofia das células de Kupffer, em geral densamente parasitadas, concomitantemente com a presença de infiltrado difuso, intraparenquimal, de células plasmáticas e linfócitos. Podem ser observadas fibroses septal e portal, leves ou moderadas, ao longo do infiltrado inflamatório. A disposição de material hialino, PAS positivo, no espaço de Disse é um achado comum e associado ao espessamento reticular e áreas de fibrose intralobular (fibrose de Rogers), hiperplasia regenerativa nodular difusa tem sido relatada em casos de associação HIV/ Leishmania. Estas alterações contribuem possivelmente para a grave disproteinemia que ocorre em pacientes com calazar. Os baixos níveis de albumina associados a fatores vasculares locais podem levar à formação de edema dos membros inferiores. Baço Esplenomegalia na LV resulta de reatividade do SFM e de congestão dos sinusoides esplênicos. O baço mostra aumento acentuado de volume, é friável e temcápsula tensa com espessamentos focais. A polpa vermelha é congesta e a polpa branca, pouco evidente. Microscopicamente, sobressaem hipertrofia e hiperplasia intensa do SFM, com muitos macrófagos densamente parasitados por amastigotas. Os sinusoides são congestos, e os cordões de Billroth evidenciam plasmocitose intensa. O exame histológico de casos de necrópsia revela diminuição do volume dos folículos linfoides, redução dos linfócitos nas zonas T e B dependentes e infiltração de plasmócitos e macrófagos, estes frequentemente parasitados. Eventualmente, há focos de deposição de substância amiloide na polpa branca e/ou nos sinusoides. Esplenomegalia é o achado mais importante e frequente no calazar. Na fase inicial da doença, a esplenomegalia pode não ocorrer ou ser pouco acentuada, mas na doença estabelecida e crônica toma-se uma característica invariável. Ao corte, o órgão apresenta superfície vermelha amarronzada e o tecido friável e congesto. Podem ser verificados áreas de infarto. A cápsula é espessa e mostra áreas de inflamação. Ocorre hiperplasia e hipertrofia das células do SMF, os macrófagos e as células plasmáticas podem ser observados densamente parasitados, nas polpas branca e vermelha. Na polpa branca, no entanto, o parasitismo é menos intenso e há diminuição da população de células em áreas T dependentes. Medula óssea A medula óssea é em geral encontrada com hiperplasia ente parasitada. A eritropoiese e a granulopoiese são normais no início do processo infeccioso. Durante as fases mais adiantadas da infecção, ocorre desregulação da hematopoiese, caracterizada pela diminuição da produção celular com reflexo no quadro hematológico em períodos sucessivos: a) hiperplasia no setor histiocitário; b) hipoplasia no setor formador de sangue e, por fim, c) aplasia. A anemia, normalmente normocítica e normocrômica, representa uma alteração grave e importante nos indivíduos doentes. As contagens de eritrócitos nesses casos são muito baixas, geralmente entre 2 e 3 milhões/mm3 de sangue. Entre os mecanismos envolvidos na anemia estão a eritrofagocitose esplénica e a eritrólise, que podem ser imunologicamente mediadas. Na contagem diferencial de leucócitos é comum a ausência de eosinófilos e basófilos e, marcadamente reduzida, a presença de neutrófilos, caracterizando a leucopenia. A contagem absoluta de linfócitos e monócitos é usualmente baixa, porém, em termos percentuais, a contagem total é alta. As plaquetas também estão diminuídas nos quadros graves e letais, o que facilita a gênese de hemorragias. Verifica-se plasmocitose, embora no sangue periférico a ocorrência de níveis baixos de linfócitos B seja comum, provavelmente pelo sequestro destas células produtoras de imunoglobulinas nos órgãos linfoides. Linfonodos Apesar de os pacientes com LV não apresentarem linfonodomegalia expressiva, os linfonodos mostram reatividade dos seios com hipertrofia, hiperplasia e parasitismo de macrófagos, além de plasmocitose. Os folículos linfoides são mais volumosos por aumento das células do manto e, sobretudo, por reatividade dos centros germinativos. Nos casos graves, há depleção linfocitária na zona paracortical. Pulmões Desde os relatos iniciais da LV, tosse é referida como uma manifestação muito comum nos pacientes; todavia, na maioria das vezes os sintomas respiratórios eram considerados resultantes de broncopneumonia bacteriana ou de pneumonia viral. A análise cuidadosa das descrições clínicas de pacientes com LV, no entanto, revela em todos eles um tipo de tosse seca e persistente que surge precocemente, prolonga-se por todo o período de estado da doença e desaparece após a cura. Esse tipo de tosse resulta de pneumonia intersticial, descrita inicialmente em necrópsias de pacientes com LV. Apesar de pouco investigado, esse envolvimento pulmonar é frequente. Em estudo de necropsias, encontrou-se pneumonia intersticial em 77% dos casos. Os pulmões estão aumentados de volume, são congestos e consistentes e, à palpação, mostram textura mais elástica do que a habitual. Aos cortes, nota-se acentuação da lobulação e proeminência do interstício axial. Histologicamente, a pneumonia intersticial na LV caracteriza-se por espessamento dos septos alveolares por macrófagos, linfócitos e plasmócitos. Há também aumento das células intersticiais septais contendo vacúolos de gordura, congestão de capilares septais e edema discreto. O comprometimento septal é multifocal, de distribuição e intensidade irregulares. Infecção experimental com L. (L.) donovani e L. (L.) chagasi em hamsters permite constatar que pneumonia intersticial acomete cerca de 85% dos animais infectados e evolui em três fases.