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70 laurence bonJour & Ann baker Uma alternativa final é o ceticismo: em relação ao problema do conhecimento do mundo exterior, a opinião de que não temos tal conhecimento e de que a impres- são de que o temos é simplesmente uma ilusão. Um modo de argumentar a favor do ceticismo é por apelo aos problemas que as várias abordagens positivas de como tal conhecimento opera têm de encarar, problemas que vêm a se revelar muito sérios. Contudo, também é possível argumentar mais diretamente a favor de uma conclusão cética. A seleção final nessa parte do capítulo é um breve excerto tirado do talvez mais famoso representante da escola cética de filosofia da Antiguidade, Sexto Empírico, que argumenta que não podemos ter nenhum conhecimento da verdadeira natureza dos objetos exteriores. é a indução JustiFiCada? O problema da indução diz respeito à justificação para inferir a partir de regulari- dades observadas na experiência para alegações mais gerais. Suponha que um grande número de casos de alguma propriedade observável ou categoria A foram observa- dos (por vários observadores e sob condições colaterais amplamente variadas) – por exemplo, um grande número de ovos postos por pintarroxos foram observados em muitas localidades diferentes, com tanta variação de outras condições (temperatura, época do ano, elevação, etc.) quanto os hábitos dos pintarroxos permitem. Suponha também que todos os casos observados de A também foram casos de alguma outra propriedade observável ou categoria B – todos os ovos de pintarroxo observados eram verde-azulados e tinham pintas. (Uma versão mais geral do problema incluiria a pos- sibilidade de que alguma fração m/n definida e estável de A’s, ao invés de todos eles, eram B’s.) Dada uma premissa de observação desse tipo, o raciocínio indutivo do tipo mais padrão leva à conclusão de que todos os casos de A (observados ou não, passados, presentes ou futuros) são também casos de B – de que todos os ovos de pintarroxo são verde-azulados e têm pintas. (Ou, na versão mais geral, a conclusão seria que aproxi- madamente m/n de todos os A’s são B’s.) É óbvio que o raciocínio desse tipo é geralmente tido por certo pelo senso co- mum e nele a ciência se baseia muito amplamente. (Aqui, você deveria parar para refletir sobre como muitas das coisas que pensamos saber sobre o mundo repousam em raciocínios desse tipo: alegações sobre quais alimentos são seguros e nutritivos, sobre o comportamento de vários tipos de animais, sobre condições do tempo, sobre o comportamento humano em diversos tipos de circunstâncias, sobre as propriedades de vários tipos de minerais e outras substâncias, etc., etc.) A questão é se tal raciocínio é racionalmente justificado e, se o é, por que motivo, ou seja, por que tal conclusão é genuinamente provável de ser verdadeira sempre que a premissa correspondente é verdadeira. Hume considera essa questão no contexto mais específico de uma alegação causal (com A sendo a suposta causa, e B o efeito suposto, e os A’s observados sendo todos seguidos por B’s). Tendo posto o problema, ele argumenta a favor da opinião cética de que não existe justificação racional para uma conclusão indutiva, porque não existe raciocínio cogente a partir da premissa observacional para a conclusão induti- va. (Ele também oferece um relato psicológico de por que motivo raciocinamos dessa maneira.) Wesley Salmon recapitula a abordagem de Hume e, então, perpassa um nú- mero de diferentes respostas, rejeitando a maioria delas, mas argumentando que uma resposta, ao menos, é promissora. A.C. Ewing (no curso de uma discussão mais geral do conhecimento a priori) defende uma das respostas que Salmon rejeita: uma solução racionalista que mantém que o raciocínio indutivo é justificado a priori. apêndiCe: JustiFiCação A priori e ConheCiMento Uma terceira questão epistemológica que, segundo algumas opiniões ao menos, é altamente relevante para essas outras duas é a questão do conhecimento a priori, conhecimento cuja justificação não depende da experiência sensória. Salmon e Ewing diferem fundamentalmente sobre a natureza de tal conhecimento e, como um resul- Filosofia: textos fundamentais comentados 71 tado, sobre se uma justificação a priori da indução é possível. E embora isso não seja discutido muito explicitamente nas leituras, o tipo de solução em termos de realismo representativo ao problema do mundo exterior que é defendida por Descartes, Locke e BonJour também teria, aparentemente, de repousar no tipo de conhecimento a priori que Ewing aceita e Salmon rejeita: conhecimento a priori que não é meramente defini- cional (ou “tautológico”) em caráter. Afinal, apenas o conhecimento desse tipo poderia aparentemente justificar a inferência a partir de alegações sobre a experiência sensória para alegações sobre os objetos materiais exteriores – tal como BonJour explana (se- guindo Hume), essa inferência não poderia ser justificada pela experiência, uma vez que não há nenhum modo, de uma perspectiva do realismo representativo, de experi- mentar uma conexão ou correlação entre a experiência e tais objetos. O que se segue é uma breve introdução ao conhecimento a priori e às questões que ele levanta. A questão do conhecimento a priori é estruturada em torno de três distinções prin- cipais, todas elas complicadas e sutis – e facilmente confundidas umas com as outras. Em primeiro lugar, há uma distinção metafísica entre os dois modos nos quais uma propo- sição ou alegação pode ser verdadeira ou falsa. Algumas proposições – nisso a maioria dos filósofos está em concordância – são logicamente ou metafisicamente necessárias: verdadeiras em qualquer mundo ou situação que é logicamente ou metafisicamente pos- sível, ao passo que outras são logicamente ou metafisicamente contingentes, isto é, verdadeiras em alguns mundos logicamente ou metafisicamente possíveis, e não em ou- tros. Assim, por exemplo, proposições da lógica e da matemática são normalmente tidas como sendo necessárias nesse sentido, ao passo que a maioria das proposições sobre as coisas e os acontecimentos no mundo material são contingentes – verdades contingentes, se elas são de fato verdadeiras no mundo atual. (Algumas proposições desafortunadas são necessariamente falsas: falsas em todo mundo logicamente ou metafisicamente possível; a proposição de que 2 + 2 = 5 é um exemplo.) Em segundo lugar, há uma distinção epistemológica entre os dois diferentes mo- dos nos quais uma proposição pode ser justificada: dois diferentes tipos de razões para pensar que ela é verdadeira (e, derivativamente, admitindo-se que conhecimento requer justificação, dois diferentes tipos de conhecimento). Embora pareça óbvio que grande parte do nosso conhecimento depende, para a sua justificação, da experiência sensória e, talvez, também de outros tipos de experiência, talvez semelhantes, tal como a ex- periência introspectiva (e assim é justificado empiricamente ou a posteriori), pareceu igualmente óbvio à maioria dos filósofos que há conhecimentos que não dependem da experiência sensória para a sua justificação, mas que são, em vez disso, a priori: justifi- cados por meio da pura razão pura ou tão somente do pensamento. Aqui, os exemplos mais óbvios são novamente as alegações da lógica e da matemática, mas há muitos outros tipos de reivindicações que têm sido alegadas (correta ou incorretamente) como sendo justificadas a priori: reivindicações metafísicas (por exemplo, a reivindicação de que deve haver uma explanação para tudo o que acontece ou que o espaço tem apenas três dimensões); várias reivindicações sobre propriedades e relações do senso comum (de que nada pode ser totalmente vermelho e totalmente verde ao mesmo tempo ou que todos os cubos têm doze bordas) e também algumas reivindicações éticas (tais como que causar sofrimento desnecessário é moralmente errado, ou que praticar a discrimi- nação racial é injusto). Em casos como esses, assim é reivindicado, alguém que entendeadequadamente a reivindicação em questão pode simplesmente “ver”, numa base intui- tiva, que ela é verdadeira, de fato que ela deve ser verdadeira. As questões centrais aqui são: primeiro, como tal conhecimento a priori é possível, dado que não é justificado pela experiência sensória? De onde vem exatamente a justificação para tais reivindicações? Se o apelo é para uma intuição a priori, ao que equivale tal intuição e como exatamente ela funciona? E, segundo, quais tipos específicos de coisas são conhecíveis nesse tipo de base? Em particular, o conhecimento a priori inclui somente questões de definição essen- cialmente triviais (embora, às vezes, sejam complicadas), como a alegação de que todos os solteiros são não casados – alegações com frequência referidas como tautologias ou, mais tecnicamente, como “analíticas”? Em terceiro lugar, há uma distinção lógica ou estrutural entre dois tipos de pro- posições, analíticas e sintéticas. A formulação explícita dessa distinção deriva do gran- de filósofo alemão Immanuel Kant. Tal como Kant define a noção, uma proposição 72 laurence bonJour & Ann baker analítica é uma proposição da forma sujeito-predicado, cujo predicado está contido no seu sujeito, seja explicitamente (por exemplo, a alegação de que todos os homens altos são altos), seja implicitamente (por exemplo, a alegação de que todos os solteiros são não casados ). O propósito da distinção, para Kant, é que, se uma proposição é analíti- ca, então é aparentemente bastante fácil ver como ela pode ser justificada e conhecida a priori: simplesmente pelo entendimento dos conceitos envolvidos e pela percepção da relação de contenção. O que se torna problemático é como qualquer proposição sintética – uma proposição que não tem esse tipo de forma ou estrutura lógica, isto é, na qual o predicado não está contido no sujeito – ainda poderia ser justificada a priori, embora isso seja algo que Kant acredita ocorrer. (O que torna essa distinção especial- mente complicada é que alguns filósofos, tais como Salmon em algumas passagens, retiveram esses termos e a ideia básica de que um certo tipo de estrutura lógica pode ser usado para explicar a justificação a priori, porém alterando a abordagem de Kant quanto ao que seja esse traço estrutural. Isso levanta a questão, com frequência não direcionada muito explicitamente, relativa a se a nova abordagem de analiticidade tem a mesma capacidade de explicar uma justificação a priori que a antiga abordagem tinha, algo que não pode, pois, ser admitido apenas porque o mesmo termo “analítico” é utilizado. Você deve ter essa questão em mente quando vier a ler Salmon.) As principais posições opostas sobre a questão do a priori são versões do em- pirismo e do racionalismo. O empirismo é uma concepção geral sobre a cognição humana que envolve duas teses principais bastantes diferentes, cada uma delas tendo a ver com a relação entre cognição e experiência sensória e cada uma delas estando refletida no pensamento de Locke, embora uma muito mais clara e inequivocadamente do que a outra. A primeira tese, na forma mais padronizada referida como empirismo de conceito (mas ela também poderia, em relação à terminologia utilizada por Locke e outros, ser chamada de empirismo de ideia), é uma alegação sobre onde e como a mente humana adquire as ideias ou os conceitos que ela utiliza para pensar sobre o mundo ou, de fato, sobre qualquer coisa. De acordo com o empirista de conceito, todos os conceitos são derivados da experiência sensória (construída amplamente, de modo a também incluir a experiência introspectiva). Aqui, a principal opinião oponente é a alegação, defendida por Descartes e por seus sucessores racionalistas, de que ao menos algumas ideias ou alguns conceitos são inatos, “programados” na mente quando do nascimento (sendo essa “programação” normalmente atribuída a Deus). A segunda corrente principal do empirismo (aquela que é mais relevante para a questão principal sobre o conhecimento a priori) carece de um rótulo completamente padrão, mas será referido aqui como empirismo justificatório. Essa é uma concepção sobre as razões ou o aval para pensar que crenças ou alegações proposicionais são verda- deiras. De acordo com uma versão do empirismo justificatório, toda a justificação para alegações que não são meramente tautologias lógicas ou de definição (não são analíticas no sentido de Kant ou, talvez, em algum outro sentido daquele termo) deve derivar da experiência sensória (outra vez, construída amplamente, de modo a incluir a introspec- ção). Uma versão dessa concepção de empirismo moderado é defendida por Salmon no curso da sua discussão acerca da indução.2 A principal alternativa ao empirismo moderado é a concepção do racionalismo moderado de que uma justificação a priori e um conhecimento a priori incluem mais do que meras tautologias definicionais ou pro- posições analíticas. Em vez disso, alega-se que a mente humana tem a capacidade para percepção direta a priori de certos traços necessários da realidade. Aqui, os principais exemplos seriam os tipos de alegações brevemente listadas antes, nenhuma das quais sendo, de acordo com o racionalista, mera questão de definição ou analítica em qualquer sentido epistemologicamente relevante. (O racionalista moderado não alega que toda justificação e todo conhecimento são a priori – uma concepção que muito poucos filóso- fos desde talvez Platão jamais sustentaram.) Tal concepção é defendida por Ewing. 2 Há também uma versão mais radical do empirismo que nega a existência de justificação a priori ou de conhecimento a priori de qualquer tipo; essa concepção não está representada na presente antologia. O principal proponente dessa versão mais radical do empirismo é o filósofo e lógico americano W.V.O. Quine. Filosofia: textos fundamentais comentados 73 René Descartes rené descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, foi um dos mais impor- tantes e influentes filósofos de todos os tempos. descartes é chamado de “o pai da filo- sofia moderna”, porque diversos dos problemas e temas centrais da filosofia moderna (pós-renascentista) aparecem primeiramente na sua obra: de modo mais fundamental, a insistência em começar com questões sobre o conhecimento (questões epistemoló- gicas) em vez de questões sobre a realidade (questões metafísicas). entre os problemas filosóficos mais específicos que pela primeira vez aparecem claramente em descartes, estão o problema do mundo exterior (como alegações sobre objetos materiais podem ser justificadas com base na experiência sensória) e o problema mente-corpo (ver Capí- tulo 3). Meditações é a sua obra mais importante e influente. A motivação fundamental de descartes para fazer questionamentos acerca do co- nhecimento está refletida justamente na primeira sentença das Meditações: “diversos anos se passaram agora, desde que primeiramente percebi o quão numerosas eram as falsas opiniões que eu, na minha juventude, tomei por verdadeiras e, assim, o quão du- vidosas foram todas aquelas que eu, subsequentemente, construi por sobre elas”. des- cartes viveu numa época de grande efervescência intelectual, quando as concepções medievais ainda estavam sendo substituídas por outras mais modernas e a revolução científica estava apenas a caminho. estava claro para ele, com base em muitas opiniões e argumentos conflitantes com os quais era confrontado, que muitas das opiniões que ele tinha anteriormente aceitado a partir de várias fontes eram muito provavelmente falsas. A questão central das Meditações é como corrigir essa situação. Ao escrever as Meditações, descartes está tentando pôr a descoberto o seu processo de pensamento, de maneira que o leitor possa seguir junto com ele, pensar com ele e, dessa maneira, chegar às mesmas conclusões às quais ele chega. A solução de descartes ao problema de como eliminar crenças errôneas é aceitar somente crenças que são indubitáveis, no sentido de serem incapazes deser equivoca- das e, portanto, serem certas. o seu método para atingir tal certeza é sistematicamen- te duvidar de categorias inteiras de crença, retirando delas o assentimento com base na mera possibilidade de que sejam falsas. ele está sugerindo, pois, que o conhecimen- to genuíno requer justificação que é conclusiva: razões que são fortes o bastante para garantir a verdade da alegação em questão. (Assim entendido, descartes concorda com a concepção tradicional do conhecimento com um adendo: o conhecimento não é meramente crença verdadeira justificada, mas crença verdadeira conclusivamente justificada.) Ao final da Meditação Primeira, descartes suspendeu a crença em toda opinião que ele considerou, primeiro com base na possibilidade de que poderia estar sonhando e, depois, com base na possibilidade bem mais radical de que poderia estar sendo enganado por um “gênio maligno” todo-poderoso. Contudo, na Meditação Segunda, ele descobre uma crença que não pode ser posta em dúvida nem mesmo pela última dessa razões: a crença de que ele mesmo existe como uma coisa pensante. mais tarde, ele identifica outras crenças sobre as quais crê que pode estar certo essencialmen- te na mesma base: crenças sobre os seus diversos estados conscientes da mente. e, assim, o projeto nas Meditações Terceira e Sexta é reclamar como conhecimento as crenças anteriormente suspendidas (ou, no mínimo, tantas delas quanto for possível) com base nas crenças indubitáveis identificadas na Meditação Segunda. Ao final, você terá de tentar julgar se descartes tem ou não sucesso em assegurar um fundamento com base naquilo que as suas crenças mantidas anteriormente podem ser justificadas, isto é, com base em quais razões conclusivas podem ser dadas para pensar que aquelas crenças são verdadeiras. temos conhecimento do mundo exterior? 74 laurence bonJour & Ann baker Meditação priMeira: aCerCa das Coisas que podeM ser postas eM dúvida Diversos anos se passaram agora, desde que primeiramente percebi o quão numerosas eram as falsas opiniões que eu, na minha juventude, tomei por verda- deiras e, assim, o quão duvidosas foram todas aquelas que eu, subsequentemente, construi por sobre elas. 1 Então, percebi que uma vez em minha vida eu tinha de derrubar por terra todas as coisas e come- çar novamente desde os fundamentos ori- ginais se eu quisesse estabelecer qualquer coisa firme e duradoura nas ciências. No entanto, a tarefa parecia enorme, e eu es- tava esperando até que atingisse um pon- to em minha vida que fosse tão oportuno que nenhum tempo mais apropriado para assumir esses planos de ação suceder-se- -ia. Por essa razão, eu prorroguei por tan- to tempo que doravante estaria em erro, caso fosse perder o tempo que permanece para executar o projeto, pensando sobre ele. De acordo com isso, eu hoje libertei apropriadamente o meu pensamento de todas as preocupações, assegurei para mim mesmo um período de calma tran- quilidade e estou retirando-me em soli- tude. Finalmente, aplicar-me-ei de forma séria e sem reservas a essa demolição ge- ral das minhas opiniões. Contudo, para levar isso a termo, não precisarei mostrar que todas as mi- nhas opiniões são falsas, o que talvez seja algo que eu jamais poderia realizar. Toda- via, a razão agora me persuade de que eu deveria retirar o meu assentimento não menos cuidadosamente das opiniões que não são completamente certas e indubi- táveis do que eu o faria daquelas que são claramente falsas. Por essa razão, bastará para a rejeição de todas essas opiniões se eu encontrar em cada uma delas al- guma razão para duvidar. 2 E, portan- to, nem preciso passar por cada opinião indivi dualmente, uma tarefa que não te- ria fim. Em vez disso, já que destruir os fundamentos fará com que tudo o que foi construído sobre eles se desmorone por sua própria conta, atacarei diretamente aqueles princípios que dão suporte a tudo o que foi uma vez crido. 3 Certamente, tudo o que eu tinha admitido até agora como maximamente verdadeiro eu recebi ou dos sentidos ou através dos sentidos. Entretanto, percebi que os sentidos são, às vezes, enganosos; e é um sinal de prudência jamais deposi- tar a nossa confiança completa naqueles que nos enganaram sequer uma vez. Embora os sentidos de fato às vezes nos enganem, quando se trata de coisas muito pequenas e distantes, ainda há muitas outras questões acerca das quais simplesmente não se pode duvidar, ain- da que sejam derivadas dos mesmíssi- mos sentidos: por exemplo, que eu estou sentado aqui, próximo ao fogo, vestindo o meu roupão de inverno, que eu estou segurando essa folha de papel nas mi- nhas mãos, e coisas semelhantes. Mas sob quais razões alguém poderia negar que essas mãos e esse corpo inteiro são meus? A menos, talvez, que eu fosse me igualar aos insanos, cujos cérebros são prejudicados por um tal vapor incessan- te de bile negra que insistem continua- mente em dizer que são reis quando são paupérrimos, ou que estão vestidos em robes de cor púrpura quando estão nus, ou que têm cabeças feitas de barro, ou que são cântaros, ou que são feitos de vidro. Porém, tais pessoas são loucas, e eu não pareceria menos doido se eu fosse considerar o comportamento delas como um exemplo para mim mesmo. Isso tudo estaria bem e em ordem se eu não fosse um homem acostumado a dormir à noite e a experimentar nos meus sonhos as mesmíssimas coisas, ou em uma e outra vez até mesmo coisas menos plausíveis do que essas pessoas insanas fazem quando estão despertas. O quão frequentemente o meu sono no- turno persuade-me de coisas costumeiras como estas: que eu estou aqui, vestido no meu roupão, sentado próximo à lareira – quando de fato estou despido na cama! Meditações sobre Filosofia Primeira3 3 Extraído de Meditations on First Philosophy, 3. ed., traduzido por Donald A. Cress (Indianapolis: Hackett, 1993). 1 Pare e pense Você consegue pensar em coisas nas quais acreditava, quando era mais jovem, porém não mais acredita que sejam verdadeiras? Algumas (ou mesmo muitas) das coisas em que você acredita agora poderiam tornar-se igualmente falsas? (suponha que alguém perguntou a você pelas suas razões para estar convicto sobre a verdade de várias crenças das quais você está convicto [pense em exemplos específicos]: qual seria a sua resposta?) pAre 2 Definição este é o famoso método da dúvida de descartes: duvidar de qualquer coisa que pode possivelmente ser verda- deira e, assim, chegar (se alguma coisa ainda resta) à certeza. note que ele não está buscando meramente certeza psicológica. muitas pessoas estão convencidas de diversas coisas (talvez de que deus existe), embora não possam dar quaisquer razões para pensar que são verdadeiras, mas esse não é o tipo de certeza que ajudará a evitar o erro (dado que algo que é psicologicamente certo pode ainda ser falso). em vez disso, ele está procurando um tipo de certeza que garante a verdade: crenças para as quais há uma razão conclusiva. 3 em vez de escrutinar crenças individualmen- te, descartes propõe examinar os fundamentos sobre os quais categorias inteiras de crenças repousam; a primeira categoria desse tipo, discutida nos parágra- fos seguintes, é a das crenças justi- ficadas pela experiência sensória. (A ideia de um fundamento para a crença ou o conhecimento faz apelo a uma metáfora arquite- tônica – pense sobre a analogia entre erigir uma construção e a cognição que ela sugere.) Filosofia: textos fundamentais comentados 75 Mas exatamente agora os meus olhos estão com certeza bem despertos quan- do olho atentamente para essa folha de papel. Esta cabeça que estou balançando não está pesada com sono. Eu estendo esta mão consciente e deliberadamente, e eu a sinto. Tais coisas não seriam tão dis- tintas para alguém que está adormecido. Como se eu não me lembrasse de ter sido enganado em outras ocasiões até mesmo por pensamentos semelhantes nos meus sonhos! Namedida em que considero es- sas questões mais cuidadosamente, vejo com tal clareza que não há sinais defi- nitivos pelos quais distinguir entre estar desperto e estar adormecido. 4 Como resultado, estou ficando deveras tonto, e essa tontura quase chega a me convencer de que estou dormindo. Admitamos, então, em função do argumento, que estamos sonhando e que tais particularidades como estas não são verdadeiras: que estamos abrindo os nossos olhos, movendo a nossa cabeça e estendendo as nossas mãos. Talvez nem mesmo tenhamos tais mãos ou algum cor- po desse tipo. No entanto, certamente se deve admitir que as coisas vistas durante o sono são, por assim dizer, como ima- gens pintadas que somente poderiam ter sido produzidas à semelhança de coisas verdadeiras e que, portanto, ao menos es- sas coisas gerais – olhos, cabeça, mãos e o corpo todo – não são coisas imaginárias, mas são verdadeiras e existem. De fato, quando os próprios pintores desejam re- presentar sereias e sátiros por meio de formas especialmente bizarras, eles não conseguem atribuir-lhes naturezas in- teiramente novas. Em vez disso, apenas fundem os membros de diversos animais. Ou, se talvez confeccionam alguma coi- sa tão inteiramente inovadora que nada como ela jamais foi vista antes (e, portan- to, é algo completamente fictício e falso), no mínimo as cores a partir das quais a modelam devem ser verdadeiras. E pelo mesmo artifício, embora mesmo essas coi- sas gerais – olhos, cabeça, mãos e coisas semelhantes – pudessem ser imaginárias, ainda assim se deve admitir que pelo me- nos determinadas outras coisas que são de fato mais simples e universais são ver- dadeiras. É a partir desses componentes, tal como se a partir de cores verdadeiras, que todas aquelas imagens de coisas que estão no nosso pensamento são modela- das, sejam verdadeiras ou falsas. 5 Essa classe de coisas parece incluir a natureza incorpórea em geral, junto com a sua extensão; a forma das coisas extensas; a sua quantidade, isto é, o seu tamanho e número, bem como o lugar onde elas existem; o tempo através do qual elas perduram, e outros fatores se- melhantes. Portanto, não é impróprio concluir a partir disso que a física, a astronomia, a medicina e todas as outras disciplinas que são dependentes da consideração de coisas compostas são duvidosas e que, por outro lado, a aritmética, a geometria e outras disciplinas afins, que não tratam de nada senão das coisas mais simples e mais gerais e que são indiferentes quanto ao caso de essas coisas existirem ou não existirem de fato, contêm alguma coisa certa e indubitável. Ora, se estou desper- to ou adormecido, dois mais três somam cinco e um quadrado não tem mais do que quatro lados. Não parece possível que tais verdades óbvias devam ser sujei- tas à suspeita de serem falsas. 6 Seja como for, encontra-se fixa na minha mente uma certa opinião de longa data, a saber, que existe um Deus que é capaz de fazer qualquer coisa e por quem eu, tal como sou, fui criado. Como eu sei que ele não fez com que não exista terra alguma, nem céus, nem coisa extensa,* nem forma, nem tamanho, nem lugar, e contudo faça com que todas essas coisas pareçam-me existir precisamente como existem agora? Além disso, uma vez que eu julgo que outros, às vezes, cometem erros em matérias que creem que têm o mais perfeito conhecimento, não posso eu, por semelhante modo, ser enganado toda vez que adiciono dois e três ou conto os lados de um quadrado, ou realizo uma operação mesmo mais simples, caso isso possa ser imaginado? No entanto, talvez Deus não tenha desejado que eu fosse enganado dessa maneira, pois diz-se que ele é supremamente bom. Não obstante 4 Reafirmação/Resumo este parágrafo contém a razão de descartes para duvidar dessa primeira categoria de crenças. 5 A sugestão é que a criativi- dade envolvida em sonhos é limitada à recombinação de elementos derivados de algum outro modo. isso significa que a hipótese do sonho não oferece uma razão para pensar que todas as coisas envolvidas na nossa experiência são equivocadas: os elementos básicos ainda podem ser verdadeiros, mesmo que os modos pelos quais se combinam sejam equivocados. 6 Assim, enquanto as ciências que lidam com coisas com- plexas são postas em questão pela hipótese do sonho, aquelas que lidam com esses elementos mais simples não o são. os exemplos que descartes oferece ao final deste parágrafo sugerem que ele tem em mente pelo menos crenças primariamente justificadas numa base completamente diferente da experiência sensória: crenças a priori justificadas por razão ou pensamento racional, e não pela experiência sensória (a qual pode- ria ser simplesmente um sonho). * N. de T. Isto é, “substância corpórea” ou “cor- po”. Sobre os significados da expressão em Des- cartes, em especial o de “substância corpórea em geral” ou “corpo em geral”, cf. John Cottingham, Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, verbete “corpo”, p. 44-45. 76 laurence bonJour & Ann baker isso, se fosse repugnante à sua bondade ter me criado tal que eu fosse enganado todo o tempo, também pareceria estra- nho àquela mesma bondade permitir que eu fosse enganado mesmo ocasionalmen- te. Porém, não podemos fazer essa última asserção. 7 . . . De acordo com isso, suporei não um Deus supremamente bondoso, a fonte da verdade, mas, em vez disso, um gênio ma- ligno, supremamente poderoso e esperto, que dirigiu o seu inteiro esforço para me enganar. Considerarei os céus, o ar, a ter- ra, as cores, as formas, os sons e todas as coisas externas como nada sendo senão os embustes enganosos dos meus sonhos, com os quais ele põe armadilhas para a minha credulidade. Considerarei a mim mesmo como não tendo mãos, ou olhos, ou carne, ou sangue, ou quaisquer senti- dos, mas como, não obstante isso, falsa- mente crendo que possuo todas essas coi- sas. Permanecerei resoluto e firme nessa meditação e, mesmo que não esteja em meu poder conhecer qualquer coisa ver- dadeira, certamente está em meu poder cuidar resolutamente de retirar o meu as- sentimento ao que é falso, por mais que esse enganador, seja o quão poderoso, seja o quão esperto possa ser, tenha al- gum efeito sobre mim. 8 Todavia, esse empreendimento é árduo, e uma certa preguiça me traz de volta ao meu modo de vida costumeiro. Não sou diferente de um prisioneiro que goza de uma liberda- de imaginária durante o seu sono, mas, quando mais tarde começa a suspeitar que esteja dormindo, teme ser desperta- do e despreocupadamente conspira com essas ilusões agradáveis. Exatamente as- sim recaio do meu próprio acordo às mi- nhas antigas opiniões e temo ser desper- tado, receando que o despertar laborioso que se segue de um repouso pacífico seja consumido a partir de então não na luz, mas entre as sombras inextricáveis das dificuldades ora trazidas à tona. Meditação seGunda: aCerCa da natureza da Mente huMana: que ela é Mais beM-ConheCida do que o Corpo A meditação de ontem lançou-me em tais dúvidas que não mais posso igno- rá-las; contudo, falho em ver como elas podem ser resolvidas. É como se eu subi- tamente tivesse caído num profundo re- demoinho: estou sendo tão sacudido por isso que não posso nem tocar o fundo com o meu pé nem nadar até a superfície. No entanto, esforçar-me-ei no meu caminho para cima e tentarei uma vez mais a mes- ma via pela qual enveredei ontem. Rea- lizarei isso deixando de lado tudo o que admite a menor dúvida, tal como se eu tivesse descoberto que é completamente falso. Permanecerei nesse curso até que eu saiba alguma coisa certa ou, se nada mais houver, até que eu pelo menos saiba por certo que nada é certo. Arquimedes buscou somente um ponto firme e imóvel no intuito de mover a terra inteira de um lugar a outro. Exatamente assim, grandes coisas também devem ser esperadas, se eu for bem-sucedido em encontrar sim- plesmente uma coisa, não importa o quãopequenina, que seja certa e inabalável. Portanto, suponho que tudo o que eu vejo é falso. Creio que nada do que a minha memória enganosa representa jamais existiu. Não tenho sentidos, quais- quer que sejam. Corpo, forma, extensão, movimento e lugar são todos quimeras. O que então será verdadeiro? Talvez sim- plesmente o fato único de que nada é certo. Mas como eu sei que não há algu- ma outra coisa, além e acima de todas aquelas coisas que acabei de rever, acerca das quais não há sequer a menor ocasião para dúvida? Não existe algum Deus, ou seja por qual nome eu poderia chamá-lo, que infunde esses mesmos pensamentos em mim? Por que eu pensaria isso, visto que eu mesmo poderia talvez ser o autor desses pensamentos? Não sou eu, então, pelo menos alguma coisa? Eu já neguei que tenho quaisquer sentidos e qualquer corpo. Ainda assim, eu hesito: o que se segue disso? Estou tão amarrado a um corpo e aos sentidos que não posso exis- tir sem eles? Porém, persuadi a mim mes- mo de que não há absolutamente nada no mundo: nenhum céu, nenhuma terra, nenhuma mente, nenhuma corpo. É o caso de que também eu não existo? Mas, sem dúvida, eu existia se persuadi a mim mesmo de alguma coisa. Todavia, há um enganador ou outro que é supremamente poderoso, supremamente ardiloso, e que está sempre deliberadamente me enga- nando. Nesse caso também, se ele está 7 Comentário Aqui, tem-se uma questão que se tornará importante, mais tarde, na Meditação Sexta: deus, sendo perfeitamente bom, aparentemente não teria me feito de modo que eu incorresse em erro todo o tempo. o problema é que a bondade de deus parece incompatível com o meu ato de cometer erros quaisquer, coisa que eu obviamente faço. (nenhuma resolução da questão é oferecida nesse ponto.) 8 Aqui está a segunda e mui- to mais importante razão de descartes para duvidar de categorias inteiras de crença, uma razão que é muito mais poderosa do que aquela que apela à pos- sibilidade do sonho, porque põe em questão muito mais crenças, incluindo, aparentemente, aquelas (como 2 + 3 = 5) que resultam da razão a priori. Algumas crenças escapam dessa segunda razão para duvidar? pAre Filosofia: textos fundamentais comentados 77 me enganando, não há nenhuma dúvida de que eu existo. E mesmo que ele faça o seu melhor em iludir, ele jamais fará com que eu não seja nada, enquanto eu pen- sar que sou alguma coisa. Então, depois que tudo tiver sido pesado do modo mais cuidadoso, deve finalmente ser estabele- cido que esse pronunciamento “Eu sou, eu existo” é necessariamente verdadeiro toda vez que o enuncio ou o concebo na minha mente. 9 Contudo, ainda não entendo sufi- cientemente o que eu sou – eu, que agora necessariamente existo. E, assim, desse ponto em diante, devo ser cuidadoso para que eu não confunda, desavisadamente, alguma outra coisa comigo mesmo e, as- sim, erre naquele item mesmo de conhe- cimento que reivindico ser o mais certo e evidente de todos. Por isso, meditarei mais uma vez sobre o que eu uma vez acreditei que eu mesmo era antes de in- gressar nesses pensamentos. Por essa ra- zão, então, colocarei de lado tudo o que possa ser enfraquecido mesmo no mais ínfimo grau pelos argumentos adianta- dos, de modo que, ao final, tudo o que permanecer será precisamente somente o que é certo e inabalado. O que, então, [anteriormente] pen- sei que eu era? Um homem, naturalmen- te. Mas o que é um homem? Eu não po- deria dizer um “animal racional”? Não, porque nesse caso eu teria de examinar o que “animal” e “racional” significam. E, assim, de uma questão eu escorrega- ria em outras muitas, mais difíceis. Nem tenho agora tempo livre suficiente que queira perdê-lo em sutilezas desse tipo. Ao invés disso, permito-me focar, aqui, o que veio espontaneamente e naturalmen- te ao meu pensamento sempre que pon- derei sobre o que eu era. Agora, ocorreu a mim, primeiro, que eu tinha uma face, mãos, braços, e esse mecanismo inteiro de membros corpóreos: os mesmíssimos que são discernidos num cadáver e aos quais fiz referência pelo nome de “cor- po”. Em seguida, ocorreu a mim que in- geria comida, que caminhava por aí, que sentia e pensava várias coisas; essas ações eu costumava atribuir à alma. Porém, quanto ao que essa alma poderia ser, ou eu não pensava sobre ela ou, então, eu a imaginava como um rarefeito sei-lá-o- -quê, como um vento, ou um fogo, ou éter que tinha sido infundido nas minhas par- tes mais grosseiras. Quanto ao corpo, po- rém, eu não tinha dúvida nenhuma. Pelo contrário, eu estava sob a impressão de que conhecia distintamente a sua nature- za. Se eu fosse talvez tentado a descrever essa natureza tal como a concebia na mi- nha mente, eu a teria descrito assim: por “corpo” entendo tudo o que é capaz de ser delimitado por alguma forma, ou ser encerrado num lugar, e de preencher um espaço de modo a excluir dele qualquer outro corpo; de ser percebido pelo tato, pela visão, pela audição, pelo paladar ou pelo odor; de ser movido de diversos mo- dos, não, é claro, por si mesmo, mas por tudo aquilo que se impõe sobre ele. Era a minha opinião que o poder de automovi- mento, e semelhantemente o de sentir ou o de pensar, de modo algum pertencia à natureza do corpo. De fato, eu antes cos- tumava espantar-me que tais faculdades fossem encontradas em certos corpos. Mas, agora, o que sou eu quando suponho que há algum enganador su- premamente poderoso e, se me for per- mitido dizer dessa forma, malicioso, que deliberadamente tenta me iludir de todo modo que lhe for possível? Não posso afirmar que tenho ao menos uma peque- na medida de todas aquelas coisas que já disse pertencerem à natureza do cor- po? Detenho a minha atenção sobre elas, penso sobre elas, revejo-as novamente, mas nada vem à mente. Estou cansado de repetir isso sem propósito. O que di- zer sobre aquelas coisas que atribuía à alma? O que dizer sobre ser alimentado ou mover-se para os lados? Dado que eu agora não tenho um corpo, essas coisas nada são senão ficções. O que dizer so- bre a sensação? Certamente, também isso não tem lugar sem um corpo; e eu pare- cia ter sentido nos meus sonhos muitas coisas que, mais tarde, percebi que não tinha sentido. O que dizer sobre o pen- samento? Aqui eu faço a minha desco- berta: o pensamento existe; ele somente não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo – isso é certo. Mas por quanto tempo? Por tanto tempo quanto eu estou pensando, pois talvez poderia também ocorrer que, se eu interrompesse todo o pensar, eu então deixaria totalmente de existir. Neste momento, não admito nada que não seja necessariamente verdadei- ro. Portanto, não sou precisamente nada senão uma coisa pensante, isto é, uma mente, ou intelecto, ou entendimento, ou razão – palavras de cujos significados eu 9 A intuição aqui é aquela que descartes expressa mais sucintamente em outra obra (o seu Discurso sobre o método) como (em latim) Cogito ergo sum, “penso, logo existo” – em geral, referida simplesmente como o Cogito. Qual exatamente é a alegação que se supõe ser indubitável? descartes tem razão em pensar que mesmo o gênio maligno é incapaz de enganá-lo sobre a verdade daquela alegação: fazê-lo crer que ela é verdadeira, quando ela é, na realidade, falsa? pAre 78 laurence bonJour & Ann baker era anteriormente ignorante. Não obstan- te, sou uma coisa verdadeira e sou verda- deiramente existente; porém, que tipo de coisa? Eu já o disse: uma coisa pensante. O que mais eu sou? Colocarei a mi- nha imaginação em movimento. Não sou aquela concatenação de membros que chamamos de corpo humano. E nem sou tampouco algum ar sutil infuso nesses membros, nem um vento, nem um fogo, nem um vapor, nem um sopro, nem qual- quer coisa que eu invento para mim mes- mo. Afinal, supus que essas coisas não são nada. A suposição ainda permanece; e, apesar disso, sou alguma coisa. Mas é talvez o caso de que essas mesmas coisas que eu tomocomo sendo nada, porque são desconhecidas a mim, não são de fato diferentes daquele “eu” que eu conheço? Isso eu não sei e não discutirei sobre isso agora. Posso fazer um juízo somente so- bre as coisas que são conhecidas a mim. Sei que eu existo; pergunto agora quem é esse “eu” que eu conheço? Mais certa- mente, no sentido estrito, o conhecimen- to desse “eu” não depende de coisas de cuja existência eu ainda não tenho conhe- cimento. Portanto, ele não é dependente de qualquer daquelas coisas que simulo na minha imaginação... Mas o que então eu sou? Uma coisa que pensa. O que é isso? Uma coisa que duvida, entende, afirma, nega, quer, refu- ta e que também imagina e sente. De fato, não é questão pequena se todas essas coisas pertencem a mim. Mas por que não deveriam pertencer a mim? Não é exatamente o mesmo “eu” que ago- ra duvida de quase tudo, que, no entan- to, entende alguma coisa, que afirma que essa coisa é verdadeira, que nega outras coisas, que deseja saber mais, que dese- ja não ser enganado, que imagina mui- tas coisas mesmo contra a sua vontade, que também percebe muitas coisas que parecem vir dos sentidos? O que existe em tudo isso que não é em cada pedaci- nho tão verdadeiro quanto o fato de que eu existo – mesmo se eu estiver sempre adormecido ou mesmo se o meu criador fizer todos os esforços para me desviar? Qual dessas coisas é distinta do meu pen- samento? Qual delas pode ser afirmada ser separada de mim? É tão óbvio que sou eu quem duvida, eu quem entende, eu quem quer, que não há nada por meio do que isso poderia ser explanado mais claramente. Mas, com efeito, é também o mesmo “eu” que imagina; assim, embora talvez, como supus antes, absolutamente nada do que eu imaginava seja verdadei- ro, o próprio poder de imaginar realmen- te ainda existe e constitui uma parte do meu pensamento. Por fim, é esse mesmo “eu” que sente ou que é o conhecedor das coisas corpóreas tal como se através dos sentidos. Por exemplo, eu agora vejo uma luz, ouço um ruído, sinto o calor. Essas coisas são falsas, uma vez que estou dor- mindo. Contudo, eu certamente pareço, sim, ver, ouvir e sentir o calor. Isso não pode ser falso. Falando propriamente, isso é o que, em mim, é chamado de “sen- tir”. Todavia, precisamente assim tomado, isso não é nada mais do que pensar. 10 A partir dessas considerações, estou começando a conhecer um pouco melhor o que eu sou. No entanto, ainda parece (e eu não posso resistir de crer nisso) que as coisas corpóreas – cujas imagens são formadas pelo pensamento e que os próprios sentidos examinam – são mui- to mais distintamente conhecidas do que esse “eu” misterioso que não cai na ima- ginação. Contudo, seria estranho, de fato, se eu fosse apreender as mesmas coisas que considero como sendo duvidosas, desconhecidas e estranhas a mim, mais distintamente do que o que é verdadeiro, o que é conhecido – do que, em poucas palavras, eu mesmo. Porém, vejo o que está acontecendo: a minha mente adora extraviar-se e ainda não permite a si mes- ma ficar restrita nos confins da verdade. Assim seja então; deixemos só desta vez que ela tenha rédea solta, de modo que, um pouco mais tarde, quando vier o mo- mento de puxar as rédeas, a mente possa mais prontamente permitir a si mesma ser controlada. Consideremos aquelas coisas que co- mumente se acredita como sendo o mais distintamente apreendidas de todas: a sa- ber, os corpos que tocamos e vemos. Não os corpos em geral, pois essas percepções gerais são aptas a ser de certo modo mais confusas, mas um corpo em particular. Tomemos, por exemplo, esse pedaço de cera. Ele foi tirado bem recentemente do favo de mel; ainda não perdeu todo o sa- bor de mel. Ele retém algo do perfume das flores das quais foi recolhido. A cor, a forma e o tamanho são manifestos. É duro e frio; é fácil de tocar. Se dermos uma batida nele, ele emitirá um som. Em poucas palavras, está presente nele tudo 10 Aqui, descartes está alegan- do que existem muito mais coisas que estão além da dúvida no mesmo sentido em que a sua própria existência está – portanto, está amplamente expandindo o fundamento da certeza (alegada) sobre o qual ele por fim tentará reconstruir o seu conhecimento. o que são essas demais coisas? está ele certo em dizer que elas são igualmente indubitáveis, mesmo sendo dada a possibilidade do gênio maligno? (Ver a Questão para discussão 2.) Filosofia: textos fundamentais comentados 79 o que parece necessário para tornar pos- sível que um corpo seja conhecido tão distintamente quanto possível. Todavia, perceba que, enquanto estou falando, eu o estou trazendo mais para perto do fogo. Os traços remanescentes do sabor de mel estão desaparecendo; o perfume está sumindo; a cor está mudando; a forma original está modificando-se. O seu ta- manho está aumentando; está tornando- -se líquido e quente; dificilmente se pode tocá-lo. E agora, quando se lhe der uma batida, ele não mais emite qualquer som. Permanece ainda a mesma cera? Devo confessar que sim; ninguém o nega; nin- guém pensa de outra maneira. Assim, o que havia na cera que era apreendido tão distintamente? Certamente, nenhum dos aspectos que atingi por meio dos senti- dos, pois tudo o que chegou aos sentidos do paladar, do olfato, da visão, do tato ou da audição agora mudou; contudo, a cera permanece. Talvez a cera era o que eu agora penso que ela é: a saber, que a cera em si mesma jamais era realmente a doçura do mel, nem a fragrância das flores, nem a brancura, nem a forma, nem o som, mas em vez disso era um corpo que há pouco tempo manifestava-se a mim dessas ma- neiras e agora o faz de outros modos. Mas o que precisamente é essa coisa que assim imagino? Coloquemos a nossa atenção nisso e vejamos o que permanece depois que tivermos removido tudo o que não pertence à cera: somente que ela é uma coisa extensa, flexível e mutável. Mas o que significa ser flexível e mutável? É o que a minha imaginação mostra que seja: a saber, que este pedaço de cera pode mudar de uma forma redonda para uma forma quadrada, ou desta última para uma forma triangular? Não, em absoluto, pois eu compreendo que a cera é capaz de inúmeras mudanças desse tipo, embo- ra eu seja incapaz de percorrer essas inú- meras mudanças pelo uso da minha ima- ginação. Portanto, essa percepção não é alcançada pela faculdade da imaginação. O que significa ser extenso? É a extensão desta coisa também desconhecida? Ela se torna maior na cera que está começan- do a derreter, maior na cera fervente e ainda maior à medida que o calor é au- mentado. E eu não julgaria corretamente o que a cera é se eu não acreditasse que ela assume uma variedade ainda maior de dimensões do que eu jamais poderia apreender com a imaginação. Resta-me, então, reconhecer que eu não apreendo o que esta cera é através da imaginação; em vez disso, eu a percebo apenas pela mente. O ponto que estou fazendo refere- -se a este pedaço particular de cera, pois o caso da cera em geral é ainda mais cla- ro. Mas o que é este pedaço de cera que é percebido apenas pela mente? Com cer- teza, é o mesmo pedaço de cera que eu vejo, toco e imagino; em poucas palavras, é o mesmo pedaço de cera que entendo que ele seja desde o começo. Contudo, preciso dar-me conta de que a percepção da cera não é nem uma visão, nem um toque, nem uma imaginação. Nem ela jamais o foi, embora antes parecesse sê- -lo; ao contrário, trata-se de uma inspeção da parte da mente apenas. Essa inspeção pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é agora, dependendo de o quão rigorosamente eu dou atenção às coisas nas quais o pedaço de cera consiste. ... Mas o que eu deveria dizer sobre essa mente, isto é, sobre mim mesmo? Até aqui, eu não admito nenhuma outra coisa ser em mim além e acima da men- te. Eu pergunto: o que sou eu que pare- ço perceber esta cera tão distintamente? Não conheço a mim mesmo não só muito maisverdadeiramente e com maior cer- teza, mas também muito mais distinta e claramente? Se julgo que a cera existe a partir do fato de que a vejo, a partir desse mesmo fato de que vejo a cera segue-se muito mais evidentemente que eu mesmo existo. Afinal, poderia ocorrer que o que vejo não é verdadeiramente cera. Poderia acontecer que eu não tenho olhos com os quais se possa ver alguma coisa. Porém, é completamente impossível que, enquan- to vejo ou penso que vejo (não distingo agora esses dois), eu que penso não seja alguma coisa. Por semelhante modo, se julgo que a cera existe a partir do fato de que a toco, o mesmo resultado se dará novamente, a saber, que eu existo. Se jul- go que a cera existe a partir do fato de que eu a imagino, ou por qualquer outra razão, segue-se claramente a mesma coi- sa. Todavia, o que eu observo com res- peito à cera aplica-se a tudo o mais que é exterior a mim. Além disso, se a minha percepção da cera parecesse mais distin- ta depois que se tornou conhecida a mim 80 laurence bonJour & Ann baker não somente com base na visão ou no toque, mas com base em muitas razões, deve-se admitir o quão mais distintamen- te eu sou, agora, conhecido a mim mes- mo. Não há uma única consideração que possa ajudar na minha percepção da cera ou de qualquer outro corpo que falhe em tornar até mais manifesta a natureza da minha mente. Contudo, existem ainda tantas outras coisas na própria mente, com base nas quais o meu conhecimen- to dela pode ser tornado mais distinto, que dificilmente parece válido enumerar aquelas coisas que emanam dela a partir do corpo. Ao fim e ao cabo, retornei natural- mente para onde eu queria estar. Como agora sei que mesmo os corpos não são, propriamente falando, percebidos pelos sentidos ou pela faculdade da imagina- ção, mas apenas pelo intelecto, 11 e que eles não são percebidos por serem tocados ou vistos, mas só por serem entendidos, claramente sei que nada pode ser perce- bido de forma mais fácil e mais evidente do que a minha própria mente. Todavia, como a tendência de ficar esperando em crenças longamente mantidas não pode ser posta de lado tão rapidamente, quero parar aqui, de modo que, pela amplitude da minha meditação, esse novo conheci- mento possa ser impresso na minha me- mória mais profundamente. Meditação terCeira: aCerCa de deus, que ele existe Fecharei agora os meus olhos, tam- parei os meus ouvidos e retirarei todos os meus sentidos. Também apagarei dos meus pensamentos todas as imagens de coisas corpóreas, ou, em vez disso, dado que o último ponto é dificilmente realizá- vel, considerarei essas imagens como va- zias, falsas e sem valor. E, na medida em que converso apenas comigo mesmo e olho mais profundamente para dentro de mim mesmo, tentarei tornar-me gradual- mente mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa, o que significa dizer uma coisa que duvida, afirma, nega, entende algumas poucas coisas, é ignorante de muitas coisas, dei- xa de querer e também imagina e sente. Como observei anteriormente, embora essas coisas que sinto ou imagino possam talvez não ser nada fora de mim, no en- tanto estou certo de que esses modos de pensar, que são casos daquilo que chamo de sentir e imaginar, na medida em que são meramente modos de pensar, existem sim dentro de mim. Nessas poucas palavras, eu revisei todas as coisas que verdadeiramente sei, ou pelo menos o que até aqui percebi que sei. 12 Agora, ponderarei mais cuidado- samente para ver se, talvez, podem exis- tir outras coisas pertencendo a mim que, até agora, falhei em notar. Estou certo de que sou uma coisa pensante. Mas eu tam- bém não sei, portanto, o que é exigido de mim para estar certo de alguma coisa? Certamente, nesta primeira instância do conhecimento, não há nada senão uma certa percepção clara e distinta do que eu afirmo. Contudo, isso dificilmente seria o bastante para me deixar certo da verdade de uma coisa, se jamais pudesse aconte- cer que alguma coisa que percebo tão cla- ra e distintamente fosse falsa. E, assim, eu agora pareço capaz de estabelecer, como uma regra geral, que tudo o que eu percebo muito clara e distintamente é verdadeiro. 13 Seja como for, admiti antes muitas coisas como totalmente certas e eviden- tes que, apesar disso, eu descobri mais tarde serem duvidosas. Que tipo de coi- sas eram essas? Por que a terra, o céu, as estrelas e todas as outras coisas eu percebi por meio dos sentidos. Mas o que se dizia sobre essas coisas que eu perce- bia claramente? Com certeza, o fato de que as ideias ou os pensamentos dessas coisas estavam pairando diante da mi- nha mente. Contudo, mesmo agora eu não nego que essas ideias encontrem-se em mim. Havia alguma outra coisa que eu costumava afirmar, que, devendo isso à minha tendência habitual de crê-lo, eu costumava pensar que era alguma coisa que percebia claramente, muito embora eu de fato não a percebesse: a saber, que certas coisas existiam fora de mim, coisas das quais aquelas ideias procediam e com as quais aquelas ideias se assemelhavam completamente. Porém, sobre esse ponto eu estava enganado; ou, então, se o meu juízo era um juízo verdadeiro, não era o resultado da força da minha percepção. O que dizer sobre quando eu consi- derava alguma coisa muito simples e fácil nas áreas da aritmética ou da geometria, por exemplo, que dois mais três somam cinco e coisas semelhantes? Eu não as in- 11 descartes utiliza o exemplo da cera para argumentar a favor dessa ideia (a de que mesmo os corpos não são propriamente percebidos pelos sentidos nem pela faculdade da imaginação, mas apenas pelo intelecto). 12 Aqui, descartes resume o principal resultado da Meditação Segunda: a pequena quantidade de conhecimento que (supostamente) escapou à dúvida resultante da possibilidade do gênio maligno. Afirmado na pri- meira pessoa (como é obviamente apropriado), posso saber que estou pensando e também que estou pensando (experimentan- do, duvidando, refletindo) sobre várias coisas, mas não que existe alguma coisa além de mim mes- mo e dos meus próprios estados conscientes. 13 essa é a sugestão de des- cartes para uma regra ou um princípio geral que apreende a maneira pela qual a sua crença sobre a sua própria existência escapa à dúvida. mas ele está certo sobre isso? “Clareza e distinção” é a razão por que eu não posso duvidar da minha própria existên- cia? de fato, o próprio descartes procede mostrando que ela não o é, uma vez que ele prossegue questionando se as coisas que são claras e distintas são sempre verdadeiras, embora ele jamais ponha em questão a sua própria existência. Filosofia: textos fundamentais comentados 81 tuía pelo menos de modo suficientemen- te claro, de sorte a afirmá-las como ver- dadeiras? Na realidade, decidi mais tarde que devo duvidar dessas coisas, mas isso era somente porque ocorria a mim que algum Deus poderia, talvez, ter me dado uma natureza tal que eu pudesse ser en- ganado mesmo sobre questões que pare- ciam maximamente evidentes. Todavia, sempre que essa opinião pré-concebida sobre o poder supremo de Deus me ocor- re, não posso deixar de admitir que, se ele o desejasse, ser-lhe-ia fácil fazer com que eu errasse, mesmo naquelas questões que penso intuir tão claramente quanto possível com os olhos da mente. 14 Por outro lado, sempre que volto a minha atenção àquelas coisas que penso perce- ber com grande clareza, sou tão comple- tamente persuadido por elas que deixo espontaneamente escapar estas palavras: “que qualquer um que pode assim fazê-lo engane-me; enquanto eu pensar que sou alguma coisa, ele jamais fará com que eu não seja nada. Nem um dia fará com que seja verdade que eu jamais existi, pois é verdade agora que eu de fato existo. Tam- pouco ele fará com que, talvez, dois mais três possam ser iguais a mais ou menos do que cinco, ou itens semelhantes, em que reconheço uma contradiçãoóbvia”. E, com certeza, porque eu não tenho ne- nhuma razão para pensar que há um Deus que é um enganador (e, naturalmente, eu ainda não sei sequer se existe um Deus), a base para duvidar, dependendo, como é o caso, meramente da hipótese acima, é muito tênue e, por assim dizer, metafísica. Para remover até mesmo essa base para a dúvida, eu deveria, na primeira oportuni- dade, investigar se existe um Deus e, caso exista, se pode ou não ser um enganador. Se sou ignorante disso, parece que jamais serei capaz de estar completamente certo sobre qualquer outra coisa. 15 Entretanto, nesse estágio, a boa ordem parece exigir que eu primeiro agrupe todos os meus pensamentos em certas classes e pergunte em quais delas a verdade ou a falsidade propriamente reside. Alguns desses pensamentos são como imagens de coisas; a esses apenas a palavra “ideia” propriamente se aplica, tal como quando penso num homem, ou numa quimera, ou no céu, ou num anjo, ou em Deus. Além disso, existem outros pensamentos que tomam diferentes for- mas: por exemplo, quando quero, ou temo, ou afirmo, ou nego, há sempre al- guma coisa que eu apreendo como o su- jeito do meu pensamento, embora abar- que no meu pensamento algo mais do que a semelhança daquela coisa. Alguns desses pensamentos são chamados de vo- lições ou afecções, ao passo que outros são chamados de juízos. Agora, na medida em que as ideias estão em questão, se elas são considera- das isoladamente e por si mesmas, sem serem referidas a alguma outra coisa, elas não podem, propriamente falando, ser falsas. Se é uma cabra ou uma qui- mera que estou imaginando, não é menos verdadeiro que imagino uma do que ima- gino a outra. Além disso, não precisamos temer que exista falsidade na própria vontade ou nas afecções, pois, embora eu possa escolher coisas más ou até mesmo coisas que são absolutamente não exis- tentes, não posso concluir a partir disso que seja uma inverdade que eu de fato escolho essas coisas. Portanto, permane- cem somente juízos nos quais devo tomar cuidado de não estar enganado. Agora, o erro principal e mais frequente a ser encontrado nos juízos consiste no fato de que julgo que as ideias que são em mim são semelhantes ou estão em con- formidade com certas coisas fora de mim. Obviamente, se eu fosse considerar essas ideias apenas como certos modos do meu pensamento, e não devesse referi-las a nenhuma outra coisa, elas dificilmente poderiam me dar qualquer matéria para o erro. 16 Entre essas ideias, algumas me pa- recem ser inatas, algumas adventícias e algumas produzidas por mim. Entendo o que uma coisa é, o que a verdade é, o que o pensamento é, e pareço ter deriva- do isso exclusivamente a partir da minha própria natureza. Mas, por exemplo, eu estou agora ouvindo um ruído, ou olhan- do para o sol, ou sentindo o fogo; até agora julguei que essas coisas procediam de certas coisas fora de mim, e finalmen- te que sereias, hipogrifos* e coisas seme- lhantes são feitas por mim. Ou talvez eu possa até mesmo pensar em todas essas ideias como sendo adventícias, ou como 14 Como descartes já disse que deus não nos enga- naria dessa maneira, é melhor tomá-lo como estando a falar aqui sobre o gênio maligno. 15 Aqui, poderia parecer que descartes está questio- nando até mesmo a sua própria existência e seus estados mentais, mas a discussão subsequente mostra que ele não está realmente fazendo isso. (se estivesse, ele não teria por onde começar na tentativa de provar a existência de deus.) Assim, a questão parece ser se ele pode aceitar com segurança coisas diferentes da sua própria existência e estados mentais que parecem “claros e distintos” (coisas como 2 + 3 = 5). o gênio maligno poderia enganá-lo sobre tais coi- sas, de modo que a única maneira de estar certo é provar a existência de deus (e, dessa forma, a não existência do gênio maligno). 16 Assim, descartes está preocupado se os seus pensamentos sobre o mundo são corretos, não se os seus pensa- mentos sobre os seus pensamentos são corretos, visto que (ele alega) jamais poderia estar em erro sobre aqueles. * N. de T. Figura animal mitológica, descritível aproximadamente como uma criatura voadora com a cabeça e as asas de uma águia gigante, e o restante do corpo – incluindo as pernas e o rabo – de um cavalo. 82 laurence bonJour & Ann baker sendo inatas, ou como fabricações, pois ainda não verifiquei claramente a sua verdadeira origem. 17 Aqui, eu devo investigar particular- mente aquelas ideias que acredito serem derivadas de coisas que existem fora de mim. Simplesmente que razão eu tenho para crer que essas ideias se assemelham àquelas coisas? Bem, de fato pareço ter sido ensinado assim pela natureza. Além disso, sei de fato a partir da experiência que essas ideias não dependem da minha vontade, nem por conseguinte de mim mesmo, pois geralmente as observo as mesmo contra a minha vontade. Nesse momento, por exemplo, quer eu queira quer não, sinto o calor. É por essa razão que creio que esse sentimento ou ideia do calor vem a mim a partir de algo diferen- te de mim mesmo, a saber, do calor do fogo junto ao qual estou sentado. Nada é mais óbvio do que o juízo de que essa coisa está enviando a sua semelhança a mim, ao invés de alguma outra coisa. 18 Verei agora se essas razões são po- derosas o bastante. Quando digo, aqui, “fui ensinado assim pela natureza”, tudo o que tenho em mente é que sou levado por um impulso espontâneo a crer nisso, e não que alguma luz da natureza está me mostrando que é verdadeiro. Essas são duas coisas muito diferentes. Ora, tudo o que me é mostrado por essa luz da natureza, por exemplo, que do fato de que duvido segue-se que sou, e assim por diante, não pode de forma alguma ser posto em dúvida. Isso se deve ao fato de que não pode haver nenhuma outra faculdade em que eu possa confiar tanto quanto essa luz e que poderia me ensinar que essas coisas não são verdadeiras. 19 Contudo, na medida em que estão em questão impulsos naturais, no passa- do frequentemente julguei a mim mesmo como sendo levado por eles a fazer a esco- lha mais pobre quando se tratava de uma questão de escolher um bem; e falho em ver por que eu deveria depositar qualquer fé maior neles do que em outras questões. Além disso, embora essas ideias não dependam da minha vontade, não se se- gue que elas necessariamente procedam das coisas que existem fora de mim. As- sim como esses impulsos sobre os quais falei há pouco parecem ser diferentes da minha vontade, muito embora ocorram em mim, assim também talvez haja em mim alguma outra faculdade, uma facul- dade ainda não suficientemente conhe- cida por mim, que produz essas ideias, como sempre pareceu até agora que as ideias são formadas em mim sem qual- quer ajuda das coisas externas quando estou adormecido. E, finalmente, mesmo se essas ideias procederam de coisas diferentes de mim mesmo, não se segue, portanto, que elas devam assemelhar-se àquelas coisas. Com efeito, parece que com frequência notei uma vasta diferença em muitos as- pectos. Por exemplo, encontro em mim duas ideias distintas do sol. Uma ideia é tirada, por assim dizer, dos sentidos. Ago- ra, é essa a ideia que, de todas aquelas que tomo como sendo derivada de fora de mim, mais necessita de inspeção. Por meio dessa ideia, o sol se me aparece deveras pequeno. Porém, há uma outra ideia, derivada do raciocínio astronômi- co, ou seja, que é produzida a partir de certas noções que são inatas em mim, ou que então é modelada em mim de algu- ma outra maneira. Através dessa ideia, o sol é mostrado como sendo diversas ve- zes maior do que a terra. Ambas as ideias certamente não podem assemelhar-se ao mesmo sol existente fora de mim; e a razão me convence de que a ideia que parece ter emanado do próprio sol tão de perto é justamente aquela que menos se assemelha ao sol. Todos esses pontos demonstram suficientemente que, até aqui,não era um juízo bem-fundado, mas somente um cego impulso que formava a base da minha crença de que as coisas existentes fora de mim enviam a mim ideias ou ima- gens de si mesmas através dos órgãos dos sentidos ou por algum outro meio. 20 No entanto, ainda uma outra via me ocorre para investigar se alguma das coisas das quais existem ideias em mim de fato existem fora de mim: na medida em que essas ideias são meramente mo- dos de pensamento, não vejo nenhuma desigualdade entre elas; todas parecem proceder de mim da mesma maneira. Po- rém, na medida em que uma ideia repre- senta uma coisa, e outra ideia represen- ta outra coisa, é óbvio que elas diferem, sim, muito amplamente uma da outra. Inquestionavelmente, aquelas ideias que exibem substâncias para mim são alguma coisa mais e, se posso assim dizê-lo, con- têm dentro de si mesmas mais realidade objetiva do que aquelas que representam 17 uma ideia inata é uma ideia que está progra- mada numa pessoa já no nasci- mento (por deus, na concepção de descartes). ideias produzidas por mim são aquelas que eu invento ou que são “fictícias”. o que, então, é uma ideia “adventícia”? Qual é a ter- ceira alternativa além de ser inato ou ser “produzido por mim”? pAre 18 Aqui estão duas razões iniciais para a concepção de que a experiência sensória reflete precisamente a natureza das coisas exteriores. 20 descartes conclui que as duas razões iniciais (ver a Anotação 18) não têm força real. 19 por “luz natural”, descar- tes parece querer dizer algo como uma percepção a priori de por que uma alegação deve ser verdadeira – o tipo de percepção que se reflete na alegação que parece “clara e distinta”. o seu ponto é que, embora eu, natural e espontaneamente, creia no que os sentidos parecem me dizer, não há nada nesse caso que me mos- tre que as alegações em questão devam ser verdadeiras. Como vimos, o gênio ma- ligno pode aparentemente me enganar, mesmo sobre coisas (diferentes da minha própria exis- tência e dos estados da mente) que parecem ser mostradas pela luz natural ou que parecem claras e distintas (tais como 2 + 3 = 5). Filosofia: textos fundamentais comentados 83 apenas modos ou acidentes. Além disso, a ideia que me capacita a entender uma deidade suprema, eterna, infinita, onis- ciente, onipotente, e o criador de todas as coisas diferentes dele, tem claramen- te mais realidade objetiva dentro de si do que o têm aquelas ideias através das quais são exibidas substâncias finitas. 21 Agora, é de fato evidente pela luz da natureza que deve haver ao menos tanta [realidade] na causa eficiente e to- tal quanto há no efeito daquela mesma causa. Por isso, eu pergunto: poderia um efeito obter a sua realidade se não a par- tir da sua causa? E como poderia a causa dar aquela realidade ao efeito, a menos que também possuísse aquela realidade? Portanto, segue-se que alguma coisa não pode vir a ser a partir do nada, assim como o que é mais perfeito (ou seja, o que contém em si mesmo mais realidade) não pode vir a ser a partir do que é menos perfeito. Contudo, isso é claramente ver- dadeiro não só para aqueles efeitos cuja realidade é atual ou formal, mas também para as ideias nas quais só a realidade ob- jetiva é considerada. 22 Por exemplo, não só uma pedra que não existia antes não pode agora começar a existir, a menos que seja produzida por alguma coisa na qual há, formalmente ou eminentemente, tudo o que é na pedra; nem o calor pode ser introduzido num su- jeito que ainda não tinha calor, a menos que isso seja feito por alguma coisa que é pelo menos de uma ordem tão perfeita quanto o calor – valendo o mesmo para o restante –, mas é também verdadeiro que não pode haver em mim nenhuma ideia do calor, ou de uma pedra, a menos que seja colocada em mim por alguma causa que tenha pelo menos tanta realidade quanto concebo haver no calor ou na pedra. Em- bora essa causa não traga nada da sua re- alidade atual ou formal à minha ideia, não se deveria pensar acerca dessa realidade que ela deva ser menos real. Ao contrário, a natureza de uma ideia é tal que ela não necessita de nenhuma realidade formal diferente do que toma emprestado a par- tir do meu pensamento, do qual ela é um modo. Todavia, que uma ideia particular contenha isso em oposição àquela realida- de objetiva é certamente devido a alguma causa na qual há pelo menos tanta reali- dade formal quanto há realidade objetiva contida na ideia. Ora, se admitimos que alguma coisa é encontrada na ideia que não havia na sua causa, nesse caso a ideia obtém aquela alguma coisa do nada. Con- tudo, não importa o quão imperfeito seja um modo de ser como esse, pelo qual uma coisa existe no intelecto objetivamente através de uma ideia, ele certamente não é um nada; portanto, ele não pode obter o seu ser a partir do nada. Além disso, embora a realidade que estou considerando nas minhas ideias seja meramente realidade objetiva, eu não deveria, nessa acepção, suspeitar que não há nenhuma necessidade para a mesma realidade ser formalmente nas causas dessas ideias, mas que basta para ela ser nelas objetivamente. Assim como o modo objetivo de ser pertence às ideias pela própria natureza delas, também o modo formal de ser pertence às causas das ideias, pelo menos às causas primei- ras e preeminentes, por sua própria na- tureza. Embora uma ideia talvez possa originar-se de outra, nenhum regresso ao infinito é permitido aqui; por fim, algu- ma ideia primeira deve ser atingida, cuja causa é um tipo de arquétipo que contém formalmente toda a realidade que existe na ideia de modo apenas objetivo. 23 Portanto, está claro para mim pela luz da natureza que as ideias que são em mim são como imagens que podem facil- mente falhar em atingir a perfeição das coisas a partir das quais foram tomadas, mas que não podem conter nada maior ou mais perfeito. E quanto mais longamente e aten- tamente examino todos esses pontos, mais claramente e distintamente sei que são verdadeiros. Mas o que devo, em úl- tima instância, concluir? Se a realidade objetiva de qualquer das minhas ideias é descoberta como sendo tão grande que estou certo de que a mesma realidade não existia em mim, seja formalmente ou eminentemente,* e que, portanto, eu * N. de T. Uma coisa ou uma realidade está “for- malmente” nos objetos que as ideias representam quando se encontra neles tal como é concebida pelo sujeito pensante; uma coisa ou uma reali- dade está “eminentemente” nos objetos que as ideias representam quando se encontra neles tão amplamente que não se pode dizer que está como tal na ideia ou que é como tal concebida pelo sujeito pensante. Cf. René Descartes, Razões (Objeções e respostas). In: René Descartes, Dis- curso do método – As paixões da alma – Meditações – Objeções e respostas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 251s. 21 uma outra abordagem é ver se a alegação de que algumas das minhas ideias correspondem a coisas existentes fora da minha mente pode ser de- rivada a partir do conteúdo delas: o que elas parecem representar ou descrever. descartes põe isso em termos da concepção medieval obscura (a nós, de qual- quer modo) da realidade objetiva: a realidade como um objeto do pensamento. (Assim, por exemplo, o papai noel teria “realidade ob- jetiva” quando alguém tivesse um pensamento do papai noel.) nessa concepção, ideias diferentes con- têm diferentes graus de realidade objetiva, correspondendo ao grau de perfeição do objeto da ideia. segue-se disso, ele acredita, que a ideia de deus contém mais rea- lidade objetiva do que qualquer outra ideia. 22 Aqui está o primeiro de dois princípios metafísicos impor- tantes, envolvidos no argumento de descartes: o princípio de que qualquer causa deve ter pelo me- nos tanta realidade (deve ser pelo menos tão perfeita) quanto o seu efeito. ele aplica isso tanto à rea- lidade formal ou atual (a realidadeno sentido costumeiro) quanto à realidade objetiva. (os rótulos “for- mal” e “objetivo” ferem os nossos ouvidos contemporâneos como terminologicamente às avessas. o que diríamos por “realidade obje- tiva” é o que descartes quer dizer por “realidade formal”.) 23 Aqui está o segundo princí- pio metafísico envolvido no argumento de descartes: qualquer coisa com realidade objetiva deve, em última análise, ser causada por alguma coisa com realidade formal. A partir disso, descartes pensa que decorre, dado o princípio anterior, que alguma coisa com um grau específico de realidade objetiva deve, em última análise, ser causada por alguma coisa com pelo menos aquele mesmo grau de realidade formal. Há qualquer plausibilidade nessa alegação? e, ainda mais importante, como descartes sabe que esses dois princípios me- tafísicos são verdadeiros? Analise cuidadosamente o que ele diz. Você vê algum problema aqui? (Ver a Questão para discussão 3.) pAre 84 laurence bonJour & Ann baker mesmo não posso ser a causa da ideia, segue-se então necessariamente que não estou sozinho no mundo, mas que algu- ma outra coisa, que é a causa dessa ideia, também existe. Contudo, se nenhuma ideia desse tipo for encontrada em mim, não terei nenhum argumento que me dei- xe certo da existência de qualquer coisa diferente de mim mesmo, pois conscien- temente revisei todos esses argumentos e até o momento fui incapaz de encontrar qualquer outro. 24 Entre as ideias, em adição àquela que me expõe a mim mesmo (sobre a qual não pode haver nenhuma dificulda- de neste ponto), existem outras que re- presentam Deus, coisas corpóreas e ina- nimadas, anjos, animais e, enfim, outros homens como eu. No que concerne as ideias que exi- bem outros homens, ou animais, ou anjos, posso facilmente entender que podem ser modeladas a partir das ideias que tenho de mim mesmo, de coisas corpóreas, e de Deus – mesmo se quaisquer homens (exceto eu mesmo), quaisquer animais e quaisquer anjos existissem no mundo. Quanto às ideias de coisas corpóreas, não há nada nelas que seja tão grande que pareça incapaz de ter sido originado a partir de mim. Se eu as investigar profun- damente e examinar cada uma delas in- dividualmente, do modo como examinei ontem a ideia da cera, observo que existe apenas um pequeno punhado de coisas nelas que percebo clara e distintamente: a saber, tamanho ou extensão em com- primento, largura e profundidade; forma, que surge dos limites da sua extensão; posição, que várias coisas com forma têm uma em relação à outra, e movimento ou alteração na posição. A essas podem ser adicionadas substância, duração e núme- ro. Porém, quanto aos itens restantes, tais como luz e cores, sons, odores, sabores, calor, frio e outras qualidades táteis, pen- so nesses só de uma maneira muito con- fusa e obscura, na medida em que nem mesmo sei se são verdadeiras ou falsas, isto é, se as ideias que eu tenho deles são ideias de coisas ou ideias de não coisas. 25 Embora há pouco tempo tenha nota- do que a falsidade propriamente dita (ou falsidade “formal”) deve ser encontrada somente em juízos, existe, no entanto, um outro tipo de falsidade (chamada de “material”), que é encontrada nas ideias sempre que representam uma não coisa como se ela fosse uma coisa. Por exem- plo, as ideias que tenho do calor e do frio ficam tão aquém de ser claras e distintas que não posso dizer a partir delas se o frio é meramente a privação do calor ou se o calor é a privação do frio, ou se am- bos são qualidades reais, ou se nenhum o é. E como as ideias podem apenas ser, por assim dizer, a partir de coisas, se é ver- dade que o frio é meramente a ausência do calor, então uma ideia que representa o frio para mim como algo real e positi- vo não será inapropriadamente chamada de falsa. O mesmo é válido para outras ideias similares. Com certeza, não preciso atribuir a essas ideias um autor distinto de mim mesmo. Se elas fossem falsas, ou seja, se tivessem de representar não coisas, sei pela luz da natureza que elas procedem do nada, isto é, não são em mim por ne- nhuma outra razão senão que aquela uma coisa está faltando na minha natureza e que a minha natureza não é inteiramente perfeita. Se, por outro lado, essas ideias são verdadeiras, nesse caso, porque exi- bem tão pouca realidade a mim que não posso distingui-la de uma não coisa, não vejo nenhuma razão pela qual elas não podem obter o seu ser a partir de mim. Quanto ao que é claro e distinto nas ideias de coisas corpóreas, parece que eu poderia ter tomado emprestado alguma dessas a partir da ideia de mim mesmo, a saber, substância, duração, número e tudo o mais que pode ser desse tipo. Por exemplo, penso que uma pedra é uma substância, ou seja, um coisa que é apta a existir em si mesma; semelhantemente, penso que eu também sou uma substân- cia. Apesar do fato de que concebo a mim mesmo como sendo uma coisa pensante, e não uma coisa extensa, ao passo que concebo uma pedra como coisa extensa e não como uma coisa pensante, e portanto existe a maior diversidade entre esses dois conceitos, eles parecem concordar um com o outro, não obstante isso, quando considerados sob a rubrica de substância. Além disso, percebo que eu agora exis- to e lembro-me que existi anteriormente por algum tempo. E tenho vários pensa- mentos e sei quantos deles existem. É ao fazer essas coisas que adquiro as ideias de duração e número, as quais posso en- tão aplicar a outras coisas. Entretanto, nenhum dos outros componentes a partir dos quais as ideias de coisas corpóreas 24 Assim, a questão se torna se tenho alguma ideia da qual eu mesmo, de acordo com o princípio anterior, não poderia ser a causa. se assim se dá, posso saber, com base nisso, que alguma coisa fora de mim existe. 25 descartes tem em mente ao menos aproximadamente a distinção entre qualidades primárias e secundárias (sobre as quais locke terá muito mais a dizer). Filosofia: textos fundamentais comentados 85 são modeladas (a saber, extensão, forma, posição e movimento) estão contidos em mim formalmente, uma vez que sou me- ramente uma coisa pensante. Porém, uma vez que esses são apenas certos modos de uma substância, ao passo que sou uma substância, parece possível que estejam contidos em mim eminentemente. Assim, permanece somente a ideia de Deus. Devo considerar se há alguma coisa nessa ideia que poderia não ter se originado de mim. 26 Entendo pelo nome “Deus” uma certa substância que é infini- ta, independente, supremamente inteli- gente e supremamente poderosa, que me criou junto com tudo o mais que existe – se qualquer outra coisa existe. De fato, todas essas são tais que, quanto mais cui- dadosamente ponho a minha atenção so- bre elas, o menos possível parece que pu- dessem ter surgido de mim apenas. Logo, a partir do que foi dito, devo concluir que Deus necessariamente existe. Embora a ideia de substância exista em mim em virtude do fato de que sou uma substância, esse fato não é suficiente para explicar o fato de que possuo a ideia de uma substância infinita, visto que sou finito, a menos que essa ideia procedesse de alguma substância que realmente fos- se infinita. Nem deveria eu pensar que não per- cebo o infinito por meio de uma ideia ver- dadeira, mas só através de uma negação do finito, assim como percebo repouso e escuridão por meio de uma negação de movimento e luz. Pelo contrário, entendo claramente que há mais realidade numa substância infinita do que há numa fini- ta. Portanto, a percepção do infinito é de algum modo anterior em mim à percep- ção do finito, isto é, a minha percepção de Deus é anterior à minha percepção de mim mesmo. Como eu entenderia que duvido e que desejo, ou seja, que careço de alguma coisa e que não sou totalmen- te perfeito, a menos que houvesse algu- ma ideia em mim de um ente mais perfei- to em comparação com o qual eu poderia reconhecer os meus defeitos?