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70 laurence bonJour & Ann baker
Uma alternativa final é o ceticismo: em relação ao problema do conhecimento 
do mundo exterior, a opinião de que não temos tal conhecimento e de que a impres-
são de que o temos é simplesmente uma ilusão. Um modo de argumentar a favor do 
ceticismo é por apelo aos problemas que as várias abordagens positivas de como tal 
conhecimento opera têm de encarar, problemas que vêm a se revelar muito sérios. 
Contudo, também é possível argumentar mais diretamente a favor de uma conclusão 
cética. A seleção final nessa parte do capítulo é um breve excerto tirado do talvez mais 
famoso representante da escola cética de filosofia da Antiguidade, Sexto Empírico, que 
argumenta que não podemos ter nenhum conhecimento da verdadeira natureza dos 
objetos exteriores.
é a indução JustiFiCada?
O problema da indução diz respeito à justificação para inferir a partir de regulari-
dades observadas na experiência para alegações mais gerais. Suponha que um grande 
número de casos de alguma propriedade observável ou categoria A foram observa-
dos (por vários observadores e sob condições colaterais amplamente variadas) – por 
exemplo, um grande número de ovos postos por pintarroxos foram observados em 
muitas localidades diferentes, com tanta variação de outras condições (temperatura, 
época do ano, elevação, etc.) quanto os hábitos dos pintarroxos permitem. Suponha 
também que todos os casos observados de A também foram casos de alguma outra 
propriedade observável ou categoria B – todos os ovos de pintarroxo observados eram 
verde-azulados e tinham pintas. (Uma versão mais geral do problema incluiria a pos-
sibilidade de que alguma fração m/n definida e estável de A’s, ao invés de todos eles, 
eram B’s.) Dada uma premissa de observação desse tipo, o raciocínio indutivo do tipo 
mais padrão leva à conclusão de que todos os casos de A (observados ou não, passados, 
presentes ou futuros) são também casos de B – de que todos os ovos de pintarroxo são 
verde-azulados e têm pintas. (Ou, na versão mais geral, a conclusão seria que aproxi-
madamente m/n de todos os A’s são B’s.)
É óbvio que o raciocínio desse tipo é geralmente tido por certo pelo senso co-
mum e nele a ciência se baseia muito amplamente. (Aqui, você deveria parar para 
refletir sobre como muitas das coisas que pensamos saber sobre o mundo repousam 
em raciocínios desse tipo: alegações sobre quais alimentos são seguros e nutritivos, 
sobre o comportamento de vários tipos de animais, sobre condições do tempo, sobre 
o comportamento humano em diversos tipos de circunstâncias, sobre as propriedades 
de vários tipos de minerais e outras substâncias, etc., etc.) A questão é se tal raciocínio 
é racionalmente justificado e, se o é, por que motivo, ou seja, por que tal conclusão 
é genuinamente provável de ser verdadeira sempre que a premissa correspondente é 
verdadeira. Hume considera essa questão no contexto mais específico de uma alegação 
causal (com A sendo a suposta causa, e B o efeito suposto, e os A’s observados sendo 
todos seguidos por B’s). Tendo posto o problema, ele argumenta a favor da opinião 
cética de que não existe justificação racional para uma conclusão indutiva, porque não 
existe raciocínio cogente a partir da premissa observacional para a conclusão induti-
va. (Ele também oferece um relato psicológico de por que motivo raciocinamos dessa 
maneira.) Wesley Salmon recapitula a abordagem de Hume e, então, perpassa um nú-
mero de diferentes respostas, rejeitando a maioria delas, mas argumentando que uma 
resposta, ao menos, é promissora. A.C. Ewing (no curso de uma discussão mais geral 
do conhecimento a priori) defende uma das respostas que Salmon rejeita: uma solução 
racionalista que mantém que o raciocínio indutivo é justificado a priori.
apêndiCe: JustiFiCação A priori e ConheCiMento
Uma terceira questão epistemológica que, segundo algumas opiniões ao menos, 
é altamente relevante para essas outras duas é a questão do conhecimento a priori, 
conhecimento cuja justificação não depende da experiência sensória. Salmon e Ewing 
diferem fundamentalmente sobre a natureza de tal conhecimento e, como um resul-
Filosofia: textos fundamentais comentados 71
tado, sobre se uma justificação a priori da indução é possível. E embora isso não seja 
discutido muito explicitamente nas leituras, o tipo de solução em termos de realismo 
representativo ao problema do mundo exterior que é defendida por Descartes, Locke e 
BonJour também teria, aparentemente, de repousar no tipo de conhecimento a priori 
que Ewing aceita e Salmon rejeita: conhecimento a priori que não é meramente defini-
cional (ou “tautológico”) em caráter. Afinal, apenas o conhecimento desse tipo poderia 
aparentemente justificar a inferência a partir de alegações sobre a experiência sensória 
para alegações sobre os objetos materiais exteriores – tal como BonJour explana (se-
guindo Hume), essa inferência não poderia ser justificada pela experiência, uma vez 
que não há nenhum modo, de uma perspectiva do realismo representativo, de experi-
mentar uma conexão ou correlação entre a experiência e tais objetos. O que se segue é 
uma breve introdução ao conhecimento a priori e às questões que ele levanta.
A questão do conhecimento a priori é estruturada em torno de três distinções prin-
cipais, todas elas complicadas e sutis – e facilmente confundidas umas com as outras. Em 
primeiro lugar, há uma distinção metafísica entre os dois modos nos quais uma propo-
sição ou alegação pode ser verdadeira ou falsa. Algumas proposições – nisso a maioria 
dos filósofos está em concordância – são logicamente ou metafisicamente necessárias: 
verdadeiras em qualquer mundo ou situação que é logicamente ou metafisicamente pos-
sível, ao passo que outras são logicamente ou metafisicamente contingentes, isto é, 
verdadeiras em alguns mundos logicamente ou metafisicamente possíveis, e não em ou-
tros. Assim, por exemplo, proposições da lógica e da matemática são normalmente tidas 
como sendo necessárias nesse sentido, ao passo que a maioria das proposições sobre as 
coisas e os acontecimentos no mundo material são contingentes – verdades contingentes, 
se elas são de fato verdadeiras no mundo atual. (Algumas proposições desafortunadas 
são necessariamente falsas: falsas em todo mundo logicamente ou metafisicamente 
possível; a proposição de que 2 + 2 = 5 é um exemplo.)
Em segundo lugar, há uma distinção epistemológica entre os dois diferentes mo-
dos nos quais uma proposição pode ser justificada: dois diferentes tipos de razões para 
pensar que ela é verdadeira (e, derivativamente, admitindo-se que conhecimento requer 
justificação, dois diferentes tipos de conhecimento). Embora pareça óbvio que grande 
parte do nosso conhecimento depende, para a sua justificação, da experiência sensória 
e, talvez, também de outros tipos de experiência, talvez semelhantes, tal como a ex-
periência introspectiva (e assim é justificado empiricamente ou a posteriori), pareceu 
igualmente óbvio à maioria dos filósofos que há conhecimentos que não dependem da 
experiência sensória para a sua justificação, mas que são, em vez disso, a priori: justifi-
cados por meio da pura razão pura ou tão somente do pensamento. Aqui, os exemplos 
mais óbvios são novamente as alegações da lógica e da matemática, mas há muitos 
outros tipos de reivindicações que têm sido alegadas (correta ou incorretamente) como 
sendo justificadas a priori: reivindicações metafísicas (por exemplo, a reivindicação de 
que deve haver uma explanação para tudo o que acontece ou que o espaço tem apenas 
três dimensões); várias reivindicações sobre propriedades e relações do senso comum 
(de que nada pode ser totalmente vermelho e totalmente verde ao mesmo tempo ou que 
todos os cubos têm doze bordas) e também algumas reivindicações éticas (tais como 
que causar sofrimento desnecessário é moralmente errado, ou que praticar a discrimi-
nação racial é injusto). Em casos como esses, assim é reivindicado, alguém que entendeadequadamente a reivindicação em questão pode simplesmente “ver”, numa base intui-
tiva, que ela é verdadeira, de fato que ela deve ser verdadeira. As questões centrais aqui 
são: primeiro, como tal conhecimento a priori é possível, dado que não é justificado pela 
experiência sensória? De onde vem exatamente a justificação para tais reivindicações? 
Se o apelo é para uma intuição a priori, ao que equivale tal intuição e como exatamente 
ela funciona? E, segundo, quais tipos específicos de coisas são conhecíveis nesse tipo de 
base? Em particular, o conhecimento a priori inclui somente questões de definição essen-
cialmente triviais (embora, às vezes, sejam complicadas), como a alegação de que todos 
os solteiros são não casados – alegações com frequência referidas como tautologias ou, 
mais tecnicamente, como “analíticas”?
Em terceiro lugar, há uma distinção lógica ou estrutural entre dois tipos de pro-
posições, analíticas e sintéticas. A formulação explícita dessa distinção deriva do gran-
de filósofo alemão Immanuel Kant. Tal como Kant define a noção, uma proposição 
72 laurence bonJour & Ann baker
analítica é uma proposição da forma sujeito-predicado, cujo predicado está contido no 
seu sujeito, seja explicitamente (por exemplo, a alegação de que todos os homens altos 
são altos), seja implicitamente (por exemplo, a alegação de que todos os solteiros são 
não casados ). O propósito da distinção, para Kant, é que, se uma proposição é analíti-
ca, então é aparentemente bastante fácil ver como ela pode ser justificada e conhecida 
a priori: simplesmente pelo entendimento dos conceitos envolvidos e pela percepção 
da relação de contenção. O que se torna problemático é como qualquer proposição 
sintética – uma proposição que não tem esse tipo de forma ou estrutura lógica, isto é, 
na qual o predicado não está contido no sujeito – ainda poderia ser justificada a priori, 
embora isso seja algo que Kant acredita ocorrer. (O que torna essa distinção especial-
mente complicada é que alguns filósofos, tais como Salmon em algumas passagens, 
retiveram esses termos e a ideia básica de que um certo tipo de estrutura lógica pode 
ser usado para explicar a justificação a priori, porém alterando a abordagem de Kant 
quanto ao que seja esse traço estrutural. Isso levanta a questão, com frequência não 
direcionada muito explicitamente, relativa a se a nova abordagem de analiticidade 
tem a mesma capacidade de explicar uma justificação a priori que a antiga abordagem 
tinha, algo que não pode, pois, ser admitido apenas porque o mesmo termo “analítico” 
é utilizado. Você deve ter essa questão em mente quando vier a ler Salmon.)
As principais posições opostas sobre a questão do a priori são versões do em-
pirismo e do racionalismo. O empirismo é uma concepção geral sobre a cognição 
humana que envolve duas teses principais bastantes diferentes, cada uma delas tendo 
a ver com a relação entre cognição e experiência sensória e cada uma delas estando 
refletida no pensamento de Locke, embora uma muito mais clara e inequivocadamente 
do que a outra. A primeira tese, na forma mais padronizada referida como empirismo 
de conceito (mas ela também poderia, em relação à terminologia utilizada por Locke 
e outros, ser chamada de empirismo de ideia), é uma alegação sobre onde e como a 
mente humana adquire as ideias ou os conceitos que ela utiliza para pensar sobre o 
mundo ou, de fato, sobre qualquer coisa. De acordo com o empirista de conceito, todos 
os conceitos são derivados da experiência sensória (construída amplamente, de modo 
a também incluir a experiência introspectiva). Aqui, a principal opinião oponente é a 
alegação, defendida por Descartes e por seus sucessores racionalistas, de que ao menos 
algumas ideias ou alguns conceitos são inatos, “programados” na mente quando do 
nascimento (sendo essa “programação” normalmente atribuída a Deus).
A segunda corrente principal do empirismo (aquela que é mais relevante para a 
questão principal sobre o conhecimento a priori) carece de um rótulo completamente 
padrão, mas será referido aqui como empirismo justificatório. Essa é uma concepção 
sobre as razões ou o aval para pensar que crenças ou alegações proposicionais são verda-
deiras. De acordo com uma versão do empirismo justificatório, toda a justificação para 
alegações que não são meramente tautologias lógicas ou de definição (não são analíticas 
no sentido de Kant ou, talvez, em algum outro sentido daquele termo) deve derivar da 
experiência sensória (outra vez, construída amplamente, de modo a incluir a introspec-
ção). Uma versão dessa concepção de empirismo moderado é defendida por Salmon 
no curso da sua discussão acerca da indução.2 A principal alternativa ao empirismo 
moderado é a concepção do racionalismo moderado de que uma justificação a priori e 
um conhecimento a priori incluem mais do que meras tautologias definicionais ou pro-
posições analíticas. Em vez disso, alega-se que a mente humana tem a capacidade para 
percepção direta a priori de certos traços necessários da realidade. Aqui, os principais 
exemplos seriam os tipos de alegações brevemente listadas antes, nenhuma das quais 
sendo, de acordo com o racionalista, mera questão de definição ou analítica em qualquer 
sentido epistemologicamente relevante. (O racionalista moderado não alega que toda 
justificação e todo conhecimento são a priori – uma concepção que muito poucos filóso-
fos desde talvez Platão jamais sustentaram.) Tal concepção é defendida por Ewing.
2 Há também uma versão mais radical do empirismo que nega a existência de justificação a priori ou de 
conhecimento a priori de qualquer tipo; essa concepção não está representada na presente antologia. 
O principal proponente dessa versão mais radical do empirismo é o filósofo e lógico americano W.V.O. 
Quine.
Filosofia: textos fundamentais comentados 73
René Descartes
rené descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, foi um dos mais impor-
tantes e influentes filósofos de todos os tempos. descartes é chamado de “o pai da filo-
sofia moderna”, porque diversos dos problemas e temas centrais da filosofia moderna 
(pós-renascentista) aparecem primeiramente na sua obra: de modo mais fundamental, 
a insistência em começar com questões sobre o conhecimento (questões epistemoló-
gicas) em vez de questões sobre a realidade (questões metafísicas). entre os problemas 
filosóficos mais específicos que pela primeira vez aparecem claramente em descartes, 
estão o problema do mundo exterior (como alegações sobre objetos materiais podem 
ser justificadas com base na experiência sensória) e o problema mente-corpo (ver Capí-
tulo 3). Meditações é a sua obra mais importante e influente.
A motivação fundamental de descartes para fazer questionamentos acerca do co-
nhecimento está refletida justamente na primeira sentença das Meditações: “diversos 
anos se passaram agora, desde que primeiramente percebi o quão numerosas eram as 
falsas opiniões que eu, na minha juventude, tomei por verdadeiras e, assim, o quão du-
vidosas foram todas aquelas que eu, subsequentemente, construi por sobre elas”. des-
cartes viveu numa época de grande efervescência intelectual, quando as concepções 
medievais ainda estavam sendo substituídas por outras mais modernas e a revolução 
científica estava apenas a caminho. estava claro para ele, com base em muitas opiniões 
e argumentos conflitantes com os quais era confrontado, que muitas das opiniões que 
ele tinha anteriormente aceitado a partir de várias fontes eram muito provavelmente 
falsas. A questão central das Meditações é como corrigir essa situação. Ao escrever as 
Meditações, descartes está tentando pôr a descoberto o seu processo de pensamento, 
de maneira que o leitor possa seguir junto com ele, pensar com ele e, dessa maneira, 
chegar às mesmas conclusões às quais ele chega.
A solução de descartes ao problema de como eliminar crenças errôneas é aceitar 
somente crenças que são indubitáveis, no sentido de serem incapazes deser equivoca-
das e, portanto, serem certas. o seu método para atingir tal certeza é sistematicamen-
te duvidar de categorias inteiras de crença, retirando delas o assentimento com base 
na mera possibilidade de que sejam falsas. ele está sugerindo, pois, que o conhecimen-
to genuíno requer justificação que é conclusiva: razões que são fortes o bastante para 
garantir a verdade da alegação em questão. (Assim entendido, descartes concorda 
com a concepção tradicional do conhecimento com um adendo: o conhecimento não 
é meramente crença verdadeira justificada, mas crença verdadeira conclusivamente 
justificada.)
Ao final da Meditação Primeira, descartes suspendeu a crença em toda opinião que 
ele considerou, primeiro com base na possibilidade de que poderia estar sonhando 
e, depois, com base na possibilidade bem mais radical de que poderia estar sendo 
enganado por um “gênio maligno” todo-poderoso. Contudo, na Meditação Segunda, 
ele descobre uma crença que não pode ser posta em dúvida nem mesmo pela última 
dessa razões: a crença de que ele mesmo existe como uma coisa pensante. mais tarde, 
ele identifica outras crenças sobre as quais crê que pode estar certo essencialmen-
te na mesma base: crenças sobre os seus diversos estados conscientes da mente. e, 
assim, o projeto nas Meditações Terceira e Sexta é reclamar como conhecimento as 
crenças anteriormente suspendidas (ou, no mínimo, tantas delas quanto for possível) 
com base nas crenças indubitáveis identificadas na Meditação Segunda. Ao final, você 
terá de tentar julgar se descartes tem ou não sucesso em assegurar um fundamento 
com base naquilo que as suas crenças mantidas anteriormente podem ser justificadas, 
isto é, com base em quais razões conclusivas podem ser dadas para pensar que aquelas 
crenças são verdadeiras.
temos conhecimento do 
mundo exterior?
74 laurence bonJour & Ann baker
Meditação priMeira: 
aCerCa das Coisas que 
podeM ser postas eM dúvida
Diversos anos se passaram agora, 
desde que primeiramente percebi o quão 
numerosas eram as falsas opiniões que 
eu, na minha juventude, tomei por verda-
deiras e, assim, o quão duvidosas foram 
todas aquelas que eu, subsequentemente, 
construi por sobre elas. 1 Então, percebi 
que uma vez em minha vida eu tinha de 
derrubar por terra todas as coisas e come-
çar novamente desde os fundamentos ori-
ginais se eu quisesse estabelecer qualquer 
coisa firme e duradoura nas ciências. No 
entanto, a tarefa parecia enorme, e eu es-
tava esperando até que atingisse um pon-
to em minha vida que fosse tão oportuno 
que nenhum tempo mais apropriado para 
assumir esses planos de ação suceder-se- 
-ia. Por essa razão, eu prorroguei por tan-
to tempo que doravante estaria em erro, 
caso fosse perder o tempo que permanece 
para executar o projeto, pensando sobre 
ele. De acordo com isso, eu hoje libertei 
apropriadamente o meu pensamento de 
todas as preocupações, assegurei para 
mim mesmo um período de calma tran-
quilidade e estou retirando-me em soli-
tude. Finalmente, aplicar-me-ei de forma 
séria e sem reservas a essa demolição ge-
ral das minhas opiniões.
Contudo, para levar isso a termo, 
não precisarei mostrar que todas as mi-
nhas opiniões são falsas, o que talvez seja 
algo que eu jamais poderia realizar. Toda-
via, a razão agora me persuade de que eu 
deveria retirar o meu assentimento não 
menos cuidadosamente das opiniões que 
não são completamente certas e indubi-
táveis do que eu o faria daquelas que são 
claramente falsas. Por essa razão, bastará 
para a rejeição de todas essas opiniões 
se eu encontrar em cada uma delas al-
guma razão para duvidar. 2 E, portan-
to, nem preciso passar por cada opinião 
indivi dualmente, uma tarefa que não te-
ria fim. Em vez disso, já que destruir os 
fundamentos fará com que tudo o que foi 
construído sobre eles se desmorone por 
sua própria conta, atacarei diretamente 
aqueles princípios que dão suporte a tudo 
o que foi uma vez crido. 3
Certamente, tudo o que eu tinha 
admitido até agora como maximamente 
verdadeiro eu recebi ou dos sentidos ou 
através dos sentidos. Entretanto, percebi 
que os sentidos são, às vezes, enganosos; 
e é um sinal de prudência jamais deposi-
tar a nossa confiança completa naqueles 
que nos enganaram sequer uma vez.
Embora os sentidos de fato às vezes 
nos enganem, quando se trata de coisas 
muito pequenas e distantes, ainda há 
muitas outras questões acerca das quais 
simplesmente não se pode duvidar, ain-
da que sejam derivadas dos mesmíssi-
mos sentidos: por exemplo, que eu estou 
sentado aqui, próximo ao fogo, vestindo 
o meu roupão de inverno, que eu estou 
segurando essa folha de papel nas mi-
nhas mãos, e coisas semelhantes. Mas 
sob quais razões alguém poderia negar 
que essas mãos e esse corpo inteiro são 
meus? A menos, talvez, que eu fosse me 
igualar aos insanos, cujos cérebros são 
prejudicados por um tal vapor incessan-
te de bile negra que insistem continua-
mente em dizer que são reis quando são 
paupérrimos, ou que estão vestidos em 
robes de cor púrpura quando estão nus, 
ou que têm cabeças feitas de barro, ou 
que são cântaros, ou que são feitos de 
vidro. Porém, tais pessoas são loucas, e 
eu não pareceria menos doido se eu fosse 
considerar o comportamento delas como 
um exemplo para mim mesmo.
Isso tudo estaria bem e em ordem 
se eu não fosse um homem acostumado 
a dormir à noite e a experimentar nos 
meus sonhos as mesmíssimas coisas, ou 
em uma e outra vez até mesmo coisas 
menos plausíveis do que essas pessoas 
insanas fazem quando estão despertas. 
O quão frequentemente o meu sono no-
turno persuade-me de coisas costumeiras 
como estas: que eu estou aqui, vestido no 
meu roupão, sentado próximo à lareira – 
quando de fato estou despido na cama! 
Meditações sobre Filosofia Primeira3
3 Extraído de Meditations on First Philosophy, 3. ed., traduzido por Donald A. Cress (Indianapolis: 
Hackett, 1993).
1 Pare e pense
Você consegue pensar em 
coisas nas quais acreditava, 
quando era mais jovem, porém 
não mais acredita que sejam 
verdadeiras? Algumas (ou mesmo 
muitas) das coisas em que você 
acredita agora poderiam tornar-se 
igualmente falsas? (suponha que 
alguém perguntou a você pelas 
suas razões para estar convicto 
sobre a verdade de várias crenças 
das quais você está convicto 
[pense em exemplos específicos]: 
qual seria a sua resposta?)
pAre
2 Definição
este é o famoso método 
da dúvida de descartes: 
duvidar de qualquer coisa que 
pode possivelmente ser verda-
deira e, assim, chegar (se alguma 
coisa ainda resta) à certeza. note 
que ele não está buscando 
meramente certeza psicológica. 
muitas pessoas estão convencidas 
de diversas coisas (talvez de que 
deus existe), embora não possam 
dar quaisquer razões para pensar 
que são verdadeiras, mas esse não 
é o tipo de certeza que ajudará a 
evitar o erro (dado que algo que 
é psicologicamente certo pode 
ainda ser falso). em vez disso, 
ele está procurando um tipo de 
certeza que garante a verdade: 
crenças para as quais há uma 
razão conclusiva.
3 
em vez de escrutinar 
crenças individualmen-
te, descartes propõe examinar 
os fundamentos sobre os quais 
categorias inteiras de crenças 
repousam; a primeira categoria 
desse tipo, discutida nos parágra-
fos seguintes, é a das crenças justi-
ficadas pela experiência sensória. 
(A ideia de um fundamento para 
a crença ou o conhecimento faz 
apelo a uma metáfora arquite-
tônica – pense sobre a analogia 
entre erigir uma construção e a 
cognição que ela sugere.)
Filosofia: textos fundamentais comentados 75
Mas exatamente agora os meus olhos 
estão com certeza bem despertos quan-
do olho atentamente para essa folha de 
papel. Esta cabeça que estou balançando 
não está pesada com sono. Eu estendo 
esta mão consciente e deliberadamente, e 
eu a sinto. Tais coisas não seriam tão dis-
tintas para alguém que está adormecido. 
Como se eu não me lembrasse de ter sido 
enganado em outras ocasiões até mesmo 
por pensamentos semelhantes nos meus 
sonhos! Namedida em que considero es-
sas questões mais cuidadosamente, vejo 
com tal clareza que não há sinais defi-
nitivos pelos quais distinguir entre estar 
desperto e estar adormecido. 4 Como 
resultado, estou ficando deveras tonto, e 
essa tontura quase chega a me convencer 
de que estou dormindo.
Admitamos, então, em função do 
argumento, que estamos sonhando e 
que tais particularidades como estas não 
são verdadeiras: que estamos abrindo os 
nossos olhos, movendo a nossa cabeça e 
estendendo as nossas mãos. Talvez nem 
mesmo tenhamos tais mãos ou algum cor-
po desse tipo. No entanto, certamente se 
deve admitir que as coisas vistas durante 
o sono são, por assim dizer, como ima-
gens pintadas que somente poderiam ter 
sido produzidas à semelhança de coisas 
verdadeiras e que, portanto, ao menos es-
sas coisas gerais – olhos, cabeça, mãos e o 
corpo todo – não são coisas imaginárias, 
mas são verdadeiras e existem. De fato, 
quando os próprios pintores desejam re-
presentar sereias e sátiros por meio de 
formas especialmente bizarras, eles não 
conseguem atribuir-lhes naturezas in-
teiramente novas. Em vez disso, apenas 
fundem os membros de diversos animais. 
Ou, se talvez confeccionam alguma coi-
sa tão inteiramente inovadora que nada 
como ela jamais foi vista antes (e, portan-
to, é algo completamente fictício e falso), 
no mínimo as cores a partir das quais a 
modelam devem ser verdadeiras. E pelo 
mesmo artifício, embora mesmo essas coi-
sas gerais – olhos, cabeça, mãos e coisas 
semelhantes – pudessem ser imaginárias, 
ainda assim se deve admitir que pelo me-
nos determinadas outras coisas que são 
de fato mais simples e universais são ver-
dadeiras. É a partir desses componentes, 
tal como se a partir de cores verdadeiras, 
que todas aquelas imagens de coisas que 
estão no nosso pensamento são modela-
das, sejam verdadeiras ou falsas. 5
Essa classe de coisas parece incluir 
a natureza incorpórea em geral, junto 
com a sua extensão; a forma das coisas 
extensas; a sua quantidade, isto é, o seu 
tamanho e número, bem como o lugar 
onde elas existem; o tempo através do 
qual elas perduram, e outros fatores se-
melhantes.
Portanto, não é impróprio concluir 
a partir disso que a física, a astronomia, 
a medicina e todas as outras disciplinas 
que são dependentes da consideração de 
coisas compostas são duvidosas e que, 
por outro lado, a aritmética, a geometria 
e outras disciplinas afins, que não tratam 
de nada senão das coisas mais simples e 
mais gerais e que são indiferentes quanto 
ao caso de essas coisas existirem ou não 
existirem de fato, contêm alguma coisa 
certa e indubitável. Ora, se estou desper-
to ou adormecido, dois mais três somam 
cinco e um quadrado não tem mais do 
que quatro lados. Não parece possível 
que tais verdades óbvias devam ser sujei-
tas à suspeita de serem falsas. 6
Seja como for, encontra-se fixa na 
minha mente uma certa opinião de longa 
data, a saber, que existe um Deus que é 
capaz de fazer qualquer coisa e por quem 
eu, tal como sou, fui criado. Como eu sei 
que ele não fez com que não exista terra 
alguma, nem céus, nem coisa extensa,* 
nem forma, nem tamanho, nem lugar, e 
contudo faça com que todas essas coisas 
pareçam-me existir precisamente como 
existem agora? Além disso, uma vez que 
eu julgo que outros, às vezes, cometem 
erros em matérias que creem que têm o 
mais perfeito conhecimento, não posso 
eu, por semelhante modo, ser enganado 
toda vez que adiciono dois e três ou conto 
os lados de um quadrado, ou realizo uma 
operação mesmo mais simples, caso isso 
possa ser imaginado? No entanto, talvez 
Deus não tenha desejado que eu fosse 
enganado dessa maneira, pois diz-se que 
ele é supremamente bom. Não obstante 
4 Reafirmação/Resumo
este parágrafo contém a 
razão de descartes para 
duvidar dessa primeira categoria 
de crenças.
5 
A sugestão é que a criativi-
dade envolvida em sonhos 
é limitada à recombinação de 
elementos derivados de algum 
outro modo. isso significa que a 
hipótese do sonho não oferece 
uma razão para pensar que todas 
as coisas envolvidas na nossa 
experiência são equivocadas: os 
elementos básicos ainda podem 
ser verdadeiros, mesmo que os 
modos pelos quais se combinam 
sejam equivocados.
6 
Assim, enquanto as ciências 
que lidam com coisas com-
plexas são postas em questão pela 
hipótese do sonho, aquelas que 
lidam com esses elementos mais 
simples não o são.
os exemplos que descartes 
oferece ao final deste 
parágrafo sugerem que ele tem 
em mente pelo menos crenças 
primariamente justificadas numa 
base completamente diferente 
da experiência sensória: crenças 
a priori justificadas por razão ou 
pensamento racional, e não pela 
experiência sensória (a qual pode-
ria ser simplesmente um sonho).
* N. de T. Isto é, “substância corpórea” ou “cor-
po”. Sobre os significados da expressão em Des-
cartes, em especial o de “substância corpórea em 
geral” ou “corpo em geral”, cf. John Cottingham, 
Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 
Editor, 1995, verbete “corpo”, p. 44-45.
76 laurence bonJour & Ann baker
isso, se fosse repugnante à sua bondade 
ter me criado tal que eu fosse enganado 
todo o tempo, também pareceria estra-
nho àquela mesma bondade permitir que 
eu fosse enganado mesmo ocasionalmen-
te. Porém, não podemos fazer essa última 
asserção. 7
. . .
De acordo com isso, suporei não um 
Deus supremamente bondoso, a fonte da 
verdade, mas, em vez disso, um gênio ma-
ligno, supremamente poderoso e esperto, 
que dirigiu o seu inteiro esforço para me 
enganar. Considerarei os céus, o ar, a ter-
ra, as cores, as formas, os sons e todas as 
coisas externas como nada sendo senão 
os embustes enganosos dos meus sonhos, 
com os quais ele põe armadilhas para a 
minha credulidade. Considerarei a mim 
mesmo como não tendo mãos, ou olhos, 
ou carne, ou sangue, ou quaisquer senti-
dos, mas como, não obstante isso, falsa-
mente crendo que possuo todas essas coi-
sas. Permanecerei resoluto e firme nessa 
meditação e, mesmo que não esteja em 
meu poder conhecer qualquer coisa ver-
dadeira, certamente está em meu poder 
cuidar resolutamente de retirar o meu as-
sentimento ao que é falso, por mais que 
esse enganador, seja o quão poderoso, 
seja o quão esperto possa ser, tenha al-
gum efeito sobre mim. 8 Todavia, esse 
empreendimento é árduo, e uma certa 
preguiça me traz de volta ao meu modo 
de vida costumeiro. Não sou diferente de 
um prisioneiro que goza de uma liberda-
de imaginária durante o seu sono, mas, 
quando mais tarde começa a suspeitar 
que esteja dormindo, teme ser desperta-
do e despreocupadamente conspira com 
essas ilusões agradáveis. Exatamente as-
sim recaio do meu próprio acordo às mi-
nhas antigas opiniões e temo ser desper-
tado, receando que o despertar laborioso 
que se segue de um repouso pacífico seja 
consumido a partir de então não na luz, 
mas entre as sombras inextricáveis das 
dificuldades ora trazidas à tona.
Meditação seGunda: aCerCa 
da natureza da Mente huMana: 
que ela é Mais beM-ConheCida 
do que o Corpo
A meditação de ontem lançou-me 
em tais dúvidas que não mais posso igno-
rá-las; contudo, falho em ver como elas 
podem ser resolvidas. É como se eu subi-
tamente tivesse caído num profundo re-
demoinho: estou sendo tão sacudido por 
isso que não posso nem tocar o fundo com 
o meu pé nem nadar até a superfície. No 
entanto, esforçar-me-ei no meu caminho 
para cima e tentarei uma vez mais a mes-
ma via pela qual enveredei ontem. Rea-
lizarei isso deixando de lado tudo o que 
admite a menor dúvida, tal como se eu 
tivesse descoberto que é completamente 
falso. Permanecerei nesse curso até que 
eu saiba alguma coisa certa ou, se nada 
mais houver, até que eu pelo menos saiba 
por certo que nada é certo. Arquimedes 
buscou somente um ponto firme e imóvel 
no intuito de mover a terra inteira de um 
lugar a outro. Exatamente assim, grandes 
coisas também devem ser esperadas, se 
eu for bem-sucedido em encontrar sim-
plesmente uma coisa, não importa o quãopequenina, que seja certa e inabalável.
Portanto, suponho que tudo o que 
eu vejo é falso. Creio que nada do que 
a minha memória enganosa representa 
jamais existiu. Não tenho sentidos, quais-
quer que sejam. Corpo, forma, extensão, 
movimento e lugar são todos quimeras. 
O que então será verdadeiro? Talvez sim-
plesmente o fato único de que nada é 
certo.
Mas como eu sei que não há algu-
ma outra coisa, além e acima de todas 
aquelas coisas que acabei de rever, acerca 
das quais não há sequer a menor ocasião 
para dúvida? Não existe algum Deus, ou 
seja por qual nome eu poderia chamá-lo, 
que infunde esses mesmos pensamentos 
em mim? Por que eu pensaria isso, visto 
que eu mesmo poderia talvez ser o autor 
desses pensamentos? Não sou eu, então, 
pelo menos alguma coisa? Eu já neguei 
que tenho quaisquer sentidos e qualquer 
corpo. Ainda assim, eu hesito: o que se 
segue disso? Estou tão amarrado a um 
corpo e aos sentidos que não posso exis-
tir sem eles? Porém, persuadi a mim mes-
mo de que não há absolutamente nada 
no mundo: nenhum céu, nenhuma terra, 
nenhuma mente, nenhuma corpo. É o 
caso de que também eu não existo? Mas, 
sem dúvida, eu existia se persuadi a mim 
mesmo de alguma coisa. Todavia, há um 
enganador ou outro que é supremamente 
poderoso, supremamente ardiloso, e que 
está sempre deliberadamente me enga-
nando. Nesse caso também, se ele está 
7 Comentário
Aqui, tem-se uma questão 
que se tornará importante, 
mais tarde, na Meditação Sexta: 
deus, sendo perfeitamente bom, 
aparentemente não teria me feito 
de modo que eu incorresse em 
erro todo o tempo. o problema 
é que a bondade de deus parece 
incompatível com o meu ato 
de cometer erros quaisquer, 
coisa que eu obviamente faço. 
(nenhuma resolução da questão é 
oferecida nesse ponto.)
8 
Aqui está a segunda e mui-
to mais importante razão 
de descartes para duvidar de 
categorias inteiras de crença, uma 
razão que é muito mais poderosa 
do que aquela que apela à pos-
sibilidade do sonho, porque põe 
em questão muito mais crenças, 
incluindo, aparentemente, aquelas 
(como 2 + 3 = 5) que resultam da 
razão a priori.
Algumas crenças escapam 
dessa segunda razão para 
duvidar?
pAre
Filosofia: textos fundamentais comentados 77
me enganando, não há nenhuma dúvida 
de que eu existo. E mesmo que ele faça o 
seu melhor em iludir, ele jamais fará com 
que eu não seja nada, enquanto eu pen-
sar que sou alguma coisa. Então, depois 
que tudo tiver sido pesado do modo mais 
cuidadoso, deve finalmente ser estabele-
cido que esse pronunciamento “Eu sou, 
eu existo” é necessariamente verdadeiro 
toda vez que o enuncio ou o concebo na 
minha mente. 9
Contudo, ainda não entendo sufi-
cientemente o que eu sou – eu, que agora 
necessariamente existo. E, assim, desse 
ponto em diante, devo ser cuidadoso para 
que eu não confunda, desavisadamente, 
alguma outra coisa comigo mesmo e, as-
sim, erre naquele item mesmo de conhe-
cimento que reivindico ser o mais certo 
e evidente de todos. Por isso, meditarei 
mais uma vez sobre o que eu uma vez 
acreditei que eu mesmo era antes de in-
gressar nesses pensamentos. Por essa ra-
zão, então, colocarei de lado tudo o que 
possa ser enfraquecido mesmo no mais 
ínfimo grau pelos argumentos adianta-
dos, de modo que, ao final, tudo o que 
permanecer será precisamente somente o 
que é certo e inabalado.
O que, então, [anteriormente] pen-
sei que eu era? Um homem, naturalmen-
te. Mas o que é um homem? Eu não po-
deria dizer um “animal racional”? Não, 
porque nesse caso eu teria de examinar 
o que “animal” e “racional” significam. 
E, assim, de uma questão eu escorrega-
ria em outras muitas, mais difíceis. Nem 
tenho agora tempo livre suficiente que 
queira perdê-lo em sutilezas desse tipo. 
Ao invés disso, permito-me focar, aqui, o 
que veio espontaneamente e naturalmen-
te ao meu pensamento sempre que pon-
derei sobre o que eu era. Agora, ocorreu 
a mim, primeiro, que eu tinha uma face, 
mãos, braços, e esse mecanismo inteiro 
de membros corpóreos: os mesmíssimos 
que são discernidos num cadáver e aos 
quais fiz referência pelo nome de “cor-
po”. Em seguida, ocorreu a mim que in-
geria comida, que caminhava por aí, que 
sentia e pensava várias coisas; essas ações 
eu costumava atribuir à alma. Porém, 
quanto ao que essa alma poderia ser, ou 
eu não pensava sobre ela ou, então, eu 
a imaginava como um rarefeito sei-lá-o- 
-quê, como um vento, ou um fogo, ou éter 
que tinha sido infundido nas minhas par-
tes mais grosseiras. Quanto ao corpo, po-
rém, eu não tinha dúvida nenhuma. Pelo 
contrário, eu estava sob a impressão de 
que conhecia distintamente a sua nature-
za. Se eu fosse talvez tentado a descrever 
essa natureza tal como a concebia na mi-
nha mente, eu a teria descrito assim: por 
“corpo” entendo tudo o que é capaz de 
ser delimitado por alguma forma, ou ser 
encerrado num lugar, e de preencher um 
espaço de modo a excluir dele qualquer 
outro corpo; de ser percebido pelo tato, 
pela visão, pela audição, pelo paladar ou 
pelo odor; de ser movido de diversos mo-
dos, não, é claro, por si mesmo, mas por 
tudo aquilo que se impõe sobre ele. Era a 
minha opinião que o poder de automovi-
mento, e semelhantemente o de sentir ou 
o de pensar, de modo algum pertencia à 
natureza do corpo. De fato, eu antes cos-
tumava espantar-me que tais faculdades 
fossem encontradas em certos corpos.
Mas, agora, o que sou eu quando 
suponho que há algum enganador su-
premamente poderoso e, se me for per-
mitido dizer dessa forma, malicioso, que 
deliberadamente tenta me iludir de todo 
modo que lhe for possível? Não posso 
afirmar que tenho ao menos uma peque-
na medida de todas aquelas coisas que 
já disse pertencerem à natureza do cor-
po? Detenho a minha atenção sobre elas, 
penso sobre elas, revejo-as novamente, 
mas nada vem à mente. Estou cansado 
de repetir isso sem propósito. O que di-
zer sobre aquelas coisas que atribuía à 
alma? O que dizer sobre ser alimentado 
ou mover-se para os lados? Dado que eu 
agora não tenho um corpo, essas coisas 
nada são senão ficções. O que dizer so-
bre a sensação? Certamente, também isso 
não tem lugar sem um corpo; e eu pare-
cia ter sentido nos meus sonhos muitas 
coisas que, mais tarde, percebi que não 
tinha sentido. O que dizer sobre o pen-
samento? Aqui eu faço a minha desco-
berta: o pensamento existe; ele somente 
não pode ser separado de mim. Eu sou, 
eu existo – isso é certo. Mas por quanto 
tempo? Por tanto tempo quanto eu estou 
pensando, pois talvez poderia também 
ocorrer que, se eu interrompesse todo o 
pensar, eu então deixaria totalmente de 
existir. Neste momento, não admito nada 
que não seja necessariamente verdadei-
ro. Portanto, não sou precisamente nada 
senão uma coisa pensante, isto é, uma 
mente, ou intelecto, ou entendimento, ou 
razão – palavras de cujos significados eu 
9 
A intuição aqui é aquela que 
descartes expressa mais 
sucintamente em outra obra (o 
seu Discurso sobre o método) como 
(em latim) Cogito ergo sum, “penso, 
logo existo” – em geral, referida 
simplesmente como o Cogito.
Qual exatamente é a 
alegação que se supõe ser 
indubitável? descartes tem razão 
em pensar que mesmo o gênio 
maligno é incapaz de enganá-lo 
sobre a verdade daquela alegação: 
fazê-lo crer que ela é verdadeira, 
quando ela é, na realidade, falsa?
pAre
78 laurence bonJour & Ann baker
era anteriormente ignorante. Não obstan-
te, sou uma coisa verdadeira e sou verda-
deiramente existente; porém, que tipo de 
coisa? Eu já o disse: uma coisa pensante.
O que mais eu sou? Colocarei a mi-
nha imaginação em movimento. Não sou 
aquela concatenação de membros que 
chamamos de corpo humano. E nem sou 
tampouco algum ar sutil infuso nesses 
membros, nem um vento, nem um fogo, 
nem um vapor, nem um sopro, nem qual-
quer coisa que eu invento para mim mes-
mo. Afinal, supus que essas coisas não 
são nada. A suposição ainda permanece; 
e, apesar disso, sou alguma coisa. Mas é 
talvez o caso de que essas mesmas coisas 
que eu tomocomo sendo nada, porque 
são desconhecidas a mim, não são de fato 
diferentes daquele “eu” que eu conheço? 
Isso eu não sei e não discutirei sobre isso 
agora. Posso fazer um juízo somente so-
bre as coisas que são conhecidas a mim. 
Sei que eu existo; pergunto agora quem 
é esse “eu” que eu conheço? Mais certa-
mente, no sentido estrito, o conhecimen-
to desse “eu” não depende de coisas de 
cuja existência eu ainda não tenho conhe-
cimento. Portanto, ele não é dependente 
de qualquer daquelas coisas que simulo 
na minha imaginação...
Mas o que então eu sou? Uma coisa 
que pensa. O que é isso? Uma coisa que 
duvida, entende, afirma, nega, quer, refu-
ta e que também imagina e sente.
De fato, não é questão pequena se 
todas essas coisas pertencem a mim. Mas 
por que não deveriam pertencer a mim? 
Não é exatamente o mesmo “eu” que ago-
ra duvida de quase tudo, que, no entan-
to, entende alguma coisa, que afirma que 
essa coisa é verdadeira, que nega outras 
coisas, que deseja saber mais, que dese-
ja não ser enganado, que imagina mui-
tas coisas mesmo contra a sua vontade, 
que também percebe muitas coisas que 
parecem vir dos sentidos? O que existe 
em tudo isso que não é em cada pedaci-
nho tão verdadeiro quanto o fato de que 
eu existo – mesmo se eu estiver sempre 
adormecido ou mesmo se o meu criador 
fizer todos os esforços para me desviar? 
Qual dessas coisas é distinta do meu pen-
samento? Qual delas pode ser afirmada 
ser separada de mim? É tão óbvio que 
sou eu quem duvida, eu quem entende, 
eu quem quer, que não há nada por meio 
do que isso poderia ser explanado mais 
claramente. Mas, com efeito, é também o 
mesmo “eu” que imagina; assim, embora 
talvez, como supus antes, absolutamente 
nada do que eu imaginava seja verdadei-
ro, o próprio poder de imaginar realmen-
te ainda existe e constitui uma parte do 
meu pensamento. Por fim, é esse mesmo 
“eu” que sente ou que é o conhecedor das 
coisas corpóreas tal como se através dos 
sentidos. Por exemplo, eu agora vejo uma 
luz, ouço um ruído, sinto o calor. Essas 
coisas são falsas, uma vez que estou dor-
mindo. Contudo, eu certamente pareço, 
sim, ver, ouvir e sentir o calor. Isso não 
pode ser falso. Falando propriamente, 
isso é o que, em mim, é chamado de “sen-
tir”. Todavia, precisamente assim tomado, 
isso não é nada mais do que pensar. 10
A partir dessas considerações, estou 
começando a conhecer um pouco melhor 
o que eu sou. No entanto, ainda parece 
(e eu não posso resistir de crer nisso) 
que as coisas corpóreas – cujas imagens 
são formadas pelo pensamento e que os 
próprios sentidos examinam – são mui-
to mais distintamente conhecidas do que 
esse “eu” misterioso que não cai na ima-
ginação. Contudo, seria estranho, de fato, 
se eu fosse apreender as mesmas coisas 
que considero como sendo duvidosas, 
desconhecidas e estranhas a mim, mais 
distintamente do que o que é verdadeiro, 
o que é conhecido – do que, em poucas 
palavras, eu mesmo. Porém, vejo o que 
está acontecendo: a minha mente adora 
extraviar-se e ainda não permite a si mes-
ma ficar restrita nos confins da verdade. 
Assim seja então; deixemos só desta vez 
que ela tenha rédea solta, de modo que, 
um pouco mais tarde, quando vier o mo-
mento de puxar as rédeas, a mente possa 
mais prontamente permitir a si mesma 
ser controlada.
Consideremos aquelas coisas que co-
mumente se acredita como sendo o mais 
distintamente apreendidas de todas: a sa-
ber, os corpos que tocamos e vemos. Não 
os corpos em geral, pois essas percepções 
gerais são aptas a ser de certo modo mais 
confusas, mas um corpo em particular. 
Tomemos, por exemplo, esse pedaço de 
cera. Ele foi tirado bem recentemente do 
favo de mel; ainda não perdeu todo o sa-
bor de mel. Ele retém algo do perfume 
das flores das quais foi recolhido. A cor, 
a forma e o tamanho são manifestos. É 
duro e frio; é fácil de tocar. Se dermos 
uma batida nele, ele emitirá um som. Em 
poucas palavras, está presente nele tudo 
10 
Aqui, descartes está alegan-
do que existem muito mais 
coisas que estão além da dúvida 
no mesmo sentido em que a sua 
própria existência está – portanto, 
está amplamente expandindo o 
fundamento da certeza (alegada) 
sobre o qual ele por fim tentará 
reconstruir o seu conhecimento. o 
que são essas demais coisas? está 
ele certo em dizer que elas são 
igualmente indubitáveis, mesmo 
sendo dada a possibilidade do 
gênio maligno? (Ver a Questão 
para discussão 2.)
Filosofia: textos fundamentais comentados 79
o que parece necessário para tornar pos-
sível que um corpo seja conhecido tão 
distintamente quanto possível. Todavia, 
perceba que, enquanto estou falando, eu 
o estou trazendo mais para perto do fogo. 
Os traços remanescentes do sabor de mel 
estão desaparecendo; o perfume está 
sumindo; a cor está mudando; a forma 
original está modificando-se. O seu ta-
manho está aumentando; está tornando- 
-se líquido e quente; dificilmente se pode 
tocá-lo. E agora, quando se lhe der uma 
batida, ele não mais emite qualquer som. 
Permanece ainda a mesma cera? Devo 
confessar que sim; ninguém o nega; nin-
guém pensa de outra maneira. Assim, o 
que havia na cera que era apreendido tão 
distintamente? Certamente, nenhum dos 
aspectos que atingi por meio dos senti-
dos, pois tudo o que chegou aos sentidos 
do paladar, do olfato, da visão, do tato ou 
da audição agora mudou; contudo, a cera 
permanece.
Talvez a cera era o que eu agora 
penso que ela é: a saber, que a cera em si 
mesma jamais era realmente a doçura do 
mel, nem a fragrância das flores, nem a 
brancura, nem a forma, nem o som, mas 
em vez disso era um corpo que há pouco 
tempo manifestava-se a mim dessas ma-
neiras e agora o faz de outros modos. Mas 
o que precisamente é essa coisa que assim 
imagino? Coloquemos a nossa atenção 
nisso e vejamos o que permanece depois 
que tivermos removido tudo o que não 
pertence à cera: somente que ela é uma 
coisa extensa, flexível e mutável. Mas o 
que significa ser flexível e mutável? É o 
que a minha imaginação mostra que seja: 
a saber, que este pedaço de cera pode 
mudar de uma forma redonda para uma 
forma quadrada, ou desta última para 
uma forma triangular? Não, em absoluto, 
pois eu compreendo que a cera é capaz 
de inúmeras mudanças desse tipo, embo-
ra eu seja incapaz de percorrer essas inú-
meras mudanças pelo uso da minha ima-
ginação. Portanto, essa percepção não é 
alcançada pela faculdade da imaginação. 
O que significa ser extenso? É a extensão 
desta coisa também desconhecida? Ela se 
torna maior na cera que está começan-
do a derreter, maior na cera fervente e 
ainda maior à medida que o calor é au-
mentado. E eu não julgaria corretamente 
o que a cera é se eu não acreditasse que 
ela assume uma variedade ainda maior 
de dimensões do que eu jamais poderia 
apreender com a imaginação. Resta-me, 
então, reconhecer que eu não apreendo 
o que esta cera é através da imaginação; 
em vez disso, eu a percebo apenas pela 
mente. O ponto que estou fazendo refere-
-se a este pedaço particular de cera, pois 
o caso da cera em geral é ainda mais cla-
ro. Mas o que é este pedaço de cera que é 
percebido apenas pela mente? Com cer-
teza, é o mesmo pedaço de cera que eu 
vejo, toco e imagino; em poucas palavras, 
é o mesmo pedaço de cera que entendo 
que ele seja desde o começo. Contudo, 
preciso dar-me conta de que a percepção 
da cera não é nem uma visão, nem um 
toque, nem uma imaginação. Nem ela 
jamais o foi, embora antes parecesse sê- 
-lo; ao contrário, trata-se de uma inspeção 
da parte da mente apenas. Essa inspeção 
pode ser imperfeita e confusa, como era 
antes, ou clara e distinta, como é agora, 
dependendo de o quão rigorosamente eu 
dou atenção às coisas nas quais o pedaço 
de cera consiste.
...
Mas o que eu deveria dizer sobre 
essa mente, isto é, sobre mim mesmo? 
Até aqui, eu não admito nenhuma outra 
coisa ser em mim além e acima da men-
te. Eu pergunto: o que sou eu que pare-
ço perceber esta cera tão distintamente? 
Não conheço a mim mesmo não só muito 
maisverdadeiramente e com maior cer-
teza, mas também muito mais distinta e 
claramente? Se julgo que a cera existe a 
partir do fato de que a vejo, a partir desse 
mesmo fato de que vejo a cera segue-se 
muito mais evidentemente que eu mesmo 
existo. Afinal, poderia ocorrer que o que 
vejo não é verdadeiramente cera. Poderia 
acontecer que eu não tenho olhos com os 
quais se possa ver alguma coisa. Porém, é 
completamente impossível que, enquan-
to vejo ou penso que vejo (não distingo 
agora esses dois), eu que penso não seja 
alguma coisa. Por semelhante modo, se 
julgo que a cera existe a partir do fato de 
que a toco, o mesmo resultado se dará 
novamente, a saber, que eu existo. Se jul-
go que a cera existe a partir do fato de 
que eu a imagino, ou por qualquer outra 
razão, segue-se claramente a mesma coi-
sa. Todavia, o que eu observo com res-
peito à cera aplica-se a tudo o mais que 
é exterior a mim. Além disso, se a minha 
percepção da cera parecesse mais distin-
ta depois que se tornou conhecida a mim 
80 laurence bonJour & Ann baker
não somente com base na visão ou no 
toque, mas com base em muitas razões, 
deve-se admitir o quão mais distintamen-
te eu sou, agora, conhecido a mim mes-
mo. Não há uma única consideração que 
possa ajudar na minha percepção da cera 
ou de qualquer outro corpo que falhe em 
tornar até mais manifesta a natureza da 
minha mente. Contudo, existem ainda 
tantas outras coisas na própria mente, 
com base nas quais o meu conhecimen-
to dela pode ser tornado mais distinto, 
que dificilmente parece válido enumerar 
aquelas coisas que emanam dela a partir 
do corpo.
Ao fim e ao cabo, retornei natural-
mente para onde eu queria estar. Como 
agora sei que mesmo os corpos não são, 
propriamente falando, percebidos pelos 
sentidos ou pela faculdade da imagina-
ção, mas apenas pelo intelecto, 11 e que 
eles não são percebidos por serem tocados 
ou vistos, mas só por serem entendidos, 
claramente sei que nada pode ser perce-
bido de forma mais fácil e mais evidente 
do que a minha própria mente. Todavia, 
como a tendência de ficar esperando em 
crenças longamente mantidas não pode 
ser posta de lado tão rapidamente, quero 
parar aqui, de modo que, pela amplitude 
da minha meditação, esse novo conheci-
mento possa ser impresso na minha me-
mória mais profundamente.
Meditação terCeira: 
aCerCa de deus, que ele existe
Fecharei agora os meus olhos, tam-
parei os meus ouvidos e retirarei todos 
os meus sentidos. Também apagarei dos 
meus pensamentos todas as imagens de 
coisas corpóreas, ou, em vez disso, dado 
que o último ponto é dificilmente realizá-
vel, considerarei essas imagens como va-
zias, falsas e sem valor. E, na medida em 
que converso apenas comigo mesmo e 
olho mais profundamente para dentro de 
mim mesmo, tentarei tornar-me gradual-
mente mais conhecido e mais familiar a 
mim mesmo. Sou uma coisa que pensa, o 
que significa dizer uma coisa que duvida, 
afirma, nega, entende algumas poucas 
coisas, é ignorante de muitas coisas, dei-
xa de querer e também imagina e sente. 
Como observei anteriormente, embora 
essas coisas que sinto ou imagino possam 
talvez não ser nada fora de mim, no en-
tanto estou certo de que esses modos de 
pensar, que são casos daquilo que chamo 
de sentir e imaginar, na medida em que 
são meramente modos de pensar, existem 
sim dentro de mim.
Nessas poucas palavras, eu revisei 
todas as coisas que verdadeiramente sei, 
ou pelo menos o que até aqui percebi que 
sei. 12 Agora, ponderarei mais cuidado-
samente para ver se, talvez, podem exis-
tir outras coisas pertencendo a mim que, 
até agora, falhei em notar. Estou certo de 
que sou uma coisa pensante. Mas eu tam-
bém não sei, portanto, o que é exigido de 
mim para estar certo de alguma coisa? 
Certamente, nesta primeira instância do 
conhecimento, não há nada senão uma 
certa percepção clara e distinta do que eu 
afirmo. Contudo, isso dificilmente seria o 
bastante para me deixar certo da verdade 
de uma coisa, se jamais pudesse aconte-
cer que alguma coisa que percebo tão cla-
ra e distintamente fosse falsa. E, assim, 
eu agora pareço capaz de estabelecer, 
como uma regra geral, que tudo o que 
eu percebo muito clara e distintamente é 
verdadeiro. 13
Seja como for, admiti antes muitas 
coisas como totalmente certas e eviden-
tes que, apesar disso, eu descobri mais 
tarde serem duvidosas. Que tipo de coi-
sas eram essas? Por que a terra, o céu, 
as estrelas e todas as outras coisas eu 
percebi por meio dos sentidos. Mas o que 
se dizia sobre essas coisas que eu perce-
bia claramente? Com certeza, o fato de 
que as ideias ou os pensamentos dessas 
coisas estavam pairando diante da mi-
nha mente. Contudo, mesmo agora eu 
não nego que essas ideias encontrem-se 
em mim. Havia alguma outra coisa que 
eu costumava afirmar, que, devendo isso 
à minha tendência habitual de crê-lo, eu 
costumava pensar que era alguma coisa 
que percebia claramente, muito embora 
eu de fato não a percebesse: a saber, que 
certas coisas existiam fora de mim, coisas 
das quais aquelas ideias procediam e com 
as quais aquelas ideias se assemelhavam 
completamente. Porém, sobre esse ponto 
eu estava enganado; ou, então, se o meu 
juízo era um juízo verdadeiro, não era o 
resultado da força da minha percepção.
O que dizer sobre quando eu consi-
derava alguma coisa muito simples e fácil 
nas áreas da aritmética ou da geometria, 
por exemplo, que dois mais três somam 
cinco e coisas semelhantes? Eu não as in-
11 
descartes utiliza o exemplo 
da cera para argumentar a 
favor dessa ideia (a de que mesmo 
os corpos não são propriamente 
percebidos pelos sentidos nem 
pela faculdade da imaginação, 
mas apenas pelo intelecto).
12 
Aqui, descartes resume 
o principal resultado da 
Meditação Segunda: a pequena 
quantidade de conhecimento que 
(supostamente) escapou à dúvida 
resultante da possibilidade do 
gênio maligno. Afirmado na pri-
meira pessoa (como é obviamente 
apropriado), posso saber que 
estou pensando e também que 
estou pensando (experimentan-
do, duvidando, refletindo) sobre 
várias coisas, mas não que existe 
alguma coisa além de mim mes-
mo e dos meus próprios estados 
conscientes.
13 
essa é a sugestão de des-
cartes para uma regra ou 
um princípio geral que apreende 
a maneira pela qual a sua crença 
sobre a sua própria existência 
escapa à dúvida.
mas ele está certo sobre 
isso? “Clareza e distinção” 
é a razão por que eu não posso 
duvidar da minha própria existên-
cia? de fato, o próprio descartes 
procede mostrando que ela não 
o é, uma vez que ele prossegue 
questionando se as coisas que 
são claras e distintas são sempre 
verdadeiras, embora ele jamais 
ponha em questão a sua própria 
existência.
Filosofia: textos fundamentais comentados 81
tuía pelo menos de modo suficientemen-
te claro, de sorte a afirmá-las como ver-
dadeiras? Na realidade, decidi mais tarde 
que devo duvidar dessas coisas, mas isso 
era somente porque ocorria a mim que 
algum Deus poderia, talvez, ter me dado 
uma natureza tal que eu pudesse ser en-
ganado mesmo sobre questões que pare-
ciam maximamente evidentes. Todavia, 
sempre que essa opinião pré-concebida 
sobre o poder supremo de Deus me ocor-
re, não posso deixar de admitir que, se 
ele o desejasse, ser-lhe-ia fácil fazer com 
que eu errasse, mesmo naquelas questões 
que penso intuir tão claramente quanto 
possível com os olhos da mente. 14 Por 
outro lado, sempre que volto a minha 
atenção àquelas coisas que penso perce-
ber com grande clareza, sou tão comple-
tamente persuadido por elas que deixo 
espontaneamente escapar estas palavras: 
“que qualquer um que pode assim fazê-lo 
engane-me; enquanto eu pensar que sou 
alguma coisa, ele jamais fará com que eu 
não seja nada. Nem um dia fará com que 
seja verdade que eu jamais existi, pois é 
verdade agora que eu de fato existo. Tam-
pouco ele fará com que, talvez, dois mais 
três possam ser iguais a mais ou menos 
do que cinco, ou itens semelhantes, em 
que reconheço uma contradiçãoóbvia”. 
E, com certeza, porque eu não tenho ne-
nhuma razão para pensar que há um Deus 
que é um enganador (e, naturalmente, eu 
ainda não sei sequer se existe um Deus), 
a base para duvidar, dependendo, como é 
o caso, meramente da hipótese acima, é 
muito tênue e, por assim dizer, metafísica. 
Para remover até mesmo essa base para a 
dúvida, eu deveria, na primeira oportuni-
dade, investigar se existe um Deus e, caso 
exista, se pode ou não ser um enganador. 
Se sou ignorante disso, parece que jamais 
serei capaz de estar completamente certo 
sobre qualquer outra coisa. 15
Entretanto, nesse estágio, a boa 
ordem parece exigir que eu primeiro 
agrupe todos os meus pensamentos em 
certas classes e pergunte em quais delas 
a verdade ou a falsidade propriamente 
reside. Alguns desses pensamentos são 
como imagens de coisas; a esses apenas 
a palavra “ideia” propriamente se aplica, 
tal como quando penso num homem, ou 
numa quimera, ou no céu, ou num anjo, 
ou em Deus. Além disso, existem outros 
pensamentos que tomam diferentes for-
mas: por exemplo, quando quero, ou 
temo, ou afirmo, ou nego, há sempre al-
guma coisa que eu apreendo como o su-
jeito do meu pensamento, embora abar-
que no meu pensamento algo mais do 
que a semelhança daquela coisa. Alguns 
desses pensamentos são chamados de vo-
lições ou afecções, ao passo que outros 
são chamados de juízos.
Agora, na medida em que as ideias 
estão em questão, se elas são considera-
das isoladamente e por si mesmas, sem 
serem referidas a alguma outra coisa, 
elas não podem, propriamente falando, 
ser falsas. Se é uma cabra ou uma qui-
mera que estou imaginando, não é menos 
verdadeiro que imagino uma do que ima-
gino a outra. Além disso, não precisamos 
temer que exista falsidade na própria 
vontade ou nas afecções, pois, embora eu 
possa escolher coisas más ou até mesmo 
coisas que são absolutamente não exis-
tentes, não posso concluir a partir disso 
que seja uma inverdade que eu de fato 
escolho essas coisas. Portanto, permane-
cem somente juízos nos quais devo tomar 
cuidado de não estar enganado. Agora, 
o erro principal e mais frequente a ser 
encontrado nos juízos consiste no fato 
de que julgo que as ideias que são em 
mim são semelhantes ou estão em con-
formidade com certas coisas fora de mim. 
Obviamente, se eu fosse considerar essas 
ideias apenas como certos modos do meu 
pensamento, e não devesse referi-las a 
nenhuma outra coisa, elas dificilmente 
poderiam me dar qualquer matéria para 
o erro. 16
Entre essas ideias, algumas me pa-
recem ser inatas, algumas adventícias e 
algumas produzidas por mim. Entendo 
o que uma coisa é, o que a verdade é, o 
que o pensamento é, e pareço ter deriva-
do isso exclusivamente a partir da minha 
própria natureza. Mas, por exemplo, eu 
estou agora ouvindo um ruído, ou olhan-
do para o sol, ou sentindo o fogo; até 
agora julguei que essas coisas procediam 
de certas coisas fora de mim, e finalmen-
te que sereias, hipogrifos* e coisas seme-
lhantes são feitas por mim. Ou talvez eu 
possa até mesmo pensar em todas essas 
ideias como sendo adventícias, ou como 
14 
Como descartes já disse 
que deus não nos enga-
naria dessa maneira, é melhor 
tomá-lo como estando a falar aqui 
sobre o gênio maligno.
15 
Aqui, poderia parecer que 
descartes está questio-
nando até mesmo a sua própria 
existência e seus estados mentais, 
mas a discussão subsequente 
mostra que ele não está realmente 
fazendo isso. (se estivesse, ele 
não teria por onde começar na 
tentativa de provar a existência de 
deus.) Assim, a questão parece ser 
se ele pode aceitar com segurança 
coisas diferentes da sua própria 
existência e estados mentais que 
parecem “claros e distintos” (coisas 
como 2 + 3 = 5). o gênio maligno 
poderia enganá-lo sobre tais coi-
sas, de modo que a única maneira 
de estar certo é provar a existência 
de deus (e, dessa forma, a não 
existência do gênio maligno).
16 
Assim, descartes está 
preocupado se os seus 
pensamentos sobre o mundo são 
corretos, não se os seus pensa-
mentos sobre os seus pensamentos 
são corretos, visto que (ele alega) 
jamais poderia estar em erro sobre 
aqueles.
* N. de T. Figura animal mitológica, descritível 
aproximadamente como uma criatura voadora 
com a cabeça e as asas de uma águia gigante, e o 
restante do corpo – incluindo as pernas e o rabo 
– de um cavalo. 
82 laurence bonJour & Ann baker
sendo inatas, ou como fabricações, pois 
ainda não verifiquei claramente a sua 
verdadeira origem. 17
Aqui, eu devo investigar particular-
mente aquelas ideias que acredito serem 
derivadas de coisas que existem fora de 
mim. Simplesmente que razão eu tenho 
para crer que essas ideias se assemelham 
àquelas coisas? Bem, de fato pareço ter 
sido ensinado assim pela natureza. Além 
disso, sei de fato a partir da experiência 
que essas ideias não dependem da minha 
vontade, nem por conseguinte de mim 
mesmo, pois geralmente as observo as 
mesmo contra a minha vontade. Nesse 
momento, por exemplo, quer eu queira 
quer não, sinto o calor. É por essa razão 
que creio que esse sentimento ou ideia do 
calor vem a mim a partir de algo diferen-
te de mim mesmo, a saber, do calor do 
fogo junto ao qual estou sentado. Nada 
é mais óbvio do que o juízo de que essa 
coisa está enviando a sua semelhança a 
mim, ao invés de alguma outra coisa. 18
Verei agora se essas razões são po-
derosas o bastante. Quando digo, aqui, 
“fui ensinado assim pela natureza”, tudo 
o que tenho em mente é que sou levado 
por um impulso espontâneo a crer nisso, 
e não que alguma luz da natureza está 
me mostrando que é verdadeiro. Essas 
são duas coisas muito diferentes. Ora, 
tudo o que me é mostrado por essa luz 
da natureza, por exemplo, que do fato 
de que duvido segue-se que sou, e assim 
por diante, não pode de forma alguma 
ser posto em dúvida. Isso se deve ao fato 
de que não pode haver nenhuma outra 
faculdade em que eu possa confiar tanto 
quanto essa luz e que poderia me ensinar 
que essas coisas não são verdadeiras. 19
Contudo, na medida em que estão 
em questão impulsos naturais, no passa-
do frequentemente julguei a mim mesmo 
como sendo levado por eles a fazer a esco-
lha mais pobre quando se tratava de uma 
questão de escolher um bem; e falho em 
ver por que eu deveria depositar qualquer 
fé maior neles do que em outras questões.
Além disso, embora essas ideias não 
dependam da minha vontade, não se se-
gue que elas necessariamente procedam 
das coisas que existem fora de mim. As-
sim como esses impulsos sobre os quais 
falei há pouco parecem ser diferentes da 
minha vontade, muito embora ocorram 
em mim, assim também talvez haja em 
mim alguma outra faculdade, uma facul-
dade ainda não suficientemente conhe-
cida por mim, que produz essas ideias, 
como sempre pareceu até agora que as 
ideias são formadas em mim sem qual-
quer ajuda das coisas externas quando 
estou adormecido.
E, finalmente, mesmo se essas 
ideias procederam de coisas diferentes de 
mim mesmo, não se segue, portanto, que 
elas devam assemelhar-se àquelas coisas. 
Com efeito, parece que com frequência 
notei uma vasta diferença em muitos as-
pectos. Por exemplo, encontro em mim 
duas ideias distintas do sol. Uma ideia é 
tirada, por assim dizer, dos sentidos. Ago-
ra, é essa a ideia que, de todas aquelas 
que tomo como sendo derivada de fora 
de mim, mais necessita de inspeção. Por 
meio dessa ideia, o sol se me aparece 
deveras pequeno. Porém, há uma outra 
ideia, derivada do raciocínio astronômi-
co, ou seja, que é produzida a partir de 
certas noções que são inatas em mim, ou 
que então é modelada em mim de algu-
ma outra maneira. Através dessa ideia, o 
sol é mostrado como sendo diversas ve-
zes maior do que a terra. Ambas as ideias 
certamente não podem assemelhar-se 
ao mesmo sol existente fora de mim; e 
a razão me convence de que a ideia que 
parece ter emanado do próprio sol tão de 
perto é justamente aquela que menos se 
assemelha ao sol.
Todos esses pontos demonstram 
suficientemente que, até aqui,não era 
um juízo bem-fundado, mas somente 
um cego impulso que formava a base da 
minha crença de que as coisas existentes 
fora de mim enviam a mim ideias ou ima-
gens de si mesmas através dos órgãos dos 
sentidos ou por algum outro meio. 20
No entanto, ainda uma outra via 
me ocorre para investigar se alguma das 
coisas das quais existem ideias em mim 
de fato existem fora de mim: na medida 
em que essas ideias são meramente mo-
dos de pensamento, não vejo nenhuma 
desigualdade entre elas; todas parecem 
proceder de mim da mesma maneira. Po-
rém, na medida em que uma ideia repre-
senta uma coisa, e outra ideia represen-
ta outra coisa, é óbvio que elas diferem, 
sim, muito amplamente uma da outra. 
Inquestionavelmente, aquelas ideias que 
exibem substâncias para mim são alguma 
coisa mais e, se posso assim dizê-lo, con-
têm dentro de si mesmas mais realidade 
objetiva do que aquelas que representam 
17 
uma ideia inata é uma 
ideia que está progra-
mada numa pessoa já no nasci-
mento (por deus, na concepção 
de descartes). ideias produzidas 
por mim são aquelas que eu 
invento ou que são “fictícias”.
o que, então, é uma ideia 
“adventícia”? Qual é a ter-
ceira alternativa além de ser inato 
ou ser “produzido por mim”?
pAre
18 
Aqui estão duas razões 
iniciais para a concepção 
de que a experiência sensória 
reflete precisamente a natureza 
das coisas exteriores.
20 
descartes conclui que as 
duas razões iniciais (ver a 
Anotação 18) não têm força real.
19 
por “luz natural”, descar-
tes parece querer dizer 
algo como uma percepção a priori 
de por que uma alegação deve ser 
verdadeira – o tipo de percepção 
que se reflete na alegação que 
parece “clara e distinta”. o seu 
ponto é que, embora eu, natural 
e espontaneamente, creia no que 
os sentidos parecem me dizer, não 
há nada nesse caso que me mos-
tre que as alegações em questão 
devam ser verdadeiras.
Como vimos, o gênio ma-
ligno pode aparentemente 
me enganar, mesmo sobre coisas 
(diferentes da minha própria exis-
tência e dos estados da mente) 
que parecem ser mostradas pela 
luz natural ou que parecem claras 
e distintas (tais como 2 + 3 = 5).
Filosofia: textos fundamentais comentados 83
apenas modos ou acidentes. Além disso, 
a ideia que me capacita a entender uma 
deidade suprema, eterna, infinita, onis-
ciente, onipotente, e o criador de todas 
as coisas diferentes dele, tem claramen-
te mais realidade objetiva dentro de si 
do que o têm aquelas ideias através das 
quais são exibidas substâncias finitas. 21
Agora, é de fato evidente pela luz 
da natureza que deve haver ao menos 
tanta [realidade] na causa eficiente e to-
tal quanto há no efeito daquela mesma 
causa. Por isso, eu pergunto: poderia um 
efeito obter a sua realidade se não a par-
tir da sua causa? E como poderia a causa 
dar aquela realidade ao efeito, a menos 
que também possuísse aquela realidade? 
Portanto, segue-se que alguma coisa não 
pode vir a ser a partir do nada, assim 
como o que é mais perfeito (ou seja, o 
que contém em si mesmo mais realidade) 
não pode vir a ser a partir do que é menos 
perfeito. Contudo, isso é claramente ver-
dadeiro não só para aqueles efeitos cuja 
realidade é atual ou formal, mas também 
para as ideias nas quais só a realidade ob-
jetiva é considerada. 22
Por exemplo, não só uma pedra que 
não existia antes não pode agora começar 
a existir, a menos que seja produzida por 
alguma coisa na qual há, formalmente ou 
eminentemente, tudo o que é na pedra; 
nem o calor pode ser introduzido num su-
jeito que ainda não tinha calor, a menos 
que isso seja feito por alguma coisa que 
é pelo menos de uma ordem tão perfeita 
quanto o calor – valendo o mesmo para o 
restante –, mas é também verdadeiro que 
não pode haver em mim nenhuma ideia do 
calor, ou de uma pedra, a menos que seja 
colocada em mim por alguma causa que 
tenha pelo menos tanta realidade quanto 
concebo haver no calor ou na pedra. Em-
bora essa causa não traga nada da sua re-
alidade atual ou formal à minha ideia, não 
se deveria pensar acerca dessa realidade 
que ela deva ser menos real. Ao contrário, 
a natureza de uma ideia é tal que ela não 
necessita de nenhuma realidade formal 
diferente do que toma emprestado a par-
tir do meu pensamento, do qual ela é um 
modo. Todavia, que uma ideia particular 
contenha isso em oposição àquela realida-
de objetiva é certamente devido a alguma 
causa na qual há pelo menos tanta reali-
dade formal quanto há realidade objetiva 
contida na ideia. Ora, se admitimos que 
alguma coisa é encontrada na ideia que 
não havia na sua causa, nesse caso a ideia 
obtém aquela alguma coisa do nada. Con-
tudo, não importa o quão imperfeito seja 
um modo de ser como esse, pelo qual uma 
coisa existe no intelecto objetivamente 
através de uma ideia, ele certamente não 
é um nada; portanto, ele não pode obter o 
seu ser a partir do nada.
Além disso, embora a realidade que 
estou considerando nas minhas ideias 
seja meramente realidade objetiva, eu 
não deveria, nessa acepção, suspeitar 
que não há nenhuma necessidade para 
a mesma realidade ser formalmente nas 
causas dessas ideias, mas que basta para 
ela ser nelas objetivamente. Assim como 
o modo objetivo de ser pertence às ideias 
pela própria natureza delas, também o 
modo formal de ser pertence às causas 
das ideias, pelo menos às causas primei-
ras e preeminentes, por sua própria na-
tureza. Embora uma ideia talvez possa 
originar-se de outra, nenhum regresso ao 
infinito é permitido aqui; por fim, algu-
ma ideia primeira deve ser atingida, cuja 
causa é um tipo de arquétipo que contém 
formalmente toda a realidade que existe 
na ideia de modo apenas objetivo. 23
Portanto, está claro para mim pela 
luz da natureza que as ideias que são em 
mim são como imagens que podem facil-
mente falhar em atingir a perfeição das 
coisas a partir das quais foram tomadas, 
mas que não podem conter nada maior 
ou mais perfeito.
E quanto mais longamente e aten-
tamente examino todos esses pontos, 
mais claramente e distintamente sei que 
são verdadeiros. Mas o que devo, em úl-
tima instância, concluir? Se a realidade 
objetiva de qualquer das minhas ideias é 
descoberta como sendo tão grande que 
estou certo de que a mesma realidade 
não existia em mim, seja formalmente 
ou eminentemente,* e que, portanto, eu 
* N. de T. Uma coisa ou uma realidade está “for-
malmente” nos objetos que as ideias representam 
quando se encontra neles tal como é concebida 
pelo sujeito pensante; uma coisa ou uma reali-
dade está “eminentemente” nos objetos que as 
ideias representam quando se encontra neles 
tão amplamente que não se pode dizer que está 
como tal na ideia ou que é como tal concebida 
pelo sujeito pensante. Cf. René Descartes, Razões 
(Objeções e respostas). In: René Descartes, Dis-
curso do método – As paixões da alma – Meditações 
– Objeções e respostas. Coleção Os Pensadores. 
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 251s.
21 
uma outra abordagem 
é ver se a alegação de 
que algumas das minhas ideias 
correspondem a coisas existentes 
fora da minha mente pode ser de-
rivada a partir do conteúdo delas: 
o que elas parecem representar 
ou descrever.
descartes põe isso em 
termos da concepção 
medieval obscura (a nós, de qual-
quer modo) da realidade objetiva: 
a realidade como um objeto do 
pensamento. (Assim, por exemplo, 
o papai noel teria “realidade ob-
jetiva” quando alguém tivesse um 
pensamento do papai noel.) nessa 
concepção, ideias diferentes con-
têm diferentes graus de realidade 
objetiva, correspondendo ao grau 
de perfeição do objeto da ideia. 
segue-se disso, ele acredita, que 
a ideia de deus contém mais rea-
lidade objetiva do que qualquer 
outra ideia.
22 
Aqui está o primeiro de dois 
princípios metafísicos impor-
tantes, envolvidos no argumento 
de descartes: o princípio de que 
qualquer causa deve ter pelo me-
nos tanta realidade (deve ser pelo 
menos tão perfeita) quanto o seu 
efeito. ele aplica isso tanto à rea-
lidade formal ou atual (a realidadeno sentido costumeiro) quanto à 
realidade objetiva. (os rótulos “for-
mal” e “objetivo” ferem os nossos 
ouvidos contemporâneos como 
terminologicamente às avessas. o 
que diríamos por “realidade obje-
tiva” é o que descartes quer dizer 
por “realidade formal”.)
23 
Aqui está o segundo princí-
pio metafísico envolvido no 
argumento de descartes: qualquer 
coisa com realidade objetiva deve, 
em última análise, ser causada por 
alguma coisa com realidade formal. 
A partir disso, descartes pensa 
que decorre, dado o princípio 
anterior, que alguma coisa com 
um grau específico de realidade 
objetiva deve, em última análise, 
ser causada por alguma coisa com 
pelo menos aquele mesmo grau de 
realidade formal.
Há qualquer plausibilidade 
nessa alegação? e, ainda 
mais importante, como descartes 
sabe que esses dois princípios me-
tafísicos são verdadeiros? Analise 
cuidadosamente o que ele diz. 
Você vê algum problema aqui? 
(Ver a Questão para discussão 3.)
pAre
84 laurence bonJour & Ann baker
mesmo não posso ser a causa da ideia, 
segue-se então necessariamente que não 
estou sozinho no mundo, mas que algu-
ma outra coisa, que é a causa dessa ideia, 
também existe. Contudo, se nenhuma 
ideia desse tipo for encontrada em mim, 
não terei nenhum argumento que me dei-
xe certo da existência de qualquer coisa 
diferente de mim mesmo, pois conscien-
temente revisei todos esses argumentos e 
até o momento fui incapaz de encontrar 
qualquer outro. 24
Entre as ideias, em adição àquela 
que me expõe a mim mesmo (sobre a 
qual não pode haver nenhuma dificulda-
de neste ponto), existem outras que re-
presentam Deus, coisas corpóreas e ina-
nimadas, anjos, animais e, enfim, outros 
homens como eu.
No que concerne as ideias que exi-
bem outros homens, ou animais, ou anjos, 
posso facilmente entender que podem ser 
modeladas a partir das ideias que tenho 
de mim mesmo, de coisas corpóreas, e 
de Deus – mesmo se quaisquer homens 
(exceto eu mesmo), quaisquer animais e 
quaisquer anjos existissem no mundo.
Quanto às ideias de coisas corpóreas, 
não há nada nelas que seja tão grande que 
pareça incapaz de ter sido originado a 
partir de mim. Se eu as investigar profun-
damente e examinar cada uma delas in-
dividualmente, do modo como examinei 
ontem a ideia da cera, observo que existe 
apenas um pequeno punhado de coisas 
nelas que percebo clara e distintamente: 
a saber, tamanho ou extensão em com-
primento, largura e profundidade; forma, 
que surge dos limites da sua extensão; 
posição, que várias coisas com forma têm 
uma em relação à outra, e movimento ou 
alteração na posição. A essas podem ser 
adicionadas substância, duração e núme-
ro. Porém, quanto aos itens restantes, tais 
como luz e cores, sons, odores, sabores, 
calor, frio e outras qualidades táteis, pen-
so nesses só de uma maneira muito con-
fusa e obscura, na medida em que nem 
mesmo sei se são verdadeiras ou falsas, 
isto é, se as ideias que eu tenho deles são 
ideias de coisas ou ideias de não coisas. 
25 Embora há pouco tempo tenha nota-
do que a falsidade propriamente dita (ou 
falsidade “formal”) deve ser encontrada 
somente em juízos, existe, no entanto, 
um outro tipo de falsidade (chamada de 
“material”), que é encontrada nas ideias 
sempre que representam uma não coisa 
como se ela fosse uma coisa. Por exem-
plo, as ideias que tenho do calor e do frio 
ficam tão aquém de ser claras e distintas 
que não posso dizer a partir delas se o 
frio é meramente a privação do calor ou 
se o calor é a privação do frio, ou se am-
bos são qualidades reais, ou se nenhum o 
é. E como as ideias podem apenas ser, por 
assim dizer, a partir de coisas, se é ver-
dade que o frio é meramente a ausência 
do calor, então uma ideia que representa 
o frio para mim como algo real e positi-
vo não será inapropriadamente chamada 
de falsa. O mesmo é válido para outras 
ideias similares.
Com certeza, não preciso atribuir 
a essas ideias um autor distinto de mim 
mesmo. Se elas fossem falsas, ou seja, se 
tivessem de representar não coisas, sei 
pela luz da natureza que elas procedem 
do nada, isto é, não são em mim por ne-
nhuma outra razão senão que aquela uma 
coisa está faltando na minha natureza e 
que a minha natureza não é inteiramente 
perfeita. Se, por outro lado, essas ideias 
são verdadeiras, nesse caso, porque exi-
bem tão pouca realidade a mim que não 
posso distingui-la de uma não coisa, não 
vejo nenhuma razão pela qual elas não 
podem obter o seu ser a partir de mim.
Quanto ao que é claro e distinto nas 
ideias de coisas corpóreas, parece que eu 
poderia ter tomado emprestado alguma 
dessas a partir da ideia de mim mesmo, 
a saber, substância, duração, número e 
tudo o mais que pode ser desse tipo. Por 
exemplo, penso que uma pedra é uma 
substância, ou seja, um coisa que é apta 
a existir em si mesma; semelhantemente, 
penso que eu também sou uma substân-
cia. Apesar do fato de que concebo a mim 
mesmo como sendo uma coisa pensante, 
e não uma coisa extensa, ao passo que 
concebo uma pedra como coisa extensa e 
não como uma coisa pensante, e portanto 
existe a maior diversidade entre esses dois 
conceitos, eles parecem concordar um 
com o outro, não obstante isso, quando 
considerados sob a rubrica de substância. 
Além disso, percebo que eu agora exis-
to e lembro-me que existi anteriormente 
por algum tempo. E tenho vários pensa-
mentos e sei quantos deles existem. É ao 
fazer essas coisas que adquiro as ideias 
de duração e número, as quais posso en-
tão aplicar a outras coisas. Entretanto, 
nenhum dos outros componentes a partir 
dos quais as ideias de coisas corpóreas 
24 
Assim, a questão se torna 
se tenho alguma ideia da 
qual eu mesmo, de acordo com 
o princípio anterior, não poderia 
ser a causa. se assim se dá, posso 
saber, com base nisso, que alguma 
coisa fora de mim existe.
25 
descartes tem em 
mente ao menos 
aproximadamente a distinção 
entre qualidades primárias e 
secundárias (sobre as quais locke 
terá muito mais a dizer).
Filosofia: textos fundamentais comentados 85
são modeladas (a saber, extensão, forma, 
posição e movimento) estão contidos em 
mim formalmente, uma vez que sou me-
ramente uma coisa pensante. Porém, uma 
vez que esses são apenas certos modos de 
uma substância, ao passo que sou uma 
substância, parece possível que estejam 
contidos em mim eminentemente.
Assim, permanece somente a ideia 
de Deus. Devo considerar se há alguma 
coisa nessa ideia que poderia não ter se 
originado de mim. 26 Entendo pelo nome 
“Deus” uma certa substância que é infini-
ta, independente, supremamente inteli-
gente e supremamente poderosa, que me 
criou junto com tudo o mais que existe 
– se qualquer outra coisa existe. De fato, 
todas essas são tais que, quanto mais cui-
dadosamente ponho a minha atenção so-
bre elas, o menos possível parece que pu-
dessem ter surgido de mim apenas. Logo, 
a partir do que foi dito, devo concluir que 
Deus necessariamente existe.
Embora a ideia de substância exista 
em mim em virtude do fato de que sou 
uma substância, esse fato não é suficiente 
para explicar o fato de que possuo a ideia 
de uma substância infinita, visto que sou 
finito, a menos que essa ideia procedesse 
de alguma substância que realmente fos-
se infinita.
Nem deveria eu pensar que não per-
cebo o infinito por meio de uma ideia ver-
dadeira, mas só através de uma negação 
do finito, assim como percebo repouso e 
escuridão por meio de uma negação de 
movimento e luz. Pelo contrário, entendo 
claramente que há mais realidade numa 
substância infinita do que há numa fini-
ta. Portanto, a percepção do infinito é de 
algum modo anterior em mim à percep-
ção do finito, isto é, a minha percepção 
de Deus é anterior à minha percepção de 
mim mesmo. Como eu entenderia que 
duvido e que desejo, ou seja, que careço 
de alguma coisa e que não sou totalmen-
te perfeito, a menos que houvesse algu-
ma ideia em mim de um ente mais perfei-
to em comparação com o qual eu poderia 
reconhecer os meus defeitos?

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