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ANALÓGOS182 HISTÓRIA PARA LIBERTAR DA HISTÓRIA: BENEDETTO CROCE Pedro Duarte de Andrade Doutorando pela PUC-Rio. p.d.andrade@gmail.com Resumo Pode a história ter um sentido? Benedetto Croce, sem partilhar das soluções das modernas filosofias da história de Kant, Hegel ou Marx, acreditava que sim. Bucou preservar a liberdade humana na história e, mais que isso, fundar nela toda a possibilidade da história. *** Pode a história ter um sentido? Nossa resposta moderna costumaz a esta pergunta, aprendida pelo menos desde o século XVIII, com Kant, é que, se olharmos para o conjunto da história ao invés de nos fixarmos nos eventos particulares e naquilo que pretendem seus agentes, sim, a história pode ter sentido. Se nos afastamos dos casos particulares, acreditamos sermos capazes de descobrir, por trás deles e a despeito das intenções de seus protagonistas, um curso ou, como o chamou Kant, um "fio condutor" da história que lhe dará sentido. Mas será que esta resposta moderna ainda nos satisfaz? Se formos julgar pela produção intelectual do século XX, parece que não. Pelo contrário, a pergunta sobre o sentido da história ganhou nova intensidade no século passado, pois os horrores de duas guerras mundiais e o advento dos regimes totalitários colocaram em dúvida não apenas seu suposto progresso, ou seja, sua direção, mas também a possibilidade de que ela tivesse um significado. Entrava em crise a confiança em uma coerência absoluta dos diversos acontecimentos entre si, especialmente se ela fosse um avanço para o melhor, o que ameaçava deixar a história como mero amontoado de fatos sem sentido, abandonada à "melancólica casualidade" de que falava Kant. Poucos pensadores expressaram esta crise de forma tão profunda quanto Walter Benjamin. Mas ela foi também, para ele, a oportunidade de tornar patente a insustentabilidade da compreensão moderna de história que surgiu no século XVIII, vicejou no século XIX e ainda embasou os ideais do século XX. Em 1940, nas suas famosas teses sobre o conceito de história, Benjamin 183 deixou isso claro, ao comentar que o assombro com o fato de os episódios do seu século "ainda" serem possíveis não era propriamente filosófico, já que não gerava conhecimento algum, a não ser o de que "a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável". *** Foi no meio deste clima que Benedetto Croce publicou História como história da liberdade, em 1938, livro que espelha seu enorme esforço para manter a dignidade da história como forma de conhecimento sem descartar a exigência de fazer justiça às particularidades que a compõem. Não estranha, por isso, que Benjamin tenha sentido, já em A origem do drama barroco alemão, de 1924, a importância das reflexões de Croce. É que Benjamin também buscava um conceito de história que pudesse "salvar os fenômenos", ou seja, que pudesse dar conta das singularidades numa unidade sem, entretanto, apagá-las ou diluí-las em prol desta unidade. Nada mais natural, portanto, que ambos, Benjamin e Croce, tenham sido pensadores devotados à arte. Sabemos bem que o campo da estética é, por excelência, o lugar onde as tentativas filosóficas de generalização e conceituação são problematizadas, já que o material com que lidam encontra seu ser justamente nas singularidades irredutíveis que o compõem. Nenhuma obra de arte é igual a outra. Esta incontornável resistência das obras de arte às classificações sumárias parece ter sido a escola onde diversos pensadores contemporâneos, como Benjamin e Croce, buscaram aprender outra compreensão de história, que pudesse fazer justiça às suas particularidades, e não simplesmente abstraí-las. É esta compreensão da história em geral, já não mais atrelada ao campo especificamente estético ao qual Benedetto Croce dedicou boa parte de sua obra, que aparece em História como história da liberdade, considerado por Otto Maria Carpeaux "talvez o mais belo entre muitos livros belos do grande filósofo, historiador e crítico". Típico intelectual italiano, com participação na vida política de seu país, Croce escreveu esses textos no calor da hora do fascismo, quando Mussolini estava no poder. Mas eles não trazem crítica ostensiva ao regime, a despeito de Croce ter sido seu conhecido opositor. Ele escreveu importante manifesto, colhendo assinaturas de destacadas figuras italianas, contra o fascismo. Sua reputação, então, já era grande. No campo intelectual, sua Estética, de 1902, bem como sua Lógica e sua Filosofia da Prática, ambas de 1908, o colocaram em lugar de evidência. Não bastasse isso, ele tinha sido secretário de Educação no governo que antecedeu o de ANALÓGOS184 Mussolini. Tudo isso impediu que fosse preso durante o fascismo. Mas não impediu muitas represálias: foi colocado sob vigilância permanente, não podia ser mencionado em jornais, seus livros não podiam constar nas listas acadêmicas e só podiam ficar nas livrarias de modo discreto. Nada disso, porém, fez com que Croce cedesse à tentação panfletária de atacar o regime italiano de modo simplista em seus escritos teóricos. Sua História como história da liberdade, portanto, traz profunda crítica ao fascismo, mas que, por isso mesmo, não aparece superficialmente. É que seu enfoque dirige-se menos ao regime propriamente e mais à lógica histórica que o sustentava, numa direção interpretativa que, mais tarde, ganharia força com a obra Origens do totalitarismo, escrita por Hannah Arendt em 1951. Num dos raros momentos em que Croce se refere concretamente ao totalitarismo, repudia o uso do termo, pois considera que ele sugere uma "total cooperação harmoniosa", quando em jogo está uma "sujeição abrangente e total". Ele prefere falar de autoritarismo (nisso, ele se diferencia de Arendt, que preferia o termo "totalitarismo"). Esta sujeição abrangente e total, não por acaso, é a mesma que ele encontra na lógica das modernas filosofias da história, que tendem a esmagar a liberdade que advém das singularidades das ações humanas sob o peso metafísico de uma ordem histórica totalizante. *** Essas filosofias determinaram uma lógica para o movimento da história, pela qual seu começo, seu desenvolvimento e seu fim poderiam ser revelados pelo historiador. Este historiador ideal deveria encontrar, por trás da aparente dispersão dos acontecimentos, um modelo oculto que propiciasse uma interpretação verdadeira e última. Lembremos de Kant, Hegel ou Marx. Em todos eles, a despeito de suas diferenças, figuras como "Plano da Natureza", "Espírito" ou "Luta de Classes" aparecem como idéias diretrizes que governam a história. É através delas que temos a chance de compreender as díspares ações singulares dos homens. É que, na verdade, essas ações só são dispersas se vistas apenas em si mesmas. Já quando vistas do ponto de vista da idéia que as governa, mas que age por trás delas, tornam-se compreensíveis. Hegel não dizia que Napoleão era o Espírito andando a cavalo? Ele chamou, com acerto, de "astúcia da razão" este estratagema pelo qual cada homem, ao agir, imagina seguir seus desígnios e suas vontades quando, na verdade, obedece, sem o saber, a uma lei racional que o transcende. Era a idéia de história que governava a história através dos fatos. 185 Embora numa versão secular, era ainda a idéia cristã de uma providência divina guiando a humanidade rumo à salvação que daria sentido à história, como mostrou, convincentemente, Karl Löwith. Foi isso que Hannah Arendt, nos anos 1950, chamou de caráter processual da concepção moderna de história, frisando que isso caracterizava um distanciamento em relação aos acontecimentos empíricos. Pois o conceito de processo implica a dissociação entre o concreto e o geral, a coisa ou evento singular e o significado universal. Desse modo, o processo, que torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquiriu o monopólio de universalidade e significação. Essa idéia de processo histórico, portanto, dava explicação geral dos casos particulares que ela reunia. Toda possibilidade de significação doseventos singulares ficava, assim, na dependência exclusiva de que eles fossem absorvidos numa categoria geral. É o que Croce chama de "necessidade transcendental" imposta à história, pois supõe a descoberta de uma matriz explicativa para a realidade que se situa além dela e, de lá, faz com que a realidade seja tal como é. Daí seu repúdio aos conceitos de "Deus", "Espírito", "Matéria", "Idéia" ou "Vontade", sempre que usados desse modo. Este mesmo repúdio sente Croce diante do que chama de "necessidade causal", típica do naturalismo e do positivismo. Mais uma vez, Benjamin o acompanha nesta crítica, pois rechaça toda concepção que "se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história". No caso de Croce, isso aparece como recusa de todo determinismo entre acontecimentos precedentes e aqueles que se seguem, pois ele considera que o conceito de "causa" pertence à ciência natural e lá deve permanecer. Não se pode subestimar o alcance crítico desta recusa, já que Croce sublinha que o conceito de "raça", por exemplo, deve ser subsumido sob o de "causa" e, por isso, afastado. Deste modo, era desbancada, também, a possibilidade de um cálculo sobre o futuro, uma vez que a história não poderia jamais ter suas relações previstas. E aí aparece o grande desafio de Croce: preservar a liberdade humana na história e, mais que isso, fundar nela toda a possibilidade da história. Não se trata, portanto, de opor o reino da necessidade histórica ao da liberdade humana, mas de fundamentar aquela sobre esta. História como história da liberdade. *** Sendo assim, Croce forjará uma explicação racional da necessidade histórica positivamente relacionada à liberdade da vida moral, ou seja, da vida prática das ações dos homens. Para ele, só somos o que somos porque ANALÓGOS186 temos a história que temos. Isso nos impede de olhar para a história como algo que não precisaria ter sido tal como foi, porque isso implicaria nós não sermos quem somos. E é só já sendo estes que somos que olhamos para o passado, que fazemos história. Isto, aliás, dá à história o estatuto de único verdadeiro conhecimento, pois, seguindo a herança do pioneiro Giambattista Vico, Croce acredita que só conhecemos aquilo que fazemos: a história. Por isso, "a história exige uma afirmação de verdade que brote de nossa experiência íntima", o que significa que a história é um ato de compreensão induzido pela exigência prática. É esta que, quando não se resolve no âmbito da ação, requer o entendimento e, assim, uma auto-compreensão. Por isso, Croce afirma que, num certo sentido, toda história é sempre "história contemporânea", uma vez que os acontecimentos nela relatados, por mais remotos que sejam, vibram é de acordo com as situações práticas presentes. Há, assim, um "círculo do espírito", pelo qual o conhecimento é necessário para a prática e esta, por sua vez, é necessária para o conhecimento, mas não numa relação de determinação, pois Croce rejeita, numa crítica profética, a substituição dos políticos pelos técnicos, especialistas e administradores, que tiram das ações seu quinhão de intuição, decisão e coragem. É que "a ação, por mais idealmente correlacionada que esteja com a visão histórica que a precede e a condiciona, é um ato tão completamente novo e diferente que por sua vez proverá o material para uma nova e diferente visão histórica". Por isso, História como história da liberdade não é um livro apenas sobre história, mas também sobre liberdade, esta que, segundo Hannah Arendt, é a razão de ser da política. Mais ainda, sua tarefa é encontrar um conceito de história que, sem abrir mão da construção de uma totalidade, possa acolher o caráter "completamente novo e diferente" de toda ação. Em suma, trata-se de uma história que, ao contrário das filosofias modernas, possa fazer justiça ao caráter de início ou, como chamou Hannah Arendt, de "natalidade" das ações humanas. Hannah Arendt enxergou, na crise contemporânea da concepção de história, a possibilidade de um movimento na contramão do que entendia como fuga moderna da política para a história. Para ela, na verdade, o início da era moderna presenciou o nascimento incipiente de filosofias de fato políticas: Maquiavel, Hobbes. Porém, elas foram logo engolfadas pela máquina da história: Hegel, Marx. Estas últimas foram, assim, uma "fuga para o 'todo', incitada pela ausência de significado do particular". Teria sido, portanto, pelo sacrifício do âmbito das ações políticas como dignas de significado que se teria afirmado a história na modernidade. Embora enxergue este problema, Benedetto Croce busca formular um conceito e um modo de fazer história que não usurpem a significação 187 propriamente política das ações, pois isso seria usurpar o lugar da liberdade entre os homens. Bem consciente do perigo que representa a história, já que ela ameaça interpretar o que é espontâneo e novo através de leis transcendentes e causais que se pretendem necessárias, Croce parte em busca de uma outra história. Parte em busca de uma história que possa acolher o que acontece de novo no mundo e, até, estimular isso. *** Eis o que permite a ousada formulação de Croce de que "a escrita da história liberta-nos da história". Ele quer uma história que seja estimulante para a prática. "Esse conhecimento é vida, e a vida convida à vida", diz ele. Seu problema é o de como podemos, sendo produtos do passado e vivendo imersos nele, deslocar- nos para uma nova vida. Este deslocamento depende do enfrentamento do passado no pensamento, na escrita da história - tese que dá à história o seu teor filosófico, mas, também, significa a absorção da filosofia pela história. Pois o enfrentamento do passado é infinito. Croce recusa "uma condição de vida final ou paradisíaca", donde deriva sua negação também da idéia de utopia. É o que ele critica em Hegel e, sobretudo, Marx. Daí surge seu singular conceito de progresso, como "forma sempre mais elevada e mais complexa do sofrimento humano". Seu modelo de história que permite vislumbrar um tal progresso, como se poderia esperar tendo em vista a importância da estética para ele, é artístico: "no tocante a todos os aspectos da vida, o historiador, na medida em que é movido por um impulso no sentido do futuro, olha para o passado com o olho do artista e vê as obras do homem sob essa luz, perfeitas e imperfeitas, transitórias e permanentes". No âmbito mais geral da moral, é a liberdade que movimenta a história. Isso não significa "atribuir à história a tarefa de criar uma liberdade que não existia no passado mas existirá no futuro". Não há um começo que possa ser datado para a liberdade, pois ela não é um fato, mas uma idéia. E idéias "não são fatos históricos, mas os criadores dos fatos da história", são "um incitamento ao contínuo crescimento da vida". Liberdade é o motor que faz com que, sempre de novo, haja história, sejam os tempos melhores ou piores, mesmo que apenas uma pequena elite o perceba. Por isso, Croce não podia aceitar, por mais motivos que tivessem os pessimistas de seu tempo, que a liberdade tivesse abandonado o mundo. Pois, para ele, liberdade era um ideal, jamais completamente atingido porque sempre implicitamente presente, fazendo "o coração do homem, em sua condição humana, bater". ANALÓGOS188 Referências ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. __________. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas - vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1994. CROCE, Benedetto. História como história da liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. LÖWITH, Karl. O sentido da história. Lisboa: Edições 70, 1990.