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PROJETO DE ARQUITETURA E URBANISMO III Anna Carolina Manfroi Galinatti Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer as características das diferentes zonas urbanas. � Justificar a escolha de uma quadra para a implantação de uma de- terminada edificação. � Avaliar o impacto da escolha de um terreno para o entorno. Introdução Uma cidade é composta por inúmeros elementos, animados e inanimados. As pessoas, as ruas, os espaços abertos e os espaços fechados compõem uma peça cuja harmonia é essencial para o funcionamento do cotidiano. Atualmente há uma tendência, fortemente defendida pelos urbanistas, de miscigenação de uso dos espaços. Apesar de estarem divididos em zonas — demarcações virtuais criadas pelos governos — a cidade e suas porções menores, os bairros, possuem uma heterogeneidade de usos. Dentro de bairros considerados residenciais, encontram-se regiões onde o comércio aparece de maneira mais pronunciada. Da mesma forma, em bairros centrais, onde o fluxo de pessoas normalmente é maior, também é possível identificar zonas residenciais. Os projetos arquitetônicos de edificações, quaisquer sejam seu ta- manho e uso, devem ser pautados pelo local de inserção. A escolha do terreno e o estudo do impacto do projeto sobre ele e sobre o entorno imediato são, talvez, o passo mais importante na implementação de um projeto. A relação projeto–terreno deve ser de colaboração. Neste capítulo você estudará diferentes zonas da cidade, analisando as características plásticas e funcionais de cada uma delas. Você aprenderá a analisar o terreno e seu entorno imediato, antes e depois da implantação de um projeto, sempre buscando melhorar a qualidade do espaço urbano. Zonas urbanas: identificação e análise O conceito de uma cidade zoneada, as zonas urbanas, é uma herança do movimento moderno. Usando-se das mesmas diretrizes racionalistas, o urba- nismo moderno, referenciado na Carta de Atenas (1933), descreve uma cidade dividida de acordo com suas funções. Este conceito é facilmente identificado no Plano Piloto de Brasília (BRAGA, 2010), onde os setores são divididos em monumental, residencial, gregário e bucólico. É importante destacar que tal conceito permanece impregnado nos con- ceitos urbanísticos até hoje, mesmo sofrendo diversas críticas, como as de Jane Jacobs (2000), que defende não a unificação de usos dentro de uma mesma região, diferenciando-a através de seu uso, e sim regiões autossus- tentáveis, com um ecossistema que englobe os vários usos da sociedade de maneira simultânea. O Congresso Internacional da Arquitetura Moderna (CIAM) (na sigla em francês) foi um congresso realizado na Europa em 1928 e 1959 para discutir o movimento moderno na arquitetura, no urbanismo e no design. Foi responsável pela difusão e popularização dos ideais modernos capitaneados por arquitetos como Le Corbusier, Sigfried Giedion e Walter Gropius. Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno2 O zoneamento do território urbano é um instrumento de fragmentação virtual da cidade. Através dele, são criadas áreas cujas normas e leis de uso e ocupação do solo são diferentes entre si. Na grande maioria das cidades, essa divisão faz parte de um documento mais amplo, o Plano Diretor, que incorpora, além do zoneamento, outras estratégias de condução do desenvol- vimento urbano. Os principais objetivos do zoneamento urbano são: � reduzir conflitos de uso e atividades, impedindo a coexistência de usos conflitantes; � determinar atividades cabíveis à cada região; � controlar o crescimento urbano: deve ser compatível com a infraestrutura instalada e a capacidade de suporte do meio ambiente; � proteger áreas de preservação ambiental e áreas que possam oferecer riscos à ocupação; � controlar o tráfego, alocando equipamentos com maior potencial de adensamento em determinadas regiões da cidade. O uso do solo e a forma (tamanho, altura, recuos, aproveitamento) são os dois principais elementos controlados pelo zoneamento, que normalmente se apresenta na forma de um mapa ilustrado com cores e siglas. Confira um exemplo de mapa de zonas na Figura 1. Leitores do material impresso, para visualizar as figuras deste capítulo em cores, acessem o link ou o código QR a seguir. https://qrgo.page.link/fgPnZ 3Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno Figura 1. Exemplo de mapa de zonas: trecho do mapa de zoneamento da cidade de São Paulo. Fonte: São Paulo (2016, documento on-line). É importante ressaltar que o mapa de zonas é uma simplificação da rea- lidade. As zonas são consideradas homogêneas, apesar de, na prática, não o serem. Essa simplificação faz-se necessária para que o tecido urbano não fique demasiadamente recortado e seja possível trabalhar. As normas incidentes sobre cada região representam um diálogo sobre o que existe e o que pode vir a existir. Usos e atividades principais As zonas são identificadas por siglas. Cada zona pode incorporar uma ou mais características de uso. Por exemplo: uma mesma zona pode abrigar uso residencial e possuir comércio de pequeno porte, sem que seja permitida a instalação de equipamentos industriais. De maneira geral, os principais usos e atividades categorizados são: � residencial: residências unifamiliares, casas, prédios, condomínios; � comercial: lojas, supermercados, livrarias; � industrial: fábricas de pequeno e grande porte; � institucional: instituições públicas; � cultural: cinemas, museus, teatros, casas de shows; � parque natural: parques, praças; � educacional: escolas e universidades. Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno4 No que diz respeito à inserção de projetos de arquitetura e equipamentos urbanos dentro de uma cidade, as atividades existentes em uma zona tornam-se parâmetros de escolha de lote e de decisões de projeto. Cada uso e atividade traz consigo uma série de características, inerentes ao seu funcionamento, que influenciam no comportamento do entorno. Além disso, o zoneamento de atividades carrega consigo questões econômicas relacionadas ao mercado imobiliário. Nas cidades dinâmicas, o preço e a acessibilidade de cada terreno são me- canismos naturais de zoneamento de atividades. Altos valores imobiliários e ruas estreitas, por exemplo, impedem a implementação de atividades que exigem uso intensivo de área e acessibilidade a redes logísticas, como grandes centros de distribuição e atividades industriais intensivas (LING, 2017, p. 30). Assim, a setorização das cidades recebe influência de diferentes esferas da sociedade, e a exerce da mesma forma. Embora importantes, as questões políticas e econômicas não serão o foco deste estudo, que será direcionado ao relacionamento da quadra e do terreno com o contexto urbano. As atividades exercidas em uma edificação geram interferências em seu entorno imediato. A poluição, sonora e do ar, e as alterações de fluxo, de pedestres e de veículos, são consequências comuns a muitas atividades. Casas noturnas e bares podem causar distúrbios sonoros; teatros e museus, por serem equipamentos de grande porte e acumuladores de grande público, podem causar intensos congestionamentos; casas de show, por sua vez, podem causar tanto distúrbios sonoros quanto aumento do tráfego. É por esse motivo que a análise do entorno e das zonas da cidade exerce papel fundamental quando da implantação de uma nova edificação. Em áreas predominantemente residenciais, o fluxo de veículos normal- mente é menor e feito por vias locais, de baixa velocidade. O deslocamento e as atividades do cotidiano dos indivíduos são favorecidos pelas calçadas mais generosas, mais arborizadas e mais bem equipadas com mobiliário urbano. Nessas zonas, comércio e serviços costumam aparecer em formas compactas, como mercados de bairro, postos de saúde e pequenas escolas. Shopping centers, grandes redes de supermercadose hospitais se apropriam de zonas da cidade cujo acesso, através de transporte público ou privado, é facilitado. A proximidade com grandes avenidas e vias de fluxo intenso é observada na grande maioria dos casos. Nas áreas com grandes equipamentos e zonas industriais, a interface das edificações com a via pública não é priori- 5Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno dade; as ruas são mais largas, para passagem de veículos grandes e pesados, e as calçadas, mais estreitas. Além dos aspectos funcionais que podem ser observados pelo impacto das atividades na cidade, cada uso carrega consigo uma contribuição mais subjetiva ao entorno: o usuário. Uma região da cidade que concentre diversas casas noturnas pode ser encontrada vazia durante o dia, enquanto que à noite poder estar lotada de pessoas a caminhar pelas calçadas e conversar em frente aos estabelecimentos. Uma rua onde o comércio predomina, por sua vez, tem seu pico de público em horário comercial, ficando vazia à noite. O fator usuário é importante não só para a animação e movimentação das regiões, mas também para a segurança. O conceito de zoneamento mais restrito, defendido pelo urbanismo, carrega consequências pesadas para o funcionamento das cidades. Levada ao extremo, a setorização de cidades ou bairros tende a criar vazios de baixa densidade demográfica, sem a necessária provisão de comércios e serviços para atender a esses bairros, que dependem de bairros adjacentes. Assim, apesar de existir forte demanda por esses serviços, as legislações municipais não permitem a instalação de atividades comerciais. Os bairros, então, tornam-se monofuncionais, com ruas vazias, inseguras e que incentivam o uso desenfreado do automóvel para acesso às necessidades mais básicas, como uma ida à padaria ou à farmácia (LING, 2017, p. 29). Tal visão sobre a segurança é compartilhada pela escritora e jornalista Jane Jacobs, autora de um dos grandes livros de urbanismo mundial, Morte e Vida de Grandes Cidades (2000), as pessoas são os olhos da rua. Jacobs (2000) afirma ser de suma importância que as ruas e calçadas tenham indivíduos transitando ininterruptamente ao longo do dia, em diferentes horários, de forma a aumentar o número de olhos atentos e induzir os usuários dos edifícios a observar o movimento da rua. Forma e ocupação edílica As limitações de forma e ocupação impostas pelo Plano Diretor para cada zona da cidade acabam definindo a paisagem, as vistas e a volumetria de cada região. De certa forma associada ao uso e atividade, a ocupação do lote confere atributos plásticos ao entorno. Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno6 Dentre os principais critérios de construção que variam entre as zonas, podemos destacar os listados a seguir. � Índice de aproveitamento de cada lote, que representa a área máxima possível de ser construída. Ele é obtido multiplicando-se um coeficiente (que também muda conforme a zona) pela área do terreno. � Recuos laterais, frontal e de fundos: dizem respeito ao afastamento mínimo que as edificações devem ter das divisas do terreno com os outros lotes e com a rua. � Taxa de ocupação, que representa a proporção entre a projeção da construção e o tamanho do lote, ou seja, a porcentagem do terreno sobre a qual há edificação. � Altura máxima da construção ou número máximo de pavimentos. A altura máxima é medida do ponto mais alto da edificação até a cota do nível de referência preestabelecida. � Taxa de permeabilidade, que diz respeito à área do terreno que deve ser permeável à água, livre de qualquer edificação. O papel do arquiteto, ao estudar as condições impostas para o uso de um lote, vai muito além de atender às exigências das leis e normas. É fundamental que haja uma compreensão do entorno como um todo, observando o padrão de comportamento das edificações vizinhas e projetando uma edificação que conviva em harmonia com as demais. A variedade de edificações dentro de uma quadra confere a ela determi- nadas características estéticas e funcionais. Uma quadra com maior hete- rogeneidade de usos possui aspecto mais irregular. Tipologias comerciais, de lazer e serviço normalmente fazem interface com ruas mais estreitas e calçadas mais largas, favorecendo o pedestre. Quadras destinadas a usos industriais possuem maior homogeneidade visual e, normalmente, fazem divisa com ruas menos agradáveis, cuja área de circulação de veículos é muito maior que a de pedestres. Áreas institucionais, por sua vez, podem apresentar edificações formalmente distintas, de grande porte, e grandes áreas para aglomeração de pessoas. 7Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno As definições de Plano Diretor não são consenso absoluto na literatura. No entanto, um dos conceitos mais difundidos atribui a ele o papel de orientador das ações de intervenção sobre a cidade. Essas ações são concretas e aplicáveis a indivíduos, ao setor público, a empresas ou a outro tipo de agente qualquer. Plano diretor é um documento que sintetiza e torna explícitos os obje- tivos consensuados para o Município e estabelece princípios, diretrizes e normas a serem utilizadas como base para que as decisões dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento urbano convirjam, tanto quanto possível, na direção desses objetivos (SABOYA, 2007, p. 39). Conforme o Estatuto da Cidade, Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001 (BRASIL, 2001), cada cidade com mais de 20 mil habitantes deve ter seu Plano Diretor. Nele, são listadas as regras e normas julgadas pertinentes ao desenvolvimento urbano. São elas que direcionam as iniciativas de intervenção urbana, de modo que as ações tenham objetivos em comum. Quadra: como fazer a melhor escolha? Uma vez esgotada a análise do entorno dos pontos de vista físico, de sensações e de legislação, chega o momento de diminuir o grão do estudo e concentrar esforços na escolha de uma quadra para intervenção. Para tal escolha, mais importante que os aspectos legislativos, uma vez que esses serão os mesmos para todas as quadras dentro de uma zona, são os aspectos físicos do local. A facilidade de acesso, a proximidade com outros equipamentos que possam dar suporte à nova edificação, a topografia, a vegetação local e a morfologia da quadra são pontos a serem observados. Deve-se observar o espaço de maneira global, verificando se há suporte ao pedestre e a todas as formas não motorizadas de transporte. Ruas e calçadas não devem ser somente vias de tráfego, mas também espaços de estar (LING, 2017). O arquiteto precisa se colocar no papel de futuro usuário da edificação e se fazer as perguntas elencadas a seguir. � Como é o acesso de veículos a essa quadra? � Como funciona o transporte público na região? É possível acessá-la facilmente? � Se há necessidade de estacionamento, as ruas adjacentes permitem? Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno8 � Qual a altura das edificações vizinhas? Se a nova construção utilizar o máximo dos índices construtivos permitidos por lei, ela ainda estará em harmonia visual com os vizinhos? � A quadra escolhida, dentro da zona, é a de melhor conexão com as demais regiões? � O que acontece nas quadras imediatamente ao lado? Qual o caráter do entorno? � Qual a dimensão da quadra? Qual a relação dela com o espaço aberto? � Quem vai frequentar meu projeto? Quais facilidades o usuário precisa ter? Dentro de uma mesma zona, as subdivisões (bairros e quadras) podem ter características muito diferentes entre si. Nas zonas consideradas de uso misto não há predominância de um único tipo de ocupação. São regiões que comportam uma pluralidade de atividades, convivendo, na maior parte do tempo, harmoniosamente. Nelas, é possível encontrar ruas calmas com moradias, edifícios com mais de cinco andares de moradia, edificações de uso misto (com térreo comercial e andares residenciais), grandes edifícios de escritórios, hospitais, núcleos de restaurantes, núcleosde casas noturnas e mais uma infinidade de atividades. Mesmo com toda variedade edílica que pode ser encontrada nessas regiões, as quadras, que são grãos menores das zonas, podem ter bastante variação. Imagine que em uma zona de uso misto encontra-se um grande hospital da rede pública. Ele ocupa uma porção de terreno significativa, uma quadra inteira. Na frente dele, há edificações de uso misto, com comércio no térreo, que servem de apoio ao público do hospital. Em seu entorno imediato, observam-se vias de fluxo intenso e grande concentração de pessoas. A 5 km de distância dessa mesma quadra, é possível encontrar outra, de mesmas dimensões, mas que comporta diversas moradias, casas e prédios de até quatro andares. Enquanto a primeira era inteiramente ocupada por um único tipo de edificação, cujo caráter influencia diretamente no entorno, a última comporta um grande número de lotes e caracteriza-se como um local de menor movimento, de vias mais lentas e de aspectos formais diferentes, mais próximos à escala humana. Embora contidas em uma mesma zona, onde incidem as mesmas normas e regras de uso, ocupação e forma, as quadras e seus entornos imediatos têm personalidades muito diferentes entre si. 9Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno Considerando, então, que cada quadra possui suas peculiaridades, são fatores a serem analisados, quando da escolha de um local, os listados a seguir. � Localização da quadra: se a posição, em relação à zona, for mais cen- tralizada, seu entorno imediato (conformado pelas quadras adjacentes) será constituído por edificações que obedecem às mesmas normas e regras. Já uma quadra localizada nos limites de uma zona pode fazer fronteira com um entorno completamente diferente, se a zona vizinha tiver outro caráter. Zonas de fronteira entre usos únicos e de grande proporção podem ser complicadas. Segundo Jacobs (2000), o encontro de usos muito distintos origina fronteiras, nas quais criam-se lugares potencialmente decadentes. � Atividades do entorno imediato: uma quadra cujo entorno é composto, quase exclusivamente, de residências, possivelmente manterá seu uso também como residencial. Isso significa que essa quadra herdará as peculiaridades de funcionamento de suas vizinhas. Já uma quadra cujo entorno é predominantemente composto de grandes edifícios comerciais, herdará desse suas características de funcionamento, como fluxo intenso de transeuntes, por exemplo. Edificações construídas em uma quadra que faça fronteira com um parque da cidade certamente terão como vista uma bela paisagem natural. Como contrapartida, a movimentação de pessoas na região, em determinados dias e horários, pode ser intensa. � Acessos: algumas quadras são conformadas por vias pequenas, de velocidade baixa, em ambas testadas. Outras, abrem uma ou mais de suas frentes a grandes avenidas, de velocidade alta. Transportes públicos podem atender mais a algumas quadras do que a outras, dependendo das suas posições dentro das rotas preestabelecidas. � Características físicas e naturais do entorno: é importante observar a estrutura do sistema viário local, como a largura e o sentido das vias e o tamanho, tipo e condições da pavimentação das calçadas. Também, a arborização das ruas e suficiência de mobiliário urbano, bancos e postes de iluminação, são dados importantes a se considerar. � Morfologia da quadra: o tamanho, o tipo e o formato das quadras talvez sejam os elementos com maior variação dentre as cidades que conhecemos. Algumas cidades possuem uma malha urbana comple- tamente regular, com quadras cujas dimensões pouco variam entre si. Em outras, o sistema de divisão segue outra ordem de distribuição, como um sistema radial, ou, até mesmo, não seguem nenhuma lógica de divisão, tornando os espaços, vias e quarteirões, completamente Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno10 irregulares. Quadras cujos lados possuem dimensões semelhantes, assemelhando-se a quadrados, podem ter uma configuração de lotes em sua periferia e um espaço interno, que pode configurar pátios, como é o caso da cidade de Barcelona. � Quadras muito alongadas, em formato semelhante a um retângulo com- prido, podem ser interessantes do ponto de vista do loteamento, porém podem dificultar a passagem entre vias. No clássico Morte e Vida das Grandes Cidades, Jane Jacobs (2000) coloca a necessidade de quadras curtas como uma das condições para a diversidade urbana. Segundo a autora, quadras muito longas fazem com que os moradores se isolem e acabem por não conhecer seus vizinhos. As quadras mais curtas, por outro lado, permitem um número maior de caminhos possíveis para chegar de um ponto a outro. Figura 2. Superquadras de Barcelona: o formato configura pátios internos. Fonte: marchello74/Shutterstock.com. Para o arquiteto e teórico italiano Aldo Rossi, no clássico "A Arquitetura da Cidade" (1995), arquitetura e local formam um par indissociável apesar das diferentes interpretações ao longo da história. No mundo clássico, a escolha de um lugar — tanto para uma construção como para uma cidade — estava 11Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno associada à divindade que o governava, seu “genius loci”, logo tinha caráter sagrado. Já na Idade Contemporânea, o teórico francês Viollet-le-Duc se esforçava para entender a arquitetura como uma série de operações lógicas baseadas em poucos princípios. Ainda assim, reconhecia a dificuldade da transposição da obra de arquitetura de um local para outro. Rossi (1995) afirma que faz parte da ideia geral da arquitetura justamente o lugar em que está situada, como espaço singular e concreto. Arquitetura forma e conforma o seu local, constituindo um todo inseparável. Dessa forma, a escolha do lugar para arquitetura não deve ser obra do acaso, tampouco deve ser encarada com leviandade. Definição do terreno: impacto no entorno O estudo do local de implantação de um projeto acontece em diferentes etapas, indo da macro à microescala. O que inicia pelo estudo das zonas da cidade e passa pela análise das quadras de uma região, culmina na determinação de um lote específico dentro de uma quadra. Nessa etapa, os aspectos legislativos do terreno já devem ter sido estudados. Índice de aproveitamento, taxa de ocupação, recuos, entre outros critérios, já devem ter sido considerados. No entanto, mesmo estando localizados em um mesmo quarteirão, dois terrenos podem ter características físicas diferentes, que devem ser analisadas. Além disso, como acontece com elementos maiores, cada lote tem seus vizinhos, terrenos imediatamente aos lados e ao fundo, que podem ou não já estar edificados. Um terreno vazio pode receber interfe- rências completamente diferentes dependendo da construção que está ao seu lado. Ter como vizinho um prédio de cinco andares com térreo comercial é completamente diferente de fazer divisa com uma residência unifamiliar de dois andares, tanto do ponto de vista do uso (o fluxo de pessoas é muito maior em frente ao prédio) quanto do ponto de vista físico (o prédio projeta uma sombra muito maior do que a residência de dois pavimentos). Da mesma forma como as construções adjacentes podem influenciar o projeto de um arquiteto, este, por sua vez, também tem impacto sobre seu entorno. A instalação de um determinado tipo de equipamento pode trazer mudanças radicais para as vias locais e mudar completamente o fluxo de pessoas no local. Mesmo que seja permitido, pelas normas vigentes, a implan- tação de um determinado tipo de uso no terreno, deve-se avaliar com cautela o impacto dessa alteração na paisagem urbana e no cotidiano dos moradores e usuários. Uma edificação não existe por si só. Algumas das melhores lições Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno12 de arquitetura, segundo Montaner (2009), encontram-se nos espaços criados entre os edifícios. […] no desenvolvimento dos conceitos espaciais em arquitetura e urbanismofalamos tão frequentemente em continuidade no espaço. […] as relações entre as coisas e seu interior são mais importantes do que as próprias coisas (BAKEMA, 1951 apud MONTANER, 2009, p. 31). Aspectos físicos de um terreno A análise do terreno e seu entorno é o processo das forças contextuais que influenciam na implantação de uma edificação, orientando seus espaços, confi- gurando articulações e estabelecendo relações com a paisagem (CHING, 2017.) Entre os principais aspectos físicos que podem ser analisados em um lote, destacam-se os elencados a seguir. � Topografia: influencia diretamente no custo da construção e na com- plexidade do projeto. Podem ser: ■ planos: terrenos que mantém, da frente aos fundos, praticamente o mesmo nível da rua; ■ com aclive: lotes cuja parte posterior é mais alta em relação à parte anterior; ■ com declive: lotes cujo fundo é mais baixo em relação ao nível da rua. Para esse tipo de terreno pode ser necessário buscar soluções para a saída de esgoto e de águas pluviais. � Solo: o tipo de solo entre lotes de uma mesma quadra não costuma sofrer tanta variação. Dessa forma, esse aspecto não se torna relevante na escolha entre um lote A e um lote B que estejam no mesmo quarteirão. No entanto, o tipo de solo sempre deve ser levado em consideração dentro de um projeto. Um solo arenoso ou com estrutura fraca demanda um projeto de fundações mais caro e mais elaborado, um solo com muita umidade pode trazer uma série de problemas não só no momento da construção, como durante a vida útil da edificação, e um solo muito compactado pode ser de difícil escavação. � Orientação solar: é de suma importância a observação da posição que o terreno se encontra em relação à trajetória do sol. Nesse aspecto, a diferença entre um terreno A e um terreno B, dentro de uma mesma quadra, pode ser grande, pois um deles pode ter a sua frente voltada para uma direção mais interessante que o outro. 13Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno � Posição em relação à quadra: lotes de esquina são vantajosos em re- lação à iluminação natural e à ventilação; no entanto, a presença de duas frentes e, logo, dois recuos frontais obrigatórios, pode diminuir o aproveitamento do espaço. � Geometria do terreno: a relação entre largura e profundidade do terreno deve ser avaliada tendo-se em mãos os parâmetros legislativos do ter- reno. Se o lote for muito estreito e os recuos obrigatórios muito grandes, o perímetro da construção pode ficar muito limitado, dependendo do tipo de edificação que se deseja construir. Certos tipos de construções, como edifícios comercias, podem possuir uma volumetria mais estreita e alta; equipamentos educacionais, por sua vez, são beneficiados de uma área de pavimento mais ampla. Terrenos com muitos recortes exigirão um projeto mais setorizado e um tipo de uso que comporte tal divisão. � A largura dos lotes (sua testada) e sua profundidade condicionam os tipos edílicos que podem ser implantados e são condicionados por elas. O lote estreito corresponde a uma casa em fita ou a um edifício de pequena altura (lote gótico); e os lotes maiores permitem as vilas e pavilhões, as casas com pátio interno e os edifícios de apartamento (PANERAI; CASTEX; DEPAULE, 2013, p. 209). � Ainda sobre a dimensão dos lotes, observa-se que terrenos com grande testada, porém pouca profundida, demandam investimentos mais ex- pressivos em infraestrutura (mais canalizações para atender menos lotes em uma quadra), enquanto lotes estreitos são atendidos em maior número com menos canalização. Uma vez que há a definição de um lote de intervenção e que esse terreno já tenha sido estudado sob os aspectos físicos e legais, inicia-se o momento de estudo da pertinência de edificação ao local. Cada uso atribuído ao solo traz consigo uma série de alterações às suas interfaces. Se um projeto é de- masiadamente diferente das edificações que o cercam, tende-se a criar um caos visual. Essa desordem pode ser interessante em casos específicos, mas, no geral, costuma ser prejudicial para a harmonia da vizinhança. Em tecidos urbanos mais consolidados e em áreas que já são densamente povoadas, o diálogo com as construções próximas é uma abordagem projetual muito adequada. São boas práticas de projeto tentar trazer melhorias, objeti- vas e subjetivas, à vizinhança. Grandes construções vêm junto com grandes públicos, usos e demandas. Escolher um terreno para a implantação de um projeto indica que as edificações adjacentes também sofrerão impactos, bem como a interface delas com as ruas. A compreensão do entorno e de como o Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno14 projeto o impacta é fundamental para o desenvolvimento saudável da região e para que todos convivam em harmonia. A inserção de um artefato arquitetônico — edifício, conjunto de edifícios ou espaço aberto planejado — em um sítio qualquer nunca se dá sem conse- quências importantes. Se, por um lado, a arquitetura é sempre construída em um lugar, por outro lado, ela constrói esse lugar, isto é, modifica a situação existente em maior ou menor grau (MAHFUZ, 2003, documento on-line). Figura 3. Museu Guggenheim, em Bilbao, projeto de Frank Gehry. Por sua aparência única e contrastante, acabou transformando a região em ponto turístico, atraindo grande público. Fonte: Guggenheim Museum Bilbao (2018, documento on-line). BRAGA, M. O concurso de Brasília: sete projetos para uma capital. São Paulo: Cosac Naify, 2010. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001. Re- gulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, DF, 2001. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 29 abr. 2019. 15Análise do contexto urbano: estudo de quadra e entorno CARTA de Atenas. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA, 4., 1933. Anais […]. Atenas: CIAM, 1933. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201933.pdf. Acesso em: 29 abr. 2019. CHING, F. D. Técnicas de construção ilustradas. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2017. GUGGENHEIM Museum Bilbao. 2018. Disponível em: https://basquinginthesun. com/2018/04/01/guggenheim-museum-bilbao/. Acesso em: 29 abr. 2019. JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LING, A. Guia de gestão urbana. São Paulo: BEÎ, 2017. MAHFUZ, E. C. Reflexões sobre a construção da forma pertinente. In: LARA, F.; MAR- QUES, S. 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