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'" A RcVOlU~AO UR~ANA TRADUC;Ao SERGIO MARTINS REVlsAo TECNICA MARGARIDA MARIA DE ANDRADE Belo Horizonte Editora UFMG 2004 © Editions Gallimard, 1970 Titulo original; La Revolution Urbaine © 1999 da tradu~ao brasileira; Editora UFMG 2002 I' relmpressao 2004 2' reimpressao Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autoriza~ao escrita do Editor Lefebvre, Henri L489r A revolu~ao urbana/ Henri Lefebvre; traducao de Sergio Martins. - Belo Horizonte; Ed. UFMG, 1999. 178p. - (Humanitas). Traducao de; La revolution urbaine 1. Sociologia urbana 2. Economia urbana 3. Urbaniza~ao I. Martins, Sergio II. Titulo III. Serie CDD;307.3 CDU; 364.122.5 PREFAcIO 7 CAPITULO I DA CIDADE A SOCIEDADE URBANA 15 CAPITULO II OCAMPO CEGO 33 CAPITULO III o FENOMENO URBANO 51 CAPITULO IV NIVEIS E DIMENSOES 77 CAPITULO V MITOS DO URBANO E IDEOLOGIAS 99 CAPITULO VI A FORMA URBANA 109 CAPITULO VII PARA UMA ESTRATEGIA URBANA 125 CAPITULO VIII A lLUsAO URBANISTICA 139 CAPITULO IX A SOCIEDADE URBANA 151 CONCLUSAo 165 NOTAS 173 Cataloga~ao na publica~ao; Divisao de Planejamento e Divulga~ao da Biblioteca Universitaria - UFMG ISBN;85-7041-195-2 EDITORAc;:AoDE TEXTO Ana Maria de Moraes PROJETOGRAFICO GI6ria Campos - Manga CAPA Marcelo Belieo sobre foto de Robson Martins (pre-moldados de mutiriio) REVISAoDE PROVAS LilianValderez Felicio Maria Stela Souza Reis FORMATAc;:.A.O Jonas Rodrigues Fr6is PRODUc;:AoGRAFICA Warren M. Santos EDITORAUFMG UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS Reitora: Ana Lucia Almeida Gazzola Vice-Reitor: Marcos Borato Viana EDiTORAUFMG Av. Antonio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central - terreo Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG Tel.: (31) 3499-4650 - Fax; (31) 3499-4768 editora@ufmg.br- www.editora.ufmg.br CONSELHOEDITORIAL TITULARES Antonio LuizPinho Ribeiro,Beatriz Rezende Dantas, CarlosAntOnioLeiteBrandao, Heloisa Maria MurgelStarling,LuizOt:ivioFagundes Amaral,Mariadas Gra~asSantaBarbara, MariaHelena Damasceno e SilvaMegale, Romeu Cardoso Guimaraes, Wander MeloMiranda(Presidente) SUPLENTES Cristiano Machado Gontijo, Denise Ribeiro Soares, Leonardo Barci Castriota, LucasJose Bretas dos Santos, MariaAparecida dos Santos Paiva, Maunlio Nunes Vieira,Newton Bignollo de Souza, ReinaldoMartinianoMarques,RicardoCastanheira Pimenta Figueiredo mailto:editora@ufmg.br- http://www.editora.ufmg.br E de se admirar como, as vesperas de completar trinta anos de sua publica~ao, La Revolution Urbaine e urn livro que se mantem atual, senao vejamos. Como compreender a realidade social que nasce da indus- trializac;ao e a sucede? Hoje a formula~ao dessa questao nao causa estranheza, sobretudo se considerarmos que no atual contexto, flagrantemente anemico de capacidade crltica, cria- tiva e investigativa, parte dos intelectuais tern considerado a industrializac;ao desimportante na explica~ao da realidade social a ponto de se desincumbirem de analisa-Ia. Naquele ana de 1970, contudo, essa questao nao deixaria de causar alguns inconvenientes ao seu formulador. Afinal, com que ousadia se poderia sugerir que a industrializac;ao de algum modo vinha perdendo forc;a na determina~ao da sociedade contemporanea? Nao se estaria com isso tambem indicando que 0 pensamento devotado a industrializa~ao deixava de ser suficiente, senao equivocado, para compreender e atuar na sociedade? Ate que ponto aquele pensamento que se dizia de Marx desde sempre e para sempre, embora cada vez mais distanciado das proposi~oes marxianas, poderia suportar abalos as certezas dogmaticamente sustentadas quanto aos protagonistas previamente definidos para ocupar 0 centro dos acontecimentos em func;ao da missao hist6rica ja prescrita de que supostamente seriam os portadores? A ousadia lefebvriana, no entanto, remonta a momentos anteriores. Seus questionamentos incisivos as redu~oes e enrijecimentos do pensamento marxista the custaram a periferia dos panteoes institucionais lastreados por urn "pensamento" cada vez mais circunscrito ao economicismo e aos dogmatismos legitimadores das re!ac;oesentre Estado e sociedade nitidamente desequilibradas em favor do primeiro, das necessidades e dos interesses definidos e geridos em seu ambito, ossificac;ao amplamente acolhida pelas abordagens estruturalistas imper- meaveis ao pensamento dialetico. A periferiza~ao, porem, pode ser considerada como uma condi~ao e uma situa~ao privilegiada, senao imprescindivel, para que Lefebvre abor- dasse aspectos da realidade social tidos como secundarios ou simplesmente banais, para compreender a reprodu~ao da 'for- ma~ao economico-social capitalista no seculo XX. De fato, estudos como os que produziu sobre a vida cotidiana e a produ~ao do espa~o (momento de seu percurso intelectual a que pertence este livro), dificilmenteteriam guarida no interior de urn "pensamento" embotado por exigencias correspondentes a sua transforma~ao em ideologia de partidos e Estados, que reservava 0 abandono, quando nao 0 desdem, a processos que, por sua importancia, exigiam do conhecimento crftico retini-Ios do atoleiro te6rico do marxismo .institucionalizado. Foi em 1968, atraves de seu Le Droit a la Ville [0 Direito a Cidadel, que Lefebvre formulou de modo mais consistente suas preocupa~6es e proposi~6es a respeito do fenomeno urbano. Nao se tratou, porem, de nenhum raio em dia de ceu azul. Lefebvre chegou as quest6es pertinentes ao espa~o por varios caminhos. Urn dos mais promissores teve a ver com seu interesse pela realidade agraria francesa. Esse interesse, posteriormente estendido para outros paises, 0 conduziu durante os anos 40 e 50 a estudar longamente as quest6es implicadas pela renda fundiaria e, em consequencia, a vasta teoriza~ao a esse respeito. Em meados dos anos 70, num beHssimo relato autobiografico, Lefebvre lembrou, com certa amargura, que nesse percurso chegou. a escrever urn livro sobre 0 assunto, mas nao houve na ocasiao quem se interes- sasse em publica-Io sob a simples e tosca alega~ao de que se tratava de quest6es menores para 0 marxismo. Referindo-se tambem a sua oferta para discutir a chamada questao agraria, inequivocamente relevante, em paises como Cuba e Argelia (contribui~ao que fora resolutamente recusada pelas esquerdas que entao assomavam ao poder de Estado), 0 autor chegou a concluir apressadamente que esse periodo de sua vida, de dez a quinze anos de trabalho, fora perdido.\ Auto-avalia~ao bastante contestavel, uma vez que em seus estudos subse- quentes, inicialmente estimulados pela forma~ao de uma nova cidade em sua regiao de origem, 0 sudoeste Frances (onde, como ele pr6prio afirmava, pode estudar in vivo, in statu nascendi, a irrup~ao do urbano numa realidade rustica tradi- ciona!) , Lefebvre retomou suas preocupa~6es, chegando, no curso do aprofundamento de sua elabora~ao te6rica, a importancia decisiva da produ~ao do espa~o na reprodu~ao da sociedade contemporanea. As transforma~6es operadas no campo pelo desenvolvimento do mundo da mercadoria, acom- panhadas da decomposi~ao da cidade na qual esse mesmo mundo, atraves da industrializa~ao, se aninhou e expandiu, levando-a a explosao-implosao, como denominava Lefebvre, nao mais permitiam que se continuasse pensando em termos de cidade e caIj1po, pois se tratava de urn outro processo, mais amplo, rico, profundo e dialetico: a urbaniza~ao da sociedade, processo desconcertante para 0 pensamento e a a~ao, ao qual 0 autor se refere n' 0 Direito a Cidade, bem como na admiravel antologia Du Rural a l'Urbain (ainda sem tradu~ao para 0 portugues), embora 0 formule e 0 exponha melhor neste A RevolUl;ao Urbana. Aqui, a analise da urbani- za~ao como sentido e finalidade da industriaJiza~aoprossegue a ponto de se poder afirmar que tal formula~ao e ao mesmo tempo essencial e insuficiente. A problematica urbana nao pode ser entendida, qui~a conhecida, enquanto for considerada como subproduto da industrializa~ao. Desse modo, para Lefebvre, sequer e possive! reconhecer a problematica urbana. 0 maximo que resultou dessa redu~ao do urbanofoi 0 urbanismo, isto e, a tentativa de submeter a realidade urbana a racionaJidade industrial, as exigencias do mundo supostamente 16gico,sem contradi~6es nem conflitos, da mercadoria. Sem nenhuma condescendencia ou comisera~ao, Lefebvre considera criticamente (isto e, cien- tificamente) 0 urbanismo, identificando-o como parte funda- mental das tentativas de estender ao conjunto das atividades sociais os pressupostos, intencionalidades, representa~6es que governam a divisao manufatureira do trabalho, com suas ordens e coa~6es. Seria precise lembrar Marx e suas inumeras analises sobre 0 processo de valoriza~ao das coisas, nas quais incrustou-se a "alma do capital", as custas da desvaloriza~ao do homem, que ve sua ac;:aoconfinada a expansao da riqueza como capital, como urn mundo alheio e estranho que cada vez mais 0 domina e 0 arrasta para 0 seu empobrecimento? Pode-se considerar 0 urbanismo, afirma Lefebvre impiedosa- mente, como Marx considerava a economia poHtica vulgar, isto e, urn pensamento (para ser generoso) degradado porque bovinamente satisfeito- para falar como Marx- com as formas assumidas pelas condis;oes de produs;ao da vida neste momento especffico da Hist6ria que e a formas;ao economico-social capitalista. Trata-se de urn pensamento limitado e conformado a tomar como curso inevitavel da Hist6ria a danp fantas- mag6rica das coisas. Por isso nao lhes resta senao constata-Ias e enumera-Ias.2 Em verdade, 0 que 0 urbanismo acaba promovendo e legi- timando e uma redus;ao da vida urbana ao minimo, pesando sobre ela. No entanto, a fragmentas;ao pr<iticae te6rica a que o urbano e submetido, permitindo que cada "pedacinho" possa ser entregue aos especialistas, confinados eles pr6prios a uma determinada divisao do trabalho, e que no final das contas pouco ou nada deliberam, nao e apenas yxpressao de suas dificuldades em enxergar a realidade que se forma para alem do que as barras das jaulas de suas especialidades permitem. Trata-se de uma cegueira. Em que consiste tal cegueira?Pergunta o fi16sofo. No fato de olharmos 0 urbano com os olhos (de)formados pela pratica e teoria da industrializas;ao, pelas representas;6es Cideol6gicas, institucionais) engendradas nesse vasto processo atraves do qual 0 capital se pas de pe na Hist6ria. Essas formas de consciencia e de as;ao (das quais 0 urbanismo e caso exemplar) criaram raizes fundas no conhecimento cien- tifico a ponto de tambem se poder falar de cegueira quanta a industrializas;ao. Senao, como explicar a prioridade que lhe tern sido concedida por quase dois seculos? Quanto ao urbano, esse olhar redutor nao permite ve-Io enquanto campo de tensoes e conflitos, como lugar dos enfrentamentos e confrontas;oes unidade das contradis;6es. E nesse sentido que a formulas;a~ desse conceito por Lefebvre retoma vivamente a dialetica nucleo de toda a sua obra.~ , Ao pensamento, Lefebvre propos explicitamente com este livro 0 conhecimento da reviravolta pela qual a sociedade dita industrial se transforma em sociedade urbana. Isso significa entao que os fenomenos ligados a industrializas;ao cederam lugar completamente aos fenomenos urbanos? Que aqueles tomaram-se desimportantes, ou entao perderam sua especifi- cidade e sua fors;a na determinas;ao do conjunto social? Nada mais equivocado. Em primeiro lugar, Lefebvre sempre advertiu ao longo de sua obra que a reposis;ao continua das determi- nas;6es economicas desta forma hist6rica de sociedade recalca as possibilidades de transformas;ao da pr6pria Hist6ria. As determinas;oes economicas transformam-se em determinismos economicos, que pesam sobre 0 homem, sobre 0 seu processo de humanizas;ao.4 Em segundo lugar, e em decorrencia disso, a sociedade urbana ainda nao existe enquanto realizas;aoplena. Ela existe por estar inscrita, enquanto possibilidade, na reali- dade, no "real", cuja definis;ao fica assim consideravelmente ampliada e enriquecida. A sociedade atual encontra-se a meio caminho do urbano, e e nessa transis;ao, nesse amplo e rico dominio das lutas (de classes) para tomar possivel 0 que se encontra no terreno do impossivei,sque se pode compreende-Ia. Ademais, as diferentes sociedades chegam de maneiras distintas a esse periodo de revolus;ao urbana, vivendo-o de acordo com suas diferens;as, a exemplo do que ocorrera e ainda ocorre com a industrializas;ao ..0 fato, porem, e que tanto sociedades altamente industrializadas, como as da Ap1erica do Norte e da Europa, quanto as que se devotaram visceralmente ao cresci- mento economico atraves da industrializa~ao valendo-se do socialismo como ideologia de Estado, ou ainda as que, como a nossa, convivem com as implicas;oes do perfodo industrial sem terem resolvido problemas precedentes, nao conseguiram responder a problematica urbana por uma transforma~ao capaz de colocar em primeiro plano a sociedade urbana. Esta continua sufocada pelo Estado que, por sua vez, tern reiteradamente expropriado a sociedade civil de suas iniciativase prerrogativas para atuar em favor da industrializas;ao, do mundo da merca- doria tornado como fim em si, como razao suprema capaz de tomar ininteligiveis os questionamentos nao devotados a sua consagras;ao. Numa sociedade como a nossa, onde prevalece essa aridez de democracia concreta, onde as possibilidades de supera~ao por n6s mesmos engendradas sac parcamente realizadas, ou mesmo tomadas impossiveis em nome de uma devo~ao cega e nauseante ao mundo da mercadoria, e flagrante a atualidade de urn livro como este, propondo estrategias para fazer a pro- blematica urbana entrar nao apenas no pensamento, mas sobre- tudo na pratica, pela forma~ao consciente de uma praxis urbana, com sua racionalidade pr6pria, para que a Hist6ria exista de fato como produto de nossa a~ao concreta, como campo de possiveis sobre 0 qual deliberamos e fazemos nossas escolhas. Passados quase trinta anos de sua publica~ao, tal projeto de transformas;ao da sociedade, pela reinversao desse mundo · se estendeu por mais de 70 livros, Lefebvre salientou: "um fluido unico percorre 0 conjunto; tenho buscado restituir a teoria de Marx em toda sua integridade e amplitude, empreendendo ao mesmo tempo seu aggiorna- mento; depois de um seculo de grandes transforma~5es, 0 materialismo hist6rico e 0 dialetico tao poderosos no plano te6rico nao podem se sustentar dogmaticamente". (LEFEBVRE. Tiemposequivocos, p.9.) 4 Ha poucos meses de sua morte, em 1991, Lefebvre encerrou com a seguinte observa~ao 0 que talvez tenha side sua ultima longa entrevista: "Afinal de contas, a questao e a seguinte: 0 futuro esta determinado ou ele e contingente? Isro e, dependente de nossas decisoes. De fato, ele nao esta determinado. 0 que nao que.r dizer que naoexistam determina~5es. Ha determina~5es, mas nao determinismo. E preciso conslderar que a hist6ria continua ..." (COMBES, Francis, LATOUR,Patricia. Conversation avec Henri Lefebvre. Paris: Messidor, 1991. p.113.) 5 Segundo Lefebvre, as lutas de classes ultrapassam em muito as rela~5es ao res-do-chao da fabrica, assim como nao se circunscrevem a disputa entre classes socia is por maio res fra~oes da riqueza social, como foram tematizadas pelo marxismo. Essa no~ao se refere ao embate em tomo da abertura e realiza~ao dos possfveis. Cf. LEFEBVRE,Henri. Une pensee devenue monde: faut-il abandonner Marx? Paris: Fayard, 1980. invertido, nao encontra lugar numa vida polftica caricatural e sem substancia. Podemos nos lamentar quanto a isso? Talvez. Entretanto, a inversao s6 ganhara sentido quando come~armos a tirar dai as consequencias. Nao posso deixar de mencionaraqui a participa~ao crucial de Margarida Maria de Andrade. Esta tradu~ao foi feita origi- nalmente no ana de 1995. Desdeentao, tive 0 privilegio de contar com seu trabalho paciente e minucioso, acompanhado de seu rigor intelectual aliadoa intimidade com a obra lefebvriana. Seu envolvimento integral em todos os momentos necessarios para que esta tradu~ao saisse do terreno do impos- sive! foi, portanto, imprescindivel. . Por fim, a pronta acolhida oferecida pela Editora da UFMG,que escolhi em virtude do trabalho serio e criterioso que nela vem sendo desenvolvido, tambem foi decisiva para amp liar entre n6s as possibilidades de conhecimento da realidade urbana que este livro propicia. 1 Cf. LEFEBVRE, Henri. Tiempos equivocos. Trad. Jose Francisco Ivars, Juan Isturiz Izco. Barcelona: Editorial Kair6s, [1975] 1976. p.224-226. 20 que faz 0 economista politico vulgar, transformado nao s6 em interprete, mas principalmente em apologista desta sociedade? Num outro livro dedicado ao urbano, Lefebvre relembra a ironia fina de Marx: "Coloca-se na acep~ao restrita com a consciencia perfeitamente em ordem, ou seja, com uma certeza que nao se distingue da trivialidade do bom senso e a si mesma se toma por verdade cientffica. Constata, conta, descreve. Tanto contara ovos como tone- ladas de a~o, gado ou trabalhadores, com a mesma permanente, tranqiiila e inabalavel certeza." Cf. LEFEBVRE,Henri. 0pensamento marxista e a cidade. Trad. Maria Idalina Furtado. P6voa de Varzim: Ulisseia, [1972], [s.d.]. p.82-83. 3 No mesmo relato que citei anteriormente, Lefebvre manifestou seu desacordo quanto as leituras fragmentarias de sua obra, que visam compreende-la aos "peda~os" em fun~ao das especializa~oes a que supostamente se referem. Em verda de, cada momenta de seu percurso intelectual s6 pode ser apreendido, isto e, apropriado pela compreensao, se tivermos clareza com rela~ao a concep~ao de mundo que the e fundante. Sobre 0 conjunto de sua obra, que \ DA CIDADe A ~OClcDADc U~~ANA Partiremps de uma hipotese: a urbanizafao completa da sociedade: Hipotese que posteriormente sera sustentada par argumentos, apoiada em fatos. Esta hipotese implica uma defi- ni~ao. Denominaremos "sociedade urbana" a sociedade que resulta da urbaniza~ao completa, hoje virtual, amanha real. Essa defini~ao acaba com a ambiguidade no emprego dos termos. Com efeito, frequentemente se designa par essas pala- vras, "sociedade urbana", qualquer cidade au cite:l a cite grega, a cidade oriental au medieval, a cidade comercial au industrial, a pequena cidade au a megalopolis. Numa extrema confusao, esquece-se ou se coloca entre parenteses as relar;5es sociais (as rela~5es de produ~ao) das quais cada tipo urbano e soli- dario. Compara-se entre si "sociedades urbanas" que nada tern de comparaveis. Isso favorece as ideologias subjacentes: a organicismo (cada "sociedade urbana", em si mesma, seria urn "todo" organico), a continuismo (haveria continuidade his- torica ou permanencia da "sociedade urbana"), 0 evolucionismo (as perfodos, as transforma~5es das relar;oes sociais, esfu- mando-se au desaparecendo). Aqui, reservaremos a termo "sociedade urbana" a sociedade que nasce da industrializar;ao. Essas palavras designam, por- tanto, a sociedade constitufda par esse processo que domina e absorve a produr;ao agrfcola. Essa sociedade urbana so pode ser concebida ao final de urn processo no curso do qual explo- dem as antigas formas urbanas, herdadas de transforma~oes descontinuas. Urn importame aspecto do problema teorico e a de conseguir situar as descontinuidades em rela~ao as conti- nuidades, e inversamente. Como existiriam descontinuidades absolutas sem continuidades subjacentes, sem suporte e sem processo inerente? Reciprocamente, como existiria continui- dade sem crises, sem 0 aparecimento de elementos ou de rela~oes novas? As ciencias especializadas (ou seja, a sociologia, a econo- mia polftica, a hist6ria, a geografia humana etc.) propuseram numerosas denomina~oes para caracterizar a "nossa" socie- dade, realidade e tendencias profundas, atualidade e virtuali- dades. Pode-se falar de sociedade industrial e, mais recente- mente, de sociedade p6s-industrial, de sociedade tecnica, de sociedade de abundancia, de lazeres, de consumo etc. Cada uma dessas denomina~oes comporta uma parcela de verdade empfrica ou conceitual, de exagero e de extrapola~ao. Para denominar a sociedade p6s-industrial, ou seja, aquela que nasce da industrializa~ao e a sucede, propomos aqui este con- ceito: sociedade urbana, que designa, mais que urn fato con- sumado, a tendencia, a orienta~ao, a virtualidade. Isso, por conseguinte, nao tira 0 valor de outra caracteriza~ao crftica da realidade contemporanea como, por exemplo, a analise da "sociedade burocratica de consumo dirigido". Trata-se de uma hip6tese te6rica que 0 pensamento cientffico tern 0 direito de formular e de tomar como ponto de partida. Tal procedimento nao s6 e corrente nas ciencias, como e neces- sario. Nao ha ciencia sem hip6teses te6ricas. Destaquemos desde logo que nossa hip6tese, que concerne as ciencias ditas "sociais", esta vinculada a uma concep~ao epistemol6gica e metodol6gica. 0 conhecimento nao e necessariamente c6pia ou reflexo, simulacro ou simula~ao, de urn objeto ja real. Em contrapartida, ele nao constr6i necessariamente seu objeto em nome de uma teoria previa do conhecimento, de uma teoria do objeto ou de "modelos". Para n6s, aqui, 0 objeto se inclui na hip6tese, ao mesmo tempo em que a hip6tese refere-se ao objeto. Se esse "objeto" se situa alem do constatavel (empfrico), nem par isso ele e fictfcio. Enunciamos urn objeto virtual, a sociedade urbana, ou seja, urn objeto possivel, do qual teremos que mostrar 0 nascimento e 0 desenvolvimento relacionando-os a urn processo e a uma praxis (uma a~ao pratica). Que essa hip6tese deva ser legitimada, nao deixaremos de reiterar e tentar. Os argumentos e provas em seu favor nao faltam, das mais simples as mais sutis. Sera precise insistir demoradamente que a produ~ao agrfcola perdeu toda autonomia nos grandes paises industriais,bem como a escala mundial? Que ela nao mais representa nem 0 setor principal, nem mesmo urn setor dotado de caracterfsticas distintivas (a nao ser no subdesenvolvimento)? Mesmo conside- rando que as particularidades locais e regionais provenientes dos tempos em que a agricultura predominava nao desapare- ceram, que as diferen~as dai emanadas acentuam-se aqui e ali, nao e menos certo que a produ~ao agrfcola se converte num setor da produ~ao industrial, subordinada aos seus imperati- vos, submetida as suas exigencias. Crescimento economico, industrializa<;:ao, tornados ao mesmo tempo causas e razoes supremas, estendem suas conseqilencias ao conjunto dos terri- t6rios, regioes, na~oes, continentes. Resultado: 0 agrupamento tradicional pr6prio a \;'idacamponesa, a saber, a aldeia, trans- forma-se; unidades mais vastas 0 absorvem ou 0 recobrem; ele se integra a industria e ao consumo dos produtos dessa industria. A concentra~ao da popula<;:aoacompanha ados meios de produ~ao. 0 tecido urbano prolifera, estende-se, corr6i os residuos de vida agraria. Estas palavras, "0 tecido urbano", nao designam, de maneira restrita, 0 dominio edificado nas cidades, mas 0 conjunto das manifesta<;:oesdo predominio da cidade sobre 0 campo. Nessa acep~ao, uma segunda residencia, uma rodovia,. urn supermercado em pleno campo, fazem parte do tecido urbano. Maisou menos denso, mais ou menos espesso e ativo, ele poupa somente as regioes estagnadas ou arrui- nadas, devotadas a "natureza". Para os produtores agrfcolas, os "camponeses", projeta-se no horizonte a agrovila, desa- parecendo a velha aldeia. Prometida por N. Khrouchtchev aos camponeses sovieticos, a agrovila concretiza-se aqui e ali no mundo. Nos Estados Unidos, exceto em algumas regioes do SuI, os camponeses virtualmente desapareceram; apenas persistem ilhotas de pobreza camponesa ao lado das ilhotas de pobreza urbana. Enquanto esse aspecto do processo global (industrializa~ao e/ou urbaniza~ao) segue seu curso, a grande cidade explodiu, dando lugar a duvidosas excrescencias: subur- bios, conjuntos residenciais ou complexos industriais, peque- nos aglomerados satelites pouco diferentes de burgos urba- nizados. As cidades pequenas e medias tomam-se dependencias, semicolonias da metr6pole. E assim que nossa hip6tese impoe-se, ao mesmo tempo como ponto de chegada dos conhecimentos Do mesmo modo, em seguida, utilizando-se as palavras "revolu~ao urbana", designaremos0 conjunto das transfor- ma\;oes que a sociedade contemporanea atravessa para passar do perfodo em que predominam as questoes de crescimento e de industrializa~ao (modelo, planifica~ao, programa~ao) ao perfodo no qual a problematica urbana prevalecera decisiva- mente, em que a busca das solu~oes e das modalidades pra- prias a sociedade urbana passara ao primeiro plano. Entre as transforma~oes, algumas serao bruscas. Outras graduais, pre- vistas, concertadas. Quais? Sera preciso tentar responder esta questao legltima. De antemao, nao e certo que, para 0 pensa- mento, a resposta seja clara, satisfataria, sem ambigiiidade. As palavras "revolu~ao urbana" nao designam, por essencia, a~oes violentas. Elas nao as excluem. Como separar anteci- padamente 0 que se pode alcan~ar pela a~ao violenta e 0 que se pode produzir por uma a~ao racional? Nao seria pr6prio da violencia desencadear-se? E pr6prio ao pensamento reduzir a violencia ao minimo, come~ando por destruir os grilhoes no pensamento? No que concerne ao urbanismo, eis duas balizas no caminho que sera percorrido: a) muitas pessoas, desde alguns anos, tern visto no urba- nismo uma pratica social com carater cientffico e tecnico. Nesse caso, a reflexao te6rica poderia e deveria apoiar-se nessa pratica, elevando-a ao nlvel dos conceitos e, mais precisa- mente, ao nlvel epistemol6gicO. Ora, a ausencia de uma tal epistemologia urbanlstica e flagrante. Iremos aqui nos esfor~ar para preencher tal lacuna? Nao. Com efeito, essa lacuna tern urn sentido. Nao seria porque 0 carater institucional e ideol6- gico disso a que se chama urbanismo prevalece, ate nova or- dem, sobre 0 carater cientffico? Supondo que esse procedi- mento possa se generalizar, e que 0 conhecimento sempre passe pela epistemologia, 0 urbanismo contemporaneo parece distante disso. E preciso saber por que e dize-lo; b) tal como ele se apresenta, ou seja, como politica (com esse duplo aspecto institucional e ideoI6gico), 0 urbanismo condiciona-se a uma dupla crftica: uma crftica de direita e uma Cfitica de esquerda. A critica de direita, ninguem a ignora, e de born grado passadista, nao raro humanista. Ela oculta e justifica, direta adquiridos e como ponto de partida de urn novo estudo e de novos projetos: a urbaniza~ao completa. A hipatese a antecipa. Ela prolonga a tendencia fundamental do presente. Atraves e no seio da "sociedade burocratica de consumo dirigido" a sociedade urbana esta em gesta~ao. Argumento negativo, demonstra~ao pelo absurdo: nenhuma outra hipatese convem, nenhuma outra abarca 0 conjunto dos problemas. Sociedade pas-industrial? Coloca-se uma questao: o que vem depois da industrializa~ao? Sociedade de lazeres? Contenta-se com uma parte da questaoj limita-se 0 exame das tendencias e virtualidades aos "equipamentos", atitude realista que deixa intacta a demagogia dessa defini~ab. Consumo maci~o aumentando indefinidamente? Contenta-se em tomar os indices atuais e extrapold-los, arriscando-se assim a reduzir realidade e virtualidades a urn unico de seus aspectos. E assim por diante. A expressao "sociedade urbana" responde a uma necessi- dade tearica. Nao se trata simplesmente de urna apresenta~ao literaria ou pedagagica, nem de uma formaliza~ao do saber adquirido, mas de uma elabora~ao, de uma pesquisa, e mesmo de uma forma~ao de conceitos. Urn movimento do pensamento em dire~ao a um certo concreto e talvezpara 0 concreto se esbo~a e se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzira a uma pratica, a prdtica urbana, apreendida ou re-apreendida. Sem duvida, havera urn umbral a transpor antes de entrar no concreto, isto e, na pratica social apreendida teoricamente. Nao se trata, portanto, de buscar uma receita empirica para fabricar este produto, a realidade urbana. Nao e isso 0 que frequentemente se espera do "urbanismo" e 0 que muitas vezes os "urbanistas" prometem? Contra 0 empirismo que constata, contra as extrapola~oes que se aventuram, contra, enfim, 0 saber em migalhas pretensamente comestiveis, e uma teoria que se anuncia a partir de uma hip6tese te6rica. A essa pesquisa, a essa elabora~ao, associam-se procedimentos de metodo. Por exemplo, a pesquisa concernente a urn objeto virtual, para defini-Io e realiza-Io a partir de urn projeto, ja tern urn nome. Ao lado dos procedimentos e opera~oes classicas, a dedufiio e a indufiio, ha a transdufiio (reflexao sobre 0 objeto possivel). o conceito de "sociedade urbana" apresentado anteriormente implica,portanto, simultaneamente,uma hipatese e uma defini~ao. lentamente secretado a realidade urbana, corresponde a uma ideologia. Ela generaliza 0 que se passou na Europa por oca- siao da decomposh;:ao da romanidade (do Imperio Romano) e da reconstituic;ao das cidades na Idade Media. Pode-se muito bem sustentar 0 contrario. A agricultura somente superou a coleta e se constituiu como tal sob 0 impulso (autoritario) de centros urbanos, geralmente ocupados por conquistadores habeis, que se tornaram protetores, exploradores e opressores, isto e, administradores, fundadores de urn Estado ou de urn esboc;o de Estado. A cidade po/{tica acompanha, ou segue de perto, 0 estabelecimento de uma vida social organizada, da agricultura e da aldeia. E evidente que essa tese nao tern sentido quando se trata dos imensos espac;os onde urn seminomadismo, uma miseravel agricultura itinerante sobreviveram interminavelmente. E certo que ela se ap6ia sobretudo nas analises e documentos relativos ao "modo de produc;ao asiatico", as antigas civilizac;6es cria- doras, ao mesmo tempo, de vida urbana e de vida agraria (Mesopotamia, Egito etc.2). A questao geral das relac;6es entre a cidade e 0 campo esta longe de ser resolvida. Arrisquemo-nos, entao, a colocar a cidade politica no eixo espac;o-temporal perto da origem. Quem povoava essa cidade polftica? Sacerdotes e guerreiros, prfncipes, "nobres", chefes militares. Mas tambem administradores, escribas. A cidade polftica nao pode ser concebida sem a escrita: documentos, ordens, inventarios, cobranc;a de taxas. Ela e inteiramente ordem e ordenac;ao, poder. Todavia, ela tambem implica urn artesanato e trocas, no minimo para proporcionar os materiais indispensaveis a guerra e ao poder (metais, couros etc.), para elabora-Ios e conserva-Ios. Consequentemente, ela compreende, de maneira subordinada, artesaos, e mesmo operarios. A cidade politica administra, protege, explora urn territ6rio fre- quentemente vasto, ai dirigindo os grandes trabalhos agricolas: drenagem, irrigaC;ao,construc;ao de diques, arroteamentos etc. Ela reina sobreum determinado numero de aldeias. Ai, a pro- priedade do solo torna-se propriedade eminente do monarca, simbolo da ordem e da ac;ao.Entretanto, os camponeses e as comunidades conservam a posse efetiva mediante 0 pagamento de tributos. Nunca ausentes, a troca e 0 comercio devem aumentar. De inicio confiados a pessoas suspeitas, os "estrangeiros", eles ou indiretamente, uma ideologia neoliberal, ou seja, a "livre empresa". Ela abre 0 caminho a todas as iniciativas "privadas" dos capitalistas e de seus capitais. A critica de esquerda, muitos ainda a ignoram, nao e aquela pronunciada por esse ou aquele grupo, agremiac;ao, partido, aparelho, ou ide610go classificados "a esquerda". E aquela que tenta abrir a via do possivel, explorar e balizar urn terreno que nao seja simplesmente aquele do "real", do realizado, ocupado pelas forc;aseconomic as, sociais e polfticas existentes. E, portanto, uma critica u-t6pica, pois toma dismncia em relac;ao ao "real", sem, por isso, perde-Io de vista. Dito isso, tracemos urn eixo: que vai da ausencia de urbanizac;ao (a "pura natureza", a terra entregue aos "elementos") a culminac;ao do processo. Signifi- cante desse significado - 0 urbano (a realidade urbana) -, esse eixo e ao mesmo tempo espacial e temporal: espacial, porque 0 processo se estende no espac;o que ele modifica; temporal, uma vez que se desenvolve no tempo, aspecto de inicio menor, depois predominante, da pratica e da hist6ria. Esse esquema apresenta apenas urn aspecto dessahist6ria, urn recorte do tempo ate certo ponto abstrato e arbitrario, dando lugar a operac;6es (periodizac;6es) entre outras, nao implicando em nenhum privilegio absoluto, mas numa igual necessidade (relativa) em relaC;aoa outros recortes. No caminho percorrido pelo "fenomeno urbano" (numa palavra: 0 urbano), coloquemos algumas balizas. No inicio, 0 que ha? Populac;oes destacadas pela etnologia, pela antropo- logia. Em torno desse zero inicial, os primeiros grupos humanos (coletores, pescadores, cac;adores, talvez pastores) marcaram e nomearam 0 espac;o; des 0 exploraram balizando-o. Indicaram os lugares nomeados, as topias fundamentais. Topologia e grade espacial que, mais tarde, os camponeses, sedentarizados, aper- feic;oarame precisaram sem perturbar sua trama. 0 que importa e saber que em muitos lugares no mundo, e sem duvida em todos os lugares onde a hist6ria aparece, a cidade acompanhou ou seguiu de perto a aldeia. A representac;ao segundo a qual 0 campo cultivado, a aldeia e a civilizac;ao camponesa, teriam se fortalecem funcionalmente. Os lugares destinados a troca e ao comercio sao, de infcio, fortemente marcados par signos de heterotopia. Como as pessoas que se ocupam deles e as ocupam, esses lugares sao, antes de mais nada, exclufdos da cidade polftica: caravan~aras, pra~as de mercado, faubourgs3 etc. 0 processo de integra~ao do mercado e da mercadoria (as pessoas e as coisas) a cidade dura seculos e seculos. A troca e a comercio, indispensaveis a sobrevivencia como a vida, suscitam a riqueza, 0 movimento. A cidade polftica resiste com toda a sua for~a, com toda a sua coesao; ela sente-se, sabe-se amea~ada pelo mercado, pela mercadoria, pelos comerciantes, par sua forma de propriedade (a propriedade mobiliaria, movente par defini~ao: a dinheiro). Inumeraveis fatos testemu- nham a existencia, ao lado da Atenas polftica, tanto da cidade comercial, a Pireu, quanta as interdi~oes em vao repetidas a disposi~ao de mercadorias na agora, espa~o livre, espa~o do encontro polftico. Quando Cristo expulsa as mercadores do templo, trata-se da mesma interdi~ao, com a mesmo sentido. Na China, no ]apao, as comerciantes permanecem durante longo tempo na baixa classe urbana, relegada num bairro "especializado" (heterotopia). Emverdade, e apenas no Ocidente europeu, no final da Idade Media, que a mercadoria, a mercado e os mercadores penetram triunfalmente na cidade. Pode-se conceber que outrora as mercadores itinerantes, urn pouco guerreiros, urn pouco saqueadores, escolheram deliberada- mente as rufnas fortificadas das cidades antigas (romanas) para levar a cabo sua luta contra as senhores territoriais. Nesta hip6tese, a cidade polftica, renovada, teria servido de quadro a a~ao que iria transforma-Ia. No curso dessa luta (de classes) contra as senhores, possuidores e dominadores do territ6rio, luta prodigiosamente fecunda no Ocidente, criadora de uma hist6ria e mesmo de hist6ria tout court, a pra~a do mercado torna-se central. Ela sucede, suplanta, a pra~a da reuniao (a agora, a f6rum). Em torno do mercado, tornado essencial, agrupam-se a igreja e a prefeitura (ocupada por uma oligarquia de mercadores), com sua torre ou seu campanario, sfmbolo de liberdade. Deve-se notar que a arquitetura segue e traduz a nova concep~ao da cidade. 0 espa~o urbano torna-se 0 lugar do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se orna- menta dos signos dessa liberdade conquistada, que parece a Liberdade. Luta grandiosa e irris6ria. Nesse sentido, houve razao em estudar, dando-Ihes urn valor simb6lico, as "bastides"4 do sudoeste, na Frans;:a,primeiras cidades a se constitufrem em torno da pra~a do mercado. Ironia da hist6ria. 0 fetichismo da mercadoria aparece com a reino da mercadoria, com sua 16gicae sua ideologia, com sua Hngua e seu mundo. No seculo XIV,acredita-se ser suficiente estabelecer um mercado e cons- truir lojas, p6rticos e galerias ao redor da pra~a central, para que as mercadores e compradores afluam. Senhores e bur- gueses edificam, entao, cidades mercantis nas regioes incultas, quase deserticas, ainda atravessadas par rebanhos e semino- mades transumantes. Tais cidades do sudoeste frances perecem, apesar de terem as names de grandes e ricas cites (Barcelona, Bolonha, Plaisance, Floren~a, Granada etc.). De todo modo, a cidade mercantil tem seu lugar, no percurso, depois da cidade polftica. Nessa data (aproximadamente no seculo XIV, na Europa Ocidental), a troca comercial torna-se funfao urbana; essa fun~ao fez surgir umaforma (au formas: arquiteturais e/ou urbanfsticas) e, em decorrencia, uma nova estrutura do espa~o urbano. As transforma~oes de Paris ilustram essa complexa intera~ao entre as tres aspectos e as tres conceitos essenciais: fun~ao, forma, estrutura. Os burgos e faubourgs, inicialmente comerciais e artesanais - Beaubourg, Saint-Antoine, Saint- Honore -, tornam-se centrais, disputando a influencia, a pres- tfgio e a espa~o com as poderes propriamente poHticos (as institui~oes), obrigando-os a compromissos, participando com eles da constitui~ao de uma poderosa unidade urbana. Num determinado momenta, no Ocidente europeu, tern lugar um "acontecimento" imenso e, entretanto, latente, se se pode dizer, porque despercebido. 0 peso da cidade no con- junto social torna-se tal que a pr6prio conjunto desequilibra-se. A rela~ao entre a cidade e a campo ainda conferia a primazia a este ultimo: a riqueza imobiliaria, aos produtos do solo, as pessoas estabelecidas territorialmente (possuidores de feudos ou de tftulos nobiliarios). A cidade conservava, em rela~ao aos campos, um carater heterot6pico marcado tanto pelas muralhas quanta pela transi~ao dos faubourgs. Num dado momenta, essas rela~oes multiplas se invertem, ha uma reviravolta. No eixo deve ser indicado a momenta privilegiado dessa revira- volta, dessa inversao da heterotopia. Desde entao, a cidade nao aparece mais, nem mesmo para si mesma, como uma ilha urbana num oceano campones; ela nao aparece mais para si mesma como paradoxa, monstro, inferno au parafso oposto a natureza aldea ou camponesa. Ela entra na conscH~ncia e no conhecimento como urn dos termos, igual ao outro, da oposis;:ao"cidade-campo". 0 campo? Nao e mais - nao e nada mais - que a "circunvizinhans;:a" da cidade, seu horizonte, seu limite. As pessoas da aldeia? Segundo sua pr6pria maneira de ver, deixam de trabalhar para os senhores territoriais. Pro- duzem para a cidade, para 0 mercado urbano. E, se sabem que os mercadores de trigo ou madeira os exploram, encontram porem no mercado 0 caminho da liberdade. o que se passa pr6ximo a esse momento crucial?As pessoas que refletem nao mais se veem na natureza, mundo tenebroso atormentado por fors;:asmisteriosas. Entre eles e a natureza , entre seu centro e nucleo (de pensamento,.de existencia) e 0 mundo, instala-se a medias;:aoessencial: a realidade urbana. Desde esse momento, a sociedade nao coincide mais com 0 campo. Nao coincide mais com a cite. 0 Estado os subjuga, os reune na sua hegemonia, utilizando suas rivalidades. Para os contemporaneos, entretanto, a majestade que se anuncia l,hes aparece velada. A quem se confere a Raz~o por atributo? A Realeza?Ao divino Senhor?Ao indivfduo?Contudo, e a razao da Cite que se restabelece ap6s a rufna de Atenas e de Roma, ap6s 0 obscurecimento de suas obras essenciais, a l6gica e o direito. 0 Logos renascej mas 0 seu renascimento nao e atribufdo ao renascimento do urbano, e sim a uma razao transcendente. 0 racionalismo que culmina com Descartes acompanha a inversao que substitui a primazia camponesa pela prioridade urbana. Ele nao se ve como tal. Durante esse perfodo, entretanto, nasce a imagem da cidade. A cidade ja detinha a escrita; possufa seus segredos e poderes. Ela ja opunha a urbanidade (ilustrada) a rusticidade (ingenua e brutal). A partir de urn determinado momento, ela tern sua pr6pria escrita: 0 plano. Nao entendamos por isso a planifi- cas;:ao- ainda que ela tambem se esboce - mas a planime- tria. Nos seculos XVIe XVII,quando ocorre precisamente essa inversao desentido, aparecem, na Europa, os pIanos de cida- des e, sobretudo, os primeiros pIanos de Paris. Ainda nao sao pIanos abstratos, projes;:aodo espas;:ourbano num espa- s;:ode coordenadas geometricas. Combinas;:aoentre a visao e a conceps;:ao, obras de arte e de ciencia, os pIanos mostram a cidade a partir do alto e de longe, em perspectiva, ao mesmo tempo pintada, representada, descrita geometricamente. Urn olhar, ao mesmo tempo ideal e realista - do pensamento, do poder -, situa-se na dimensao vertical, a do conhecimento e da razao, para dominar e constituir uma totalidade: a cidade. Essa inflexao da realidade social para 0 urbano, essa des- continuidade (relativa) pode perfeitamente ser indicada no eixo espas;:o-temporal, cuja continuidade permite justamente situar e datar cortes (relativos). Bastara tras;:aruma mediana entre 0 zero inicial e 0 numero final (por hip6tese, cern). Essa inversao de sentido nao pode ser dissociada do cres- cimento do capital comercial, da existencia do mercado. E a cidade comercial, implantada na cidade poHtica, mas pro sse- guindo sua marcha ascendente, que a explica. Ela precede urn pouco a emergencia do capital industrial e, por conse- guinte, a da cidade industrial. Este conceito merece urn comentario. A industria estaria vinculada a cidade? Ela estaria, antes de mais nada, ligada a nao-cidade, ausencia ou ruptura da realidade urbana. Sabe-se que inicialmente a industria se implanta - como se diz - pr6xima as Fontes de energia (carvao, agua), das materias-primas (metais, texteis), das reservas de mao-de-obra. Se ela se aproxima das cidades, e para aproximar-se dos capitais e dos capitalistas, dos mercados e de uma abundante mao-de-obra, mantida a baixo pres;:o. Logo, ela pode se implantar em qualquer lugar, mas cedo ou tarde alcanya as cidades preexistentes, ou constitui cidades novas, deixando-as em seguida, se para a empresa industrial ha algum interesse nesse afastamento.Assimcomo a cite poHtica resistiu durante longo tempo a as;:aoconquistadora, meio pad- fica, meio violenta, dos comerciantes, da troca e do dinheiro, a cidade poHtica e comercial se defendeu contra 0 domfnio da industria nascente, contra 0 capital industrial e 0 capita- lismo tout court. Por que meios? Pelo corporativismo, a imo- bilizas;:aodas relas;:6es.0 continufsmo hist6rico e 0 evolucio- nismo mascaram esses efeitos e essas rupturas. Estranho e admiravel movimento que renova 0 pensamento diah~tico: a nao-cidade e a anticidade vao conquistar a cidade, penetra-la, faze-Ia explodir, e com isso estende-la desmesuradamente, levando a urbanizas;:ao da sociedade, ao tecido urbano reco- brindo as remanescencias da cidade anterior a industria. Se esse extraordinario movimento escapa a atenyao, se ele foi descrito apenas fragmentariamente, e porque os ide610gos quiseram eliminar 0 pensamento dialetico e a analise das contradi~oes em favor do pensamento logico, ou seja, da constata~ao das coerencias e tao-somente das coerencias. Nesse movimento, a realidade urbana, ao mesmo tempo ampli- ficada e estilhapda, perde os tra~os que a epoca anterior Ihe atribuia: totalidade organica, sentido de pertencer, imagem enaltecedora, espa~o demarcado e dominado pe!os esplen- dores monumentais. Ela se povoa com os signos do urbano na dissolu~ao da urbanidadei torna-se estipula~ao, ordem repres- siva, inscri~ao por sinais, codigos sumarios de circula~ao (per- cursos) e de referencia. Ela se Ie ora como urn rascunho, ora como uma mensagem autoritaria. Ela se declara mais ou menos imperiosamente. Nenhum desses termos descritivos da conta completamente do processo historico: a implosao-explosao (metafora emprestada da ffsica nuclear), ou seja, a enorme concentra~ao (de pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas e de objetos, de instrumentos, de meios e de pensamento) na realidade urbana, e a imensa explosao, a proje~ao de frag- mentos multiplos e disjuntos (periferias, suburbios, residencias secundarias, satelites etc.). A cidade industrial (em geral uma cidade informe, uma aglomera~ao parcamente urbana, urn conglomerado, uma "conurba~ao", como 0 Ruhr) precede e anunda a zona critica. Nesse momento, a implosao-explosao produz todas as suas consequencias. 0 crescimento da produ~ao industrial super- poe-se ao crescimento das trocas comerciais e as multiplica. Esse crescimento vai do escambo ao mercado mundial, da troca simples entre dois individuos ate a troca dos produtos, das obras, dos pensamentos, dos seres humanos. A compra e a venda, a mercadoria e 0 mercado, 0 dinheiro e 0 capital parecem varrer os obstaculos. No curso dessa generaliza~ao, por sua vez, a consequencia desse processo - a saber: a reali- dade urbana - torna-se causa e razao. 0 induzido torna-se dorninante (indutor). Aproblemdtica urbana impoe-se a escala mundial. Pode-se definir a realidade urbana como uma "superes- trutura", na superffcie da estrutura economica, capitalista ou socialista? Como urn simples resultado do crescimento e das for~as produtivas? Como uma modesta realidade, marginal em re!a~ao a produ~ao? Nao! A realidade urbana modifica as re!a~oes de produ~ao, sem, alias, ser suficiente para transfor- ma-Ias. Ela torna-se for~a produtiva, como a ciencia. 0 espa~o e a poiftica do espa~o "exprimem" as re!a~oes sociais, mas reagem sobre elas. Bern entendido, se ha uma realidade urbana que se afirma e se confirma como dominante, isso so se da atraves da problemdtica urbana. Que fazer? Como construir cidades ou "alguma coisa" que suceda 0 que outrora foi a Cidade?Como pensar 0 fenomeno urbano? Como formular, clas- sificar, hierarquizar, para resolve-las, as inumeraveis questoes que e!e coloca e que dificilmente passam, nao sem multiplas resistencias, ao primeiro plano? Quais os progressos deci- sivos a serem realizados na teoria e na a~ao.pnitica para que a consciencia alcance 0 nfve! do real que a ultrapassa e do possive! que Ihe escapa? Assim se baliza 0 eixo que descreve 0 processo: Cidade Cidade politica ~ comercial Cidade industrial // / ~ Z~na i cnllca inflexao do agrario para 0 urbano implosilo-explosilo (concentra~ao urbana, exodo rural, extensao do tecido urbano, subordina~ao completa do agrario ao urbano) o que se passa durante a lase critica? Esta obra tenta res- ponder a esta interroga~ao, que situa a problem:itica urbana no processo geral. As hipoteses teoricas que permitem tra~ar urn eixo, apresentar urn tempo orientado, transpor a zona crftica pdo pensamento, indo alem dela, permitem apreender o que se passa? Talvez.]a podemos formular algumas supo- si~oes. Da-se - salvo prova em contrario - uma segunda inflexao, uma segunda inversao de sentido e de situa~ao. A industrializas;ao, potencia dominante e coativa, converte-se em realidade dominada no curso de uma crise profunda, as custas de uma enorme confusao, na qual 0 passado e 0 possfve!, 0 melhor e 0 pior se misturam. Essa hip6tese te6rica concernente ao possivel e a sua rela~ao com 0 atual (0 "real") nao poderia levar a esquecer que a entrada na sociedade urbana e as modalidades da urbaniza~ao dependem das caracteristicas da sociedade considerada no curso da industrializa~ao (neocapitalista ou socialista, em pleno crescimento econ6mico ou ja altamente tecnica). As diferentes formas de entrada na sociedade urbana as implica~oes e conseqiiencias dessas diferen~as iniciais: fazem parte da problematica concernente ao fenomeno urbano ou "0 urbano". Esses termos sao preferiveis a palavra "cidade", que parece designar urn objeto definido e definitivo, objeto dado para a ciencia e objetivo imediato para a a~ao, enquanto a abordagem te6rica reclama inicialmente .uma critica desse "objeto" e exige a no~ao mais complexa de urn objeto virtual ou possivel. Noutros termos, nao ha, nessa perspectiva, uma ciencia da cidade (sociologia urbana, economia urbana etc.) mas urn conhecimento em forma~ao doprocesso global, assim como de seu fim (objetivo e sentido). o urbano (abrevia~ao de "sociedade urbana") define-se portanto nao como realidade acabada, situada, em rela~aoa realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao con- trario, como horizonte, como virtualidade iluminadora. 0 urbano e 0 possivel, definido por uma dire~ao, no fim do per- curso que vai em dire~ao a ele. Para atingi~lo, isto e, para realiza-Io, e preciso em principio contornar ou romper os obs- taculos que atualmente 0 tornam impossivel. 0 conhecimento te6rico pode deixar esse objeto virtual, objetivo da a~ao, no abstrato? Nao. De agora em diante, 0 urbano e abstrato unica- mente sob 0 titulo de abstrafiio cientifica, isto e, legitima. 0 conhecimento te6rico pode e deve mostrar 0 terreno e a base sobre os quais ele se funda: uma pratica social em marcha, a pratica urbana em via de constitui~ao, apesar dos obstaculos que a ela se opoem. Que atualmente esta pratica esteja velada e dissociada, que hoje existam apenas fragmentos da realidade e da ciencia futuras, esse e urn aspecto da fase critica. Que nesta orienta~ao exista uma saida, que existam solu~oes para a problematica atual, e 0 que e preciso mostrar. Em suma, 0 objeto virtual nao e outra coisa que a sociedade planetaria e a "cidade mundial", alem de uma crise mundial e planetaria da realidade e do pensamento, alem das velhas fronteiras tra~adas desde 0 predominio da agricultura, mantidas no curso do crescimento das trocas e da produ~ao industrial. Todavia, a problematica urbana nao pode absorver todos os problemas. A agricultura e a industria conservam os seus problemas pr6- prios, mesmo se a realidade urbana os modifica. Ademais, a problematica urbana nao permite ao pensamento lan~ar-se na explora~ao do possivel sem precau~ao. Cabe ao analista descrever e discernir tipos de urbaniza~ao e dizer no que se tornaram as formas, as funr;oes, as estruturas urbanas transfor- madas pela explosao da cidade antiga e pela urbanizar;ao gene- ralizada. Ate 0 presente, a fase cririca comporta-se como uma "caixa preta". Sabe-se 0 que nela entra; as vezes percebe-se o que dela sai. Nao se sabe bem 0 que nela se passa. Isso condena os procedimentos habituais da prospectiva ou da proje~ao, que extrapolam a partir do atual, ou seja, a partir de uma constata~ao. Proje~ao e prospectiva tern uma base determinada apenas numa ciencia parcelar: na demografia, por exemplo, ou entao na economia politica. Ora, 0 que esta em questao, "objetivamente", e uma totalidade. Para mostrar a profundidade da crise, a incerteza e a per- plexidade que acompanham a "fase critica", pode-se efetuar uma confronta~ao. Exercicio de estilo?Sim,mas urn pouco mais que isso. Eis alguns argumentos a favor e contra a rua, a favor e contra 0 monumento. Deixemos para depois as argumentar;oes: a favor e contra a natureza, a favor e contra a cidade, a favor e contra 0 urbanismo, a favor e contra 0 centro urbano ... A favor da rua. Nao se trata simplesmente de urn lugar de passagem e circula~ao. A invasao dos autom6veis e a pressao dessa industria, isto e, do lobby do autom6vel, fazem dele urn objeto-piloto, do estacionamento uma obsessao, da circula~ao urn objetivo prioritario, destruidores de toda vida social e urbana. Aproxima-se 0 dia em que sera preciso limitar os direitos e poderes do autom6vel, nao sem dificuldades e des- trui~oes. A rua? E 0 lugar (topia) do encontro, sem 0 qual nao existem outros encontros possiveis nos lugares determinados (cafes, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados animam a rua e sao favorecidos por sua animar;ao, ou entao nao existem. Na rua, teatro espontaneo, torno-me espetaculo e espectador, as vezes ator. Nela efetua-se 0 movimento, a mistura, sem os quais nao ha vida urbana, mas separar;ao, segrega~ao estipulada e imobilizada. Quando se suprimiu a rua (desde Le Corbusier, nos "novos conjuntos"), viu-se as conseqilencias: a extin~ao da vida, a redu~ao da "cidade" a dormit6rio, a aberrante funcionaliza~ao da existencia. A rua contem as fun~6es negligenciadas par Le Corbusier: a fun~ao informativa, a fun~ao simb6lica, a fun~ao ludica. Nela joga-se, nela aprende-se. A rua e a desordem? Certamente. Todos os elementos da vida urbana, noutra parte congelados numa ordem im6vel e redundante, liberam-se e afluem as ruas e por elas em dire~ao aos centros; af se encontram, arrancados de seus lugares fixos. Essa desordem vive. Informa. Surpreende. Alem disso, essa desordem constr6i uma ordem superior. Os trabalhos de Jane Jacobs mostraram que nos Estados Unidos a rua (movimentada, freqilentada) fornece a unica seguran~a possfvel contra a violencia criminal (roubo, estupro, agressao). Onde quer que a rua desapare~a, a criminalidade aumenta, se organiza. Na rua, e por esse espa~o, urn grupo (a pr6pria cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza urn tempo-espa~o apropriado. Uma tal apropria~ao mostra que o uso e 0 valor de uso podem dominar a troca e 0 valor de troca. Quanta ao acontecimento revolucionario, ele geralmente ocorre na rua. Isso nao mostra tambem que sua desordem engendra uma outra ordem? 0 espa~o urbano da rua nao e 0 lugar da palavra, 0 lugar da troca pelas palavras e signos, assim como pelas coisas?Nao e 0 lugar privilegiado no qual se escreve a palavra? Onde ela pode tornar-se "selvagem" e inscre- ver~senos muros, escapando das prescri~6es e institui~6es? Contra a rua. Lugar de encontro? Talvez, mas quais encon- tros? Superficiais. Na rua, caminha-se lado a lado, nao se encontra. E 0 "se" que prevalece. A rua nao permite a consti- tui~ao de urn grupo, de urn "sujeito", mas se povoa de urn amontoado de seres em busca. De que? 0 mundo da merca- doria desenvolve-se na rua. A mercadoria que nao pode confinar-se nos lugares especializados, os mercados (pra~as,...), invadiu a cidade inteira. Na Antigilidade as ruas eram apenas anexos dos lugares privilegiados: 0 templo, a estidio, a agora, o jardim. Mais tarde, na Idade Media, 0 artesanato ocupava as ruas. 0 artesao era, ao mesmo tempo, produtor e vendedor. Em seguida, as mercadores, que eram exclusivamente mercadores, tornaram-se as mestres. A rua? Uma vitrina, urn desfile entre as lojas. A mercadoria, tornada espetaculo (provocante, atraente), transforma as pessoas em espetaculo umas para as outras. Nela, mais que noutros lugares, a troca e 0 valor de troca prevalecem sabre 0 usa, ate reduzi-Io a urn residua. De tal modo que a crftica da rua deve ir mais longe: a rua torna-se 0 lugar privi- legiado de uma repressao, possibilitada pelo carater "real" das rela~6es que ai se constituem, ou seja, ao mesmo tempo debil e alienado-alienante. A passagem na rua, espa~o de comunica~ao, e a uma s6 vez obrigat6ria e reprimida. Em caso de amea~a, a primeira imposi~ao do poder e a interdi~ao a permanencia e a reuniao na rua. Se a rua pode ter esse sentido, a encontro, ela 0 perdeu, e nao pode senao perde-Io, con- vertendo-se numa redu~ao indispensavel a passagem solitaria, cindindo-se em lugar de passagem de pedestres (encurralados) e de autom6veis (privilegiados). A rua converteu-se em rede organizada pelo/para 0 consumo. A velocidade da circula~ao de pedestres, ainda tolerada, e af determinada e demarcada pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os objetos expostos. 0 tempo torna-se 0 "tempo-mercadoria" (tempo de compra e venda, tempo comprado e vendido). A rua regula a tempo alem do tempo de trabalho; ela a submete ao mesmo sistema, a do rendimento e do lucro. Ela nao e mais que a transi~ao obrigat6ria entre a trabalho for~ado, os lazeres programados e a habita~ao como lugar de consumo. A organiza~ao neocapitalista do consumo mostra sua for~a na rua, que nao e s6 a do poder (politico), nem a da repressao (explfcita au velada). A rua, serie de vitrinas, exposi~ao de objetos a venda, mostra como a 16gicada mercadoria e acompa- nhada de uma contempla~ao (passiva) que adquire a aspecto e a importancia de uma estetica e de uma etica. A acumula~ao dos objetos acompanha a da popula~ao e sucede a do capital; ela se converte numa ideologia dissimulada sob as marcas, do legivel e do visivel, que desde entao parece ser evidente. E assim que se pode falar de uma coloniza~aodo espa~o urbano, que se efetua na rua pela imagem, pela publicidade, pelo espetaculo dos objetos: pelo "sistema dos objetos" tornados simbolos e espetaculo. A uniformiza~ao do cenario, visfvel na moderniza~ao das ruas antigas, reserva aos objetos (merca- dorias) as efeitos de cores e formas que os tornam atraentes. Trata-se de uma aparencia caricata de apropria~ao e de reapro- pria~ao do espa~o que a poder autoriza quando permite a realiza~ao de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais fol- cl6ricos. Quanto a verdadeira apropria~ao, a da "manifesta~ao" efetiva, e combatida pelas for~as repressivas, que comandam 0 silencio e a esquecimento. Contra 0 monumento. 0 monumento e essencialmente repressivo. Ele e a sede de uma institui~ao (a Igreja, 0 Estado, a Universidade). Se ele organiza em torno de si urn espa~o, e para coloniza-Io e oprimi-Io. Os grandes monumentos foram erguidos a gl6ria dos conquistadores, dos poderosos. Mais raramente a gl6ria dos mortos e da beleza morta (0 Tadj Mahall...). Construfram-se palacios e tumulos. A infelicidade da arquitetura e que ela quis erguer monumentos, ao passo que 0 "habitar" foi ora concebido a imagem dos monumentos, ora negligenciado. A extensao do espa~o monumental ao habitar e sempre uma catastrofe, alias ocuIta aos olhos dos que a suportam. Com efeito, 0 esplendor monumental e formal. Ese 0 monumento sempre esteve repleto de sfmbolos, ele os oferece a consciencia social e a contemp'la~ao (passiva) no momenta em que esses sfmbolos, ja em desuso, perdem seu sentido. Tal e 0 caso dos sfmbolos da revolu~ao no Arco do Triunfo napoleonico. A javor do monumento. E 0 unico lugar de vida coletiva (social) que se pode conceber e imaginar. Se ele controla, e para reunir. Beleza e monumentalidade caminham juntas. Os grandes monumentos foram trans-funcionais (as catedrais), e, mesmo trans-cuIturais (os tumulos). Daf seu poder etico e estetico. Os monumentos projetam uma concep~ao de mundo no terreno, enquanto a cidade projetava e ainda nele projeta a vida social (a globalidade). No pr6prio seio, as vezes no pr6prio cora~ao de urn espa~o no qual se reconhecem e se banalizam os tra~os da sociedade, os monumentos inscrevem uma transcendencia, urn a/bures. Eles sempre foram u-t6picos. Eles prodamavam, em altura ou em profundidade, numa outra dimensao que ados percursos urbanos, seja 0 dever, seja 0 poder, seja 0 saber, a alegria, a esperan~a. o CAM~O CeGO o metodo utilizado nesta exposl~ao nao e hist6rico na acep~ao habitual desse termo. Apenas aparentemente tomamos o objeto "cidade" para descrever e analisar sua genese, suas modificas;:oes, suas transformas;:oes. Em verdade, colocamos primeiramente 0 objeto virtual, 0 que nos permitiu tras;:ar0 eixo espas;:o-temporal. 0 futuro iluminou 0 passado, 0 virtual permitiu examinar e situar 0 realizado. E a cidade industrial, ou melhor, 0 estilha~amento da cidade pre-industrial e pre- capitalista sob 0 impacto da industria e do capitalismo, que permite compreender suas condis;:oes, seus antecedentes, a saber, a cidade comercialj esta, por sua vez, permite apreender a cidade polftica a qual se superpos. Como Marx pensava, 0 adulto compreende, como sujeito (consciencia), e permite conhecer, como objeto real, seu ponto de partida, seu esbos;:o, talvez mais rico e complexo que de pr6prio, a saber: a crian~a. Embora complexa e opaca, e a sociedade burguesa que permite compreender as sociedades mais transparentes, a sociedade antiga e a sociedade medieval. Nao 0 contrario. Urn duplo movimento impoe-se ao conhecimento, desde que existem tempo e historicidade: regressivo (do virtual ao atual, do atual ao passado) eprogressivo (do superado e do jinito ao movimento que declara esse jim, que anuncia e faz nascer algo novo). o tempo hist6rico pode ser recortado (periodizado) segundo os modos de prodUl;:iio:asiatico, escravista, feudal, capitalista, socialista. Esse recorte tern certas vantagens e alguns incon- venientes. Quando e levado longe demais, quando se insiste nos cortes, nas caracterfsticas internas de cada modo de pro- dus;:ao,na coesao de cada urn como totalidade, a passagem de urn a outro torna-se ininteligfvel, no exato momenta em que se destaca e se acentua a inteligibilidade de cada urn tornado separadamente. Nao ha duvida que cada modo de produ~ao "produziu" (nao como uma coisa qualquer, mas como