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Tempo de transcendência BOFF-1

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Leonardo Boff
TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA
O Ser Humano como
um Projeto Infinito
Lumensana
Publicações Eletrônicas
Organização, Digitalização e 
Projeto gráfico-eletrônico
Luiz Edgar de Carvalho
Fonte: Leonardo Boff, Tempo de transcendência
Editora Sextante, 2000
1
Nota Preliminar
O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anuncia 
aquilo para que o ser humano foi essencialmente criado, e 
denuncia os esquemas que atentam contra o seu destino. É 
isso que Leonardo Boff faz em Tempo de Transcendência, 
levando-nos a descobrir dimensões capazes de promover 
nossa realização e assim conquistar a paz e a felicidade que 
buscamos.
Somos seres de enraizamento e de abertura. A raiz que 
nos limita é nossa dimensão de imanência. A abertura que 
nos faz romper barreiras e ultrapassar todos os limites, 
impulsionando a busca permanente por novos mundos, é 
nossa transcendência.
Leonardo Boff define e ilustra a transcendência. 
Descreve os lugares privilegiados onde ela se dá, 
desvendando-a nos grandes e pequenos acontecimentos, 
dando-nos olhos para enriquecer gestos e momentos do 
cotidiano.
A partir daí denuncia as falsas transcendências com que 
a cultura atual investe para responder a essa busca 
fundamental do ser humano, empobrecendo-o e frustrando 
sua procura. Denuncia mesmo as religiões quando se 
apresentam como as únicas intermediárias para alcançar o 
transcendente e procuram enquadrar-nos com suas normas e 
verdades absolutas.
Quem preenche o vazio que existe no ser humano? Boff 
enumera três respostas a esta questão e identifica-se com 
2
aquela que dá nome a esse objeto do nosso desejo, 
chamando-o de Deus, Olorum, Tao, Javé. Mil nomes para 
essa realidade que brilha, que ilumina e que é a dimensão 
mais profunda de nós mesmos.
Uma reflexão sobre masculino-feminino e sobre a 
ecologia completa a função profética do texto. A 
humanidade e o mundo novo serão construídos quando o 
ser humano se engajar num projeto político que gere 
alianças, supere divergências e respeite a diversidade, 
criando uma esplêndida solidariedade cósmica.
3
LEONARDO BOFF
TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA
Ao falar sobre o tempo da transcendência, é necessário 
começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande 
poeta argentino Martín Fierro o entende. Ele diz que o 
tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Acho genial 
essa formulação, pois mostra o processo de realização do 
tempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente.
1 – SOMOS SERES DE PROTEST-AÇÃO
Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais 
secreto e escondido do ser humano. Porque nós, seres 
humanos, homens e mulheres, na verdade, somos 
protestantes, somos essencialmente seres de protest-ação, 
de ação de protesto. Protestamos continuamente. 
Recusamo-nos a aceitar a realidade na qual estamos 
mergulhados porque somos mais, e nos sentimos maiores 
do que tudo o que nos cerca.
Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. 
Não há sistema militar mais duro, não há nazismo mais 
feroz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que 
possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra alguma 
coisa nele. E não há sistema social, por mais fechado que 
seja, que não tenha brechas por onde o ser humano possa 
entrar, fazendo explodir essa realidade. Por mais 
aprisionado que ele esteja, nos fundos da Terra, ou dentro 
4
de uma nave espacial no espaço exterior, mesmo aí o ser 
humano transcende tudo. Porque, com seu pensamento, ele 
habita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso, nós, 
seres humanos, temos uma existência condenada – 
condenada a abrir caminhos, sempre novos e sempre 
surpreendentes.
Há um grande filósofo italiano que viveu há muitos 
anos e que me inspirou muito em minha juventude: 
Michiele Federico Sciacca. Hoje, ninguém mais sabe dele. 
Escreveu um livro cujo título é L’uomo, questo squilibrato 
(O ser humano, esse desequilibrado). Não cabe nenhum 
equilíbrio. Ele sempre está fora do centro, longe do 
equilíbrio.
Ao falar de transcendência como dimensão intrínseca 
do ser humano, temos que submeter a rigorosa crítica o que 
as religiões nos legaram. Elas afirmam que o Céu fica lá em 
cima, onde está Deus, os santos e aquele mundo que 
chamam de transcendente. Aqui embaixo fica a imanência, 
onde está a criação sobre a qual nós reinamos. Os dois 
mundos se justapõem e até se contrapõem. Através de toda 
a mecânica da oração e da meditação buscamos criar pontes 
para chegar ao Céu, à transcendência e a Deus.
Caso não consigamos por nós mesmos chegar a Deus, 
as religiões se propõem como mediadoras. Os filósofos, no 
entanto, nos dizem: “Tudo isso é metafísica”. O que 
significa: tudo isso é uma representação e uma projeção 
nossa, não é a realidade originária. É invenção nossa. 
Talvez a primeira metafísica, a primeira representação do 
mundo forjada pelos seres humanos, já nos ancestrais – 
quem sabe quando surgiu a primeira luz de inteligência, há 
quase dez milhões de anos –, tenham sido as religiões. 
5
Porque elas são metafísicas, são representações do mundo: 
céu / inferno, lá / aqui, Deus / mundo, corpo / alma, 
imanência / transcendência.
Uma reflexão mais profunda, entretanto, aquela que 
busca o pensamento originário, aquele grau zero da 
existência, se dá conta de que se trata de invenção e de 
projeção humanas. Quando afirmamos isso, irritamos todos 
os crentes. Aqueles que defendem os catecismos se sentem 
desnorteados. Mas nós temos que pensar a realidade, não os 
catecismos. Eles são interpretações religiosas da realidade e 
como tais não perdem o seu valor. São, porém, 
interpretação de algo anterior a eles, algo que queremos 
decifrar.
2 – A EXPERIÊNCIA ORIGINÁRIA:
EX-ISTÊNCIA
O que é anterior e o que subjaz às expressões 
imanência-transcendência? É a experiência do próprio ser 
humano como um ser histórico, um ser que está se fazendo 
continuamente. É o que chamamos de experiência 
originária. Quando falamos filosoficamente em existência, 
dizemos: ex-istência. Estamos sempre nos projetando para 
fora (ex), construindo nosso ser. Nós não o ganhamos 
pronto. Nós o moldamos mediante a nossa liberdade, 
mediante os enfrentamentos e intimidações do real. Ao 
reagir, assumir, rejeitar e modelar, vamos construindo a 
nossa ex-istência. O ser humano é um ser nunca pronto, por 
isso não há antropologia, há antropogênese, que é a gênese 
do ser humano. Nessa experiência emerge aquilo que 
somos, seres de imanência e de transcendência, como 
dimensões de um único ser humano. Imanência e 
6
transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas 
dimensões de uma única realidade que somos nós.
Então, a afirmação de base de uma atitude radicalmente 
filosofante, que procura ver atrás das coisas, detecta aquele 
motor secreto que faz nascer tudo e que move o surgimento 
das projeções: a própria ex-istência humana sempre em 
aberto, sempre se construindo.
Usando uma metáfora, eu diria que somos seres de 
enraizamento e seres de abertura. Primeiramente nos 
sentimos seres enraizados. Temos raiz, como uma árvore. E 
a raiz nos limita, porque nascemos numa determinada 
família, numa língua especifica, com um capital limitado de 
inteligência, de afetividade, de amorosidade. Ademais, 
temos a dimensão sã e também a dimensão patológica. 
Porque não somos só homo sapiens sapiens. Somos hoje, 
fundamentalmente, homo demens, duplamente demens, 
coisa esquecida na modernidade iluminista. Hoje somos 
dementes, em grau supremo. É a nossa situação. É o nosso 
arranjo existencial. Eis nosso enraizamento, nossa 
imanência.
Massomos simultaneamente seres de abertura. 
Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra as 
emoções. Elas podem nos levar longe no universo. Podem 
estar na pessoa amada, podem estar no coração de Deus. 
Rompemos tudo, ninguém nos aprisiona. Mesmo que os 
escravos sejam mantidos nos calabouços e obrigados a 
cantar hinos à liberdade, são livres, porque sempre 
nasceram livres, e sua essência está na liberdade.
Então, possuímos essa dimensão de abertura, de romper 
barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os 
7
limites. É isso que chamamos de transcendência. Essa é 
uma estrutura de base do ser humano.
3 – TRANSCENDÊNCIA:
CAPACIDADE DE ROMPER INTERDITOS
Inicialmente, a dimensão de transcendência não tem 
nada a ver com as religiões, embora elas procurem 
monopolizar a transcendência. Elas afirmam: “Deus está na 
transcendência, habita numa luz inacessível, e nós temos 
sua revelação, a chave para falarmos Dele”. Isso é pura 
metafísica, uma tradução da experiência originária, mas não 
é a experiência originária.
Se assim é, podemos então dizer: todos os tempos são 
tempos de transcendência. O tempo do homem de 
Neandertal era tempo de transcendência; o australopiteco 
piticino, que era uma mulher, Luci, era uma mulher de 
transcendência. Ela deixou as florestas da África e começou 
a andar na savana árida, e, como ali era muito seco, foi 
preciso desenvolver o cérebro para sobreviver. Assim, 
lentamente, irromperam como seres humanos. Os demais 
irmãos que ficaram na floresta, cheios da abundância dos 
meios de vida e das frutas, continuam lá como primatas até 
hoje. Então, o sertão, a seca, o deserto são a pátria da 
humanidade, da transcendência. Fomos obrigados a 
transcender os limites impostos pelo meio para podermos 
viver. Então, transcendência, fundamentalmente, é essa 
capacidade de romper todos os limites, superar e violar os 
interditos, projetar-se sempre num mais além.
Para dar um exemplo dessa dimensão, vamos escolher a 
primeira página do Gênesis, a famosa história de Adão e 
8
Eva. Ela pode ser lida em muitos códigos. O cristianismo, a 
tradição judeu-cristã, lê num código religioso, fala de 
pecado original, tudo aquilo que já sabemos. Mas a leitura 
antropológica e filosófica descobre aí o ato supremo do ser 
humano: “Você não pode comer da fruta proibida; se comer, 
você morre.” E o ser humano tem o prazer de violar o 
interdito, de fazer a coisa proibida. Não existe tentação 
maior. E ele viola, descobre a sua realidade de 
transcendência, se transforma em humano. Isso faz com que 
essa passagem bíblica seja grandiosa, reveladora da 
essência da liberdade.
Mas voltemos ao Brasil. Os carajás têm um mito 
fantástico. A cultura carajá no Bananal é riquíssima em 
mitos preciosos, e este especialmente dá bem a dimensão da 
transcendência. Segundo o relato dos carajás, o Criador os 
fez imortais. Eles viviam como peixes na água, nos rios, 
nos lagos. Não conheciam o sol, a lua, as estrelas, nada, 
apenas as águas. No fundo de cada rio onde estavam havia 
sempre um buraco de onde saia uma luz com grande 
intensidade. E este era o preceito do Criador: “Vocês não 
podem entrar nesse buraco, senão perderão a imortalidade.” 
Eles circundavam o buraco, deixando-se iluminar com as 
cores e sua luz, mas respeitavam o preceito, apesar de ser 
grande a tentação. “O que tem lá dentro?”
Até que um dia, um carajá afoito se meteu pelo buraco 
adentro. E caiu nas praias esplêndidas do rio Araguaia, que 
são praias alvíssimas, belíssimas. Ficou maravilhado. Viu o 
sol, pássaros, paisagens soberbas, flores, borboletas. Por 
onde dirigia o olhar ficava cada vez mais boquiaberto. E 
quando chegou o entardecer, e o sol sumiu, pensou em 
voltar para os irmãos. Mas aí apareceram a lua e as estrelas. 
Ficou ainda mais embasbacado e passou a noite se 
9
admirando da grandiosidade do universo.
E quando pensou que já ia avançado na noite, o sol 
começou a despontar. Ao lembrar-se dos irmãos, ele 
retornou pelo buraco. Reuniu todos e contou: “Irmãos e 
irmãs, meus parentes, vi uma coisa extraordinária, que 
vocês não podem imaginar.” E descreveu sua experiência. 
Aí, todos queriam passar pelo buraco luminoso. Então, os 
sábios disseram: “Mas o Criador é tão bondoso conosco, 
nos deu a imortalidade, vamos consultá-lo.” E foram 
consultar o Criador, dizendo: “Pai, deixe-nos passar pelo 
buraco. É tão extraordinária aquela realidade que o nosso 
irmão afoito nos descreveu.” E o Criador, com certa 
tristeza, respondeu: “Realmente, é uma realidade 
esplêndida. As praias são lindíssimas, a floresta apresenta 
uma biodiversidade fantástica.” (O Criador já falava o 
nosso dialeto moderno.) E continuou: “Vocês podem ir para 
lá, mas há um preço a pagar. Vocês perderão a 
imortalidade.”
Todos se entreolharam e se voltaram para o carajá afoito 
que primeiro violara o preceito. E decidiram passar pelo 
buraco, renunciando à imortalidade. A divindade então lhes 
disse: “Eu respeito a decisão que tomaram. Vocês terão 
experiências fantásticas de beleza, de grandiosidade, mas 
tudo será efêmero. Tudo vai nascer, crescer, madurar, decair 
e por fim morrer. Vocês participarão desse ciclo. É isso que 
querem?” E todos, unanimemente, afirmaram: “Queremos.” 
E foram. Cometeram o ato de suprema coragem para terem 
a liberdade de viver a experiência da transcendência. 
Renunciaram à vitalidade perene, renunciaram à 
imortalidade. E até hoje estão lá, os carajás, naquelas praias 
lindíssimas. Se um dia vocês forem visitá-los, vão encontrá-
los rolando nas areias, mergulhando nas águas muito 
10
verdes, mas profundamente livres. Talvez seja a cultura que 
mais aprecia a liberdade.
Os carajás fizeram a experiência da transcendência. 
Essa passagem é a transcendência que revela a 
grandiosidade do ser humano, mas também sua 
dramaticidade, pois ele deve morrer tendo sempre o desejo 
de viver.
4 – SER HUMANO: UM NÓ DE RELAÇÕES
O que é o ser humano, então? É um ser de abertura. É 
um ser concreto, situado, mas aberto. É um nó de relações, 
voltado em todas as direções. Já dizia o grande “filósofo” 
(comunicador) Chacrinha: “Quem não se comunica se 
estrumbica.” É só se comunicando, realizando essa 
transcendência concreta na comunicação, que o ser humano 
constrói a si mesmo. É só saindo de si, que fica em casa. É 
só dando de si, que recebe. Ele é um ser em potencialidade 
permanente. Então, o ser humano é um ser de abertura, um 
ser potencial, um ser utópico. Sonha para além daquilo que 
é dado e feito. E sempre acrescenta algo ao real.
Emile Durkheim, um dos fundadores da sociologia, fala 
da singularidade do ser humano como ser social, capaz de 
criar utopia, de acrescentar algo ao real. É algo exclusivo 
dele, nenhum animal é capaz de utopia. Por isso, ele cria 
símbolos, cria projeções, cria sonhos. Porque ele vê o real 
transfigurado. Essa capacidade é o que nós chamamos de 
transcendência, isto é, transcende, rompe, vai para além 
daquilo que é dado. Numa palavra, eu diria que o ser 
humano é um projeto infinito. Um projeto que não encontra 
neste mundo o quadro para sua realização. Por isso é um 
11
errante, em busca de novos mundos e novas paisagens. A 
conclusão que tiramos desse fato é que não devemos nos 
deixar enquadrar por ninguém, por papa nenhum, por 
governo nenhum, por ideologia nenhuma, por revelação 
nenhuma. Por nada no mundo, porque tudo é menor. O ser 
humano é um projeto ilimitado, transcendente, não dá para 
ser enquadrado. Ele pode, amorosamente, acolher o outro 
dentro de si. Pode servi-lo, ultrapassando limites. Mas é só 
na sua liberdade que ele o faz, é só quando se decide a isso,sem nenhuma imposição. Não há nada que possa enquadrá-
lo, nenhuma fórmula cientifica, nenhum modo de produção, 
nenhum sistema de convivialidade. Nem mesmo o nosso 
moderno sistema globalizado, dentro do pensamento único 
que afirma “não há alternativa para ele”, reforçado pelo 
fundamentalismo da economia de hoje, que garante que “só 
existe o modo de produção capitalista global, com sua 
ideologia política, o neoliberalismo, não há outro caminho a 
seguir”.
Essa concepção supõe um conceito pobre do ser 
humano. Transforma-o, no fundo, num mero consumidor, 
que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para 
projetar. Quem defende e pratica essa concepção não está 
interessado em formar um cidadão criativo, capaz de pensar 
por si e plasmar o seu próprio destino. Está interessado em 
gerar consumidores, agalinhados em seus poleiros, perdidos 
da sua identidade de serem águias. Em nome da nossa 
transcendência, protestamos contra esse modo de realizar o 
processo de globalização que, em si, representa um patamar 
novo da história humana.
O ser humano é um ser criativo, pensa alternativas. E, 
se não consegue pensar, resiste e se rebela, levanta-se e 
protesta, ocupa terras e funda uma outra ordem, um outro 
12
direito difuso ligado à vida, ligado à liberdade. Não é o 
direito que enquadra, que privilegia, que afirma “essa é a 
norma, isso é o correto, isso é o constitucional.” A vida, 
especialmente quando submetida a coação, busca e cria 
outras formas de ordenação. É sua transcendência que lhe 
confere essa liberdade criativa. Liberdade pelo menos de 
protestar e de se insurgir. E quando a opressão é de tal 
forma pesada, em face da qual não se pode mais fazer nada, 
pelo menos pode-se protestar, pode-se fazer uma absoluta 
recusa. Pode-se torturar o ser humano, e até matá-lo, mas 
ninguém lhe tira essa sua capacidade de se opor. 
Então, meus irmãos e minhas irmãs, olhem ao redor e 
vejam os sistemas que nos querem enquadrar hoje. Na 
educação, na família, na escola, nas religiões. Não nos 
deixemos mediocrizar, mantenhamos nossa grandeza, nossa 
capacidade de vôo, nossa capacidade de transcendência.
5 – LUGARES PRIVILEGIADOS
DE EXPERIÊNCIA DA TRANSCENDÊNCIA
Onde fazemos quotidianamente a experiência da 
transcendência? Considero que há alguns eixos existenciais 
pelos quais todos nós passamos e onde fazemos uma 
experiência de transcendência límpida, cristalina, que não 
precisa de explicação, de nenhuma retórica interpretativa.
Para mim, a experiência mais fundamental, aquela que 
toca a profundidade de nós mesmos, é a do enamoramento. 
Quando a pessoa se enamora, a outra vira uma divindade. 
Não se mede sacrifícios, o tempo não conta. Você cancela 
tudo, chega a mentir para se encontrar com a pessoa amada. 
Por que? Porque você sai de si e vai ao encontro do outro. É 
13
uma experiência de êxtase, extática, fora da realidade. Não 
há quem não se enamore.
Machado de Assis, no Dom Casmurro, descreve o 
fenômeno do enamoramento com referência a Capitu: 
“Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que 
ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. 
Eu amava Capitu! Capitu amava-me. E as minhas pernas 
andavam, desandavam, estavam trêmulas e crentes de 
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa 
revelação da consciência a si própria, nunca mais me 
esqueceu, nem achei que lhes fosse comparável a qualquer 
outra sensação da mesma espécie.”
Eis uma experiência de transcendência. Experiência do 
encontro entre duas pessoas que se enamoram e se amam. E 
quando se dá a intimidade sexual, expressão do amor, uma 
se perde para dentro da outra e esquece-se o tempo. Vive 
uma experiência mística, de antecipação da eternidade. 
Todos os místicos, quando estão no auge do seu 
enamoramento com Deus, falam do esponsal: “do amado na 
amada transformado”, como diz São João da Cruz. Porque 
esta é uma experiência suprema, em que os seres humanos 
saltam na direção do outro, numa fusão gratificante. É uma 
experiência só comparável à da intimidade, da erótica. 
A experiência da transcendência se manifesta de modo 
especial na cultura popular, que é a cultura massacrada do 
salário mínimo, da destruição do horizonte utópico, da 
frustração de que, no fundo, nada mais vai mudar. Conheço 
um torcedor que antes de um grande jogo, decisivo, vai até 
dormir mais cedo para que o tempo passe mais depressa, tal 
é o desejo de ver seu time jogar. Quando chega o dia 
compra antecipadamente a entrada, vai ao estádio e aí 
14
ninguém o contém. Ele freme, ele treme e na hora do gol 
experimenta um salto para a transcendência. É o delírio, é o 
grito, é o abraço, é o gozo, é o êxtase.
Ou então, quando chega o carnaval, e a sua escola 
desfila e ganha, se não tem um foguete, mas uma arma, ele 
chega a dar tiros para o ar, tal é a experiência de saída de si 
mesmo, de límpida transcendência.
Quando refletia sobre a transcendência para esta 
palestra, li num jornal uma notícia reveladora de uma 
experiência dupla de transcendência. Pobres sem-terra de 
favelas, que nunca tinham estado num shopping, 
resolveram se organizar para visitar um, sem nenhuma 
intenção de assaltar, de fazer confusão, nada. “Vamos 
visitar um shopping.”
E foram, na pobreza em que estavam, descalços, sujos, 
roupas malcheirosas, sinais da cultura da miséria. E no 
shopping Rio Sul do Rio de Janeiro se deu a experiência de 
uma dupla transcendência. Eles ficaram encantados. Um 
oásis de consumo, uma beleza sem contradições. Cada loja 
mais linda do que a outra. Numa um deles entrou, até 
experimentou uma roupa. Que coisa bonita! Um paraíso 
encantado de produtos. Nunca tinham visto tal profusão. Se 
há um paraíso terrenal, de produtos materiais, o shopping o 
realiza. Mas o realiza só para alguns. Então aqueles sem-
terra tiveram uma experiência fantástica de transcendência 
de seu melancólico cotidiano. E os donos das lojas e os 
freqüentadores do shopping também tiveram uma 
experiência de transcendência. “Como é possível que esses 
venham para cá?” Alguns fecharam as lojas. “Vão nos 
assaltar, vão nos roubar.” E eles, nada disso. Só queriam 
visitar. “São ETs que vieram de outros planetas, de outros 
15
continentes, e entraram nesse país fechado do moderno 
consumo. Eles não cabem aqui. São os zeros econômicos, 
não são nem produtores, como querem ser consumidores? 
Não contam na contabilidade nacional, como querem estar 
aqui?”
Vejam, a transcendência ocorre nessas experiências do 
cotidiano banal, do nosso dia-a-dia. Para uma cultura mais 
elaborada há outras experiências de transcendência: ante 
uma peça de teatro, um livro, um filme. “Que beleza de 
enlevo!”, “Vou ver uma grande artista”. Assisti três vezes ao 
filme A Vida é Bela, de Bengnini. É uma experiência 
fantástica de transcendência feita por uma criança no 
transfundo da guerra e do campo de concentração judeu, 
alimentando o sonho de ganhar como presente um tanque 
de guerra. Apesar daquele horror do nazismo e do campo de 
concentração que cristaliza a negação de toda a dignidade 
humana, a possibilidade do ser humano de ultrapassar, de 
viver a transcendência, de garantir o sonho e o humor 
finalmente acaba se realizando: encontra o tanque de guerra 
real, tanque que o vem libertar a ele e a sua mãe.
Nesse contexto não posso deixar de lembrar as 
memórias de Rudolf Hess, diretor nazista do campo de 
extermínio em Auschwitz.
Conta que sua função era a de conduzir os judeus à 
câmara de gás. Fez até os cálculos de quantos ele, sozinho, 
enviara às câmaras de extermínio, e, se bem me lembro, 
cerca de um milhão e trezentas mil pessoas, homens, 
mulheres e crianças. Foi julgadoem Nuremberg e na prisão, 
antes de ser enforcado, teve tempo de escrever suas 
memórias. O que impacta é a frieza com que o faz. 
Absolutamente convencido da retidão de seu 
16
comportamento, pois obedecia ordens de Hitler, o Führer. 
“E o Führer, o Chefe, sempre tem razão.” E aí pratica o mal 
com absoluta boa vontade. Agora entendemos a frase de 
Pascal: “Nunca fazemos tão perfeitamente o mal senão 
quando o fazemos com boa vontade.”
Mas há um momento no livro que me abalou e não 
posso esquecê-lo: é o momento de transcendência dele. Foi 
quando mandou para a câmara de gás uma mulher com 
cinco crianças. A mulher intuiu o que ia acontecer. Ela 
então suplicou de joelhos que ele poupasse as crianças. Por 
um instante ele ficou embaraçado, perplexo, sem saber o 
que fazer. Mas com um gesto brusco mandou que levassem 
todos, a mulher e as crianças. Nas suas memórias, comenta: 
“Aquele olhar da mulher não posso jamais esquecer. Ele me 
persegue sempre, até os dias de hoje, porque havia nele 
tanto enternecimento, tanta súplica, tanta humanidade, que 
eu me senti o inimigo de minha própria humanidade.” É 
uma experiência de transcendência, pelo reverso, possível 
até no nazismo mais brutal.
A transcendência principalmente se dá no encontro com 
as pessoas. Às vezes, acontece: você está numa crise 
existencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavras 
seminais, que lhe acende uma luz, que coloca a mão no seu 
ombro, que aponta um caminho. Não como o mestre, que 
diz “Vá por aí”, mas despertando o mestre escondido em 
você e ajudando-o a definir um caminho de sentido. Você 
tem então uma experiência de transcendência, de ruptura de 
seu círculo fechado, de apoio existencial libertador. Surge 
então o sentimento de veneração por essa pessoa que se 
transforma, por um momento, em um mestre, capaz de 
despertar o seu herói interior adormecido.
17
Não me furto de oferecer uma experiência pessoal de 
transcendência no encontro. Em I998 fui visitar Dom 
Hélder no Recife, em sua igrejinha das Candeias e a meia-
água onde vivia pobremente. Sempre fomos muito amigos. 
Jamais esqueço do bilhetinho manuscrito que me fez chegar 
a mim e a meu irmão Clodovis, também teólogo (a quem 
Dom Hélder considerava como um filho querido). 
Marcamos um encontro às dez horas. Quando cheguei, a 
freira que cuidava dele me disse: “Olha, Dom Hélder estava 
muito cansado e foi descansar. Acho que adormeceu. Se 
quiser, eu o mostro dormindo.” E eu fui ver. Fiquei dez 
minutos, quinze minutos talvez, contemplando aquele 
passarinho dormindo. Com seu habitozinho branco, parecia 
um Gandhi com as suas canelinhas de fora, finas, 
suspirando profundamente.
E eu fiquei enlevado, porque saía dele tanta irradiação, 
tanta leveza, tanta santidade, tanta transcendência, que era 
algo do outro mundo que irrompia ali. Fiz a reverência 
indiana, inclinei-me profundamente, sai de fininho e disse: 
“Olha, entre tantos diálogos que tive com Dom Hélder, este 
foi o mais profundo.” Essa imagem eu quero guardar dele. 
O sono de um profeta, de um Gandhi, de um anjo da paz. 
São pessoas iluminadas. Cada um de nós encontra em sua 
vida pessoas iluminadas. É talvez um avô, uma avó, um tio 
que sofreu muito, um amigo entranhável, uma amiga 
confidente. Às vezes pode ser até o pipoqueiro ou a 
manicure que escutam e sabiamente ponderam e opinam 
com visões surpreendentes, verdadeiramente fantásticas. 
Tenho alguns amigos das camadas populares que eu acho 
geniais. Deviam estar nas universidades falando, nos 
púlpitos pregando e nós só escutando e aprendendo.
Martin Heidegger, que eu considero o maior filósofo do 
18
século XX, apesar do seu nazismo inicial, não quis sair de 
Friburgo, que é uma cidadezinha bem pequena. Ele quis 
ficar lá porque seus grandes amigos, seus interlocutores de 
pensamento, eram Camponeses, lenhadores da Floresta 
Negra com quem ele mantinha grandes diálogos. Ele dizia: 
“Aqui estão os pré-socráticos.” Aqueles do pensamento 
originário, que não estão na metafísica das igrejas, nem na 
metafísica da modernidade, nem na metafísica das 
universidades, estão no chão da vida, em grau zero, colados 
à realidade fundamental da ex-istência como expliquei 
anteriormente. Heidegger dava a entender: “Aqui alimento 
minha reflexão. Não vou a Berlim, a capital da Alemanha, 
com uma cátedra prestigiosa de filosofia. Fico aqui com 
meus lenhadores.” Escreveu um belíssimo texto dando as 
razões de sua permanência na província. Como filósofo, ele 
vivia às voltas com a transcendência. Encontrou e 
identificou a fonte de onde para ele germinava a 
transcendência, cristalina, no trato amical e franco com os 
camponeses.
6 – TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE:
A PSEUDOTRANSCENDÊNCIA
Há também uma pseudotranscendência que a cultura 
atual promove de forma inflacionada. Acho que todo esse 
universo do marketing, do show bizz, do entretenimento 
nacional e mundial são os campos onde se produz uma 
experiência de pseudotranscendência. As menininhas ficam 
loucas quando vêem um artista de televisão e podem tocá-
lo. Deliram quando encontram a Xuxa, porque a Xuxa é 
uma fonte de transcendência construída artificialmente. 
Quando o padre Marcelo Rossi canta, muitos cristãos 
deliram. É como se baixasse o Espírito Santo neles por 
19
força da evocação de emoções. Julgo tais manifestações de 
pseudotranscendência.
E a maior de todas elas é a droga. Ela permite uma 
viagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pela 
química. A religião, a arte, o cinema podem ser drogas. 
Com elas rompem-se todos os limites, vive-se a onipotência 
e se voa para além dos limites da condição humana 
cotidiana. O problema da droga não é a viagem, é a volta da 
viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O 
cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a 
obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir 
horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. 
Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas 
limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e 
a vida.
Julgo que o critério para saber se a transcendência é 
boa, se potencia o ser humano ou o diminui, está na 
resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal 
experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Ela 
representa uma fuga ou um álibi para o cotidiano, um 
endeusamento e uma fetichização daquilo que representa 
sentido para nós? Se a experiência não amplia nossa 
liberdade, não nos dá mais energia para enfrentar os 
desafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não nos 
faz mais compassivos, generosos e solidários, podemos 
seguramente dizer: fizemos uma experiência de 
pseudotranscendência. Saímos mais empobrecidos em 
nossa realidade essencial, que é a de existências que se 
constroem com decisões de liberdade, assumindo 
honestamente os desafios e estando à altura deles. 
Precisamos compreender e assimilar em nossas atitudes que 
não é só poeticamente que habitamos o mundo, quer dizer, 
20
com enlevo, transfiguração e alegria, mas também 
habitamos o mundo prosaicamente, vale dizer, com sua 
opacidade, com seus limites e seu enraizamento inevitável. 
Dessa situação objetiva nenhuma droga nos liberta, só uma 
existência que saiba equilibrar transcendência e imanência 
como dimensões de toda existência humana.
Então, as pseudotranscendências exploram essa 
capacidade de ultrapassagem do ser humano, mas não lhe 
conferem a experiência de uma plenitude duradoura. Não é 
a droga que permite a experiência da viagem, é a química 
presente nela. É diferente a viagem feita a partirde um 
trabalho de busca de sua identidade e de um caminho 
espiritual mais árduo. Um trabalho onde domesticamos 
passo a passo os demônios que nos habitam, sem recalcá-
los, sem cortar-lhes os chifres, mas controlando-os e 
canalizando a energia poderosa deles para o nosso 
crescimento. Porque eles ensejam uma experiência mais 
global da realidade, permitindo que a luz ilumine as trevas e 
que a nossa parte sã cure a parte doentia. Essa é a 
experiência de transcendência fecunda, verdadeiramente 
humana.
7 – O DESEJO E A TRANSCENDÊNCIA
Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja a 
nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais 
profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocou 
como eixo fundamental para entender o motor interno 
humano. A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte da 
dinâmica do desejo não ter limites. Não desejamos só isso e 
aquilo. Desejamos tudo. Não queremos só viver muito, 
queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade. E nos 
21
frustramos, porque o princípio da realidade nos mostra que 
somos mortais. Vamos morrendo devagarzinho, em 
prestações, cada dia, até acabarmos de morrer. Mas o nosso 
desejo é sempre virgem, sempre quer viver mais, quer 
prolongar o tempo, quer transcender a morte. A grande 
chave da pseudotranscendência é manipular nossa estrutura 
de desejo, é canalizar toda nossa potencialidade de desejo 
para uma coisa limitada e identificar essa coisa com a 
totalidade da realidade. É então que nos frustramos porque 
o desejo quer o todo e só alcançamos a parte.
A propaganda do cigarro Marlboro é como um 
sacramento da Igreja Católica que age ex opere operato – 
age por si mesmo, automaticamente. Quem fuma Marlboro, 
nos prega o marketing, tem as mulheres mais esplêndidas, 
dirige uma Ferrari luzidia, desfila por paisagens soberbas. 
Basta fumar Marlboro para ter essa experiência de 
plenitude. Pura ilusão. As meninas bonitas não querem 
saber de fumo, nem querem que você fume por perto. Os 
carros da Ferrari são fruto da lavagem de dólar da droga. E 
essas experiências, assim como as paisagens belíssimas, 
existem só no imaginário. Não produzem nada, fornecem 
apenas uma ilusão e manipulam nossos sentimentos. Mas o 
grave é isso, que permitem a ilusão da realização do desejo 
infinito identificado com um objeto finito. Devemos passar 
por todos esses objetos, dizendo fundamentalmente: “O 
obscuro objeto do desejo humano não é este ou aquele ser, 
esta ou aquela realidade. Não é um automóvel, não é uma 
mulher esplêndida, não é escrever um livro, não é fazer 
teatro, não é ser isso ou aquilo. É mergulhar no ser, captar a 
nossa sintonia com a totalidade, é sentir que somos 
chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser.”
Vivemos no finito. Tudo o que tocamos é limitado. Mas 
22
o nosso desejo é infinito, é ilimitado. Então, para sermos 
fiéis aos apelos de nossa interioridade, preciso manter essa 
abertura infinita. Quando confundimos essa realidade 
parcial com a totalidade da realidade, vem a ilusão do 
fetiche, a ilusão do endeusamento, da idolatria, dos falsos 
deuses.
Considero que uma das funções importantes da razão 
crítica é des-construir as realidades, é desfazer os 
imaginários construídos em função de interesses de grupos 
e confrontar o ser humano coma sua realidade fontal. Então 
descobrimos nossa dialética fundamental. Cada ser é dia-
bólico (que desagrega) e ao mesmo tempo sim-bólico 
(congrega), cada um é Adão, cada um é Cristo, cada um é 
águia que voa alto e, simultaneamente, é galinha que cisca 
cá embaixo. Temos raiz e temos abertura, como já referimos 
anteriormente. Somos como uma árvore, fundados no chão 
que nos dá força para enfrentar as tempestades. Mas 
também temos a copa, que interage com o universo, com as 
energias cósmicas, com os ventos, com as chuvas, com o 
sol e as estrelas. Sintetizamos tudo isso, transformamos em 
mais vida a nossa abertura. E se não mantemos a abertura – 
a copa –, o tronco estiola, as raízes secam e a seiva já não 
flui. Morremos. A dialética consiste então em manter juntos 
o enraizamento e a abertura. Imanentes, mas abertos à 
transcendência.
8 – QUAL É, FINALMENTE,
O OBSCURO OBJETO DO DESEJO?
Falamos antes do ser humano como um ser desejante 
ilimitado, um projeto infinito, um ser de abertura: aberto ao 
outro, aberto ao mundo, aberto em totalidade. E aqui surge 
23
uma questão filosófica, que é também teológica e que não 
podemos nem devemos escamotear: quem preenche esse 
vazio profundo dentro de nós? Qual é o objeto adequado ao 
nosso desejo infinito, que nos satisfaz e nos traz descanso? 
Por que quero o infinito e só encontro o finito? Quero o 
ilimitado, a totalidade, e só encontro fragmentos? Aqui se 
revela o ser humano como um ser protestante e insatisfeito. 
Não há psicologia nem analista que o cure. Digo aos meus 
amigos psicanalistas: não tentem curar as pessoas dessa 
angústia infinita, porque o ser humano não é curável. Esse 
mal infinito que o habita é a sua grandeza, é o seu 
dinamismo, é a sua essência. É a partir dessa excentricidade 
que ele poderá encontrar sua cura.
Considero que ha três atitudes possíveis com relação à 
abertura ao ilimitado, ao inominável, à atitude de 
expectativa e de espera do ser humano. Há muitas, mas vou 
me limitar às três que acho possíveis.
Uma, vivida por tantos existencialistas, como Sartre, 
que se recusam a aceitar a transcendência. Esta primeira 
atitude considera o ser humano uma paixão absurda, um ser 
que quer o absoluto, mas está condenado a viver o relativo.
Para preparar esta reflexão, li o O Ser e Nada, que é o 
grande livro de Sartre. A terceira parte tem um capítulo 
inteiro sobre a transcendência. Fui ver o que ele diz e 
verifiquei que é exatamente o que eu estou falando aqui. 
Sartre afirma que a fenomenologia do ser humano, isto é, a 
descrição de como se manifesta e de como funciona o ser 
humano, reside em revelar que ele é um ser em si, mas que 
se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se 
abre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele 
se recusa a aceitar que essa abertura tenha um objeto. Para 
24
ele, o ser humano é uma mola distendida para o universo, e 
tanto sua angústia quanto sua grandeza é aceitar-se nesse 
empuxo para o aberto puro e simples, sem objeto definido
Há uma outra posição de muitos de nossos intelectuais 
que são agnósticos que não querem se definir com 
referência à abertura e à transcendência. Eles sofrem com a 
falta de resposta. É uma atitude digna, porque é muito 
dolorosa e corajosa. Sentem o desejo do espírito, 
identificam um eventual objeto do desejo, mas temem 
aderir a ele. E acabam mantendo distância. Preferem a 
indefinição, manter-se no aberto, com as inseguranças e 
angústias existenciais que tal decisão comporta. Eu entendo 
essas pessoas. Às vezes tiveram experiências negativas com 
aqueles que, na História, se arvoraram e se apresentaram 
como portadores da transcendência. Grupo de filósofos, 
representantes de visões de mundo e de religiões oferecem 
um transcendente tão medíocre, tão cruel, que mais vale ser 
um ateu alegre do que um crente desse tipo de 
transcendência menor. Por isso devemos ter uma atitude 
compreensiva para com esses agnósticos e decifrar atrás 
deles uma interrogação existencial, frustrada pelas formas 
muito materializadas e pouco dignas da natureza da 
transcendência, como vem apresentada.
Mas há uma atitude, e essa é das religiões, que tem a 
inaudita coragem – acho que é coragem mesmo – de dar um 
nome a esse objeto do nosso desejo, chamando-o de Deus, 
de Olorum, de Tao, de Javé, de mil outros, Pai, Filho, 
Espírito Santo, não importao nome. Eles invocam o nome 
de Deus no sentido mais originário da palavra Deus, que, 
em sânscrito, significa a realidade que brilha e que ilumina. 
Nessa perspectiva, Deus tem pleno sentido. Deus só tem 
sentido existencial se for resposta à busca radical do ser 
25
humano por luz e por caminho a partir da experiência de 
escuridão e de errância. Ou simplesmente pela experiência 
iluminadora de sentido que deriva da vida, da majestade do 
universo, da inocência dos olhos da criança.
Aquele Deus ex-maquina pregado por religiões ou 
anunciado por dogmas não preenche, necessariamente, essa 
busca humana, porque vem de fora para dentro e de cima 
para baixo. Mas há uma outra experiência de Deus, a que 
nasce dessa ansiedade do ser humano. Ao dizer “Deus” 
(essa palavra de reverência que, por respeito, sequer 
balbuciamos) apontamos para a direção de onde nos poderá 
vir uma resposta. Então esse nome Deus está no lugar de 
mistério, de inominável, de indecifrável, de fonte originária, 
geradora de todo ser. Neste Deus o ser humano pode 
descansar, pois se sente conatural com Ele. O ser humano, 
vivenciando-se como projeto infinito, encontra, finalmente, 
um Sujeito igualmente infinito, seu conatural.
Os grandes místicos, seja da tradição do cristianismo, 
do taoísmo, do sufismo e do muçulmanismo, todos 
representam Deus dessa forma. Considero Rumi, sufi 
muçulmano, o maior místico de todas as tradições religiosas 
do amor. Ninguém falou melhor do amor do que ele, nem 
São João da Cruz, o místico do amor divino. Era 
contemporâneo de São Francisco de Assis, mas vivia na 
Pérsia, e um não sabia do outro. Ele tem poemas fantásticos 
sobre o amor em todas as suas formas. O amor erótico, o 
amor dos sentidos, o amor espiritual, o amor ao outro, o 
amor a Deus. Ele tem um pequeno poema que diz assim: 
“Quando estás comigo, o amor não me deixa dormir. E 
quando não estás comigo, as lágrimas não me deixam 
dormir. Teu amor chegou ao meu coração e partiu feliz. 
Depois retornou e me colocou o gosto do amor. Mas mais 
26
uma vez foi embora. Timidamente lhe pedi que ficasse 
comigo alguns dias. Então veio, sentou-se junto a mim e se 
esqueceu de partir.”
A tradição mística diz que a dimensão mais profunda de 
nós mesmos é aquilo que chamamos de “Deus”. E reflete, 
afirmando que a tarefa do ser humano é passar do Deus que 
temos para o Deus que somos, na nossa profunda 
radicalidade.
São João da Cruz, o místico ardente, diz em vários 
lugares dos seus escritos: “Nós somos Deus”. E como tinha 
medo da Inquisição, que ia mandá-lo para a fogueira, 
colocava vírgula e dizia: “Somos ‘Deus’ (vírgula) por 
participação”. Porque, se dissesse “Deus”, pura e 
simplesmente, atiçariam os fósforos contra ele.
Santa Teresa afirma a mesma coisa. Então, o ser 
humano é conatural com essa suprema realidade. Porque o 
ser humano é um projeto de absoluta abertura e, por isso, é 
um mistério indecifrável. Por mais que o definamos, sempre 
sobra alguma coisa a ser definida e a ser respondida. Deus 
deve ser pensado nessa direção. Então, se Deus tem algum 
significado, deve ser entendido assim, como o objeto 
secreto da busca humana, o nome da reverência, do pulsar 
do nosso coração, aquele que se esconde atrás de todos os 
caminhos, que nos conduz, finalmente, e nos sustenta.
São Paulo, nos Atos dos Apóstolos, dialogando com os 
gregos de Atenas, lhes anuncia o “Deus desconhecido” que, 
na verdade, é o mais conhecido, porque, dizia, “Nele 
vivemos, nos movemos e existimos, porque somos também 
de Sua linhagem”. Traduzindo para a nossa linguagem: nós 
nunca vamos a Deus, nós nunca saímos de Deus, porque 
27
estamos sempre dentro de Deus. Este é o pensamento 
radical, a experiência de fundo de onde nascem os muitos 
caminhos espirituais. Pois todos os caminhos conduzem a 
Deus. A dimensão de fé, a dimensão mística, a dimensão de 
uma visão mais originária e profunda consistem em ver que 
cada caminho não é errância. Cada Caminho é caminho 
para a fonte. Por isso, por mais diversas que sejam as 
religiões, todas elas falam do mesmo, do mistério, de Deus.
9 – TRANSCENDÊNCIA:
SINGULARIDADE DO CRISTIANISMO
Quais as conseqüências mais imediatas de tomar 
consciência da transcendência? Porque transcendência não 
é algo que temos ou não temos. Todos têm. Transcendência 
não se ganha, não se perde, é uma situação do ser humano 
que foi condenado a viver essa dimensão, a violar os 
interditos, a superar os limites. Esta é a sua estrutura, é a 
sua singularidade no processo cosmogênico, no conjunto 
dos seres.
Precisamos transformar essa dimensão da 
transcendência num estado permanente de consciência e 
num projeto pessoal e cultural. Devemos cultivar esse 
espaço e fazer que a sociedade, a cultura e a educação 
reservem espaços de contemplação, de interiorização e de 
integração da transcendência que está em nós. Hoje talvez 
essa dimensão esteja encoberta por cinzas, pois a cultura é 
extremamente materialista e pobre de espírito. Mas, apesar 
de criar sedativos para a transcendência ou deslocá-la para 
regiões privatizadas, a cultura não consegue sufocar a 
transcendência.
28
E a experiência de transcendência produz em nós, 
inicialmente, um enorme sentimento de leveza e de humor, 
porque, a partir dela, relativizamos as coisas todas e nos 
capacitamos a rir delas. Nada consegue absorver tudo. Nada 
me define completamente. Nada é definitivo. A realidade, o 
real, é apenas uma real-ização das potencialidades 
existentes no universo. Não estamos encurralados e 
aferrolhados a um arranjo existencial. Podemos rompê-lo e 
enriquecê-lo. Os dramas que sempre nos acompanham são 
descarregados de seus ônus opressivos. Por pior que seja o 
mal, ele nunca é absoluto. Podemos estar além dele.
E, finalmente, a esperança é a última que morre. E por 
mais prostrados que estejamos, sempre podemos dar um 
salto, pelo menos recorrer ao direito de espernear e de 
protestar. Este direito nos é sempre preservado, ninguém 
pode destruí-lo.
Por fim, qual é a singularidade do cristianismo em face 
dessa experiência universal da transcendência? A 
experiência que o cristianismo traz não é propriamente a 
transcendência. Isso nos legaram os gregos.
A tradição judeu-cristã fala em transcendência. Somos 
convidados não apenas a superar e a voar para cima, mas, 
fundamentalmente, a descer e a buscar o chão. A 
experiência que o cristianismo procura articular e 
comunicar é essa: o Deus, que circunda toda a realidade, 
emergiu do mais pobre. Nasceu no meio de animais, se 
identificou com o crucificado, se fez esmoler para 
conseguir o amor de cada um e para eliminar as distâncias 
entre os seres humanos, se fez o último dos homens. O 
texto bíblico diz que ele se fez carne, se fez verme, se fez 
servo, se fez escravo de toda humana criatura. Depois ele 
29
desceu ao mais profundo, foi até os infernos. Quando o 
Credo cristão diz que o Deus encarnado (Cristo), ao morrer, 
foi aos infernos, significa que ele desceu até aquela 
dimensão na qual estamos absolutamente sozinhos, para 
onde não podemos levar ninguém, sequer a pessoa amada: é 
o momento pessoalíssimo da nossa morte. Se ele desceu até 
lá foi para nos dizer: “Mesmo que você vai até o inferno, eu 
estou com você. Você não vai sozinho, eu vou junto.” Se 
ele desceu tão fundo - transdescendência -, pode subir para 
o mais alto - a transcendência.
Ao mergulhar dentro da fragilidade humana, Deus uniu, 
na encarnação, transcendência e imanência. Então, Deus 
desceu, desceu para o mais baixo. E a atitude mais 
grandiosa do ser humano na leitura cristã é vergar-se como 
o bom samaritano sobre o outro caído. É o amor que desce.Não devemos nos abaixar diante de ninguém, menos ainda 
cair de joelhos. Só podemos fazê-lo, sem perder a 
dignidade, inclinando-nos diante do caído na estrada, para 
elevá-lo e resgatá-lo. Essa transdescendência se ordena à 
transcendência e salvaguarda a sanidade da transcendência. 
Atrás do caído se esconde o próprio Deus, pois, no 
entardecer da vida, seremos julgados não porque tivemos 
transcendência e comungamos muitas vezes, não porque 
obedecemos a todos os dogmas e nos filiamos às igrejas, ou 
porque fomos bons dizimistas ou cidadãos honrados. Não 
seremos julgados por nada disso. Seremos julgados por 
aquele mínimo de amor que tivermos tido pelo sedento, 
pelo nu, pelo faminto. Quem assumiu essa transcendência 
escuta as palavras benditas: “Vinde. Herdai o reino.” Por 
isso, para o cristianismo, o importante não é a 
transcendência nem a imanência. É a transparência, que é a 
presença da transcendência dentro da imanência. Não é a 
epifania, o Deus que vem e se anuncia. É a diafania, o Deus 
30
que, de dentro, emerge para fora, de dentro da realidade, do 
universo, do outro e do empobrecido.
Portanto, a singularidade do cristianismo está na 
transparência desse homem concreto, Jesus de Nazaré, 
homem como nós, que morreu não num acidente de estrada 
na Palestina, mas morreu na cruz, num processo de 
insurgência, porque tomou partido dos pobres, dos 
humildes, transparência que permite captar a transcendência 
divina. Ele internalizou a experiência ao dizer: “Você é 
filho, você é filha de Deus. Em você se encontra o absoluto. 
E por isso, ao amar o outro, você ama a Deus, e o amor a 
Deus e o amor ao próximo são um amor só, são um 
movimento só.”
Nada mais grandioso que tal estado de consciência. A 
transparência é poder ver no outro Deus nascendo da 
profundidade de seu coração. Essa é a singularidade do 
cristianismo, não raro obnubilado pelo excesso de doutrinas 
e de dogmas que se agregaram a essa experiência originária.
10 – O DEUS DESCONHECIDO
PRESENTE EM NOSSAS ANGÚSTIAS
E como nós estamos no centenário de morte de 
Nietzsche, com muitas celebrações, quero terminar com 
uma oração belíssima desse desesperado filósofo alemão 
que pregou a morte de Deus e fez a crítica mais violenta do 
cristianismo, mas o fez a partir de uma experiência radical 
do Deus vivo. Quando anuncia a morte de Deus, ele fala do 
Deus que tem que morrer mesmo, porque é o Deus das 
nossas cabeças, o Deus inventado, o Deus da metafísica, o 
Deus que não é vivo. Ele fez uma oração que traduzi, sem 
chegar a transmitir todo o seu teor poético. O titulo é A 
31
Oração ao Deus Desconhecido.
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu 
olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a 
Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado 
altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me 
pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas 
palavras: “Ao Deus desconhecido”.
Sei, sou eu, embora até o presente tenha me associado 
aos sacrílegos.
Sei, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o 
abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a 
minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te 
conhecer, quero servir só a Ti. (Friedrich Nietzsche)
11 – TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA:
EXPRESSÕES DO PATRIARCADO?
Se eu tivesse sido mais rigoroso, deveria ter dito no início 
da palestra que falo aqui como homem, na tradição patriarcal, 
numa cultura da dualidade que se expressa pelas categorias 
imanência e transcendência. Na verdade, essa terminologia e 
outras dualidades afins são da cultura patriarcal, são da cultura 
hegemonizada pelos homens. Mulher não se move nessas 
dualidades, porque tem uma experiência holística, inclusiva e 
blobalizadora. Ela pensa com o corpo, nós homens pensamos 
com a cabeça. Ela pensa com a totalidade da sua realidade, o 
32
que a torna muito mais próxima da experiência originária, mais 
afim à realidade da vida. Nós homens estamos nos auto-
exilando deste mundo integrador. A universidade, a cultura 
moderna e o processo técnico-científico são produções do 
patriarcado. Por isso ele é violento, dilacerador e produtor de 
dualidades e rupturas. Por serem as principais portadoras da 
anima (princípio feminino), as mulheres têm uma visão mais 
integradora, que não dissocia, está mais próxima da Fonte e por 
isso é muito mais espiritual. A divindade não é para elas um 
problema, é a solução dos problemas. Para nós, homens, não: a 
divindade é sempre um problema não-resolvido, porque se 
situa só na cabeça e não na totalidade.
Em razão disso tudo, eu deveria ter começado minha 
palestra alertando para o fato de que falo como homem. Apesar 
desta omissão subjetiva, não cometi um erro objetivo, pois 
tentei des-construir as expressões transcendência-imanência 
(produtos do masculinismo) para chegar a uma dimensão mais 
originária, mais feminina, onde nos encontraremos com a 
tradição das grandes mães e dos valores do matriarcado. 
Ademais, estimo que seja este o grande desafio do século XXI: 
fazermos o novo pacto de gêneros, uma nova aliança homem-
mulher, superando a guerra secular dos sexos. Mais e mais não 
nos definimos pelo sexo, mas pelas qualidades pessoais. 
Juntos, na diferença de homem e mulher, podemos construir 
uma humanidade una, diversa e fecunda nessa diversidade. 
Precisamos conscientizar tal visão, transformá-la num projeto 
político, torná-la verdadeiramente a nova utopia que poderá dar 
sentido a uma humanidade emergente finalmente orientada pela 
colaboração e buscando convergências na diversidade.
33
12 – A PARTIR DE ONDE EMERGE
HOJE O HORIZONTE UTÓPICO?
Considero que o nicho básico capaz de gerar utopias 
salvadoras, isto é, um patamar novo de civilização, veio da 
reflexão ecológica. Não da ecologia reduzida ao meio 
ambiente, porque estamos cansados de meio ambiente, 
queremos um ambiente inteiro. Mas uma ecologia que inclui o 
ser humano com a sua mente e coração, entrando num outro 
estado de consciência, numa nova veneração diante de cada ser. 
Esta é uma ecologia também espiritual, uma ecologia integral. 
A partir disso falamos cada vez menos de meio ambiente para 
falarmos, com mais objetividade, de comunidade de vida, 
comunidade terrenal, comunidade cósmica.
Hoje, o maior desafio nos vem da ecologia social (que se 
preocupa com a pobreza / desenvolvimento / comunidade de 
vida), que é a mais violada de todas, porque dois terços dos 
seres humanos não têm sustentabilidade em sua vida. 
Atualmente o ser mais ameaçado da criação não é o mico-leão-
dourado, não é o uirapuru, nem o ursinho panda da China, mas 
o ser humano pobre, condenado a morrer antes do tempo.
Desse nicho da reflexão ecológica (que inclui as 
contribuições da nova física, da cosmologia, da biologia 
genética e das ciências da Terra) se está elaborando uma nova 
ótica, capaz de gerar uma nova ética. Nela o que conta, 
fundamentalmente, como lei suprema do universo não é a 
vitória do mais forte pela seleção natural. Se assim fosse, os 
dinossauros ainda existiriam, pois eram os seres mais 
gigantescos e fortes da natureza.
A lei suprema do universo, que permitiu que todos nós 
chegássemos até aqui, é a da cooperação de todos com todos. É 
34
a da solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo, 
em todos os pontos, em todos os momentos, em todas as 
circunstâncias, numa rede de inter-retro-dependências de todos 
com todos, não permitindo que ninguém seja excluído (como o 
faz nosso sistema social mundializado que exclui 2/3 dos sereshumanos). Cada um sendo cúmplice e responsável pela vida do 
outro.
É nessa sinergia que o universo funciona. Vamos, pois, 
tomar essa constante cosmológica como orientação, fazendo 
que as nossas sociedades funcionem da mesma forma 
sinergética, cooperativa e solidária: com projeto político 
consciente, com propósito, com práticas adequadas, com 
estratégias de viabilização. Nós podemos salvar essa nave 
espacial azul e branca, a Terra, apesar de seus recursos 
escassíssimos e de seu equilíbrio extremamente fragilizado.
É essa cooperação universal, essa solidariedade cósmica 
que gera uma nova utopia e abre espaço para a esperança. 
Vivemos agora uma travessia difícil entre os velhos deuses que 
ainda persistem, que não acabaram de morrer, e os novos que 
estão nascendo, que não acabaram de nascer. Tal fato faz com 
que seja difícil esse entretempo que estamos vivendo.
Mas temos que aprender a visualizar e a amar o invisível. 
Sonhar com as potencialidades desse novo que emerge e 
apostar nele. Fazer a nossa revolução molecular (cada um se 
envolve no processo de mudança) nessa direção, em vez de 
ficarmos esperando, inertes, a grande aurora, porque sem a 
nossa própria revolução pessoal essa aurora revolucionária 
nunca virá.
Cada um tem que construir o novo a partir do lugar onde se 
encontra: a nova sinergia, as parcerias, as redes. Essa atitude 
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significa acumulação de energia necessária para a grande 
ruptura. É daí que virá um outro patamar, uma outra 
estruturação do equilíbrio dinâmico e aberto, uma nova fase da 
civilização. Quando ocorrer, então ter-se-á inaugurado o novo 
milênio e nós, que tivermos participado das revoluções 
moleculares, surgiremos como cidadãos de um novo tempo, 
para a consciência, para a humanidade, para a própria Mãe-
Terra.
FIM de Tempo de Transcendência de Leonardo Boff
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	Ao falar sobre o tempo da transcendência, é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino Martín Fierro o entende. Ele diz que o tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Acho genial essa formulação, pois mostra o processo de realização do tempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente.
	SINGULARIDADE DO CRISTIANISMO
	EXPRESSÕES DO PATRIARCADO?

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