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2 SHAKESPEARE: O REI RICARDO II Ser gémeo da grandeza e estar sujeito ao capricho do sopro dos estultos que só sabem sentir suas próprias dores. Quantas satisfações são proibidas aos reis para que os súditos se alegrem! [...] Que espécie és tu de deus, para sofreres muito mais do que os teus adoradores a condição humana!* Tais são, na peça de Shakespeare, as meditações do rei Henrique v sobre a dei dade e a humanidade de um rei.' O rei é "nascido gémeo" não apenas com grande za mas também com natureza humana e, portanto, "sujeito ao sopro dos estultos". Era o aspecto humanamente trágico da "geminação" real que Shakespeare retratava e não as capacidades legais que os advogados ingleses reuniram na fic- eílo dos Dois Corpos do Rei. Contudo, o jargão legal dos "dois Corpos" dificil mente pertencia apenas aos arcanos da guilda jurídica. O fato de que o rei "é uma ('orporação em si mesma que vive para sempre" era um lugar-comum encontra do em um simples dicionário de termos legais como o do dr. John Cowell, Inter- preter (1607);2 e, mesmo antes, o cerne do conceito de realeza, refletido nos Relatórios de Plowden, havia passado para os escritos de Joseph Kitchin (15 80)3 c de Richard Crompton (1594).4 Além disso, essas noções tornaram-se conheci das quando, em 1603, Francis Bacon sugeriu para as coroas da Inglaterra e Escó- eia, unidas no reinado de Jaime i, o nome de "Grã-Bretanha" como expressão da "união perfeita dos corpos, tanto político como natural".5 O conhecimento gene- talízado dos Relatórios de Plowden certamente se evidencia pela frase "O caso (*) Para as referências às obras de Shakespeare, utilizou-se a tradução de Carlos Alberto Nunes em Obras completas de Shakespeare, Ed. Melhoramentos/Edições de Ouro, Rio de Janeiro, l%6.(N.T.) 33 vitor Realce Vitória Oliveira se alterou, dizia Plowden", usada proverbialmente na Inglaterra antes e depois de 1600.6 A suposição de que Shakespeare possa ter conhecido um caso (Hales versus Petit) relatado por Plowden não parece questionável7 e ganha vigor com a evidência de que a peça anónima Thomas ofWoodstock, da qual Shakespeare "tinha sua cabeça cheia de ecos" e na qual pode até mesmo ter atuado,8 termina no trocadilho: "pois eu tenho pelejado em Plowden e não consigo achar nenhu ma lei" (for I have plodded in Plowden, and canfind no law).9 Além disso, teria sido muito estranho se Shakespeare, que dominava o jargão de quase todo ofí cio humano, ignorasse a fala constitucional e judicial que o circundava e que os juristas do seu tempo empregavam de modo tão prolífico no tribunal. A familia ridade de Shakespeare com casos legais de interesse geral não pode ser posta em dúvida, e dispomos de outra evidência de sua associação com os estudantes das escolas de direito e de seu conhecimento dos procedimentos judiciais.10 Segundo opinião geral, pouca diferença faria saber se as sutilezas do dis curso jurídico eram ou não familiares a Shakespeare. A concepção do poeta sobre a natureza gémea do rei não depende de amparo constitucional, uma vez que tal concepção brotaria muito naturalmente de um estrato puramente huma no. Pode parecer fútil, portanto, a mera colocação da questão sobre se Shake speare empregava algum jargão profissional dos juristas de seu tempo, ou tentar determinar a matriz da cunhagem de Shakespeare. Tudo isso parece muito tri vial e irrelevante, uma vez que a imagem da natureza geminada do rei, ou mes mo do homem em geral, era uma das concepções mais genuinamente shake- spearianas. Apesar disso, se o poeta tivesse casualmente deparado com as definições jurídicas da realeza, o que provavelmente teria acontecido ao conver sar com amigos nas escolas de direito, é fácil imaginar o quanto lhe teria pareci do pertinente o símile dos Dois Corpos do Rei. Seja como for, a essência viva de sua arte era revelar os diversos planos em atuação no ser humano, colocá-los uns contra os outros, confundi-los ou mantê-los em equilíbrio, tudo em função do padrão de vida que ele tinha em mente e desejava recriar. Como lhe deve ter sido oportuno, então, descobrir esses planos sempre conflitantes, legalizados, por assim dizer, pela "cristologia" real dos juristas e ao seu alcance imediato! O conceito jurídico dos Dois Corpos do Rei não pode, por outros motivos, ser separado de Shakespeare. Pois, se essa imagem curiosa, que se esvaneceu completamente do pensamento constitucional, ainda possui hoje um significa do muito concreto e humano, isso, em grande parte, deve-se a Shakespeare. Foi ele quem eternizou essa metáfora. Fez dela não só o símbolo, mas, de fato, a pró pria substância e essência de uma de suas melhores peças: A tragédia do rei Ricardo IIé a tragédia dos Dois Corpos do Rei. Talvez não seja supérfluo mencionar que o Henrique v shakespeariano, ao lamentar a dupla condição de um rei, imediatamente associa essa imagem ao rei 34 vitor Realce vitor Realce vitor Realce Ricardo n. Os monólogos do rei Henrique antecedem diretamente esse breve interlúdio no qual conjura o espírito do antecessor de seu pai e a cuja essência histórica a posteridade provavelmente deve este magnífico ex-voto conhecido como Díptico de Wilton.'' Hoje não, Senhor! Oh! hoje não! Esquece-te por hoje do crime de meu pai, por ter do cetro se apossado. Inumei de novo o corpo de Ricardo, deitando em cima dele mais lágrimas contritas do que as gotas de sangue que a violência fez correr. (iv. i.312ss) Refletindo sobre seu destino de rei, sobre a dupla natureza do ser rei, o Henri que v de Shakespeare tende a evocar seu Ricardo 11, o qual—pelo menos no con ceito do poeta — manifesta-se como o protótipo daquela "espécie de deus que sofre muito mais do que os seus adoradores a condição humana". Parece relevante ao tema geral deste estudo e, por outro lado, também fru tífero, investigar mais de perto as variedades de "duplicações" reais que Shake speare desdobrou nas três intrigantes cenas centrais de Ricardo II.'1 As duplica ções, todas iguais e todas simultaneamente ativas em Ricardo — "Desta arte, eu represento ao mesmo tempo muitas pessoas" (v. v. 31) —, são aquelas poten cialmente presentes no Rei, no Bobo e em Deus; dissolvem-se, necessariamen te, no Espelho* Esses três protótipos da "geminação" continuamente se intercep tam, sobrepõem e contrapõem. No entanto, pode-se sentir que o "Rei" domina na cena da costa de Gales (m. ii), o "Bobo", no Castelo de Flint (111. iii) e "Deus", na cena de Westminster (rv. i), tendo o tormento do Homem como perpétuo com panheiro e antítese em todos os cenários. Além disso, em cada uma dessas três cenas, encontra-se a mesma queda em cascata: da realeza divina para o "Nome" da realeza, e do nome para a miséria humana posta a nu. E apenas gradualmente, e passo a passo, que a tragédia própria aos Dois Corpos do Rei se desenrola na cena da costa de Gales. Ainda não há cisão em Ricardo quando, em seu retorno da Irlanda, beija o solo de seu reino e enuncia íiquela famosa e quase sempre citada afirmação da imponência de sua régia condição. O que expõe, de fato, é o caráter indelével do corpo político do rei, il ivino ou angelical. O óleo santo da consagração resiste à força dos elementos, tio "mar áspero e selvagem", já que O curto sopro de homens terrenos é impotente para depor um rei que foi por Deus eleito. (m. ii. 54 ss) 35 vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce O sopro humano parece a Ricardo algo incoerente com a realeza. Carlisle, na cena de Westminster, enfatizará mais uma vez que o Ungido de Deus não pode ser julgado "por um sopro inferior" (iv. i. 128). Será o próprio Ricardo que, "com seu próprio sopro", libertará realeza e súditos ao mesmo tempo (iv. i. 210), para que, por fim, o rei Henrique v, após a destruição da realeza divina de Ricardo, possa justamente se queixar de que o rei está "sujeito ao sopro de qualquer tolo".13 Quando a cena (m. ii) começa, Ricardo, da maneira mais exaltada, é o "quefoi por Deus eleito" e "substituto de Deus [...] ungido em seu conspecto" (i. ii. 37). Ainda é ele que, em tempos passados, dera "ouvido atento" às palavras de seu confidente, John Busshy, Orador dos Comuns em 1397, que, ao se dirigir ao rei, "não atribuía a ele títulos honoríficos, devidos e habituais, mas inventara ter mos incomuns e estranhos nomes, agradáveis antes à majestade divina de Deus que a algum mortal poderoso".14 Ele ainda parece aquele conhecido por haver afirmado que as "Leis estão na boca do Rei ou, às vezes, em seu peito",l5 e haver exigido que "se olhasse para alguém, esta pessoa tinha de se ajoelhar".16 Ainda está seguro de si, de sua dignidade e até do auxílio das hostes celestiais, à sua dis posição. Para cada homem alistado à força por Bolingbroke [...] tem Deus para Ricardo um dos seus anjos gloriosos, a que dá celeste paga. (in.ii.60) Esta imagem gloriosa da realeza "Pela Graça de Deus" não perdura. Lenta mente se dissolve à medida que as marés ruins afluem. Ocorre, então, uma curiosa mudança na atitude de Ricardo — como se fosse uma metamorfose do "Realismo" para o "Nominalismo". O Universal chamado "Realeza" começa a se desintegrar: sua "Realidade" transcendental, sua verdade objetiva e exis tência divina, tão brilhante pouco tempo antes, empalidece em um nada, um nomem." E a meia-realidade remanescente assemelha-se a um estado de amnésia ou de sono. Havia-me esquecido de mim próprio. Não sou rei? Indolente majestade, desperta! Estás dormindo. Pois não vale o só nome de rei vinte mil nomes ? As armas, nome! Um súdito mesquinho se atreveu a atacar tua grande glória. (III. ii. 83 ss) 36 in.ii.60 vitor Realce Numa tirada trágica percebe-se que o próprio ricardo, com sua exacerbação interpretativa em relação ao Direito Divino dos Reis, e a falta de "conhecimento" quanto aos Dois Corpos do Rei, ajuda a culminar em sua derrocada. vitor Realce vitor Realce Ricardo II tinha pessoas próximas que o bajulavam e ajudam a aumentar ainda mais a ilusão de que ele tinha e falta de interpretação quanto ao direito divino dos reis. vitor Realce vitor Realce Esse estado de meia-realidade, de régio esquecimento e dormência, prefigura o "Bobo" da corte do castelo de Flint. De modo similar, o protótipo divino da geminação, o Deus-homem, começa a anunciar sua presença, à medida que Ricardo se refere à traição de Judas: Víboras aquecidas no meu peito, que o coração me pungem! Oh! Três Judas, cada um mais traiçoeiro do que Judas! (m. ii. 131) É como se tivesse começado a ficar claro para Ricardo que seu vicariato de Deus Cristo pudesse implicar também um vicariato do homem Jesus, e que ele, o rei "que foi por Deus eleito", pudesse ter de seguir seu Mestre divino também em sua humilhação humana e assumir a cruz. Contudo, nem o Bobo nascido gémeo, nem o Deus nascido gémeo são dominantes nessa cena. É apenas uma antevisão de sua proximidade, enquanto o corpo natural e mortal do rei dá um passo à frente: Não me fale ninguém mais em conforto, mas em túmulos, epitáfios e vermes... (IH. ii. 145 ss) Não só a humanidade do rei prevalece sobre a deidade da Coroa, e a mortalida de sobre a imortalidade, mas, pior, a própria realeza parece ter mudado de essência. Em lugar de ser isento "da Menoridade ou Velhice e outros Defeitos e Imbecilidades naturais", a realeza em si passa a significar Morte, e nada além de Morte. A longa procissão de reis torturados desfilando diante dos olhos de Ricardo é prova dessa mudança: Pelo alto céu, no chão nos assentemos para contar histórias pesarosas sobre a morte de reis — como alguns foram depostos, outros mortos em combate, outros atormentados pelo espectro dos que eles próprios haviam destronado, outros envenenados pela esposa, outros mortos no sono; assassinados todos! É que, no centro da vazia coroa que circunda a real cabeça tem a Morte sua corte, e, entronizada aí, como os jograis, sempre escarnece da majestade e os dentes arreganha para suas pompas, dando-lhe existência fugaz, somente o tempo necessário 37 vitor Realce Nesse momento há uma analogia ao sofrimento e traição que Jesus sofre (Ricardo II aqui parece iniciar realmente seu declino com O Divino, não se vê mais tanto como um Deus, mas sim um Deus-Homem ou representante de Deus em um corpo humano, fadado a sofrer das mazelas e dores que qualquer ser humano sofre, assim como foi com Jesus. Ao citar Judas ele deixa claro a sua comparação, e entendimento como um homem, e assim como Jesus sofreria com uma "cruz". vitor Realce Esse é uma momento claro em que Ricardo demonstra que compreende que não possui mais tanto Direito Divino e poder quanto achava que tinha. Nessa passagem ele se aproxima mais do corpo natural. vitor Realce A partir do momento em que ele percebe que esse direito divino não é tão absoluto, me parece que Ricardo passa a entender ser rei é sinônimo não de imortalidade física, mas apenas no nome e no simbólico, ele é apenas uma casca, o Direito Divino dos Reis existe sobre o pretexto de justificativa e monopólio do poder, um meio para justificar o fim. E é nesse momento que ele se dá conta da morte como algo presente e muito próximo dele. vitor Realce Esse trecho é bem importante, porque é quando ele se dá conta que é apenas uma figura representativa, e me parece que passa a compreender que o Direito Divino de ser rei talvez seja pesado e custoso demais. vitor Realce Shakespeare mostra que o Corpo Político não possui o poder real e concreto para suportar e justificar a tirania do corpo natural. Esta fragilidade é exposta pelas falhas de Ricardo, levando eventualmente à sua deposição. para cena pequena, por que possa representar de rei, infundir medo, matar apenas com o olhar, inflada de ilusório conceito de si mesma, como se a carne que nos empareda na vida fosse de aço inquebrantável. E após se divertir à saciedade, com um pequeno alfinete ela se adianta, fura a muralha do castelo e, pronto: era uma vez um rei! (III. ii. 155 ss) O rei que "nunca morre" foi aqui substituído pelo rei que sempre morre e sofre morte mais cruel que os outros mortais. Desapareceu a unidade do corpo natu ral com o corpo político imortal, "esse Corpo duplo, ao qual nenhum Corpo se iguala" (ver p. 24). Desapareceu também a ficção de qualquer tipo de prerroga tivas reais, e tudo o que resta é a frágil natureza humana de um rei: não zombeis, com solenes reverências, do que é só carne e sangue. Despojai-vos do respeito, das formas, dos costumes tradicionais, dos gestos exteriores, que equivocados todos estivestes a meu respeito. Como vós, eu vivo também de pão, padeço privações, necessito de amigos, sou sensível às dores. Se, a tal ponto, eu sou escravo, como ousais vir dizer-me que eu sou rei? (m. ii. 171 ss) A ficção da unidade do corpo duplo se despedaça. Deidade e humanidade dos Dois Corpos do Rei, ambas claramente delineadas com algumas pinceladas, apresentam-se em mútuo contraste. Chega-se a ura primeiro rebaixamento. A cena agora muda para o castelo de Flint. A estrutura da segunda grande cena (III. iii) assemelha-se à primeira. É ver dade que a realeza de Ricardo, seu corpo político, foi irremediavelmente abalada, mas ainda resta, embora esvaziada, a aparência de realeza. Pelo menos esta pode ria ser salva. "No entretanto, seu olhar é de rei", afirma York no castelo de Flint (m. iii. 68); e, no estado de espírito de Ricardo, vigora, a princípio, a consciência de sua dignidade real. Preparou-se, de antemão, para parecer um rei no Castelo: Um rei, escravo da aflição, como rei, lhe acata as ordens. (III. ii. 210) 38 vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce Há nesse momento a ideia de que ser rei não está inteiramente ligado ao Direito Divino dos Rei, existe uma persona/performance que dá a Ricardo II a caracterização de rei, uma postura, uma vestimenta, o simbolos da realeza,tudo isso é necessário para culminar no corpo político, assimcomo também a compreensão de se seguir as regras as quais o lhe colocaram na posição de rei em que está. vitor Nota Não há rei ou monarquia sem apoio popular de seus súditos, existe ali um acordo silenciosos entre realeza e povo, o rei sendo a cabeça e o povo dessa nação ou território sendo o os membros desse corpo político. vitor Comentário do texto mas esse carapuça de rei é pesada e exige muito mais do que Ricardo II parece forte o suficiente a aguentar. vitor Comentário do texto a cisão dos dois corpos começa a se iniciar. vitor Realce aqui Ricardo deixa claro que se vê como eu comum e que a monarquia o corpo político exige mais do que ele pode dar. vitor Realce mesmo sem ter mais tanta fé em seu corpo político, Ricardo mantém a performance, a persona de rei deve manter-se firme para que sua autoridade ainda tenha alguma possibilidade de ser mantida. vitor Realce E assim age; torce o nariz para Northumberland que havia omitido a costumei ra genuflexão do vassalo e súdito diante de seu senhor feudal e representante de Deus: Estamos admirados. Muito tempo ficamos esperando que dobrasses os trémulos joelhos, por pensarmos que nos considerasses rei legítimo. Se ainda o somos, como se atreveram teus membros a esquecer o pagamento da homenagem terrível que é devida à nossa real presença? (ui. i i i . 73 ss) As "cascatas" começam, então, a cair como o fizeram na primeira cena. As hos tes celestiais são novamente conclamadas, desta vez, anjos vingativos e "exér citos de pestes", que Deus arregimenta em suas nuvens — "para nos socorrer" (III. iii. 85 ss). O "Nome" da realeza mais uma vez desempenha seu papel: Oh! Não ser eu tão grande quanto a minha dor, ou, ao menos, menor do que o meu nome! (IH. i i i . 136) Perder o título de rei? um nome de Deus, que seja assim. (III. iii. 145 ss) 0 nome irreal da realeza leva, mais uma vez, ao caminho de nova desintegração. Ricardo não personifica mais o corpo místico de seus súditos e da nação. É uma natureza miserável e mortal de um homem solitário que substitui o rei como Rei: Darei as jóias por um rosário; meu palácio esplêndido, por um eremitério; as vestes ricas, por andrajos de pobre; minha alfaia lavrada, por umprato de madeira; meu cetro, por bastão de peregrino; meus vassalos, em troca das imagens de dois santos, e meu imenso reino, por sepultura exígua, pequenina sepultura, um sepulcro obscuro e humilde. (III. iii. 147 ss) O calafrio dessas cláusulas anafóricas é seguido por uma profusão de assusta doras imagens da macabresse do Alto Gótico. A segunda cena — diferente da 39 vitor Realce vitor Comentário do texto como Ricardo ainda mantém sua performance de rei, ele espera que as pessoas ao redor também mantenham sua performance, mesmo que para eles o rei já tenha ou esteja perdendo seu corpo político. vitor Realce vitor Realce vitor Realce ao invés de personificar o corpo político, agora Ricardo é apenas homem mortal e natural, suscetível a morte e a todas as provações do homens. O rei agora é um miserável. primeira — não termina, contudo, nos surtos de autopiedade que lembram, não uma Dança da Morte, mas uma dança em torno do próprio túmulo. Segue-se, então, um estado de abjeção ainda maior. O novo tom, indicando uma mudança para pior, é dado quando Northum- berland pede que o rei desça para o pátio baixo do palácio para encontrar Bo- lingbroke, e quando Ricardo, cujo emblema pessoal era o "Sol emergindo de uma nuvem", retruca em uma linguagem de desconcertante lucidez e apavoran tes trocadilhos: Descer... Descer... Já vou, como o brilhante Faetonte, que não tinha mais domínio sobre os corcéis indóceis... ao pátio baixo ? Pátio baixo, é certo, onde os reis se rebaixam, visitando traidores e ficando às ordens deles. Baixa, rei, que o sinistro mocho pia onde exultar devera a cotovia. (III. iii. 178 ss) Em épocas distintas, notou-se o papel proeminente atribuído, em Ricardo II, ao simbolismo do Sol (fig. 4) e, de vez em quando, uma passagem parece a descri ção de uma moeda romana, a Oriens Augusti (m. ii. 36-53; cf. fig. 32c).'8 A ima gem do Sol, tal como enredada na resposta de Ricardo, reflete o "esplendor da catástrofe" em um estilo que evoca o ícaro de Brueghel e a queda de Lúcifer do firmamento, refletindo também as "lascas de brilho... Que ao redor das asas de anjos decaídos pairam". Por outro lado, as "ordens dos traidores" podem ser reminiscentes dos "três Judas" da cena anterior. As imagens bíblicas, contudo, não são, em geral, importantes no castelo de Flint: são poupadas para a cena de Westminster. Em Flint, existe outra visão que, juntamente com os loucos Fae- tontes e ícaros, agora é produzida pelo poeta. mas vejo que disserto à toa e que zombas de mim... observa Ricardo (m. iii. 171), tornando-se autoconsciente e embaraçado. A repentina esquisitice é notada também por Northumberland: Os infortúnios fazem-no divagar como um lunático. (III. iii. 185) Nessa cena, Shakespeare conjura a imagem de outro ser humano, o Bobo, que é dois-em-um e a quem o poeta, em outros contextos, introduz com tanta frequên cia como contraponto a nobres e reis. Ricardo li desempenha agora ambos os papéis: bobo de seu eu de rei e bobo da realeza. Em decorrência, torna-se um 40 vitor Realce vitor Realce vitor Realce pouco menos que meramente "homem" ou (como na praia) "corpo natural do rei". No entanto, apenas no novo papel de Bobo — um bobo se fazendo de rei, e um rei se fazendo de bobo—Ricardo é capaz de cumprimentar seu vitorioso pri mo e desempenhar até o fim, com Bolingbroke em genuflexão diante dele, a comédia de seu reino quebradiço e dúbio. Novamente ele "divaga como um lunático", isto é, em trocadilhos: Aviltais, caro primo, esses joelhos principescos, deixando que o vil solo se orgulhe de beijá-los... Levantai-vos! Tendes o coração muito elevado, sei-o bem; pelo menos a esta altura, (leva a mão à altura da cabeça.) embora calque o joelho a terra dura. (III. iii. 190ss) Os juristas afirmavam que o corpo político do rei é extremamente vazio de "Defeitos e Imbecilidades naturais". Aqui, contudo, a "Imbecilidade" parece assumir o comando. Porém, o cerne mesmo ainda não foi alcançado. Cada cena, gradativamente, indica uma nova queda. "Corpo natural do Rei" na primeira cena e "Regiamente Bobo" na segunda: a esses dois seres geminados associa- sc, na cena semi-sacramental de abdicação, a deidade geminada como uma con dição ainda mais baixa. Pois o "Bobo" marca a transição de "Rei" a "Deus" e, tio que parece, nada poderia ser mais miserável que Deus na insignificância de homem. Quando se abre a terceira cena (i v. i), novamente prevalece — agora, pela terceira vez — a imagem da realeza sacramental. Na praia de Gales, o próprio Ricardo havia sido o emblema da exaltação do reinado por direito divino; no castelo de Flint, havia tornado seu "programa" salvar pelo menos a aparência do rei e justificar o "Nome", embora o título não mais se adequasse a sua con dição; em Westminster, ele próprio é incapaz de explicar sua realeza. Outra pessoa falará por ele e interpretará a imagem da realeza estabelecida por Deus i\ muito a propósito, essa pessoa é um bispo. O bispo de Carlisle agora inter preta o logothetes; mais uma vez, ele obriga o rex imago Dei a aparecer: Que vassalo pode julgar seu rei ? E das pessoas aqui presentes, quem não é vassalo de Ricardo? [...] E ora o emblema da própria majestade de Deus, seu capitão, representante por ele eleito, ungido e coroado 41 vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce há tanto tempo e sobre o trono posto, vai ser julgado sem presente achar-se, por um sopro inferior e dependente ? Deus não permita que em país cristão almas de tal quilate afazer venham ação tão imoral, odiosa e negra. (iv. i. 121 ss) Tais são, em um estilo bem medieval, as características do vicárias Dei. Do mes mo modo, faz parte da tradição medieval encarar o presente contrao pano de fundo do passado bíblico, como faz o bispo de Carlisle. É verdade que ele deixa que Ricardo tire as conclusões finais e torne manifesta a semelhança do rei humilhado com o Cristo humilhado. No entanto, é o bispo que, por assim dizer, prepara o clima bíblico ao profetizar horrores futuros e prever o Gólgota da Inglaterra: A anarquia, o horror, o medo, o saque desenfreado virão morar aqui, passando o nosso país a ser chamado o novo campo de Gólgota e depósito de crânios. (iv. i. 142 ss) O bispo, devido a seu discurso corajoso, imediatamente foi detido; mas, na atmosfera preparada por ele, entra o rei Ricardo. Quando levado para o Salão Westminster, executa os mesmos acordes que o bispo, os do biblicismo. Aponta para a assembleia hostil, para os nobres que circundam Bolingbroke: Não gritavam: "Salve!" amiúde para mim ? Assim fez. Judas com Cristo. Este, porém, de doze apóstolos só num não encontrou fidelidade: eu em nenhum, de doze mil vassalos. (IV. i. 169) Pela terceira vez, o nome de Judas é citado para estigmatizar os adversários de Ricardo. Logo seguir-se-á o nome de Pilatos, que tornará o paralelo inequívoco. Mas antes de ser entregue a seus juízes e a sua cruz, o rei Ricardo tem de se "des- reizar". A cena em que Ricardo "desfaz sua realeza" e libera seu corpo político para o ar rarefeito deixa o espectador sem fôlego. É uma cena de solenidade sacra mental, uma vez que o ritual eclesiástico de desfazer os efeitos da consagração não é menos solene ou de peso menor que o ritual que erigiu a dignidade sacra- 42 vitor Realce vitor Comentário do texto calvário vitor Realce vitor Realce vitor Comentário do texto mais uma performance, e por ser já quase o final da peça, essa deve ser grandiosa. mental. Para não falar no cerimonial rígido observado na destituição de um cavaleiro da Ordem da Jarreteira ou do Tosão de Ouro," havia o famoso prece dente do papa Celestino v que, no Castel Nuovo, em Nápoles, "se desfizera", arrancando de seu corpo, com as próprias mãos, as insígnias da dignidade a que renunciava — anel, tiara e púrpura. Mas, enquanto o papa Celestino renunciava à sua dignidade diante de seus eleitores do Colégio dos Cardeais, Ricardo, o rei hereditário, renunciava a seu cargo diante de Deus—Deo ius suum resignavit.2" A cena shakespeariana, na qual Ricardo "se desfaz com solenidade hierofânti- ca", chamou a atenção de muitos críticos, eWalter Pater, acertadamente, deno- minou-a de rito invertido, um rito de degradação e uma demorada cerimónia tor turante na qual se inverte a ordem da coroação.21 Uma vez que ninguém tem o direito de tocar um dedo sequer no Ungido de Deus e régio portador de um cha- racter indelibilis,22 o rei Ricardo, ao secularizar-se, expressa-se como seu pró prio celebrante: Terei de ser meu próprio sacristão ? Pois não faz mal; direi Amém... (IV. i. 173) Uma um, ele priva seu corpo político dos símbolos de sua dignidade e expõe seu pobre corpo natural aos olhos dos espectadores: Vede agora a maneira por que eu próprio vou me destruir: esta coroa incómoda, retiro-a da cabeça; o cetro inútil, jogo-o longe, varrendo do imo peito todo o real orgulho de comando. Com as lágrimas eu próprio tiro o bálsamo de minha fronte; o diadema entrego com minhas próprias mãos; com minha língua renego meus sagrados privilégios; minha palavra anula os juramentos de todos os meus súditos; abdico da pompa régia e toda majestade [...] (iv. i. 203 ss) Autodestituído de todas as glórias anteriores, Ricardo parece voar de vol- la a seu velho truque do castelo de Flint, ao papel de Bobo, quando profere a seu "sucessor" algumas aclamações ambíguas.23 Dessa vez, contudo, o gorro de bobo da corte de nada lhe serve. Ricardo desiste de "desfiar o tecido de suas lou curas", que Northumberland, seu inimigo frio e calculista, pede-lhe para ler em voz alta. Não consegue, tampouco, proteger-se atrás de seu "Nome". Este tam bém se foi para sempre: 43 vitor Realce vitor Realce essa é uma perfomance que cabe a apenas ele performar vitor Realce vitor Realce vitor Realce Não tenho nome [...] sem que possa saber como me chamo! (iv. i. 254 ss) Em um novo laivo de criatividade, tenta ocultar-se por trás de outra cortina. Cria uma nova brecha, uma pequena passagem para sua glória anterior através da qual escapar e, dessa maneira, sobreviver. Em oposição à sua realeza externa perdida, estabelece uma realeza interior, faz sua realeza verdadeira para retirar- se para o homem interior, para a alma, a mente e os "régios pensamentos": A glória me tirais; mas a tristeza que me é própria, terá sempre realeza. (iv. i. 192 ss) Invisível sua realeza, e relegada ao íntimo; visível sua carne, e exposta à deson ra e ao ridículo, ou à pena e à zombaria — resta apenas um paralelo ao seu eu miserável: o escarnecido Filho do homem. Não só Northumberland, assim exclama Ricardo, será "condenado no livro do Céu", mas outros também: E todos vós que me fixais de longe, espicaçados pela minha própria miséria, embora alguns, como Pilatos, lavem as mãos, mostrando uma aparência de compaixão: Pilatos, entregastes-me à minha cruz de dor. Nada, nem toda a água, vos limpará deste pecado. (iv. i. 237) Não é por acaso que Shakespeare introduz aqui, como antítipo de Ricardo, a imagem de Cristo diante de Pilatos, zombado como Rei dos Judeus e entregue à cruz. As fontes de Shakespeare, contemporâneas aos eventos, haviam transmi tido essa cena sob uma luz similar. Nessa hora, ele (Bolingbroke) me lembrou Pilatos, que fez com que nosso Senhor Jesus Cristo fosse açoitado no poste, e depois fez com que fosse trazido diante da multidão dos judeus, dizendo: "Caros senhores, contemplai vosso rei!". E a multi dão replicava: "Que seja crucificado!". Pilatos, então, lavou as mãos, dizendo: "Sou inocente do sangue justo". E entregou, assim, nosso Senhor para eles. Foi de um modo muito parecido que procedeu o duque Henrique, quando desistiu de seu legítimo senhor à populaça de Londres, para que, se fossem matá-lo, ele pudesse dizer: "Estou inocente deste feito".24 O paralelo entre Bolingbroke e Ricardo e entre Pilatos e Cristo reflete uma opi nião generalizada entre os grupos antilancastrianos. Essa opinião foi, até certo ponto, ressuscitada na era Tudor. Porém, não é aqui muito relevante, pois, quan do Shakespeare utiliza a comparação bíblica, integra-a ao desenvolvimento glo- 44 vitor Realce vitor Realce vitor Comentário do texto Ricardo se perde tanto em sua própria performance que perde-se em si mesmo. vitor Comentário do texto como, para Ricardo, a performance não pode findar, ele atêm-se a uma performance interna que ele carregará até seu fim. bal da desgraça de Ricardo, cujo nadir ainda não foi até aqui atingido. O Filho do homem, apesar de humilhado e escarnecido, continuou a ser o deus absconditus, o "Deus oculto" em relação ao homem interior, tal como o Ricardo de Shake speare confiaria, por um momento, em sua realeza interior oculta. Essa realeza interna, contudo, também se dissolveu, pois, num repente, Ricardo percebe que, ao se defrontar com seu Pilatos lancastriano, não é de todo semelhante a Cristo, mas que ele próprio, Ricardo, tem seu lugar entre os Pilatos e Judas, porque não é menos traidor que os outros. Ou até pior: é um traidor de seu próprio corpo polí tico imortal e da realeza tal como havia sido até o seu tempo: Nãoposso ver; as lágrimas o impedem... [Mas não] aponto de não verem nesta reunião um grupo de traidores. Sim, quando os volto para mim, percebo que eu sou também traidor como os demais, porque meu coração foi conivente no despojar o corpo de um monarca... (IV. i. 244) Ou seja, o corpo natural do rei se torna traidor do corpo político do Rei, "no des pojar o corpo de um monarca". E como se a auto-acusação de traição por parte de Ricardo antecipasse a acusação de 1649, a de alta traição cometida pelo rei contra o Rei. Essa clivagem ainda não éo clímax das duplicações de Ricardo, uma vez que a cisão de sua personalidade prosseguirá sem misericórdia. Mais uma vez, emerge a metáfora da "realeza do Sol". Ela aparece, contudo, na ordem inversa, quando Ricardo irrompe nesta comparação de rara imaginação: Fosse eu um rei ridículo de neve posto em frente do sol de Bolingbroke, para me derreter em gotas de água! (iv. i. 260 ss) Não é, porém, diante desse novo Sol — símbolo da majestade divina ao longo de toda a peça—que Ricardo "se derrete" e, juntamente com o seu eu, também a imagem da realeza no sentido litúrgico primitivo ;25 é diante de seu próprio ros to comum que se dissolve tanto sua majestade falida como sua humanidade anô- nima. A cena do espelho é o clímax dessa tragédia da personalidade dual. O espe- Iho produz os efeitos de um espelho mágico e o próprio Ricardo é o mago que, como o mago preso e encurralado dos contos de fadas, é obrigado a colocar sua magia em ação contra si mesmo. A face física refletida pelo espelho não é mais una com a experiência interior de Ricardo e sua aparência externa não mais idên- 45 vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce tica à do homem interno. "Era esta a face?" — a pergunta tríplice e suas respos tas refletem novamente as três facetas principais da natureza dupla—Rei, Deus (Sol) e Bobo: Serão estas as feições de quem tinha diariamente dez mil pessoas sob seu teto e a todas alimentava? Será esta a face que, à maneira do sol, deixava cego quem a olhasse de frente ? Era esta a face que fez face a loucuras incontáveis para, afinal, ter de baixar os olhos diante de Bolingbroke ? (iv. i. 281) Por fim, quando Ricardo, diante da "frágil glória" de seu rosto, lança o espelho no chão, despedaça-se não só o passado e o presente de Ricardo, mas todo aspec to de um sobremundo. Estava encerrada sua catoptromancia. As feições tais como refletidas pelo espelho traem seu despojamento de toda possibilidade de um segundo ou de um supercorpo — do corpo político pomposo do rei, da san tidade do representante eleito do Senhor, das loucuras do bobo e até dos pesares mais humanos que residem no homem interno. O estilhaçamento do espelho sig nifica ou é a ruptura de uma dualidade possível. Todas as facetas se reduzem a uma só: a face banal e a physis insignificante de um homem miserável é agora umaphysis esvaziada de qualquer metafísica. É menos e, ao mesmo tempo, mais que a Morte. É a transmissão de Ricardo e a ascensão de um novo corpo natural. Bolingbroke: Conduza-o um dos presentes para a Torre. Ricardo: Oh, belo! Conduzir-me? Como açores em torno a um rei são vossos condutores. (iv. 1.316 ss) Plowden: Transmissão é uma palavra que significa a existência de uma Separação dos dois Corpos; e que o Corpo político é removido do Corpo natural, agora morto ou afas tado da Dignidade real, para outro Corpo natural.26 A tragédia do rei Ricardo II foi sempre considerada como uma peça polí tica.27 A cena da deposição, embora encenada dezenas de vezes após a primeira apresentação em 1595, não foi impressa, ou não teve permissão para tal, senão depois da morte da rainha Elizabeth.2í! Em geral, as peças históricas atraíam o povo inglês, especialmente nos anos seguintes à destruição da Armada espanho- 46 vitor Realce vitor Realce vitor Realce vitor Realce la; mas Ricardo II atraiu mais que o interesse habitual. Para não falar em outras causas, para os contemporâneos de Shakespeare, o conflito entre Elizabeth e Essex apresentava-se à luz do conflito entre Ricardo e Bolingbroke. É sabido que, em 1601, às vésperas de sua fracassada rebelião contra a rainha, o conde de Essex encomendou uma apresentação especial do Ricardo II no Globe Theatre para seus apoiadores e o povo de Londres. No curso do processo do Estado con tra Essex, essa apresentação motivou considerável discussão por parte dos juí zes da corte — entre eles, os dois maiores advogados da época, Coke e Bacon — que não podiam deixar de reconhecer as alusões ao presente, intencionadas na apresentação da peça.29 Sabe-se também que Elizabeth encarava essa tragédia com muita desconfiança. Na época da execução de Essex, ela lamentava que "esta tragédia foi apresentada quarenta vezes em casas e nas ruas", e levava sua auto-identificação com o personagem-título até o ponto de exclamar: "Eu sou Ricardo n, vocês não sabem?".3" Ricardo II continuou a ser uma peça política. Foi proibida durante o reina do de Carlos n, na década de 1680. Talvez a peça explicitasse demais os últimos acontecimentos da história revolucionária da Inglaterra, o "Dia do martírio do abençoado rei Carlos i", tal como celebrado na época no Book of Common Prayer.^ A Restauração evitou essas e outras memórias e não tinha nenhuma simpatia para com a tragédia que estava centrada não só no conceito de um rei mártir semelhante a Cristo mas, também, na ideia muito incómoda de uma sepa ração radical dos Dois Corpos do Rei. Não teria sido surpresa nenhuma se o próprio Carlos i concebesse seu trá gico destino nos termos do Ricardo lide Shakespeare e do ser geminado do rei. Em alguns exemplares da Eikon Basilike, está impresso um lamento, um poema longo, alhures intitulado Majesty in Misery ("Majestade em desgraça"), atribuí do a Carlos i e onde o desafortunado rei, se foi ele realmente o poeta, aludia obviamente aos Dois Corpos do Rei: Com meu próprio poder ferem minha majestade, Em nome do Rei, o próprio rei destronado. Assim a poeira destrói o diamante." 47 vitor Realce vitor Realce