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Tradução
Ludimila	Hashimoto
Rio	de	Janeiro	|	2015
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO	1:	Atenas	e	o	Mundo	Antigo
O	Cidadão	Envolvido
CAPÍTULO	2:	Parlamentos	e	Afins
O	Cidadão	Representado
CAPÍTULO	3:	Aldeias	Medievais	e	Cidades	Repúblicas
O	Cidadão	Burguês
CAPÍTULO	4:	Democracia	nos	Alpes
O	Cidadão	Comunal
CAPÍTULO	5:	A	Revolução	Inglesa
O	Cidadão	Súdito
CAPÍTULO	6:	Democracia	na	América
O	Cidadão	Eleitor
CAPÍTULO	7:	França,	1789-95
O	Cidadão	Ativista
CAPÍTULO	8:	Repúblicas	da	América	Latina
O	Cidadão	Subjugado
CAPÍTULO	9:	Europa	no	Século	XIX
O	Cidadão	Rejeitado
CAPÍTULO	10:	Aceitar	e	Recuar
O	Cidadão	Idealizado
CAPÍTULO	11:	Índia
O	Cidadão	Independente
CAPÍTULO	12:	O	Ocidente	Pós-Guerra
O	Cidadão	Consumidor
CAPÍTULO	13:	Democracia	e	Descolonização
O	Cidadão	Explorado
CAPÍTULO	14:	O	Colapso	do	Comunismo	na	Europa
O	Cidadão	Triunfante
CAPÍTULO	15:	Democracia	desde	1989
O	Cidadão	Informado
Notas
Referências	e	Leituras	Complementares
Créditos	das	Imagens
Índice
V
PRÓLOGO
amos	deixar	claro	de	início:	a	democracia	é	a	conquista	mais	admirável
da	 humanidade.	 Pode	 ser	 idealizada,	 deturpada,	 maltratada,	 mal
aplicada,	parodiada	e	ridicularizada;	sem	dúvida,	já	foi	cortejada	por	amantes
infiéis,	 acolhida	por	 falsos	 amigos	 e	 traída	por	 aliados	 inescrupulosos,	mas	 a
democracia	enquanto	modo	de	vida	e	sistema	de	governo	é	a	via	pela	qual	os
seres	humanos	modernos	podem	satisfazer	sua	necessidade	de	construir	vidas
dotadas	de	significado.	Mais	do	que	todos	os	quadros	e	esculturas	do	mundo,
mais	 do	 que	 todos	 os	 poemas,	 peças	 e	 romances,	 e	 mais	 do	 que	 todas	 as
invenções	 científicas	 e	 tecnológicas	 juntas,	 a	 democracia	 revela	 o	 que	 há	 de
mais	criativo	e	inovador	na	humanidade.	A	democracia	é	um	empreendimento
contínuo	e	coletivo	que	nos	une,	ao	mesmo	tempo	que	nos	permite	viver	como
indivíduos.	Enquanto	ela	durar,	existe	esperança;	sem	a	democracia,	o	mundo
está	em	desamparo.
Quando	buscamos	uma	maneira	de	pensar	sobre	a	democracia,	a	mudança
é	um	bom	ponto	de	partida.	Em	2009,	Barack	Obama	pautou	sua	campanha
para	 a	 presidência	 dos	 Estados	 Unidos	 pelo	 seguinte	 slogan:	 “Mudar	 É
Preciso.”	 Em	 2010,	 David	 Cameron	 disse	 ao	 povo	 britânico:	 “Votem	 na
Mudança”,	enquanto	futuros	aliados	do	partido	Liberal	Democrata	prometiam
“Mudanças	que	Funcionam”.	Ainda	que	nossos	 líderes	possam	não	gostar,	a
melhor	 forma	 de	 mudar	 é	 votar	 para	 que	 deixem	 seus	 cargos.	 A	 sanção
máxima	contra	qualquer	governo	é	tirá-lo	do	poder,	e	a	grande	vantagem	da
democracia	 é	 permitir	 que	 isso	 ocorra	 de	 forma	 pacífica.	 Os	 momentos
coreografados	 em	 frente	 ao	 Capitólio	 dos	 Estados	 Unidos,	 quando	 o	 novo
presidente	faz	o	 juramento	de	posse	diante	do	predecessor	derrotado,	e	a	 ida
do	primeiro-ministro	britânico	à	Downing	Street	para	dizer	ao	mundo	que	ele
(ainda,	 quase	 sempre,	 do	 sexo	 masculino)	 está	 deixando	 o	 cargo	 e	 espera
passar	 mais	 tempo	 com	 a	 família	 são	 exemplos	 de	 rituais	 fundamentais	 da
democracia	—	 equivalem	ao	 funeral	público,	 em	que	 se	marca	a	morte	para
que	a	vida	prossiga.	Essas	e	outras	cenas	semelhantes	em	Paris,	Berlim,	Nova
Délhi,	Tóquio	 e	 Santiago	 são	 expressões	 formais	do	 acordo	 feito	por	nossos
governantes	 de	 atuarem	 apenas	 com	o	 consentimento	 do	 povo	—	 e,	 quando
esse	consentimento	é	retirado,	eles	têm	de	partir.
Transições	 pacíficas	 de	 poder,	 governo	 mediante	 consentimento,	 eleições
livres	e	justas,	sufrágio	universal	—	todos	são	elementos	da	democracia,	porém,
quando	 tentamos	 encontrar	 uma	 definição	 exata,	 nos	 vemos	 procurando
agulha	em	palheiro.	O	problema	é	que,	toda	vez	que	nos	aproximamos	de	uma
definição	 ou	 compilamos	 uma	 lista	 de	 condições	 que	 qualquer	 democracia
deve	 cumprir,	 encontramos	 exemplos	 de	 democracias	 em	 pleno
funcionamento	 que	 não	 a	 satisfazem,	 ou	 de	 sociedades	 que	 não	 são
consideradas	democráticas,	mas	que	atendem	a	alguns	dos	critérios.	Além	disso,
qualquer	democracia	que	 já	 tenha	existido	foi	diferente	de	todas	as	outras,	e,
quanto	mais	as	conhecemos,	mais	percebemos	que	é	impossível	defini-las.
Uma	 razão	 para	 essa	 dificuldade	 é	 que,	 embora	 seja	 uma	 invenção
aparentemente	 ocidental,	 a	 democracia	 entra	 em	 conflito	 com	 uma	 das
principais	 tradições	 intelectuais	 do	 Ocidente.	 Desde	 Platão,	 os	 pensadores
ocidentais	 assumem	 a	 tarefa	 de	 examinar	 o	 mundo	 de	 forma	 conceitual.
Dedicaram-se	 à	 construção	 de	 ideias,	 como	 justiça,	 verdade	 e	 virtude,	 na
crença	 de	 que	 nelas	 está	 o	 caminho	 para	 a	 sabedoria,	 o	 conhecimento	 e	 a
compreensão.	 Assim	 como	 outros	 termos	 descritivos,	 por	 exemplo
“civilização”,	 a	 democracia	 tem	 o	 azar	 de	 receber	 o	 status	 de	 conceito,1	 e,
portanto,	precisa	ser	definida,	analisada	e	contestada	para	que	possamos	obter
uma	 compreensão	 maior	 do	 mundo.	 Tal	 impulso	 é	 compreensível.	 Se
pudéssemos	 determinar	 a	 natureza	 essencial	 da	 democracia,	 se	 pudéssemos
redigir	 um	 manual,	 seria	 possível	 aplicar	 um	 “diagrama	 da	 democracia”	 a
qualquer	 sociedade.	 No	 entanto,	 as	 raízes	 da	 democracia	 estão	 na	 tradição
inversa	 à	 do	 Ocidente,	 que	 surgiu	 em	 paralelo	 ao	 universo	 dos	 conceitos
abstratos	e	como	uma	crítica	a	ele,	 isto	é,	baseiam-se	na	experiência	prática	e
na	contínua	interação	humana.	A	democracia,	apesar	dos	esforços	de	filósofos
e	 cientistas	políticos,	despreza	 teorias,	 arregaça	as	mangas	e	 enfrenta	a	 tarefa
diante	 de	 si.	 Ela	 não	 busca	 a	 perfeição,	 e,	 nos	 momentos	 em	 que	 seus
seguidores	o	fazem	—	seja	por	meio	de	Constituições	rígidas	ou	leis	imutáveis
—,	é	comum	que	precipitem	seu	fim.	Em	vez	disso,	ela	permanece	em	contínua
adaptação.	 A	 verdade	 de	 que	 não	 existe	 um	 diagrama	 da	 democracia	 pode
causar	consternação	a	alguns	especialistas	e	consultores	políticos,	mas	deveria
nos	encher	de	alegria.
Nos	 jornais,	 nos	 programas	 de	 TV	 e	 rádio,	 nas	 conversas	 do	 dia	 a	 dia,
assim	como	nos	livros	e	nas	revistas	acadêmicas,	o	significado	de	democracia
gera	 discussões	 sem	 fim.	E	 acabamos	 percebendo	 que	 a	 natureza	 infinita	 do
debate	 dá	 uma	 pista	 para	 sua	 própria	 conclusão.	 A	 democracia	 está	 sempre
mudando,	 sempre	 se	 adaptando,	 e	 não	 pode	 ser	 explicada	 por	 fórmulas
justamente	 porque	 sua	 função	 principal	 é	 sustentar	 sociedades	 em	 que	 a
mudança	e	a	adaptação	possam	ocorrer	livremente.	As	democracias	—	tanto	a
instituição	de	governos	 como	a	prática	de	governar	de	 forma	democrática	—
existem	 numa	 relação	 simbiótica	 com	 a	 sociedade	 em	 que	 estão	 inseridas.
Quando	 as	 sociedades	 resistem	 às	 mudanças,	 as	 políticas	 democráticas	 não
podem	agir.	Quando	as	instituições	e	práticas	democráticas	são	petrificadas,	a
sociedade	se	fossiliza.
Tal	natureza	evasiva	e	adaptativa	pode	ser	motivo	de	celebração,	mas	deixa
em	aberto	a	questão	de	como	escrever	uma	história	da	democracia	—	e	do	que
incluir	 e	 excluir.	No	 entanto,	 também	 temos	 aqui	 uma	 resposta.	 Em	 vez	 de
partirmos	para	a	produção	de	uma	história	definitiva	da	democracia,	devemos
contribuir	 para	 a	 própria	 democracia,	 mostrando	 diferentes	 aspectos	 de	 seu
passado,	 revelando	 a	 complexidade,	 a	 diversidade	 e	 a	 criatividade	 que
fundamentam	 sua	 existência	 fugidia.	O	 objetivo	 deste	 livro,	 portanto,	 não	 é
amarrar	as	pontas	soltas	ou	deixar	o	assunto	guardado	num	lugar	seguro,	mas
fornecer	 um	 contexto	 histórico	 estimulante	 que	 traga	 informações	 para
pensarmos	a	democracia	e	o	modo	como	nossas	sociedades	são	governadas.
Com	 isso	 em	 mente,	 este	 livro	 conduzirá	 o	 leitor	 por	 uma	 viagem	 com
início	nos	mercados	abarrotados	de	Atenas	e	Roma	antigas,	onde	vemos	não
apenas	a	fundação	da	democracia	ativa,	mas	a	construção	da	multiplicidade	de
instituições	necessárias	para	sua	fundamentação.	O	mundo	antigo	também	nos
apresenta	uma	república	em	funcionamento:	um	Estado	sem	um	monarca	em
que	 os	 cidadãos	 são	 soberanos.Do	Mediterrâneo,	 partimos	 para	 os	 grandes
agrupamentos	 tribais	 do	 povo	 escandinavo,	 que	 revelam	 uma	 compreensão
sofisticada	 da	 participação	 no	 poder.	 De	 lá,	 passamos	 aos	 Parlamentos	 da
Europa	 medieval,	 que	 introduziram	 a	 representação	 política,	 e	 às	 cidades
prósperas	dos	Países	Baixos	e	da	Itália,	onde	a	lealdade	cívica	e	as	necessidades
práticas	 de	 governo	 levaram	 à	 fundação	 do	 Estado	 moderno.	 A	 próxima
parada	 é	 o	 cantão	 de	 Grisões,	 nos	 Alpes	 suíços,	 o	 primeiro	 Estado
verdadeiramente	 democrático	 dos	 tempos	 modernos,	 que	 sustenta	 a
democracia	 como	 a	maior	 expressão	 da	 vida	 pública.	 Em	 seguida,	 viajamos
para	 o	 salão	 de	 uma	 igreja	 em	 Putney,	 onde	 soldados	 recém-chegados	 dos
campos	de	batalha	da	Guerra	Civil	Inglesa,	com	Bíblias	vernáculas	em	mãos,
defenderam	o	direito	 de	 todo	homem	a	 ter	 voz	 ativa	no	 governo.	Do	outro
lado	do	Atlântico,	vemos	como	a	prática	da	democracia	chegou	ao	continente
americano,	com	origem	nos	encontros	em	 igrejas,	 reuniões	de	eleitores	e	nas
convicções	 dos	 imigrantes	 colonizadores.	 A	 França	 da	 década	 de	 1790
apresenta	 as	maiores	 contradições	de	nossa	 jornada	—	 a	Revolução	Francesa
combinou	a	crença	apaixonada	na	igualdade	e	na	democracia	com	a	violência
política.	As	novas	democracias	das	Américas	Central	e	do	Sul	no	século	XIX
revelam	como	o	governo	está	inserido	na	história	cultural	da	sociedade	e	como
é	difícil	superar	interesses	arraigados.
Na	 Europa,	 o	 turbulento	 século	 XIX	 mostra	 que	 as	 reformas	 políticas
foram	introduzidas,	a	princípio,	exatamente	para	proteger	a	democracia,	mas	o
governo	 democrático	 logo	 foi	 forçado	 a	 enfrentar	 a	 realidade	 do	 poder	 do
trabalho	 industrializado	 e	 da	 conveniência	 política.	No	 início	 do	 século	XX,
veremos	 a	 democracia	 se	 espalhar	 pelo	 planeta,	 até	 o	 seu	 recuo	 mundial	 e
catastrófico	 na	 década	 de	 1930.	 O	 período	 pós-1945	 apresenta	 destinos
divergentes	 na	 história	 da	 Índia	 e	 de	 outras	 ex-colônias,	 ao	 passo	 que,	 na
década	de	1950,	a	democracia	dos	Estados	Unidos	enfrentou	seu	maior	desafio
interno.	Em	1989,	o	comunismo	europeu	desmoronou,	deixando	um	mundo
em	 que	 a	 democracia	 se	 tornava	 o	 passaporte	 para	 a	 comunidade
internacional.	 No	 fim	 de	 nossa	 viagem,	 examinamos	 as	 condições	 para	 a
democracia	 na	China,	 destinada	 a	 se	 tornar	 a	maior	 potência	 econômica	 do
mundo,	para	então	observarmos,	finalmente,	as	mudanças	na	democracia	das
sociedades	ocidentais.
Nem	todas	as	 sociedades	que	examinaremos	cumprem	 todos	os	 requisitos
de	 uma	 democracia	 completa.	 Porém,	 em	 todos	 esses	 lugares	 e	 épocas,
testemunhamos	o	desenvolvimento	da	prática	democrática	 (tal	 como	o	voto)
ou	de	instituições	(como	os	Parlamentos)	que	vieram	a	ser	adotados	mais	tarde
como	 ingredientes	 fundamentais.	 As	 sociedades	 criam	 soluções	 para	 seus
problemas	 específicos,	 algumas	 das	 quais	 ficam	 disponíveis	 para	 ativistas
políticos	 e	 reformadores	 de	 outros	 lugares,	 ávidos	 para	 adaptá-las	mais	 uma
vez	às	suas	próprias	circunstâncias.
Antes	de	embarcar	nessa	jornada	histórica,	há	uma	questão	a	ser	lembrada.
A	narrativa	cronológica	parece	insinuar	um	desenvolvimento,	e	isso	pode	nos
levar	a	falsas	conclusões.	Primeiro,	que	as	democracias	aprenderam	com	o	que
já	 ocorreu.	 Na	 verdade,	 quase	 todas	 as	 democracias	 tiveram	 de	 criar
instituições	e	práticas	democráticas	ao	 seu	modo.	Acreditamos,	por	exemplo,
que	Thomas	 Jefferson	 concebeu	 a	Constituição	 americana	 com	base	 em	 seu
conhecimento	sobre	Atenas	e	Roma	clássicas;	mas,	como	veremos	no	capítulo
6,	 a	 democracia	 americana	 foi	 muito	 mais	 influenciada	 pela	 prática	 das
eleições,	 que	 seus	 cidadãos	 haviam	 trazido	 da	 Grã-Bretanha,	 e	 pela
administração	 das	 igrejas	 puritanas,	 do	 que	 pelo	 mundo	 antigo.	 A	 segunda
suposição	 falsa	 seria	 a	 de	 que	 desenvolvimento	 indique	 melhora.	 Essa
afirmação	pode	ser	derrubada	mais	facilmente	ainda.	A	Atenas	antiga	teve,	sob
muitos	aspectos,	a	democracia	mais	bem	desenvolvida	que	já	existiu,	ao	passo
que,	 em	 tempos	 recentes,	 ela	 passou	 por	 episódios	 contínuos	 de	 declínio,
retrocesso	 e	 crescimento.	 Nossa	 história	 mostra	 que	 existem	 democracias	 em
tempos	 diferentes,	 mas	 que	 a	 democracia	 não	 evolui	 necessariamente	 com	 o
tempo.
A	democracia	está	sempre	em	estado	de	sítio,	porém	ela	é	a	nossa	defesa,
não	 apenas	 contra	 um	 Estado	 opressor,	 mas	 contra	 o	 poder	 enraizado	 do
privilégio	e	das	riquezas	individual	e	corporativa.	Não	se	trata	de	um	conceito
intelectual	 árido,	mas	de	um	 conjunto	de	 convicções	 e	 pressupostos	 inserido
em	nossa	cultura	—	algo	pelo	qual	vale	a	pena	lutar.	Por	mais	 imperfeita	que
seja,	 a	 democracia	 tenta	 solucionar	 o	 grande	 dilema	 da	 vida	 humana:	 como
prosperar	 como	 indivíduo	 e,	 ao	 mesmo	 tempo,	 fazer	 parte	 de	 uma
comunidade.	Com	tudo	isso	em	mente,	vamos	embarcar	na	história	imperfeita
de	um	tema	indefinível.
E
3
ALDEIAS	MEDIEVAIS	E	CIDADES	REPÚBLICAS
O	Cidadão	Burguês
m	 1520,	 o	 artista	 Albrecht	 Dürer	 deixou	 sua	 terra,	 Nuremberg,	 para
passar	 um	 ano	 nos	 Países	 Baixos.	 Em	 seu	 diário,	 ele	 descreve	 uma
procissão	que	passava	pela	cidade	de	Antuérpia	na	Festa	da	Assunção:
[...]	todos	os	habitantes	da	cidade,	de	todas	as	categorias	e	posições	sociais,	estavam	reunidos,	cada	um
vestido	da	melhor	 forma,	de	acordo	com	sua	posição.	E	todas	as	posições	e	associações	 tinham	um
símbolo,	 pelo	 qual	 poderia	 ser	 conhecido	 [...]	 Havia	 os	 Ourives,	 os	 Pintores,	 os	 Construtores,	 os
Fronteiriços,	 os	 Escultores,	 os	 Marceneiros,	 os	 Carpinteiros,	 os	 Marinheiros,	 os	 Pescadores,	 os
Açougueiros,	 os	 Coureiros,	 os	 Tecelões,	 os	 Padeiros,	 os	 Alfaiates,	 os	 Sapateiros	 —	 de	 fato,
trabalhadores	 de	 todos	 os	 tipos	 e	 muitos	 artesãos	 e	 comerciantes	 que	 trabalham	 para	 o	 próprio
sustento.	Também	os	donos	de	lojas,	mercadores	e	seus	assistentes	estavam	lá.1
A	procissão	 era	 acompanhada	 de	músicos	 e	 continha	 um	 grupo	 de	 clérigos,
assim	 como	 uma	 série	 de	 carros	 alegóricos	 e	 imagens	 que	 retratavam	 cenas
bíblicas,	 além	 de	 crianças	 vestidas	 com	 fantasias	 de	muitas	 terras	 —	 e	 levou
mais	 de	 duas	 horas	 para	 passar	 pela	 casa	 de	 Dürer.	 Lá	 estava	 uma	 cidade
medieval	 enriquecida	 pelo	 comércio,	 num	 momento	 de	 diversão,	 prestando
homenagem	a	suas	tradições	—	sociais,	religiosas	e	comerciais	—	e	celebrando
sua	existência.	A	noção	de	orgulho	cívico	e	identidade	nas	cidades	medievais	e
modernas	e	a	 intensa	vitalidade	desses	 receptáculos	 fechados	de	humanidade
formavam	um	elemento	essencial	de	seu	desejo	pelo	autogoverno.
As	cidades	da	maior	parte	da	Europa	pertenciam	ao	reino	de	um	monarca
que	 detinha	 poder	 absoluto,	mas	 havia	 exceções	 que	 nos	 dão	 um	vislumbre
dos	 métodos	 de	 representação	 e	 da	 necessidade	 de	 maior	 participação	 no
governo	que	começamos	a	ver	no	capítulo	anterior.	Duas	áreas	europeias	são
de	 particular	 interesse	 aqui:	 a	 região	 dos	 Países	 Baixos	 (que	 incluía	 Bélgica,
Holanda	e	Luxemburgo)	e	o	norte	da	Itália.
Na	virada	do	primeiro	milênio,	a	terra	pantanosa	em	torno	do	lago	Ijssel,	perto
do	 mar	 do	 Norte,	 foi	 desprezada	 pela	 nobreza	 feudal.	 Com	 inundações
frequentes	e	cheias	de	córregos	perigosos	e	desnorteantes,	essa	era	uma	terra
de	pescadores	e	alguns	criadores	de	gado,	um	lugar	difícil	para	o	cultivo	e	o
assentamento.	 Porém,	 conforme	 o	 comércio	 europeu	 prosperava,	 essa	 área
quase	deserta	tornou-se	um	cruzamento,	uma	ligação	crucial	do	mar	do	Norte
e	do	Báltico	com	o	centro	da	Europa,	por	meio	dos	rios	 Ijssel,	Reno,	Vale	e
Mosa.
No	 fim	do	 século	XI,	 o	 povo	da	 região	 começou	 a	 construir	 diques	 para
conter	a	água	do	mar,	e	sistemas	complexos	de	comportas	para	regular	o	nível
dos	rios	e	as	marés.	Eram	feitos	prodigiosos	de	engenharia,	que	combinavam
confiança,	 ambição	 e	 músculos.	 As	 represase	 comportas	 permitiam	 a
drenagem	 dos	 pântanos	 para	 uso	 pastoril,	 propiciando	 também	 canais
navegáveis	 para	 transporte	 de	 cargas.	 Conjuntos	 sofisticados	 de	 barragens
permitiam	o	controle	do	nível	de	água,	dando	a	agricultores	e	comerciantes	o
bem	precioso	da	previsibilidade.
Os	 diques	 construídos	 por	 esses	 aldeões	 medievais	 eram	 simplesmente
gigantescos.	 Um	 único	 dique	 represava	 toda	 a	margem	 sul	 do	 Ijsselmeer,	 a
partir	 do	 Gooi,	 passando	 pela	 foz	 do	 Amistel,	 quase	 até	 Haarlem	 —	 uma
distância	 de	 cerca	 de	 40	 quilômetros.	 Os	 trabalhos	 de	 engenharia	 exigiram
planejamento	 e	 coordenação	 em	 larga	 escala,	mas	 não	 foram	 realizados	 por
mestres	 feudais.	 Foram	 organizados	 por	 agricultores,	 pescadores	 e
comerciantes	da	região	para	protegerem	suas	terras	e	seus	negócios.	Para	eles,
a	 água	 era	 um	 recurso	 inesgotável	 e	 um	 problema	 eterno,	 e	 lidar	 com	 seus
caprichos	 era	 uma	 questão	 de	 sobrevivência.	 Não	 podiam	 contar	 com	 uma
autoridade	 superior	 para	 lhes	 prestar	 auxílio.	 Tinham,	 literalmente,	 de
arregaçar	as	mangas	e	pôr	mãos	à	obra.
Uma	 vez	 construídos,	 o	 dique	 e	 o	 sistema	 de	 comportas	 exigiam
administração	 e	 manutenção	 constante.	 No	 século	 XII,	 um	 sistema
administrativo	 de	 supervisores	 de	 diques	 (dijkgraven)	 e	 donos	 de	 terras
(ingelanden)	 foi	 estabelecido.	 Um	 historiador	 contemporâneo	 de	 Amsterdã,
Geert	 Mak,	 argumenta	 que	 essa	 necessidade	 doméstica	 fez	 com	 que	 os
holandeses	 “tendessem	 à	 descentralização	 e	 a	 uma	 forma	 rudimentar	 de
democracia,	[que]	viria	a	formar	a	base	da	tradição	administrativa	que,	no	fim,
determinaria	a	cultura	política	holandesa	por	séculos	posteriores”.2
Amsterdã	 começa	 a	 aparecer	 em	 registros	 escritos	 em	 1275	 e	 aqui	 nos	 é
apresentado	 um	 paradoxo	 fundamental	 na	 história	 da	 democracia.	 A	 união
que	 objetiva	 solucionar	 problemas	 comunais,	 tal	 como	 nos	 Países	 Baixos
medievais,	 está	 ausente	 na	 história	 documentada.	 Não	 havia	 necessidade
alguma	 de	 acordos	 escritos	 ou	 estruturas	 políticas	 quando	 a	 questão	 a	 ser
resolvida	 era	 tratada	 de	 forma	 harmoniosa.	 Podemos	 supor	 que,	 nessas
situações,	 as	pessoas	agiam	por	 consenso,	participação	e	uma	necessidade	de
dar	voz	a	todos.	Por	outro	lado,	os	registros	escritos	costumam	chegar	a	essas
comunidades	 com	 a	 vinda	 de	 uma	 autoridade	 formal	 externa,	 que,
invariavelmente,	 é	nociva	ao	 compartilhamento	amplo	do	poder.	A	presença
de	 práticas	 democráticas	 informais	 ou	 não	 documentadas	 precisa	 então	 ser
distinguida	nas	entrelinhas	desses	registros	formais.
Na	declaração	de	1275,	o	conde	Floris	da	Holanda	concedeu	liberdade	de
impostos	 “às	 pessoas	 que	 residiam	 perto	 de	 Amstel	 dam”	 (a	 cidade	 tinha	 o
nome	da	 represa	que	 atravessava	o	 rio	Amstel).	Nessa	 época,	 o	 conde	 tinha
autoridade	 nominal	 sobre	 o	 condado	 de	 Holanda,	 entidade	 pertencente	 ao
Sacro	 Império	 Romano.	 Sua	 concessão	 aos	 moradores	 da	 região	 era
significativa,	uma	vez	que	 cobrava	pedágios	nas	pontes	 e	 comportas	 sob	 seu
controle.	Ainda	que	possa	 ter	 sido	um	ato	de	generosidade	desinteressada,	 é
mais	 provável	 que	 tenha	 sido	 um	 reconhecimento	 da	 realidade	 política.
Embora	não	se	tratasse	ainda	de	habitantes	de	uma	cidade	definida,	o	povo	de
Amstel	 dam	 (da	 represa	 de	Amstel)	 formava	 um	 grupo	 reconhecível	 com	 o
poder	de	negociar	com	seu	soberano.
Geert	 Mak	 descreve	 Amsterdã	 como	 “um	 país	 por	 si	 só,	 uma	 pequena
nação	dentro	de	outra	maior”	—	uma	afirmação	que	poderia	se	referir	a	muitas
cidades	 medievais.3	 Em	 1296,	 quando	 a	 família	 Van	 Aemstel	 liderou	 uma
rebelião	 contra	 o	 conde	 de	Holanda,	 a	 cidade	 tinha	muralhas	 e	 um	 castelo
pouco	 expressivo.	 Eles	 foram	 demolidos	 quando	 a	 rebelião	 fracassou	 (e
somente	redescobertos	no	século	XX),	mas	em	1305	os	cidadãos	de	Amsterdã
foram	reconhecidos	formalmente	pelo	bispo	de	Utrecht,	com	direitos	além	da
autoridade	da	administração	da	igreja	local,	do	conde	da	Holanda	e	dos	Van
Aemstels.
Ninguém	abre	mão	do	poder	sem	um	motivo.	A	decisão	de	deixar	a	cidade
e	seus	habitantes	fora	da	autoridade	da	Igreja,	do	imperador	e	da	nobreza	foi
mais	um	reconhecimento	da	realidade	política.	Os	instrumentos	de	autoridade
que	 haviam	 crescido	 sob	 o	 sistema	 que	 entrelaçava	 o	 feudalismo	 e	 a	 Igreja
Católica	 não	 davam	 conta	 do	 mundo	 novo	 do	 comércio	 urbano.	 Novas
habilidades,	 novos	 níveis	 de	 experiência	 e	 competência	 conquistada	 com
esforço	 eram	 necessários	 e	 simplesmente	 não	 podiam	 ser	 supridos.	 Na	 área
rural,	os	cavaleiros	feudais	podiam	governar	suas	terras	com	impunidade,	e	o
sistema	 hierárquico	 produzia	 excedentes	 suficientes	 para	 manter	 o
funcionamento	 do	 sistema;	mas	 dirigir	 uma	 cidade	 exigia	 a	 cooperação	 dos
cidadãos.	 Na	 economia	 social,	 política	 e	 mercantil,	 uma	 única	 autoridade
absoluta	 serviria	 apenas	 para	 oprimir	 a	 atividade	 diversificada	 e	 espontânea
que	 dava	 propósito	 à	 cidade.	 O	 reconhecimento	 desse	 fato	 não	 se	 deu
facilmente,	 e	 durante	 séculos	 diferentes	 poderes	 tentaram	 intrometer-se	 em
Amsterdã	e	em	outras	cidades	de	modo	mais	ou	menos	bem-sucedido.	Porém,
mesmo	quando	não	estava	no	 controle	 explícito,	 o	poder	 compartilhado	dos
cidadãos	 foi	 um	 elemento	 importante	 no	 governo	 das	 cidades	 europeias	 dos
tempos	medievais	em	diante.
Acontecimentos	ao	sul	de	Amsterdã	impulsionaram	ainda	mais	a	política	da
região	 em	 direção	 ao	 autogoverno.	 No	 fim	 do	 século	 XII,	 as	 cidades	 de
Flandres	haviam	enriquecido	com	o	comércio	de	 lã.	Gante,	Bruges,	Coutrai,
Hesdin	e	Béthune	estavam	entre	as	cidades	mais	ricas	da	Europa,	contudo	o
comércio	 e	 o	 governo	 das	 cidades	 estavam	 nas	 mãos	 de	 algumas	 famílias
patrícias	que	tinham	o	apoio	do	rei	francês,	Felipe	IV.	Os	artesãos	de	Flandres
tinham	 aliados	 solidários	 entre	 os	 condes	 locais,	 que	 contestavam	 a
reivindicação	 francesa	 da	 jurisdição	 de	 Flandres.	 Em	 1302,	 a	 situação	 se
inflamou	 quando	 os	 trabalhadores	 têxteis	 de	 Gante	 entraram	 em	 greve	 por
causa	de	impostos.	Ao	serem	ameaçados	com	punições	violentas	pela	nobreza
governante,	eles	se	agruparam	sob	os	estandartes	de	seu	ofício	—	há	indícios	de
que	 os	 artesãos	 já	 estavam	 organizados	 em	 milícias	 —,	 embora	 fosse	 ilegal
congregar	sem	permissão.	Dez	mil	trabalhadores	reuniram-se	no	Mercado	das
Sextas-Feiras	 e	 começaram	 a	 conduzir	 os	 nobres	 da	 cidade	 pelas	 ruas.	 A
maioria	escapou	para	a	cidadela	de	Gravensteen,	onde,	após	um	breve	cerco,
renderam-se	 e	 foram	 forçados	 a	 jurar	 lealdade	 às	 pessoas	 comuns.	 O
governador	francês	se	preparou	para	enfrentar	os	trabalhadores	em	Bruges,	e
o	Exército	francês	tomou	a	cidade	no	dia	17	de	maio	de	1302.	Mas	os	rebeldes
ficaram	 escondidos	 e,	 na	manhã	 seguinte,	 usando	 o	 sino	 da	 prece	matutina
como	sinal,	 cortaram	a	garganta	de	120	 franceses	 e	de	muitos	outros	de	 sua
própria	nobreza.	Depois,	no	dia	11	de	julho,	os	artesãos	flamengos	derrotaram
a	 nobreza	 francesa	 na	 chamada	Batalha	 das	Esporas	 de	Ouro.	A	 vitória,	 na
qual	 a	 vangloriosa	 cavalaria	 francesa	 atolou	 no	 terreno	 pantanoso,	 serviu
como	 símbolo	 da	 independência	 flamenga	 e	 foi	 o	 trampolim	 para	 uma
mudança	 na	 política	 dos	 Países	 Baixos.	 Em	 Flandres,	 as	 ricas	 cidades
produtoras	de	 lã	 e	 as	 corporações	de	ofício	 começaram	a	mostrar	 sua	 força,
buscando	 não	 apenas	 proteção	 contra	 impostos,	 mas	 também	 uma	 voz	 no
governo	—	em	Liège,	por	exemplo,	a	partir	de	1303,	metade	dos	assentos	no
conselho	da	cidade	era	reservada	para	as	corporações	de	ofício.	As	conquistas
das	 corporações	 nunca	 foram	 estabelecidas	 de	 forma	 permanente,	 com	 a
nobreza,	a	Igreja	e	os	Exércitos	estrangeiros,	todos	rivalizando	pelo	poder,	mas
se	 tornaram	 um	 elemento	 notável	 nas	 lutas	 políticas	 por	 poder	 nas	 cidades
flamengas.
Uma	cartaconstitucional	de	1305	decretou	que	Amsterdã	fosse	governada
por	 conselheiros	 e	 um	 xerife.	 Os	 conselheiros,	 que	 eram	 eleitos	 dentre	 os
cidadãos	qualificados	(conhecidos	como	burgueses),	podiam	aprovar	e	aplicar
leis	e	conceder	ou	recusar	cidadania.	A	carta	teve	eco	em	documentos	similares
redigidos	nos	séculos	XII,	XIII	e	XIV	em	cidades	da	Europa,	de	Bristol	(1155)
a	Mogúncia	 (1244),	Rouen	 (1150),	Gdansk	 (1235)	e	Lübeck	 (1143).	Se	eram
concedidas	por	monarcas,	condes	ou	bispos,	 isso	dependia	do	poder	regional
dominante	 na	 época,	mas	 todas	 davam	proteção	 aos	 direitos	 dos	 cidadãos	 e
comerciantes.4	 Uma	 carta	 proibia,	 por	 exemplo,	 que	 qualquer	 pessoa
comercializasse	 por	mais	 de	 quarenta	 dias	 em	 qualquer	 ano	 numa	 cidade,	 a
menos	que	fosse	cidadã,	e	dava	aos	burgueses	o	direito	de	eleger	um	prefeito	e
um	 conselho	 —	 e	 até	 de	 governarem	 a	 si	 mesmos,	 como	 aconteceu	 em
Mogúncia	e	Rouen.
No	 século	XV,	Amsterdã	era	um	 importante	 centro	mercantil,	 governado
por	quatro	burgomestres,	um	xerife,	sete	magistrados	(posteriormente	nove)	e
um	 conselho	 municipal.	 O	 conselho	 de	 36,	 que	 representava	 todos	 os
cidadãos,	mas	era,	em	grande	parte,	 formado	por	mercadores	ricos,	elegia	os
burgomestres	que	dirigiam	a	cidade	durante	o	seu	ano	no	cargo.	O	conselho
todo	 era	 consultado	 a	 respeito	 de	 decisões	 importantes,	 por	 exemplo,	 sobre
apoiar	explorações	militares	de	outras	cidades,	tal	como	a	expedição	holandesa
de	1398	contra	os	frisões.
Em	Amsterdã	e	em	outras	cidades	da	Europa,	o	 fim	do	período	medieval
testemunhou	 o	 surgimento	 de	 um	 novo	 tipo	 de	 europeu.	 Nem	 nobre	 nem
clérigo,	 artesão	 ou	 camponês,	 o	 comerciante	 urbano	 não	 contava	 com	 uma
linhagem	 antiga	 para	 deixar	 sua	 marca	 no	 mundo.	 O	 dinheiro	 começou	 a
dominar	a	 sociedade,	 e	os	 comerciantes	de	Amsterdã	conheciam	seu	próprio
valor.	Alguns	comercializavam	o	próprio	dinheiro	e	se	tornaram	imensamente
ricos	e	politicamente	poderosos	com	isso.	Esses	homens	e	suas	 famílias	eram
os	 burgueses	 das	 novas	 cidades	 europeias,	 em	 cujas	 cartas	 de	 direitos,
incluindo	a	de	Amsterdã,	o	status	de	burguês	era	distinto.	A	qualificação	exigia
certo	 período	 de	 residência,	 uma	 quantidade	 de	 propriedades	 ou	 renda
tributável	 e	 a	 aprovação	 de	 seus	 iguais.	 A	 aprovação	 dependia	 tanto	 da
conveniência	 quanto	 de	 suas	 conexões,	 e	 o	 conselho	 de	 Amsterdã	 tinha	 o
poder	final	de	decidir	quem	poderia	entrar	nesse	círculo	especial.	Os	limites	da
associação,	 a	 linha	 que	 cercava	 o	 grupo	 privilegiado	 de	 cidadãos,	 eram
cuidadosamente	controlados.
Conhecemos	 alguns	 detalhes	 do	 governo	 dessas	 cidades	 por	 meio	 dos
textos	 de	 Ludovico	 Guicciardini,	 um	 florentino	 cuja	 Descrição	 da	 cidade	 de
Antuérpia	 foi	 publicada	 pela	 primeira	 vez	 em	 1567.	 De	 acordo	 com
Guicciardini,	 o	 governo	 nominal	 da	 cidade	 era	 do	 duque	 de	 Brabante,
enquanto	margrave	 (ou	 representante	 local)	 do	 Sacro	 Império	 Romano.	 Ele
observa	 que	 a	 cidade	 tem	 “grandes	 privilégios	 de	 tal	 caráter,	 obtidos	 e
concedidos	 desde	 tempos	 imemoriais,	 de	 modo	 que	 agora	 governa	 e
administra	a	si	própria,	como	se	fosse	autônoma,	quase	como	uma	cidade	livre
ou	república,	sempre	respeitando	os	direitos	e	a	suserania	do	príncipe”.5	Essa
frase	resume	a	posição	das	cidades	por	toda	a	Europa	—	deixadas	a	cuidar	de
seus	 próprios	 assuntos,	 desde	 que	 respeitassem	 a	 autoridade	 de	 um	 poder
externo.
Dois	 outros	 elementos	 da	 sociedade	 urbana	 contribuíram	 para	 o
desenvolvimento	 das	 práticas	 e	 instituições	 democráticas	 —	 a	 defesa	 e	 a
religião.	O	controle	exercido	pela	força	militar	era	o	poder	político	máximo,	e
Amsterdã	 estava	 na	 posição	 peculiar,	 mas	 de	modo	 algum	 única,	 de	 ter	 de
organizar	 sua	 própria	 defesa,	 mesmo	 sendo	 parte	 nominal	 de	 um	 império.
Companhias	 armadas	 e	 grupos	 de	 milícia	 surgiram	 com	 o	 dever	 solene	 de
defender	a	cidade.	Essas	unidades	auto-organizadas	eram	comuns	nas	cidades
europeias.	 (Veremos	 mais	 delas	 na	 Itália	 neste	 capítulo.)	 Começando	 com
vizinhos	 que	 se	 agrupavam	 para	 se	 defender,	 tornaram-se	 sociedades	 ou
irmandades	 formais	 de	 artesãos.	 As	 autoridades	 municipais	 que	 tentaram
regulá-las,	mas	elas	tinham	o	potencial,	como	já	vimos	em	Gante,	de	tomar	o
poder	para	si.6	A	defesa,	porém,	era	principalmente	um	fator	unificante	entre
os	 moradores	 das	 cidades	 na	 Europa,	 cuja	 noção	 de	 interesse	 comum	 era
reforçada	 pelas	 muralhas	 que	 os	 cercavam.	 Nas	 cidades	 medievais,	 a
autodefesa	e	a	defesa	da	comunidade	significavam	quase	a	mesma	coisa:	todos
estavam	 envolvidos	 no	 bem-estar	 de	 todos.	 Os	 portões	 de	 Amsterdã	 e	 de
centenas	 de	 outras	 cidades	 eram	 fechados	 e	 trancados	 todas	 as	 noites,	 e	 as
chaves,	 entregues	 em	 cerimônia	 ao	 prefeito	 ou	 burgomestre,	 que
supervisionavam	a	reabertura	ao	nascer	do	sol.
O	 fato	 de	 que	 a	 religião	 participava	 do	 desenvolvimento	 do	 governo	 das
cidades	não	chega	a	ser	surpreendente.	A	Europa	medieval	era	uma	sociedade
cristã.	Os	habitantes	viam	todos	os	aspectos	de	sua	vida	através	do	prisma	da
fé.	 A	 partir	 da	 década	 de	 1520,	 a	 Reforma	 dividiu	 a	 Europa	 em	 Estados
católicos	e	protestantes,	intensificou	a	crença	religiosa	e	transformou	a	religião
numa	força	política	ativa.	Essa	divisão	atravessou	os	Países	Baixos,	e	no	fim	do
século	XVI	precipitou	os	Estados	menores	numa	guerra	contra	o	governante
católico	da	dinastia	de	Habsburgo,	Felipe	 II,	da	Espanha.	O	sonho	de	Felipe
era	 restabelecer	 a	 fé	 católica	 na	 Europa.	 Um	 importante	 obstáculo	 era	 a
Inglaterra	protestante,	o	outro	eram	as	províncias	calvinistas	dos	Países	Baixos.
Felipe	viu	que,	se	conseguisse	dominar	os	calvinistas	holandeses	e	trazê-los	de
volta	à	fé	católica,	a	região	seria	um	ponto	de	partida	ideal	para	uma	invasão	à
Inglaterra.
A	dimensão	religiosa	da	Revolta	Holandesa	de	1568-1609	é	central	para	a
história	da	democracia.	O	protestantismo	do	norte	da	Europa	 abrangia	uma
série	de	práticas	e	interpretações	da	fé	cristã.	No	entanto,	todos	os	protestantes
acreditavam	 na	 importância	 da	 fé	 e	 da	 consciência	 do	 fiel	 individual.	 Isso
retirava	o	status	da	hierarquia	da	Igreja,	uma	vez	que	padres	e	bispos	seriam
um	 obstáculo	 desnecessário	 na	 relação	 entre	 o	 fiel	 e	 Deus.	 A	 Igreja	 se
transformou	em	seus	membros,	e	a	organização	e	administração	da	Igreja,	um
processo	de	debate	e	acordo	entre	os	fiéis.
A	 visão	 de	 que	 a	 democracia	 moderna	 é	 o	 produto	 de	 uma	 cultura
protestante	 deve	 ser	 fortemente	 determinada	 pelos	 acontecimentos	 na	 Itália
católica	 (ver	adiante).	Porém,	o	papel	dos	calvinistas	e	de	outros	grupos	não
conformistas	 merece	 um	 exame	 mais	 aprofundado.	 Martinho	 Lutero,	 o
teólogo	 original	 da	 Reforma,	 enfatizara	 a	 necessidade	 da	 devoção	 e	 de	 um
retorno	à	simplicidade	inicial	da	Igreja	Cristã.	Por	outro	lado,	os	ensinamentos
de	João	Calvino	tiveram	muito	mais	repercussão	entre	os	burgueses	do	século
XVI	 e	 foram	 amplamente	 adotados	 pelos	 habitantes	 das	 cidades	 nos	 Países
Baixos,	assim	como	na	Escócia	e	entre	um	número	cada	vez	maior	de	ingleses.
Uma	breve	análise	das	origens	do	trabalho	de	Calvino	ajudará	a	demonstrar
que	sua	influência	foi	muito	diferente	da	de	Lutero.
Calvino	 era	 um	 pastor	 da	 França	 que	 rompeu	 com	 a	 Igreja	Católica	 por
volta	de	1530	e	fugiu	para	a	Suíça.	Em	1536,	ele	publicou	As	institutas	da	religião
cristã	 e,	 em	 seguida,	 foi	 convidado	 a	 trabalhar	 para	 a	 Igreja	 Protestante	 de
Genebra.	A	cidade	obteve	sua	independência	dos	duques	de	Savoia	em	1530,
formando	um	tratado	com	as	cidades	próximas	de	Berna	e	Friburgo.	Após	um
desentendimento	 que	 levou	 à	 sua	 expulsão,	 Calvino	 foi	 convidado	 a	 voltar
para	Genebra	 pelo	 conselho	 da	 cidade	 em	1541.	 Sua	 influência	 transformou
Genebra	 numa	 teocracia	 protestante	 efetiva,	 com	 refugiados	 religiosos	 eestudiosos	 afluindo	 para	 a	 cidade,	 vindos	 dos	 países	 católicos	 vizinhos.
Calvino	 e	 seus	 defensores	 fizeram	 da	 cidade	 o	 centro	 de	 um	 movimento
continental,	 incentivando	 a	 tradução	 e	 a	 impressão	 de	 centenas	 de	 textos
protestantes	 que	 eram	 proibidos	 em	 outras	 partes	 da	 Europa,	 assim	 como
instruindo	pastores	para	divulgarem	as	ideias	da	Reforma.
Assim	como	Lutero,	Calvino	acreditava	na	predestinação:	que	o	destino	de
cada	 um	 é	 traçado	 antes	 do	 nascimento	 e,	 além	disso,	 que	 a	 distância	 entre
Deus	 e	 o	 indivíduo	 é	 tão	 grande	 que	 nenhum	 conjunto	 de	 bons
comportamentos	terá	qualquer	 influência	sobre	uma	divindade	onipotente.	O
trabalho	 árduo,	 o	 serviço	 à	 comunidade,	 a	 devoção	 e	 o	 prestígio	 não	 eram
meios	de	obter	a	salvação,	mas	possíveis	indicações	de	estar	entre	os	escolhidos
por	Deus.	Os	calvinistas	estavam	num	estado	contínuo	de	desconhecimento	do
próprio	 destino	 e,	 portanto,	 eram	 rigorosos	 em	 sua	 dedicação	 aos	 deveres
cristãos.	Para	os	comerciantes	autossuficientes,	devotos	e	moderados	do	norte
da	 Europa,	 o	 incentivo	 ao	 bom	 comportamento,	 à	 sobriedade	 e	 à	 boa
vizinhança	 tinha	 um	 efeito	 profundo.	 Calvino	 também	 fornecia	 os
instrumentos	—	a	teologia,	os	livros	de	orações,	a	liturgia	e	os	pastores	—	pelos
quais	suas	visões	seriam	transmitidas.
Junto	com	seus	primos	holandeses	de	Haarlem,	Leiden	e	de	outros	lugares,
os	calvinistas	amsterdaneses	acreditavam	que	a	palavra	de	Deus	estava	acima
das	 ordens	 dos	 imperadores	 e	 reis.	 O	 historiador	 de	 Amsterdã,	 Hajo
Brugmans,	escreveu	que	“o	calvinismo	começou	na	cidade	livre	[de	Genebra]	e
nunca	 traiu	 suas	 origens.	 Teve	 início	 entre	 cidadãos	 libertos	 da	 autoridade
nobre	e	nunca	negou	seu	nascimento”.7	O	calvinismo,	produto	de	uma	cidade
livre,	foi	bem	recebido	nas	cidades	livres	dos	Países	Baixos.
A	 cultura	 religiosa	 calvinista	 —	 na	 qual	 somente	 Deus	 tinha	 o	 direito	 de
governar	os	homens	—	se	manifestava	na	política	de	formas	diversas.	O	século
XVI	presenciara	o	fortalecimento	das	monarquias	nacionais	na	maior	parte	da
Europa	Ocidental,	incluindo	Espanha,	França,	Inglaterra,	Escócia	e	Suécia.	O
Sacro	Império	Romano	da	dinastia	dos	Habsburgo	era	uma	exceção,	e	quando
as	 províncias	 holandesas	 derrubaram	 os	 Habsburgo	 do	 poder	 tinham	 de
decidir	 como	 governar	 a	 si	 mesmas.	 Em	 1588,	 as	 Províncias	Unidas,	 como
passaram	 a	 ser	 conhecidas,	 declararam-se	 uma	 república	 independente	 —	 a
primeira,	 desde	 os	 tempos	 antigos,	 a	 abarcar	 uma	 nação	 em	 vez	 de	 uma
Cidade-Estado.	Era	uma	ação	revolucionária	e	foi	bem-recebida	nas	cortes	dos
monarcas	europeus.
A	 tolerância	 social	 e	 religiosa	 da	 república	 holandesa	 espalhou	 sua
influência	política	muito	além	de	suas	terras.	Inconformistas	de	todos	os	tipos
viajavam	 às	 Províncias	Unidas	 para	 escapar	 da	 perseguição	 em	 seus	 países.
John	 Locke	 fugiu	 para	 lá	 em	 1683,	 sob	 suspeita	 de	 envolvimento	 numa
conspiração	contra	o	 rei	 inglês.	René	Descartes	morou	em	diferentes	cidades
da	república	de	1628	a	1649,	período	em	que	escreveu	a	maior	parte	de	seus
trabalhos	mais	 importantes.	 E	 foi	 uma	 congregação	 de	 exilados	 ingleses	 em
Leiden	que	organizou	a	história	da	viagem	do	Mayflower,	em	1621.	O	Mayflower
representa	 uma	 conexão	 direta	 entre	 a	 república	 holandesa	 e	 o	 início	 da
história	dos	Estados	Unidos,	cujo	nome	é	um	eco	das	Províncias	Unidas.	Em
1643,	 os	 colonizadores	 da	 América	 do	 Norte	 se	 denominaram	 Colônias
Unidas	 da	Nova	 Inglaterra	 e,	 como	 veremos	 no	 capítulo	 6,	 sua	 consciência
religiosa	viria	a	ser	um	elemento	central	na	vida	política	das	colônias.
A	principal	religião	nas	províncias	também	teve	um	impacto	na	política	de
outros	lugares.	O	calvinismo	foi	um	fator	central	durante	a	Revolução	Inglesa,
uma	 vez	 que	 os	 soldados	 do	 Exército	Novo	 levavam	Bíblias	 de	Genebra	 com
notas	 nas	margens	 que	 aprovavam	 a	 remoção	 de	 tiranos.	 A	 ligação	 entre	 a
república	 holandesa	 e	 a	 Grã-Bretanha	 foi	 firmemente	 estabelecida	 em	 1688,
quando	o	Parlamento	inglês	convidou	Guilherme	de	Orange,	estatuder	de	cinco
das	Províncias	Unidas,	para	ser	o	rei	da	Inglaterra	e	da	Irlanda.	(Durante	o	seu
reinado,	também	se	tornou	rei	da	Escócia,	e	os	países	foram	unidos	no	reino
da	Grã-Bretanha.)	Nas	Províncias	Unidas,	Guilherme	foi	príncipe	nomeado	ao
posto	 de	 estatuder	 pelos	 conselhos	 de	 diferentes	 províncias	 e	 recebeu	 o
comando	do	Exército	—	na	verdade,	ganhou	o	cargo	por	sua	destreza	militar
nas	guerras	contra	franceses	e	ingleses.	Estava,	portanto,	bastante	acostumado
às	disposições	constitucionais	concebidas	pelo	Parlamento	inglês	(ver	capítulo
4);	o	modo	de	 funcionamento	da	república	holandesa	certamente	permeou	o
sistema	político	britânico	que	surgiu	depois	de	1688.
A	República	 das	Províncias	Unidas	 nasceu	numa	 cultura	 de	 autonomia	 e
justiça,	 um	 domínio	 urbano	 de	 trabalho	 árduo	 e	 consciência	 religiosa	 que
inseria	 o	 indivíduo	 numa	 comunidade	 de	 devotos.	 Essa	 foi	 a	 mensagem
espalhada	pelo	mundo	protestante.
Fora	 dos	 Países	 Baixos,	 as	 cidades	 medievais	 que	 apresentaram	 os
desenvolvimentos	 mais	 interessantes	 do	 autogoverno	 estavam	 no	 norte	 da
Itália.	As	fascinantes	inovações	na	pintura,	arquitetura	e	escultura	que	marcam
a	Renascença	italiana	dominaram	nossa	visão	da	história	das	cidades	italianas,
mas	as	grandes	conquistas	artísticas	e	culturais	do	século	XV	não	resultaram
do	 patrocínio	 das	 famílias	 Médici,	 Sforza	 e	 Gonzaga,	 mas	 das	 mudanças
políticas	e	sociais	que	ocorreram	nos	séculos	anteriores.
O	que,	 então,	 tinham	de	 especial	 cidades	 como	Veneza,	 Florença,	 Pádua,
Milão,	Gênova,	Urbino,	 Siena,	Pisa	 e	Verona?	Primeiro,	 a	 ausência	de	uma
autoridade	 controladora	 externa	 —	 imperador,	 rei	 ou	 papa	 —	 dava	 a	 essas
cidades	 a	 necessidade	 e	 a	 oportunidade	 de	 dirigir	 seus	 próprios	 negócios.
Segundo,	 a	 riqueza	gerada	pelo	 comércio	 e	pela	manufatura	 era	maior	nessa
região	do	que	em	qualquer	outra	(embora	Flandres	tenha	se	igualado	durante
um	 período),	 e	 isso	 deu	 às	 cidades	 italianas	 tanto	 os	 recursos	 para	 se
protegerem	quanto	 para	 projetarem	 seu	 poder	 sobre	 a	 área	 à	 sua	 volta.	 Em
qualquer	 lugar	 que	 os	 dois	 fatores,	 fraca	 autoridade	 externa	 e	 prosperidade,
surgiam	na	Europa,	o	autogoverno	da	cidade	florescia.	De	meados	do	século
XI	 em	 diante,	 as	 cidades	 que	 se	 encontravam	 nas	 fronteiras	 de	 domínios
poderosos	 —	 em	 Lorena,	 na	 Borgonha,	 no	 Baixo	 Reno,	 na	 Suábia,	 no
Danúbio,	 em	Toulouse	 e	 Languedoc,	Marselha,	 Provença	 e	 no	 corredor	 do
Ródano	—	todas	desenvolveram	formas	vigorosas	de	autogoverno,	mas	foi	no
norte	da	Itália	que	o	governo	das	cidades	foi	mais	desenvolvido	e	onde	teve	a
maior	 e	 mais	 duradoura	 influência.	 Durante	 o	 fim	 do	 período	medieval,	 as
cidades	 italianas	 desenvolveram	um	modelo	 político	 que	 substituiu	 o	Estado
feudal:	baseado	no	comércio	e	não	na	vassalagem,	ele	estabeleceria	as	bases	da
política	ocidental	moderna.
No	século	XII,	o	norte	da	Itália	estava	no	extremo	sul	do	arco	dourado	do
comércio	europeu,	uma	área	de	terras	ricas	para	o	cultivo,	manufaturas,	rotas
de	 comércio	 e	 mercados	 prósperos,	 que	 ia	 da	 costa	 da	 Grã-Bretanha	 e	 do
Báltico,	passando	pelos	Países	Baixos	e	pelo	corredor	do	Reno,	Champanhe,
Franche-Comté	 e	 Ródano,	 atravessando	 os	 Alpes	 até	 a	 Lombardia	 e	 a
Toscana,	e	em	particular	a	Veneza	e	Gênova,	com	seu	acesso	ao	Mediterrâneo
e	às	riquezas	do	Oriente.	Desde	a	desintegração	do	Império	Romano,	o	norte
da	 Itália	 havia	 sido	 campo	 de	 batalha	 entre	 poderes	 externos	 ou	 uma	 parte
desprezada	do	império.	Nas	palavras	de	um	historiador,	a	Itália	no	século	XI	e
início	 do	 XII	 era	 um	 lugar	 de	 “ruínas	 políticas	 e	 autoridade	 confusa”.8	 A
Lombardia	e	a	Toscana	eram	governadas	oficialmente	pelo	rei	alemão	e	pelo
Sacro	 Imperador	 Romano,	 em	 cuja	 ausênciaos	 senhores	 feudais,	 condes	 e
bispos	tentavam	agarrar-se	a	poderes	concedidos	por	costumes	e	práticas.	Mas
esse	mundo	estava	mudando	rápido.
Após	séculos	de	estagnação,	a	população	europeia	local	cresceu	de	cerca	de
35	milhões	no	ano	mil	para	73	milhões	em	1340,	às	vésperas	da	Peste	Negra.9
Esse	crescimento	 foi	possível	graças	ao	desmatamento	e	à	drenagem	de	mais
terras,	 que,	 consequentemente,	 tornaram-se	 bens	 ainda	 mais	 desejáveis.	 As
disposições	feudais	começaram	a	se	alterar	quando	a	terra	passou	a	ser	trocada
por	dinheiro	ou	apoio	político	em	vez	de	fidelidade	e	serviços.	A	chave	aqui	foi
a	 crescente	 economia	 comercial	 com	 base	 no	 dinheiro.	 Que	 permitiu	 aos
nobres	mudarem-se	para	cidades	em	vez	de	permanecerem	em	suas	próprias
terras.	Esse	foi	um	tempo	de	uma	revolução	comercial	amplamente	anunciada
e	que	foi	liderada	pela	Itália.	Banqueiros	de	Veneza,	Florença,	Milão	e	Gênova
começaram	 a	 emitir	 letras	 de	 câmbio	 que	 podiam	 ser	 usadas	 como	 moeda
corrente	 e	 compensadas	 numa	 rede	 cada	 vez	 maior	 de	 mercados	 europeus.
Durante	 séculos,	 a	 riqueza	 e	 o	 poder	 tinham	 estado	 atrelados	 à	 posse	 e	 ao
controle	 da	 terra.	Agora,	 a	 riqueza	 começou	 a	 ser	 contada	 em	dinheiro	 que
podia	ser	usado	para	a	compra	de	mercadorias	por	todo	o	continente.
Somavam-se	a	essa	nova	realidade	comercial	as	confusões	do	poder.	Desde
a	 época	 de	 Carlos	Magno,	 a	 unidade	 de	 jurisdição	 feudal	 era	 o	 contado,	 ou
condado,	 de	 um	 conde,	 enquanto	 a	 Igreja,	 uma	 força	 política	 e	 religiosa
poderosa,	 era	 organizada	 em	 dioceses	 e	 paróquias.	O	 contado	 e	 a	 diocese	 do
bispo	 costumavam	 coincidir,	 mas	 nem	 sempre:	 em	 Siena,	 por	 exemplo,
algumas	paróquias	do	contado	pertenciam	a	duas	dioceses.	Mesmo	no	domínio
secular,	 a	 autoridade	 era	 confusa	 entre	 duas	 famílias	 que	 reivindicavam
direitos	 sobre	o	mesmo	 território	por	meio	de	 títulos	de	nobreza	 concedidos
por	 diferentes	 príncipes.	 A	 Igreja,	 sendo	 dona	 de	 terras	 e	 propriedades,
precisava	 se	 proteger	 contra	 agressões	 da	 nobreza	 local	 e	 o	 fazia,	 com
frequência,	 apelando	 para	 a	 autoridade	 do	 imperador.	 Em	 documentos	 que
datam	 desde	 843,	 o	 bispo	 de	 Arezzo	 recebeu	 do	 imperador	 a	 autoridade
temporária	 sobre	 sua	 diocese	 em	 detrimento	 do	 conde	 local.	 Em	 1055,	 o
imperador	 conferiu	 terras	 à	 igreja	 de	 Siena	 com	 as	 seguintes	 instruções:
“Também	 desejamos	 e	 ordenamos	 que	 o	 bispo	 tenha	 o	 direito	 a	 serviços
públicos	 que	 se	 encontrem	nas	mencionadas	 possessões	 de	 sua	 igreja,	 sem	 a
interferência	de	nenhum	arcebispo,	bispo,	duque,	margrave,	 conde,	visconde
ou	qualquer	outra	pessoa	de	nossos	domínios.”10
Desse	modo,	era	comum	que	o	bispo	fosse	o	senhor	feudal	e	religioso	das
terras	de	sua	diocese,	o	que	o	 tornava	um	governante	alternativo	nos	 limites
do	 contado.	 No	 entanto,	 o	 imperador	 podia	 conceder	 poderes	 ao	 bispo,	 mas
outros	eram	favorecidos	pelo	Papa.	O	que	importava,	é	claro,	eram	os	poderes
de	 fato,	os	quais	estavam	cada	vez	mais	concentrados	nas	cidades	em	franco
crescimento.	A	questão	era:	quem	controlaria	esses	poderes?
Os	primeiros	passos	para	o	desenvolvimento	de	estruturas	políticas	formais
fora	dos	interesses	conflitantes	da	Igreja,	de	condes,	príncipes	e	do	imperador
se	 deram	 na	 década	 de	 1080.	 Nesse	 período,	 seis	 das	 principais	 cidades	 da
Itália	 —	 Pisa,	 Luca,	 Milão,	 Parma,	 Roma	 e	 Pavia	 —	 organizaram-se	 em
comunas.	Homens	de	posses	 e	prestígio,	 exasperados	diante	da	 falta	de	uma
autoridade	estável,	 formaram	associações	nas	quais	 juravam	lealdade	uns	aos
outros	 e	 se	 declaravam	a	 autoridade	 governante.	Nos	 setenta	 e	 poucos	 anos
seguintes,	Placência,	Asti,	Arezzo,	Gênova,	Como,	Verona,	Bolonha,	Siena	e
Florença	também	se	tornaram	comunas.	O	viajante	judeu	Benjamin	de	Tudela
observou	que	“Elas	não	possuem	rei	nem	príncipe	para	governá-las,	apenas	os
juízes	nomeados	por	si	mesmos”.11	Essas	eram	oligarquias	exclusivas	nas	quais
os	cargos,	às	vezes	chamados	consulados,	numa	imitação	intencional	de	Roma,
eram	 rotativos.	 Há	 alusões	 a	 assembleias	 populares	 na	 fase	 inicial	 das
comunas:	 cônsules	 em	 Pisa,	 por	 exemplo,	 afirmavam	 que	 sua	 autoridade
provinha	de	“todo	o	povo	de	Pisa	em	reunião	pública,	por	meio	de	um	grito
de	Fiat,	fiat”,	enquanto	em	Cremona,	em	1120,	cavaleiros	que	recebiam	terras
faziam	um	juramento	diante	das	pessoas	“e	de	todo	o	Parlamento”.12
No	 entanto,	 as	 assembleias	 públicas	 parecem	 ter	 sido	 rapidamente
substituídas	 por	 conselhos	 que	 serviam	 à	 comuna	 de	 formas	 diferentes.	 Seu
tamanho	 variava,	 mas	 há	 indicações	 de	 níveis	 notáveis	 de	 participação.	 O
grande	conselho	de	Verona,	 em	1254,	 teve	1.285	membros,	 e	o	 conselho	de
Módena,	 em	 1306,	 1.600.	 Em	 Pisa,	 em	 1162,	 havia	 91	 cargos	 oficiais	 na
comuna,	 incluindo	vigilantes	e	fiscais	de	ruas	e	esgotos,	mas	também	peritos,
avaliadores	de	moedas	e	inspetores	de	contas.	Em	1254,	Siena	tinha	860	cargos
oficiais.	 Métodos	 de	 eleição	 para	 o	 conselho	 eram	 tão	 variados	 quanto	 os
apresentados	 no	 capítulo	 2,	 incluindo	 sorteios,	 eleições	 indiretas	 com	 dois
estágios	 e	 eleições	 por	 oficiais	 que	 estavam	 deixando	 o	 cargo	 —	 e	 às	 vezes
combinações	dos	três.
As	 cidades	 italianas	 e	 outras	 cidades	 europeias	 podem	 ter	 permanecido
dentro	dos	domínios	de	reis	e	imperadores,	mas	eles	eram	figuras	distantes	que
não	 demonstravam	 interesse	 algum	 nos	 problemas	 a	 serem	 resolvidos	 nos
níveis	básicos	da	vida	urbana.	Para	os	moradores	das	cidades,	a	igreja	era	um
elemento	importante	em	todos	os	aspectos	da	vida,	e	as	estruturas	delas	eram,
além	de	físicas,	humanas	também.	Os	boni	homines,	ou	“homens	de	confiança”,
eram	eleitos	por	associações	de	paróquias	para	manterem	a	estrutura	da	igreja
paroquial,13	 e	 esse	 sistema	 se	 estendia	 para	 outras	 necessidades	 básicas	 da
comuna,	 como	 o	 abastecimento	 de	 água	 e	 a	 higiene	 pública,	 e	 para	 cortes
informais	 em	 que	 desentendimentos	 entre	 vizinhos	 eram	 resolvidos.	Grande
parte	 dessa	 atividade	 gerada	 por	 questões	 internas	 não	 está	 acessível	 a
historiadores,	mas	começa	a	se	tornar	visível	durante	o	século	XI,	quando	os
boni	 homines	 começam	 a	 assinar	 acordos	 com	 senhores	 de	 terras	 feudais,
participar	de	cortes	e	realizar	reuniões	com	paróquias	vizinhas.	Os	ofícios	dos
chamados	boni	 homines	 em	Florença	 incluíam	 ferreiros,	alfaiates	e	construtores
de	sinos,	ressaltando	membros	da	classe	de	artesãos.	Um	documento	de	1124
faz	referência	a	boni	homines	de	Siena	acompanhando	seu	bispo	numa	viagem	a
Roma	para	 recorrerem	ao	Papa	num	 litígio	com	a	cidade	vizinha	de	Arezzo.
No	ano	seguinte,	um	corpo	administrativo	de	cônsules	e	boni	homines	trabalhava
de	 forma	paralela	 em	Siena.	Começamos	a	ver	o	 encontro	entre	o	poder	do
alto	com	o	poder	de	baixo.
A	 posição	 das	 cidades	 italianas	 e	 suas	 comunas	 dominantes	 sofreu	 uma
mudança	drástica	quando	o	imperador	alemão	Frederico	Barba-Ruiva	decidiu
impor	 seu	poder	 ao	 seu	próprio	 reino	 itálico.	Antes,	 os	 imperadores	haviam
concedido	direitos	 eventuais	 às	 cidades	—	 em	1081,	Henrique	 IV	 concordou
em	não	construir	nenhum	castelo	a	9	quilômetros	de	Luca,	retirar	de	Pisa	sua
jurisdição	e	não	nomear	nenhum	marquês	na	Toscana	 sem	o	consentimento
do	povo	de	Pisa.	Essas	concessões	haviam	sido	feitas	em	resposta	a	rebeliões
ocasionais	que	Barba-Ruiva	estava	agora	determinado	a	reprimir.	A	partir	de
1155,	 ele	 liderou	 seis	 expedições	 à	 Itália,	 mas	 em	 1176	 as	 cidades	 da
Lombardia,	 lideradas	 por	Milão,	 derrotaram	 as	 forças	 dele	 em	 Legnano.	 O
conflito	 se	 arrastou	 por	 mais	 sete	 anos,	 até	 que	 Frederico	 reconheceu	 sua
incapacidade	 de	 impor	 sua	 vontade	 na	 Itália.	 O	 Tratado	 de	 Constança,
assinado	em	1183,	no	qual	ele	era	forçado	a	confirmar	o	direito	das	cidades	da
Lombardia	de	eleger	oficiais	e	conduzir	suas	próprias	questões,	foi	considerado“um	marco	 notável	 na	 história	 da	 democracia”.14	Na	 verdade,	 tratava-se	 do
reconhecimento	 de	 uma	 realidade	 modificada:	 o	 imperador	 não	 tinha	 mais
autoridade	 alguma,	 nem	 representava	 qualquer	 ameaça	 real	 às	 cidades	 da
Lombardia.	 De	 1183	 até	 a	 invasão	 francesa	 de	 1494,	 essas	 cidades	 tiveram
independência	efetiva.
As	 cidades	 independentes	 do	 norte	 da	 Itália	 eram	 um	 conjunto,	 não	 um
coletivo	 —	 tinham	 interesses	 comuns,	 mas	 também	 competiam.	 Os	 séculos
seguintes	testemunharam	seus	conflitos	com	a	própria	nobreza	e	com	cidades
vizinhas,	 cada	 qual	 tentando	 expandir	 a	 área	 sob	 seu	 controle	 direto.	 Os
arquivos	 de	 Siena	 registram	 uma	 sucessão	 de	 vitórias	 da	 cidade	 sobre	 a
nobreza	circundante	no	século	XII	e	 início	do	XIII,	ao	passo	que	o	principal
conflito	do	século	XIII	se	deu	entre	Siena	e	Florença	por	disputa	de	território.
Esse	 controle	 firme	 sobre	 um	 contado,	 dando	 forma	 a	 uma	Cidade-Estado
autônoma,	 era	 peculiar	 à	 Itália.	 No	 entanto,	 as	 comunidades	 autônomas	 —
definidas	 pelo	 direito	 romano	 como	 universitas,	 ou	 “todo”	 —	 fora	 da	 Itália
também	 começaram	 a	 governar	 a	 si	 mesmas.	 Em	 1182,	 Beaumont-em-
Argonne,	nas	Ardenas,	adotou	uma	 lei	que	dava	à	cidade	o	direito	de	eleger
um	prefeito	e	oficiais	para	a	administração	da	justiça	e	de	outras	questões,	e	foi
usada	como	modelo	por	cerca	de	quinhentas	cidades	e	aldeias	da	região.	Em
1212,	os	mercadores	e	a	nobreza	de	Marselha	organizaram-se	numa	associação
chamada	Confraternidade	 do	 Espírito	 Santo.	 Em	 1218,	 a	 cidade	 já	 cunhava
suas	próprias	moedas	e,	em	1220,	obteve	dos	condes	de	Provença	o	direito	de
administrar	 seus	 próprios	 assuntos.	 O	 governo	 de	 Marselha	 podia	 assinar
tratados	com	outras	cidades,	um	dos	quais,	com	a	cidade	de	Nice,	continha	a
seguinte	 declaração:	 “Por	 intermédio	 de	Deus	 [...]	 ganhamos	 a	 liberdade	 de
nossa	 cidade,	 condecoramos	 nossa	 república,	 aumentamos	 os	 ganhos	 e	 os
direitos	de	nossa	cidade	e,	por	meio	Dele,	preservamos	a	nossa	paz.”15
Em	 1200,	 uma	 classe	 governante	 surgira	 na	 Itália,	 composta	 pelos	 senhores
feudais	menores,	que	 tinham	terras	perto	de	uma	cidade	e	viviam	entre	seus
muros	como	cidadãos,	e	pelos	burgueses,	que	ganhavam	com	o	comércio	e	a
troca	de	dinheiro.	A	riqueza	e	a	distinção	social	uniram-se	quando	os	nobres	se
tornaram	 comerciantes,	 enquanto	 mercadores	 e	 banqueiros	 aplicavam	 seu
dinheiro	na	terra.	Mas	como	era	viver	numa	cidade	italiana	na	época?
Para	tomarmos	apenas	um	exemplo,	Siena	tinha	30	mil	habitantes	vivendo
numa	cidade	de	apenas	1,2	quilômetros	de	diâmetro.	A	maioria	das	casas	era
feita	de	madeira	e	barro,	muitas	com	fachadas	de	tijolos	para	a	rua.	Em	1200,	a
catedral,	ou	duomo,	era	uma	obra	em	andamento	(organizada	pela	corporação
dos	construtores	da	cidade),	e	uma	universidade	foi	fundada	em	1240.	Havia
nítida	desigualdade	social,	demonstrada	pelas	grandiosas	construções	e	 torres
de	 pedra	 das	 famílias	 ricas	 e	 espaços	 limitados	 dos	 pobres.	 As	 ruas	 que
parecem	 tão	 pitorescas	 hoje	 eram	 estreitas	 e	 sinuosas,	 começando	 em	 trilhas
entre	prédios	antes	de	se	transformarem	em	estradas.	A	construção	era	o	ramo
mais	importante	nas	cidades	medievais,	empregando	inúmeros	trabalhadores	e
artífices	habilidosos,	enquanto	as	atividades	têxteis	eram	o	motor	do	comércio
europeu.	 Siena	 era	 conhecida	 pela	 qualidade	 de	 sua	 lã,	 com	 seus	 artesãos
utilizando	 técnicas	aprendidas	no	Oriente	para	produzirem	suntuosos	 tecidos
tingidos	 e	 bordados.	O	 comércio	 de	 produtos	 têxteis	 envolvia	 uma	 série	 de
artesãos	 habilidosos,	 de	 fiandeiros	 e	 tingidores	 a	 tecelões	 e	 pisoeiros,	 e	 suas
oficinas	eram	cercadas	de	uma	variedade	de	comércios	urbanos	—	açougueiros
e	 padeiros,	 prateiros	 e	 pedreiros,	 escrivães	 e	 banqueiros.	 Como	 toda	 cidade
medieval	da	Europa,	Siena	também	abrigava	um	grande	número	de	clérigos	—
monges	e	freiras	mendicantes	de	diferentes	ordens,	padres,	curas	e	diáconos	—
e	continha	casas	e	hospitais	religiosos,	mosteiros	e	igrejas	paroquiais.
As	 comunas	 do	 século	 XI	 conferiram	 a	 cada	 cidade	 italiana	 uma	 forte
identidade,	mas	o	domínio	inicial	de	algumas	famílias	ricas	não	se	manteve.	A
participação	no	 conselho	 era	 rigorosamente	 restrita,	 e	 ainda	que	os	 cidadãos
fossem	 definidos	 por	 suas	 propriedades,	 contribuição	 tributária	 e	 serviço
militar,	isso	não	lhes	dava	direitos	de	representação.	A	comuna	existia	para	dar
uma	autoridade	estável	à	elite,	mas,	conforme	as	cidades	cresciam,	os	artesãos,
profissionais	 e	 mercadores	 iam	 se	 tornando	 mais	 poderosos	 e	 perdiam	 a
paciência	com	o	exclusivismo	da	política	municipal.
Uma	 crise	 política	 iminente	 pode	 ser	 identificada	 desde	 1150,	 quando	 os
cônsules	 italianos	 começaram	 a	 ser	 substituídos	 por	 cônsules,	 que	 eram
chefiados	 por	 um	 oficial	 conhecido	 como	 podestà.	 Em	 1200,	 eles	 estavam
estabelecidos	 em	Pádua,	Milão,	 Florença,	 Pisa,	 Siena	 e	Arezzo.	Em	Gênova,
em	1190,	registros	mostravam	que	“Discordâncias	civis,	conspirações	cheias	de
ódio	 e	 divisões	 haviam	 se	 originado	 na	 cidade	 [...]	 Então	 os	 sábios	 e
conselheiros	 da	 cidade	 se	 reuniram	 e	 decidiram	 que	 [...]	 o	 consulado	 da
comuna	deveria	acabar	e	[...]	que	deveriam	ter	um	podestà”.16
Esse	cargo	curioso	era	o	equivalente	do	diretor	executivo	moderno,	que	era
trazido	 de	 fora	 (o	 primeiro	 de	 Siena	 vinha	 de	 Luca)	 para	 administrar	 as
questões	da	cidade	e	agir	como	adjudicador	em	disputas	legais	e	políticas.	Os
podestàs	 tornaram-se	políticos	profissionais,	que	 traziam	consigo	uma	comitiva
de	 juristas,	 advogados	 e	 escriturários.	 Sabe-se	 que	 vinte	 podestàs	 exerceram	 a
função	em	pelo	menos	seis	cidades	cada	um.	O	milanês	Guillermo	de	Pusterla
foi	escolhido	o	podestà	em	nada	menos	de	nove	cidades,	completando	dezesseis
períodos	de	permanência	no	cargo,	quatro	em	Bolonha.	Os	podestàs	eram	um
sinal	 de	 que	 o	 consenso	 dentro	 das	 comunas	 entrara	 em	 colapso	 e	 agentes
externos	tinham	de	ser	trazidos	para	que	a	paz	fosse	mantida,	mas	a	partir	de
1200	 esse	 procedimento	 também	 entrava	 em	 crise,	 quando	 as	 famílias
poderosas	começavam	a	usar	empregados	armados	como	milícias	particulares,
assinalando	 partes	 da	 cidade	 como	 seu	 próprio	 território	 e	 construindo
enormes	torres	de	estilo	militar	dentro	dos	muros	da	cidade.
À	medida	que	as	cidades	se	tornavam	mais	perigosas	e	instáveis,	todos,	de
banqueiros	 a	 prateiros	 e	 açougueiros,	 viram	 a	 necessidade	 urgente	 de
conquistar	 poder	 político	 para	 proteger	 seus	 próprios	 interesses.	 As
corporações	de	ofício,	que	agiam	como	sindicatos,	organizações	assistenciais	e
fraternidades	sociais,	começaram	a	se	 tornar	órgãos	políticos.	As	corporações
se	 ramificaram	 e	 multiplicaram.	 No	 início	 do	 século	 XIII,	 a	 maioria	 das
cidades	tinha	de	trinta	a	quarenta,	enquanto	Veneza	atingiu	um	total	de	142.
Na	década	de	1380,	Cremona	tinha	8	mil	membros	de	corporações	e	Bolonha,
9	 mil.	 Ao	 mesmo	 tempo,	 os	 cidadãos	 formavam	 associações	 armadas	 de
residentes	 de	 uma	 mesma	 área	 para	 se	 protegerem	 contra	 a	 ameaça	 de
violência	 da	 nobreza	 que	 controlava	 a	 cidade.	 Esses	 grupos	 de	 vizinhanças
levavam	nomes	de	santos	ou	distritos	ou	nomeações	simbólicas,	como	estrela,
marinheiro,	 cavalo,	 leão	 e	 dragão.	 Um	 artesão,	 dono	 de	 mercearia	 ou
comerciante	tinha,	portanto,	duas	organizações	para	cuidar	de	seus	interesses:
a	 associação	 do	 distrito	 e	 a	 corporação	 de	 ofício,	 o	 que	 refletia	 uma	 forma
rudimentar	de	democracia	impulsionada	por	necessidades	práticas.	À	época	da
visita	 de	Dürer	 à	 Antuérpia,	 em	 1520,	 as	 corporações	 e	 associações	 haviam
assumido	 funções	 cerimoniais,	mas	 haviam	 nascido	 a	 partir	 de	 necessidades
comunais.
Inicialmente,	as	corporações	e	associações	de	distritos	trabalhavam	juntas	de
forma	vaga,	mas	a	agressão	da	nobreza	nos	regimes	de	comuna	forçaram-nasa
se	transformarem	num	movimento	mais	formal.	Esse	movimento,	que	se	deu
em	 todas	 as	 principais	 cidades	 do	 norte	 da	 Itália	 no	 século	 XIII,	 ficou
conhecido	como	Popolo	e	é	de	importância	central	para	a	história	do	governo
representativo.	Por	volta	de	1200	até	1500,	em	quase	todas	as	cidades	do	norte
da	 Itália,	 portanto,	 o	 poder	 era	 dividido,	 compartilhado,	 contestado	 e
transferido	entre	diferentes	autoridades	—	a	nobreza,	a	Igreja,	os	conselhos,	os
podestàs	e	o	Popolo.
Esse	retrato	complexo	e	cambiante	faz	a	história	política	do	período	parecer
confusa	e	caótica,	porém	a	paisagem	subjacente	é,	na	verdade,	uma	negociação
contínua	e	consistente	de	poder,	autoridade	e	influência	entre	a	elite	de	famílias
ricas	 e	 uma	 base	 mais	 ampla	 de	 artesãos,	 profissionais	 e	 comerciantes.	 O
Popolo	foi	formado	para	proteger	os	interesses	de	seus	membros,	e	o	fazia	com
frequência,	 permanecendo	 separado	 da	 comuna	 ou	 do	 conselho	 formal	 da
cidade,	 mantendo	 sua	 própria	 milícia,	 tributação,	 oficiais	 eleitos	 e	 tribunais.
Em	outros	momentos,	o	Popolo	tomou	o	poder,	e	houve	conquistas	hostis	em
Bolonha,	 em	 1228,	 e	 em	 Florença,	 em	 1244.	 Em	 Pádua,	 em	 1293,	 as
corporações	 de	 ofício	 concordaram	 em	 formar	 “um	 único	 órgão,	 sociedade,
irmandade	ou	liga	para	manter	e	conservar	a	cidade	de	Pádua	e	seu	distrito	em
estado	pacífico,	como	uma	comuna,	livre	da	dominação	de	qualquer	tirano”.17
Mesmo	 quando	 o	 Popolo	 não	 tinha	 o	 controle	 formal	 de	 uma	 cidade,	 o
governo	 estava	 ciente	 da	 necessidade	 de	 obter	 o	 consentimento	 dele.	 Com
frequência,	 isso	 era	 feito	 pela	 concessão	 de	 participações	 no	 conselho:	 em
1212,	em	Milão,	e	1222,	em	Placência,	metade	de	todos	os	cargos	foi	dada	a
membros	do	Popolo.	Em	Siena,	o	Popolo	assumiu	o	controle	da	comuna	de
1257	a	1262.	A	partir	de	então,	seu	poder	formal	cresceu	e	diminuiu,	embora
tenha	permanecido	um	elemento	político	poderoso	dentro	da	cidade.
Os	principais	motivos	para	a	aquisição	de	poder	por	parte	do	Popolo	eram
dois.	 Em	 primeiro	 lugar,	 ele	 buscava	 abolir	 os	 privilégios	 tributários	 da
nobreza,	 junto	 com	 as	 altas	 taxas	 de	 juros	 recebidas	 por	 famílias	 que
emprestavam	 dinheiro	 à	 comuna.	 Em	 Florença,	 em	 1224,	 uma	 comissão	 de
doze	 homens	 (que	 excluía	 o	 clero	 e	 a	 nobreza)	 cuidou	 de	 questões	 fiscais.
Descobriram	 que	 praças	 e	 muros	 da	 cidade	 acabaram	 misteriosamente	 se
tornando	propriedades	particulares,	e	impostos	cobrados	pela	nobreza	haviam
desaparecido,	 indo	 parar	 em	 seus	 próprios	 bolsos.	 Em	 Siena,	 o	 Popolo
nomeou	 oficiais	 conhecidos	 como	 populares	 para	 avaliar	 impostos,	 e	 lhes	 foi
pedido	 num	 debate	 em	 conselho	 que	 “fizessem	 o	 máximo	 em	 busca	 da
igualdade	entre	todos”	e	que	“todos	aqueles	que	têm	os	bolsos	cheios	fossem
completamente	avaliados”.18
A	 segunda	 importante	 motivação	 do	 Popolo	 era	 a	 reforma	 do	 sistema
jurídico.	 Na	 maioria	 das	 cidades,	 havia	 autoridades	 jurídicas	 paralelas	 e
conflitantes,	 com	 cortes	 que	 tinham	 jurisdições	 diferentes	 e,	 com	 frequência,
parcialmente	 coincidentes,	 usando	 uma	 variedade	 de	 códigos	 legais	 —	 do
direito	canônico,	imperial,	consuetudinário	e	romano.	As	corporações	haviam
assumido	a	autoridade	sobre	questões	legais	que	atingiam	seus	membros	e	seus
negócios,	então,	quando	o	Popolo	obteve	o	poder,	elas	insistiram	no	direito	de
se	 juntar	 à	 legislatura	 e	 tomar	parte	do	 Judiciário.	As	 cidades	 tentaram	 lidar
com	essas	confusões	reescrevendo	seus	estatutos,	como	ocorreu	em	1293,	em
Florença,	onde	se	reconheceu	que	os	diferentes	códigos	legais	“são	supérfluos,
alguns	 obscuros,	 outros	 contradizem	 uns	 aos	 outros	 e	 outros	 são	 parecidos;
ambiguidades	 e	 diferenças	 surgem	 todos	 os	 dias”.	 As	 leis	 promulgadas	 pelo
podestà,	o	capitão	do	Popolo	(cargo	registrado	pela	primeira	vez	em	Parma,	em
1244,	depois	em	Florença	e	Placência,	em	1250),	e	por	outros	órgãos	deveriam
ser	harmonizadas.19
Embora	 essas	 autoridades	 pudessem	 tomar	 decisões	 judiciais,	 o	 poder	 de
aplicar	 leis	 era	 a	 chave,	 e	 aqui	o	Popolo	 era	 capaz	de	 competir	 efetivamente
com	as	milícias	dos	 ricos.	Em	Siena,	o	 regime	do	Popolo	 conseguiu	 aprovar
leis	 que	 conferiam	 imunidade	 aos	 atos	 de	 vingança	 realizados	 por	 seus
membros	 contra	as	ordens	de	 seu	próprio	 conselho	—	 tornando-se	um	braço
efetivo	 do	 Estado.	 Em	 1262,	 um	 decreto	 estabelecia	 que	 “deveria	 haver
companhias	 [armadas]	 dos	 subordinados	 ao	 Popolo	 e	 seus	 membros
juramentados.	 Todos	 aqueles	 que	 pertencem	 [ao	 Popolo]	 deveriam	 ser
obrigados	 a	 se	 juntar	 [às	 companhias]”.20	As	 tensões	 criadas	 por	 um	Estado
efetivo	 dentro	 de	 um	 Estado	 desencadeavam	 eventuais	 conflitos,	 como
aconteceu	 em	 Placência,	 onde	 a	 nobreza	 foi	 expulsa	 em	 1090,	 após	 brigas
violentas	nas	ruas.
Em	outros	lugares,	o	Popolo	introduziu	poderes	formais	contra	a	nobreza.
Em	Bolonha,	em	1252,	as	associações	de	 famílias	 foram	abolidas,	o	porte	de
armas	 pessoais	 na	 cidade,	 proibido,	 e	 as	 torres	 de	 defesa,	 demolidas.	 Em
Florença,	 em	 1293,	 qualquer	 um	 “que	 não	 tenha	 trabalhado	 em	 ofício	 com
suas	próprias	mãos”	não	poderia	representar	os	artesãos	no	conselho	geral.	As
famílias	 nobres	 de	 Bolonha,	 em	 1282,	 foram	 forçadas	 a	 dar	 garantias
financeiras	de	seu	bom	comportamento,	e,	entre	1293	e	1295,	73	das	famílias
influentes	 foram	 exiladas.	 Foram	 elaboradas	 leis	 que	 limitavam	 a	 altura	 de
torres	 e	 proibiam	 a	 vassalagem	 entre	 famílias	 nobres,	 por	 exemplo,	 em
Módena,	 onde	 “em	 qualquer	 acusação	 que	 envolva	 danos,	 não	 se	 deve
acreditar	 no	 juramento	 de	 um	 homem	 poderoso,	 nem	 dos	 filhos	 que	 sejam
proprietários	de	terras”.21
Durante	muitas	décadas,	 a	 intervenção	política	do	Popolo	 foi	 considerada
um	 episódio	 caótico	 do	 qual	 as	 cidades	 italianas	 foram	 salvas	 pelas	 grandes
famílias	 da	 Renascença.	 O	 quadro	 que	 vemos	 agora	 é	 diferente.	 Hoje	 os
historiadores	 argumentam	 que	 o	 Popolo	 foi	 o	 elemento	 crucial	 nas
extraordinárias	inovações	culturais	do	período	e	que	o	“governo	popular”	foi
mais	 difundido	 e	 duradouro	 do	 que	 antes.	 As	 cidades	 haviam	 obtido	 pela
primeira	 vez	 o	 direito	 ao	 autogoverno	 ao	 se	 declararem	 comunas
independentes;	 a	 conquista	 do	 movimento	 Popolo	 foi	 se	 basear	 nisso	 para
ampliar	 de	 forma	 dramática	 a	 participação	 no	 governo.22	 Uma	 cultura	 de
participação	significava	mais	do	que	uma	simples	competição	por	poder	entre
diferentes	 grupos	 sociais.	 As	 corporações	 de	 ofício	 que	 se	 encontravam	 no
centro	do	Popolo	eram	dirigidas	e	organizadas	por	seus	membros,	todos	com	o
mesmo	status.	Em	Bérgamo,	os	membros	do	Popolo	juraram	“cuidar	para	que
[...]	todos	os	ofícios	e	honras	da	comuna	[...]	fossem	escolhidos	de	acordo	com
o	 interesse	 da	 comunidade	 e	 não	 em	 benefício	 de	 qualquer	 grupo”.23	 A
comuna,	os	podestàs,	o	magnati	 (conselho	de	“grandes	homens”)	e	o	Popolo	—
cada	um	desses	grupos	representava	classes	sociais	diferentes	e,	trabalhando	de
forma	paralela,	introduzira	sistemas	de	representação	e	participação	que	foram
testados,	 adaptados	 e	 aperfeiçoados.	 Embora	 tivessem	 conflitos	 políticos
frequentes,	 as	 exigências	 do	 Popolo,	 que	 vinham	 de	 baixo	 para	 cima,
complementavam	o	domínio	das	comunas,	que	vinha	de	cima	para	baixo,	e	os
dois	se	juntavam	e	abraçavam	um	ideal	republicano	de	governo	—	uma	prática
revolucionária	 num	 continente	 de	 reis	 e	 imperadores,	 e	 uma	 ligação	 com	 o
passado	romano.
A	 ascensão	 do	movimento	 Popolo	 na	 Itália	 foi	 o	 sintoma	 e	 a	 causa	 de	 um
aumento	 extraordinário	 da	 autoconfiança	 dos	 cidadãos	 urbanos.	 As	 cidades
prósperas	 davam	 às	 pessoas	 comuns	 trabalho,	 independência,	 status,	 o
companheirismo	 de	 colegas,	 envolvimento	 na	 política	 e	 na	 preparação	 de
grandes	obras	públicas	por	meio	das	corporações	de	ofício	e	um	interesseno
futuro.	 Os	 artesãos	 das	 cidades	 do	 final	 da	 época	 medieval	 foram
transformados	 em	 artistas	 da	 Renascença,	 sinalizando	 uma	 mudança,	 como
costuma	 afirmar-se,	 de	 um	 mundo	 de	 fé	 opressiva	 e	 feudalismo	 para	 um
mundo	em	que	a	humanidade	descobria	a	racionalidade	e	se	tornava	fascinada
consigo	mesma.	A	verdade	 é	que	 a	mudança	havia	ocorrido	muito	 antes.	O
movimento	 Popolo	 ocasionou	 um	 novo	 interesse	 no	 cidadão	 comum,
permitindo	a	Giotto	a	extraordinária	inovação	de	colocar	pessoas	reais	em	seus
quadros	 de	 cenas	 bíblicas	 em	 1310.	 Isso	 estabeleceu	 o	 princípio	 de	 que	 as
cidades	não	deveriam	ser	divididas	entre	os	ricos,	e	que	as	ruas,	praças,	igrejas
e	 câmaras	 municipais	 deveriam	 ser	 espaços	 públicos	 disponíveis	 a	 todos;	 e
restaurou	a	convicção	republicana	de	que	todo	cidadão	que	tinha	interesse	por
sua	 cidade	 e	 era	 chamado	 a	 defendê-la	 deveria	 ter	 voz	 no	 governo.	 As
interações	 sociais	 mudaram	 da	 deferência	 elaborada	 à	 informalidade	 entre
iguais.	O	Popolo	abriu	escolas	que	ensinavam	matérias	seculares,	expandiu	a
prática	da	formação	por	tempo	de	serviço	e,	ao	criar	novos	conselhos	e	cargos,
ampliou	 a	 comunidade	 política	 de	 modo	 que	 mais	 pessoas	 se
responsabilizavam	pelo	destino	da	cidade.
A	era	de	governo	observável	do	Popolo	na	Itália	chegou	ao	fim	no	século
XIV.	 Comerciantes	 ricos	 buscaram	 ampliar	 suas	 ambições	 fazendo	 alianças
com	 as	 grandes	 famílias,	 e	 a	 influência	 política	 das	 corporações	 de	 ofício
diminuiu.	 E	 porque	 o	 Popolo,	 baseado	 nas	 corporações	 excluíra	 as	 ordens
inferiores,	faltou	uma	base	ampla.	O	Popolo	de	Pádua	em	1277,	por	exemplo,
excluiu	 das	 eleições	 “marinheiros,	 jardineiros,	 trabalhadores	 rurais,	 homens
sem	 terras	 e	pastores”.24	Durante	 todo	o	período	de	 regimes	 republicanos,	 a
noção	de	“povo”	 foi	usada	para	melhorar	a	reputação	de	uma	cidade,	mas	a
verdade	era	que	a	população	das	cidades	era	altamente	desigual	em	termos	de
riqueza	e	acesso	ao	poder.	No	entanto,	o	Popolo	era	baseado	na	participação
de	milhares	de	cidadãos	que	antes	haviam	sido	excluídos	da	vida	política.	Ele
hoje	 é	 considerado	um	movimento	essencial	 e	 transformador,	 cuja	 influência
durou	 depois	 de	 seu	 fim,	 introduzindo	 uma	 forma	 de	 governo	 nas	 cidades
italianas	 que,	 nas	 palavras	 de	 um	historiador,	 tinha	 “uma	 base	 ampla	 [e]	 na
qual	uma	porção	significante	de	cidadãos	do	sexo	masculino	de	vários	grupos
sociais	 podia	 participar	 de	 conselhos	 do	 governo	 e	 poderia	 ser	 eleita	 para
cargos	políticos	e	administrativos”.25
No	século	XIV,	as	cidades	maiores	começavam	a	dominar	o	norte	da	Itália.
Giovanni	Villani	morou	em	Florença	na	década	de	1330	e	descreveu	a	cidade
de	mais	de	90	mil	 pessoas,	 incluindo	25	mil	homens	prontos	para	pegar	 em
armas	e	30	mil	trabalhando	na	área	têxtil,	produzindo	tecidos	finos	a	partir	de
lã	inglesa.	Ele	contou	seiscentos	cartórios	e	cem	farmácias,	além	de	146	fornos
de	 fundição.	Villani	 também	notou	 a	 presença	 de	 uma	 grande	 variedade	 de
oficiais	 e	magistrados:	 “Esses	 eram	 os	 podestàs,	 os	 capitães,	 os	 defensores	 do
povo	 e	 das	 corporações	 de	 ofício,	 os	 executores	 das	Ordenações	 de	 Justiça;
[das	quais]	o	capitão	da	guarda	e	defensor	do	povo	[...]	tinha	mais	autoridade
do	 que	 os	 outros”.	 Parece	 que,	 mesmo	 após	 o	 fim	 do	 Popolo,	 a	 jurisdição
ainda	 era	 contestada	 e	 que	 ser	 um	 “defensor	 do	 povo”	 era	 uma	 insígnia	 de
autoridade.26
A	maioria	 das	 cidades	 da	 Itália	 nos	 séculos	XIV	 e	XV,	 período	 da	 Alta
Renascença,	passou	a	ser	governada	por	uma	combinação	de	governo	popular
e	 oligarquia.	 Em	 Siena,	 já	 na	 década	 de	 1440,	 havia	 algumas	 centenas	 de
cidadãos	qualificados	para	a	participação	e	a	votação	na	principal	assembleia
legislativa.	Alguns	forasteiros	consideravam	degradante	o	elemento	popular	no
governo	 da	 cidade.	Mestre	 Valésio,	 residente	 português,	 reclamou	 em	 1451
que	 a	 cidade	 era	 governada	 por	 “quitandeiros,	 curtidores,	 sapateiros	 e
camponeses”	que	eram	um	“reggimento	di	merda”	—	um	governo	de	merda.27
Siena	seguiu	o	padrão	de	outras	cidades	durante	o	século	XV,	quando	um
pequeno	grupo	de	 famílias	 lutava	 entre	 si,	 criando	 facções	 rivais	 e	buscando
apoio	popular.	O	surgimento	de	uma	única	 figura	poderosa	o	 suficiente,	por
meio	 de	 manobras	 políticas	 e	 militares,	 para	 controlar	 a	 cidade	 havia
começado	no	século	XIV	e	continuou	até	as	invasões	francesas	de	1494.	Essa
figura	 se	 tornou	 o	 “príncipe	 da	 Renascença”,	 imortalizado	 por	Maquiavel	 e
personificado	 por	 Ludovico	 Gonzaga	 de	 Mântua,	 a	 família	 Bentovoglio	 de
Bolonha,	os	Médici	de	Florença,	Francesco	e	Ludovico	Sforza	de	Milão	e,	de
modo	 mais	 típico,	 César	 Bórgia.	 Na	 década	 de	 1520,	 as	 cidades	 da	 Itália
haviam	perdido	sua	independência	de	fato	e	se	tornaram	os	elementos	de	um
luta	pelo	poder	entre	o	 imperador,	 a	França,	 a	Espanha	e	o	papado	que	 iria
dividir	o	país	pelos	três	séculos	seguintes.	A	Europa	se	tornou	um	continente
de	monarquias	 nacionais	 poderosas.	O	poder	 das	 cidades	 em	outros	 lugares
decaiu	e,	com	ele,	o	alcance	do	governo	popular.
De	 forma	 irônica,	 as	 cidades	 italianas	 ajudaram	 o	 nascimento	 do	 sistema
político	 que	 acabou	 com	 o	 seu	 poder.	 O	 Estado	 nacional	 centralizado	 foi
possibilitado	 por	 uma	 nova	 tecnologia	 militar	 que	 permitia	 aos	 monarcas
controlarem	 grandes	 territórios,	 mas	 foi	 sustentado	 por	 uma	 burocracia	 de
recolhimento	de	 impostos	que	nasceu	com	a	 revolução	comercial	promovida
nas	 casas	 bancárias	 e	 câmaras	 municipais	 da	 Itália.	 O	 Estado	 moderno
transformou-se	num	sistema	altamente	centralizador,	dando	a	possibilidade	de
poder	 total	 a	 um	 indivíduo	 ou	 grupo	 pequeno.	 A	 história	 da	 democracia
tornou-se	uma	luta	para	a	obtenção	de	controle	do	Estado.
No	entanto,	a	afirmação	do	governo	do	povo	como	forma	de	participar	e	se
orgulhar	da	vida	urbana	é	um	marco	notável	na	história	da	política.	Por	alguns
séculos,	 as	 pequenas	 e	 grandes	 cidades	 da	 Europa	 consideraram	 o	 governo
popular	motivo	de	celebração	e	emulação.	Pensadores	do	fim	da	Renascença
italiana,	 como	 Leonardo	 Bruni,	 sustentaram	 que	 as	 cidades	 somente	 podem
ser	grandiosas	uma	vez	que	seu	povo	seja	 livre,	e	 isso	significa	estar	 livre	de
monarcas,	príncipes	e	tiranos.	A	participação	de	centenas,	às	vezes	milhares,	de
cidadãos	no	governo	e	na	administração	da	comunidade,	sua	disposição	para
combater	o	poder	da	riqueza	herdada	e	acumulada	e	sua	crença	na	res	publica
tornam	as	cidades	italianas	dignas	de	menção	na	história	da	democracia.
O
5
A	REVOLUÇÃO	INGLESA
O	Cidadão	Súdito
início	da	Europa	moderna	viu	o	desenvolvimento	de	um	novo	 tipo	de
Estado,	 em	 que	 os	 monarcas	 dominaram	 com	 muito	 mais	 firmeza	 os
territórios	 que	 controlavam.	 Durante	 séculos,	 os	 reinos	 foram	 baseados	 na
lealdade	 ao	governante,	mas,	 graças	 em	grande	parte	 ao	 aperfeiçoamento	de
armas	 e	 ao	 desenvolvimento	 da	 coleta	 de	 impostos,	 eles	 se	 tornaram	 áreas
controladas	 —	 começaram	 a	 surgir	 mapas	 mostrando	 como	 a	 Europa	 era
dividida	 entre	 esses	 domínios.	 A	 era	 dos	 impérios	 governados	 de	 forma
imprecisa	e	de	cidades	autônomas	deu	lugar	à	era	dos	Estados	centralizados	e
ao	surgimento	de	nações.1
Nessa	 nova	 ordem	mundial,	 que	 se	 desenvolveu	 aproximadamente	 entre
1500	 e	 1700,	 parecia	 não	 haver	 lugar	 para	 o	 tipo	 de	 governo	 participativo
descrito	 no	 capítulo	 anterior.	 Em	vez	 disso,	 o	 cidadão	 se	 tornou	 um	 súdito,
com	 direitos	 concedidos	 apenas	 por	 meio	 da	 generosidade	 do	 monarca	 em
cujo	 reino,	 concebido	 de	 forma	 divina,	 ele	 vivia.	 Novas	 dinastias,	 desde	 os
Tudor	 e	 Stuart,	 da	 Inglaterra,	 os	 Habsburgo,	 da	 Espanha	 e	 Áustria,	 os
Bourbon,	da	França,	os	Vasa,	da	Suécia	e	Polônia,	aos	Romanov,	da	Rússia,
casaram	de	forma	bem-sucedida	a	noção	de	realeza	como	status	divino	com	o
desenvolvimentode	um	Estado	 centralizado,	 com	o	monarca	 como	 chefe.	A
história	 da	 democracia	 moderna	 é	 a	 de	 uma	 luta	 longa	 e	 amarga	 para	 a
mudança	da	natureza	do	Estado.
O	 controle	 exercido	 pelos	 monarcas	 era	 um	 processo	 intermitente.	 A
nobreza	 que	 detinha	 o	 poder	 sob	 o	 antigo	 sistema	 feudal	 lutava	 para
reassegurar	 seus	 direitos,	 mas	 nessa	 luta	 pelo	 poder	 por	 toda	 a	 Europa
qualquer	noção	de	democracia	ou	governo	participativo	parecia	desaparecer.
No	 entanto,	 não	 sumiu	 por	 completo.	 No	 século	 XVII,	 os	 reinos	 das	 Ilhas
Britânicas	 eram	 governados	 pelos	 Stuart,	 e	 a	 incapacidade	 de	 sucessivos
monarcas	 de	 guiar	 e	 controlar	 o	 Estado	 trouxe	 outras	 forças	 políticas	 à
dianteira.	E	foi	na	Inglaterra	que	a	aplicação	dos	princípios	democráticos	num
Estado	 nacional	 foi	 realizada	 primeiro.	 Não	 se	 tratava	 do	 desenvolvimento
abstrato	de	teorias,	mas	de	um	plano	prático	de	governo	proposto,	em	meio	a
uma	crise	nacional,	por	um	grupo	de	soldados	que	representavam	o	Exército
inglês.	A	oportunidade	veio	no	vácuo	de	poder	que	sucedeu	as	guerras	civis	na
Inglaterra,	 Escócia	 e	 Irlanda.	 Como	 essas	 guerras	 se	 deram	 e	 como	 a
população	 se	 tornou	 tão	 politizada	 que	 a	 democracia	 passou	 a	 ser	 uma
possibilidade	real	são	episódios	essenciais	em	nossa	história.
Em	1603,	 Jaime	VI,	 rei	da	Escócia,	herdou	o	 trono	 inglês,	 como	 Jaime	 I,	de
Elizabeth	Tudor,	que	não	tinha	filhos.	Também	se	tornou	rei	da	Irlanda.	Jaime
era	protestante,	mas	de	família	católica,	e	acreditava	no	direito	divino	dos	reis:
em	1597,	escreveu	o	 livro	A	verdadeira	 lei	 das	monarquias	 livres,	no	qual	afirma
que	os	reis	surgiram	“antes	de	quaisquer	bens	ou	classes	de	homens,	antes	da
formação	de	qualquer	Parlamento	e	da	elaboração	de	qualquer	lei,	e	por	eles	a
Terra	 foi	 distribuída,	 a	 qual	 era	 toda	 deles	 no	 início.	 Portanto	 se	 segue
inevitavelmente	 que	 os	 reis	 foram	 os	 autores	 e	 criadores	 das	 leis,	 não	 o
contrário”.2	No	entanto,	as	realidades	práticas	não	propiciavam	a	autocracia,	e
Jaime	 foi	 sensato	 o	 bastante	 para	 administrar	 seu	 reino	 de	 forma	 adequada,
porém	sem	muito	destaque.
Seu	espaço	de	ação	era	limitado,	uma	vez	que	os	dois	elementos	centrais	do
Estado	moderno	—	o	Exército	e	a	cobrança	de	impostos	—	estavam	fora	de	seu
controle.	Apesar	do	êxito	de	Elizabeth	em	aumentar	o	prestígio	da	Inglaterra,	o
país	não	tinha	um	Exército	permanente,	mas	sim	um	conjunto	de	milícias	de
condados,	cada	uma	fiel	à	nobreza	local,	enquanto	todo	imposto	tinha	de	ser
aprovado	 pelo	 Parlamento	 —	 e	 era	 sobre	 os	membros	 do	 Parlamento	 que	 a
tributação	era	mais	pesada.	O	equilíbrio	de	poder	entre	monarca	e	Parlamento,
o	 centro	 e	 as	 outras	 regiões,	 a	 Coroa	 e	 a	 nobreza,	 era,	 portanto,	 crucial.
Elizabeth	não	deixou	um	Parlamento	subserviente	a	Jaime,	mas	uma	classe	de
nobres	 acostumados	 a	 serem	 lisonjeados,	 bajulados	 e	 recompensados.	 No
início	do	século	XVII,	o	Parlamento	inglês	era	uma	mistura	de	lacaios	reais	e
homens	 de	 mentalidade	 independente	 cm	 uma	 relação	 complexa	 com	 o
monarca.
Já	 vimos	 por	 que	 o	 rei	 precisava	 do	 Parlamento,	 mas	 os	 parlamentares
ingleses	 também	 precisavam	 do	monarca	 e	 estavam	 preparados	 para	 tolerar
um	rei	fraco	e	volúvel	por	dois	motivos.	Primeiro,	um	rei	fraco	não	interferia
em	 seus	 assuntos	 e	 ficaria	 dependente	 do	 apoio	 financeiro	 e	 militar	 deles.
Segundo,	a	monarquia	trazia	estabilidade	e	unidade	ao	país.	Isso	era	de	valor
incalculável	 para	 a	 nobreza,	 que	 se	 beneficiava	 de	 uma	 população	 fiel	 e
acomodada.	Na	França,	Rússia	e	Espanha,	a	monarquia	começou	a	dominar	a
nobreza	 e	 avançou	 para	 se	 tornar	 um	 Estado	 poderoso	 e	 centralizado	 que
coincidia	com	a	pessoa	do	rei.	Nas	Ilhas	Britânicas,	isso	não	aconteceu	e	o	que
se	alcançou	foi	um	equilíbrio	precário.
As	 relações	 se	 romperam	 no	 início	 do	 reinado	 de	 Jaime,	 quando	 o
Parlamento	 demonstrou	 relutância	 em	 aprovar	 impostos	 para	 o	 que
considerava	 gastos	 desnecessários.	 Em	 consequência,	 a	 Coroa	 acumulou
dívidas	 enormes	 que	 o	 Parlamento	 se	 recusou	 a	 pagar.	 Em	 1610,	 Jaime
dispensou	 o	 Parlamento,	 e	 quando	 ele	 foi	 convocado	 novamente,	 em	 1614,
durou	apenas	oito	semanas.	A	partir	de	então,	Jaime	arcou	com	as	despesas	de
sua	corte,	vendendo	condados	e	adquirindo	monopólios	em	vez	de	recorrer	a
impostos.	As	relações	indiferentes	entre	o	rei	e	o	Parlamento	deram	o	tom	para
o	 governo	 do	 filho	 de	 Jaime,	 Carlos	 I,	 o	 mais	 desastroso	 da	 história	 da
Inglaterra.
Se	as	finanças	congelaram	as	relações	entre	o	Parlamento	e	o	rei,	a	religião
as	aqueceu	a	um	nível	 incendiário.	Jaime	fora	favorecido	pela	nobreza	e	pelo
povo	por	seu	repúdio	ao	catolicismo,	mas	Carlos,	que	subiu	ao	trono	em	1625,
não	 foi	 capaz	 de	 seguir	 seu	 exemplo.	 Maquiavel	 aconselhara	 que,	 para	 ser
bem-sucedido,	o	príncipe	deveria	agir	de	modo	construtivo;	ele	faz	de	si	uma
personificação	 do	 Estado	 para	 receber	 as	 recompensas	 que	 o	 Estado	 pode
oferecer.	Carlos	não	fez	isso	e	pagou	o	preço.
Assim	 como	 o	 pai,	 Carlos	 via	 o	 Parlamento	 como	 um	 mal	 necessário.
Diferentemente	do	pai,	no	entanto,	o	novo	rei	tinha	uma	queda	pela	aventura
militar.	A	lealdade	à	sua	família	estendida	estimulou	uma	tentativa	de	exercer
sua	 influência	 na	Guerra	 dos	Trinta	Anos	 com	uma	 declaração	 de	 guerra	 à
Espanha,	 mas	 o	 Parlamento	 sancionou	 apenas	 140	 mil	 libras,	 uma	 quantia
insuficiente	 para	 as	 ambições	 do	 rei.	 Uma	 campanha	 militar	 desastrosa	 e
outros	 indícios	 do	 caráter	 esbanjador	 de	 Carlos	 levaram	 o	 Parlamento	 a
aprovar	uma	Petição	de	Direitos	em	1628,	que	impedia	o	rei	de	realizar	certas
ações	 sem	 o	 consentimento	 do	 Parlamento,	 incluindo	 o	 direito	 de	 cobrar
impostos,	prender	qualquer	pessoa	sem	julgamento,	alojar	tropas	em	casas	de
civis	 ou	 sujeitar	 seu	 povo	 à	 lei	 marcial.	 Em	 resposta,	 Carlos	 dispensou	 o
Parlamento	 e	 declarou	 um	 período	 de	 reinado	 pessoal	 —	 na	 verdade,	 ele	 se
tornou	 um	 ditador.	 Embora	 a	 hostilidade	 do	 Parlamento	 em	 relação	 à
cobrança	 de	 impostos,	 como	 a	 famosa	 “Ship	 Money”,	 induzisse	 confrontos
constantes,	 foi	 a	 religião	que	 se	 tornou	 a	principal	divisão	 entre	o	 rei	 e	 seus
súditos.
A	 Reforma	 do	 século	 XVI	 dividiu	 o	 continente	 em	 campos	 conflitantes,
mas	 também	 fortaleceu	 a	 comunidade	 cristã.	Os	 protestantes,	 em	 particular,
tinham	um	envolvimento	constante	em	debates	sobre	o	significado	de	sua	fé	e
sua	relação	com	Deus.	Dentro	do	protestantismo	inglês	um	cisma	começara	a
aparecer	entre	aqueles	conhecidos	desde	então	como	Protestantes	Reformados
e	 os	 oficiais	 superiores	 da	 Igreja	 Anglicana	 (incluindo	 o	 rei),	 que	 adotavam
uma	 forma	 de	 anglo-catolicismo.	 Uma	 Igreja	 hierárquica	 marcada	 por
diferenças	teológicas	vitais	acreditava	na	importância	do	ritual,	da	autoridade
divina	dos	bispos	 e	do	 status	 especial	do	monarca,	 em	oposição	a	uma	 forte
crença	 na	 primazia	 da	 consciência	 individual	 e	 na	 importância	 de	 uma	 vida
cristã.	Enquanto	a	Igreja	Anglicana	superara	o	desejo	de	Henrique	VIII	de	se
separar	 de	 Roma,	 o	 Protestantismo	 Reformado	 tinha	 raízes	 na	 teologia
calvinista	que	se	espalhara	com	efeito	eletrizante	pelo	norte	da	Europa.
Novos	métodos	e	impressão	produziram	múltiplas	cópias	da	Bíblia	de	Gênova
em	inglês	na	Inglaterra	e	na	Escócia	por	volta	de	1614.	Aparecendo	antes	da
Versão	 do	Rei	Jaime,	 a	Bíblia	 de	Gênova	 logo	 ganhou	 a	preferência	de	devotos.
Sua	 linguagem	 contundente,	 notas	 e	 guias	 de	 estudo	 davam	 ao	 leitor	 um
domínio	confiante	das	escrituras	que	eram	a	base	de	sua	fé.	As	notas	incluíam
interpretações	políticas	de	histórias	bíblicas,	mostrando,	por	 exemplo,	que	 as
escrituras	davam	aos	fiéis	a	autoridade	de	remover	governantes	injustos.
A	Bíblia	confirmou	aos	Protestantes	Reformados	que	sua	 interpretação	da
fé	 era	 fiel	 à	 palavra	 de	 Deus,	 e	 queo	 catolicismo	 era	 uma	 perversão	 do
cristianismo.	Sua	preocupação,	que	se	transformou	em	acusação	furiosa,	era	de
que	os	bispos	e	muitos	padres	da	Igreja	Anglicana	fossem	católicos	apenas	com
uma	denominação	diferente.	Quando,	em	1633,	Carlos	nomeou	William	Laud
arcebispo	 de	 Canterbury,	 aqueles	 que	 criticavam	 Laud	 por	 apresentar	 um
comportamento	 aparentemente	 católico	 foram	 presos,	 ao	mesmo	 tempo	 que
todos	os	súditos	foram	obrigados	a	frequentar	cerimônias	anglicanas.	A	esposa
francesa	 de	Carlos,	Henriqueta	Maria,	 era	 abertamente	 católica,	 e	 tanto	 sua
influência	 sobre	 os	 herdeiros	 reais	 como	 seu	 círculo	 de	 cortesãos	 católicos
foram	 vistos	 com	 hostilidade	 e	 desconfiança.	 Ao	 mesmo	 tempo,	 soldados
católicos	e	protestantes	 lutavam	uns	contra	os	outros	 (e	milhões	de	civis)	em
vastas	 áreas	 da	 Europa	 Central	 na	 Guerra	 dos	 Trinta	 Anos.	 Na	 década	 de
1630,	 panfletos	 impressos	 chegaram	 à	 Inglaterra	 e	 Escócia	 dando	 conta	 de
protestantes	sendo	massacrados	na	Boêmia	e	no	Palatinado	do	Reno.
Nada	 disso	 tornava	 inevitável	 o	 conflito	 interno,	 mas	 Carlos	 estava
determinado	a	reprimir	qualquer	dissidência	religiosa.	Em	1637,	o	rei	decidiu
que	a	liturgia	anglicana,	com	um	novo	livro	de	orações	compilado	por	William
Laud,	 deveria	 ser	 usada	 nos	 três	 reinos	 —	 Inglaterra,	 Escócia	 e	 Irlanda	 (os
países	 eram	 entidades	 separadas,	 embora	 os	 três	 fossem	 governados	 por
Carlos).	 Em	 resposta,	 o	 Pacto	 Nacional	 Escocês	 foi	 elaborado	 como	 um
“protesto	de	lealdade”,	afirmando	que	qualquer	mudança	deveria	primeiro	ser
aceita	 por	 todos	 os	 três	 parlamentos	 e	 Assembleias	Gerais	 da	 Igreja.	 Carlos
reuniu	um	Exército	para	apaziguar	os	escoceses,	mas	sua	expedição	fracassou.
Para	 afirmar	 sua	 autoridade	 sobre	 os	 adeptos	 do	 pacto,	 Carlos	 precisava
arrecadar	dinheiro.	Um	grande	conselho	da	nobreza	inglesa	foi	convocado	em
York,	 mas	 os	 lordes	 aconselharam	 o	 rei	 a	 buscar	 uma	 trégua	 e	 chamar	 o
Parlamento	de	volta.	Acabou	o	período	de	Reinado	Pessoal.
O	novo	Parlamento,	que	se	reuniu	no	dia	3	de	novembro	de	1640,	continha
uma	 maioria	 de	 membros	 que	 queriam	 limitar	 os	 poderes	 do	 rei,	 embora
ninguém	 previsse	 um	 conflito	 armado	 entre	 o	 Parlamento	 e	 o	 monarca.	 O
Parlamento	Longo,	como	ficou	conhecido,	prendeu	o	ministro	do	rei,	o	conde
de	Strafford,	e	o	arcebispo	Laud	por	traição,	e	aprovou	uma	lei	que	impedia	a
dissolução	do	Parlamento,	 a	 não	 ser	 por	 si	mesmo.	Carlos	 pôs	 em	 jogo	 sua
reputação	ao	tentar	salvar	Strafford,	que,	no	entanto,	foi	acusado	e	executado
em	maio	 de	 1641.	 Laud	 foi	 condenado	 à	morte	 e	 decapitado	 em	 janeiro	 de
1645.	O	 rei	 ficou	 isolado,	 contando	 apenas	 com	o	 prestígio	 oscilante	 de	 sua
posição.
Os	acontecimentos	que	precipitaram	o	conflito	militar	se	deram	na	Irlanda.
Em	1641,	os	católicos	irlandeses,	temendo	uma	invasão	dos	escoceses	adeptos
do	Pacto	Nacional	e	das	tropas	do	recentemente	fortalecido	Parlamento	inglês,
rebelaram-se	contra	as	autoridades	do	Estado	e	reivindicaram	a	aprovação	real
de	 suas	 ações.	Desconfiado	das	 afinidades	 católicas	 de	Carlos,	 o	Parlamento
recusou-se	a	lhe	fornecer	dinheiro	ou	tropas	para	reprimir	a	rebelião,	enquanto
panfletos	 com	 descrições	 das	 atrocidades	 cometidas	 por	 católicos	 contra
protestantes	irlandeses	atiçaram	uma	atmosfera	já	exaltada.	Rumores	de	que	o
Parlamento	pretendia	derrubar	sua	rainha	católica	levaram	Carlos	a	agir.	Em	4
de	 janeiro	de	1642,	ele	chegou	à	Câmara	dos	Comuns	com	um	mandado	de
prisão	para	 cinco	 líderes	do	Parlamento,	 alegando	 alta	 traição.	A	 entrada	de
um	monarca	na	Câmara	era	um	desafio	 inequívoco	ao	Parlamento;	 a	prisão
não	 ocorreu,	 e	 os	 membros	 do	 Parlamento	 tinham	 sido	 alertados	 —	 nas
famosas	palavras	de	Carlos,	pronunciadas	na	cadeira	do	Orador:	“Vejo	que	os
pássaros	já	fugiram	da	gaiola.”	Com	esse	ato,	Carlos	fez	de	si	um	inimigo	do
Parlamento,	 e	Londres	 tornou-se	 um	 lugar	 perigoso	 para	 o	 rei.	Após	 alguns
meses,	nos	quais	ambos	os	lados	apelaram	para	o	apoio	do	povo,	em	agosto	de
1642,	ele	ergueu	seu	estandarte	no	Castelo	de	Nottingham	e	declarou	guerra
contra	o	Parlamento.
Exércitos	parlamentares	ganharam	rapidamente	a	vantagem	sobre	as	forças
monarquistas,	mas	não	conseguiram	terminar	a	guerra	com	a	mesma	rapidez.
Ao	 final	 de	 1644,	 o	 Parlamento	 controlava	 70%	 do	 território	 inglês,	 mas,
embora	 a	 vitória	 na	Batalha	 de	Marston	Moor,	 perto	 de	York,	 em	 julho	 de
1644,	tivesse	conquistado	o	comando	do	norte,	o	sul	ainda	impedia	sua	vitória.
Começaram	 a	 crescer	 as	 suspeitas	 quanto	 à	 motivação	 dos	 comandantes
nobres	do	Exército	parlamentar,	e	 isso	levaria	a	uma	divisão	fundamental	na
causa	parlamentar.	O	conde	de	Manchester,	que	liderava	o	Exército	do	Leste,
do	qual	fazia	parte	Oliver	Cromwell,	membro	do	Parlamento	por	Cambridge,
começou	 a	 questionar	 as	 razões	 para	 seguir	 lutando	 em	 vez	 de	 negociar.	O
conde	de	Essex	havia	sido	forçado,	em	setembro	de	1644,	em	virtude	da	sua
própria	 incompetência,	 a	 se	 render	 às	 forças	monarquistas	 na	Cornualha.	A
segunda	 Batalha	 de	 Newbury,	 em	 outubro	 de	 1644,	 quando	 as	 forças
parlamentares	 foram	 lideradas	 por	 Manchester,	 foi,	 para	 frustração	 do
Parlamento,	 inconclusiva.	 Parecia	 que	 alguns	 amigos	 do	 reino	 não	 estavam
suficientemente	 dispostos	 a	 obter	 uma	 vitória	 esmagadora	 e,	 em	 vez	 disso,
esperavam	que	o	rei	aceitasse	um	acordo.
Essas	 frustrações	 dividiram	 a	 Câmara	 dos	 Comuns	 em	 uma	 facção
presbiteriana,	 ávida	para	 se	aliar	 aos	 escoceses	 e	negociar	 com	o	 rei,	 e	outra
radical,	 conhecida	 como	 o	 Clã	 dos	 Guerreiros,	 que	 tinha	 como	 primeiro
objetivo	a	vitória	decisiva.	Em	abril	de	1645,	o	grupo	radical	aprovou	a	Lei	da
Abnegação,	na	qual	todos	os	membros	do	Parlamento	tinham	de	decidir	entre
funções	militares	ou	parlamentares,	 e	 todos	os	 ingleses	que	 fossem	membros
da	Câmara	dos	Lordes	 tinham	de	 abrir	mão	do	 comando	militar.	As	 tropas
parlamentares	do	sul	foram	então	unificadas	em	uma	única	força,	chamada	de
Exército	Novo,	liderada	por	sir	Thomas	Fairfax,	com	Oliver	Cromwell	como
segundo	comandante.	De	imediato,	o	Exército	Novo	deu	início	a	uma	série	de
vitórias	decisivas,	culminando	com	a	destruição	do	Exército	Real	em	Naseby,
em	 junho	 de	 1645,	 que	 acabou	 com	 qualquer	 chance	 de	 recuperação
monarquista.	Finalmente,	em	5	de	maio	de	1646,	Carlos	rendeu-se	ao	Exército
escocês	 em	 Southwell,	 Nottinghamshire.	 Em	 fevereiro	 do	 ano	 seguinte,	 o
Parlamento	 arrecadou	 o	 dinheiro	 para	 comprar	 o	 rei	 dos	 escoceses,
preparando	 o	 terreno	 para	 um	 dos	 anos	 mais	 extraordinários	 da	 história
política	da	Inglaterra.
Para	 entendermos	 os	 eventos	 de	 1647,	 precisamos	 de	 um	 exame	 mais
detalhado	do	Exército	Novo	e	da	influência	de	um	grupo	político	específico,	os
Niveladores.	 Ainda	 que,	 na	 aparência,	 fosse	 uma	 simples	 reorganização	 das
forças	 do	 Parlamento,	 o	 Exército	 Novo	 significava	 um	 desvio	 profundo.
Tratava-se	de	um	Exército	altamente	profissional	com	oficiais	promovidos	por
sua	 experiência	 em	 batalhas,	 não	 em	 conexões	 familiares,	 e	 com	 soldados
totalmente	 motivados.	 Os	 soldados	 e	 oficiais	 eram	 predominantemente
Protestantes	 Reformados,	 para	 os	 quais	 a	 fé	 religiosa	 era	 a	 base	 de	 sua
existência.	As	Bíblias	vernáculas	que	muitos	soldados	carregavam	mostravam
que	a	mensagem	de	Deus	não	era	simplesmente	a	obediência	à	autoridade,	e
um	 número	 cada	 vez	 maior	 deles,	 influenciados	 por	 textos	 radicais,	 via	 o
mundo	 como,	 nas	 palavras	 do	 Nivelador	 Gerard	Winstanley,	 “um	 tesouro
comum	a	todos”.3
A	Reforma	também	revelara	algo	muito	novo	e	surpreendente.	As	pessoas
acreditaram	 durante	 muito	 tempo	 que	 apenas	 os	 grandes	 homens	 —	 reis,
príncipes,	papas,	arcebispos	e	duques	—	podiam	alterar	o	curso	da	história,	mas
a	Reforma	havia	sido	ocasionada	por	Martinho	Lutero,	um	monge	alemão,	e
consolidadapor	João	Calvino,	um	pastor	francês.	E	embora	a	Igreja	Anglicana
tivesse	 sido	 instituída	 pelo	 rei	 da	 Inglaterra,	 na	 Escócia,	 John	 Knox,	 um
simples	 sacerdote,	 liderou	 as	 reformas	 protestantes	 que	 depuseram	 a	 rainha
Maria.	Além	disso,	a	crença	anterior	de	que	um	aristocrata	valia	mais	para	um
Exército	 do	 que	 sete	 homens	 comuns	 foi	 enterrada	 pelo	 Exército	 Novo	 na
lama	ensanguentada	de	Naseby.
O	 movimento	 Nivelador	 recebeu	 esse	 nome	 descritivo	 em	 novembro	 de
1647,	 embora	 tivesse	 surgido	 no	 outono	 de	 1645.	 Marchmont	 Needham
comentou	 que	 a	 palavra	 era	 “o	 título	 mais	 apropriado	 para	 um	 grupo	 tão
desprezível	e	desesperado	[...]	para	que	todo	homem	comum	seja	um	cavaleiro
e	 todo	 cavaleiro,	 um	 homem	 comum”.4	 O	 movimento	 se	 desenvolveu	 à
medida	que	a	derrota	do	Exército	monarquista	começou	a	se	tornar	inevitável
e	 terminou	 quando	 Cromwell	 e	 o	 Parlamento	 Remanescente	 assumiram	 o
controle	em	1649.	Os	Niveladores	existiram,	portanto,	num	vácuo	de	poder,
quando	nenhuma	autoridade	máxima	tinha	o	monopólio	do	poder	político	ou
da	força	militar.
A	 filosofia	dos	Niveladores	era	baseada	em	suas	 crenças	 religiosas,	 apesar
de	secular:	eles	não	sustentavam	que	os	direitos	políticos	deveriam	ser	dados
apenas	aos	devotos,	mas	tanto	para	os	santos	como	para	os	pecadores,	e	eram
a	favor	da	separação	entre	a	Igreja	e	o	Estado,	porque	cada	indivíduo	deveria
ter	 o	 direito	 de	 escolher	 a	 própria	 religião.	 Os	 Niveladores	 queriam	 a
igualdade	numa	época	de	deferência	 aos	bem-nascidos.	Para	 eles,	 a	opressão
dos	 ingleses	 começara	 com	 a	 conquista	 normanda,	 mas	 não	 queriam
simplesmente	que	o	“jugo	normando”	fosse	removido	e	os	direitos	dos	ingleses
anteriores	à	Conquista,	restaurados.	O	Nivelador	Richard	Overton	sustentou
que	“as	leis	desta	nação	não	são	dignas	de	uma	nação	livre	e	merecem	ser,	da
primeira	à	última,	 analisadas	 e	debatidas	 seriamente	até	que	 se	 chegue	a	um
consenso	com	igualdade	e	razão	correta,	a	qual	deve	ser	a	forma	e	a	vida	de
todo	governo”.5	Overton	e	seu	colega,	William	Walwyn,	queriam	fortalecer	as
“regras	universais	de	 igualdade	e	 justiça	para	 todos”.	Os	Niveladores	 tinham
um	 conjunto	 de	 princípios	 e	 até	 um	 manifesto,	 mas	 eles	 mesmos	 não	 se
candidatavam	 a	 eleições;	 em	 vez	 disso,	 estipulavam	 regras	 pelas	 quais	 o
processo	político	deveria	ser	conduzido.
O	 desejo	 de	 igualdade	 política	 veio	 com	 a	 experiência	 da	 guerra,	 assim
como	por	 suas	opiniões	 religiosas.	O	conflito	aproximara	homens	de	origens
diversas.	O	 Exército	Novo,	 em	 particular,	 era	 formado	 por	 voluntários	 que
podiam	avançar	com	base	na	habilidade	e	vinham	principalmente	de	centros
urbanos,	 em	 especial	 de	 Londres,	 com	 sua	 população	 adaptável	 e
autossuficiente.	 Ali,	 a	 igualdade	 era	 uma	 realidade	 prática,	 e	muitas	 pessoas
eram	“homens	sem	mestre”	numa	sociedade	comercial	em	expansão	(a	capital
crescera	 de	 200	 mil	 habitantes	 para	 350	 mil	 desde	 1600)	 que	 tinha	 pouco
espaço	para	a	deferência	à	autoridade.
O	que	 foi	 ainda	mais	 importante:	 pela	 primeira	 vez	 na	 história	 ocidental,
um	 movimento	 político	 teve	 acesso	 a	 esta	 máquina	 inestimável:	 a	 prensa
tipográfica.	O	fato	de	que	os	Niveladores	podiam	usar	a	palavra	impressa	para
divulgar	 suas	 crenças	 e	 argumentos	 os	 torna,	 de	 modo	 comprovável,	 os
fundadores	 da	 democracia	 moderna,	 dirigindo-se	 não	 apenas	 a	 seu	 círculo
imediato	 ou	 à	 elite	 instruída,	 mas	 às	 pessoas	 comuns	 (pelo	 menos	 às	 que
sabiam	 ler	ou	conheciam	alguém	que	soubesse).	 John	Milton	escreveu:	“Pois
os	livros	não	são,	de	modo	algum,	coisas	mortas,	mas	contêm	uma	força	vital
que	 os	 torna	 tão	 ativos	 quanto	 a	 alma	 que	 os	 gerou.”	 Foi	 a	 combinação	 do
Exército	 Novo	 meritocrático	 com	 o	 ativismo	 dos	 Niveladores	 que	 levou	 a
Inglaterra	às	margens	da	democracia.
Na	primavera	de	1647,	o	país	se	encontrava	numa	situação	nova	e	estranha.	O
Exército	dos	escoceses	recuara	de	 forma	pacífica	para	o	norte	da	 fronteira,	o
rei	 estava	 em	 prisão	 domiciliar	 e	 os	 Exércitos	 parlamentares,	 sob	 controle
inquestionável.	O	que	deveria	 ou	poderia	 ocorrer	 em	 seguida	 foi	 ditado	por
suas	questões	importantes.	Em	primeiro	lugar,	o	rei,	ainda	que	numa	condição
aparentemente	 irrecuperável,	 recusou-se	 a	 negociar	 com	 o	 Parlamento	 a
respeito	 de	 qualquer	 assunto	 fundamental,	 insistindo	 em	 seu	 direito	 de	 ser
levado	a	Londres	e	de	retomar	o	trono.	Quanto	mais	o	rei	demorava,	menos
popular	 o	 governo	 parlamentar	 se	 tornava	 —	 impostos,	 o	 impacto	 de	 seus
Exércitos	 (alojado	 com	 frequência	 na	 casa	 de	 civis)	 e	 as	 restrições	 de	 seus
comitês	 nos	 condados,	 tudo	 isso	 colocava	 o	 país	 contra	 o	 Parlamento.	 A
segunda	 questão	 era	 o	 Exército	 Novo,	 agora	 uma	 força	 dominante	 na
Inglaterra.	Em	1647,	o	Parlamento	devia	2,8	milhões	de	libras	a	seus	soldados.
A	Câmara	 dos	Lordes	 bloqueou	 o	 pagamento	 das	 tropas	 de	 forma	 explícita
para	forçar	o	licenciamento	do	Exército	Novo.	O	Exército	se	recusou,	exigindo
não	apenas	o	pagamento	retroativo,	mas	uma	indenização	em	caso	de	futuras
acusações	de	traição,	caso	o	rei	recuperasse	o	trono.
Em	consequência,	no	início	de	1647,	havia	Exércitos	amotinados	por	toda	a
Inglaterra	e	o	País	de	Gales.	Soldados	sequestraram	seus	superiores,	coletores
de	 impostos,	membros	de	comitês	de	condados	e	outros	oficiais	do	governo,
geralmente	 exigindo	 pagamento	 de	 resgate.	 Com	 maior	 frequência,	 tropas
recusavam-se	 a	 deixar	 os	 alojamentos,	 descumprindo	 ordens.	Na	 primavera,
esses	 soldados	 descontentes	 estavam	 acampados	 nos	 condados	 de	 Oxford,
Warwick,	 Leicester,	 Buckingham,	 Hertford	 e	 Northampton,	 aguardando	 os
desdobramentos	em	Londres.
Nessas	 duas	 questões	 —	 o	 rei	 e	 o	 Exército	 —	 a	 Câmara	 dos	 Comuns
permaneceu	 profundamente	 dividida	 entre	 presbiterianos,	 ávidos	 para
chegarem	a	um	acordo	com	o	rei	e	dispensarem	o	Exército,	 e	 radicais	agora
conhecidos	 como	 Independentes.	 Esses	 incluíam	oficiais	 de	 altas	 patentes	 do
Exército	Novo,	como	Oliver	Cromwell	e	seu	genro,	Henry	Ireton,	que	queria
o	 ressarcimento	 total	 para	o	Exército	 e	 que	o	 rei	 fosse	 forçado	 a	 aceitar	um
papel	 restrito	 no	 governo	 do	 país.	 O	 poder	 relativo	 de	 cada	 um	 dos	 lados
aumentou	 e	 diminuiu	 ao	 longo	 desse	 ano	 crucial,	 com	 um	 depois	 do	 outro
obtendo	 a	 vantagem	 no	 Parlamento.	 Cada	 um	 também	 fez	 alianças	 com
defensores	no	país	—	os	presbiterianos	com	os	escoceses	e	as	milícias	londrinas,
e	 os	 Independentes	 com	 grupos	 como	 os	 Niveladores,	 que	 tinham	 adeptos
dentro	 e	 fora	 do	 Exército.	 A	 aliança	 decisiva,	 no	 entanto,	 se	 deu	 entre	 os
Independentes	e	o	Exército	Novo,	uma	vez	que,	na	prática,	 foi	a	força	de	21
mil	homens	armados	reunidos	por	Londres	que	controlou	o	reino.	Para	muitos
soldados	e	oficiais,	o	presbiterianismo,	religião	aparentemente	calvinista,	havia
agora	se	tornado	o	credo	da	ordem	estabelecida	—	um	sentimento	intensificado
pela	 tentativa	 de	 forçar	 todos	 os	 soldados	 a	 cumprirem	 um	 Pacto
Presbiteriano.	A	maioria	dos	soldados	era	tolerante	quanto	a	diferentes	seitas	e
acreditava	que	o	Estado	não	deveria	interferir	na	fé	pessoal.
A	 atmosfera	 na	 capital	 durante	 o	 verão	 de	 1647	 era	 febril,	 com	 o
Parlamento	 dividido,	 o	 rei	 preso,	 o	 Exército	 se	 recusando	 a	 agir	 e	 soldados
descontentes	 de	 regimentos	 monarquistas	 e	 parlamentares	 dispensados
vagando	 pelas	 ruas.	 Porém	 o	 espírito	 político	 começava	 a	 mudar.	 O	 rei	 se
tornava	 uma	 figura	 favorável	 para	 muitos,	 enquanto	 relatos	 de	 soldados
sectários	 interrompendo	 cerimônias	 presbiterianas	 de	 forma	 violenta
começavam	a	 se	 espalhar.	Do	outro	 lado,	 a	 recusa	 constante	 do	Parlamento
em	fazer	os	pagamentos	e	a	questão	do	ressarcimento	politizavam	o	Exército	—
os	soldados	acreditavam	que	só	poderiam	ganhar	a	causa	com	a	substituição
doParlamento.
Os	 soldados	 do	 Exército	 deram	 início	 a	 um	 processo	 que	 podemos
descrever	 de	 forma	 legítima	 como	 a	 criação	 de	 uma	 instituição	 democrática.
Os	 oito	 regimentos	 da	 cavalaria	 com	base	 na	Ânglia	Oriental	 elegeram	dois
representantes	e,	em	carta	a	Fairfax	em	28	de	abril,	apresentaram	razões	para	a
recusa	 das	 tropas	 em	 ir	 à	 Irlanda,	 onde	 uma	 rebelião	 católica	 estava	 sendo
preparada,	 descrevendo	 a	 ação	 como	 “um	 plano	 para	 arruinar	 e	 fazer	 esse
Exército	 em	 pedaços”.	 Também	 alertaram	 que	 o	 apoio	 de	 seus	 oficiais	 era
esperado,	e	que	qualquer	um	que	não	o	fizesse	seria	“um	traidor	de	seu	país	e
inimigo	 de	 seu	 Exército”.6	 Além	 de	 demonstrarem	 mais	 uma	 vez	 o
descontentamento	 quanto	 a	 pagamentos	 e	 indenizações,	 exigiram	 que	 os
membros	do	Parlamento	que	criticaram	o	Exército	fossem	punidos.
No	início	de	maio,	outros	regimentos	seguiram	o	exemplo	da	cavalaria	da
Ânglia	 Oriental	 e	 elegeram	 agitadores	 para	 representá-los.	 Esse	 sistema	 foi
formalizado	 pela	 nomeação	 de	 números	 iguais	 de	 soldados	 representantes	 e
oficiais	 ao	Conselho	Geral	 do	Exército,	 que	 se	 reuniu	 pela	 primeira	 vez	 em
julho	 de	 1647.	Cada	 regimento	 tinha	 seu	 conselho	 de	 agitadores,	 que	 então
escolhia	 dois	 representantes	 dentre	 os	 seus	 membros	 para	 o	 conselho	 do
Exército.	 Soldados	 rasos	 com	 voz	 legítima	 nos	 conselhos	 superiores	 do
Exército	eram	algo	inédito,	mas	que	foi	aceito	de	acordo	com	o	Compromisso
Solene	 do	 Exército	 no	 início	 de	 junho	 de	 1647.	 Encontramos	 aqui	 dois	 dos
elementos-chave	da	democracia:	primeiro,	o	reconhecimento	de	que	o	soldado
comum	 tinha	 o	 direito	 de	 ser	 ouvido;	 e	 segundo,	 que	 o	 processo	 de	 eleger
representantes	para	falarem	em	nome	de	outros	homens	era	um	modo	legítimo
e	 efetivo	 de	 transmitir	 opiniões	 e	 preocupações.	 As	 implicações	 mais
abrangentes	também	foram	percebidas	pelos	soldados,	que	entendiam	que	seu
Exército	democrático	se	encontrava	em	notável	contraste	com	um	Parlamento
composto	pelos	ricos,	não	eleitos,	que	haviam	simplesmente	decidido	assumir
o	direito	de	representar	seus	compatriotas.
Muitos	 dos	 representantes,	 agitadores	 e	 oficiais	 do	 Exército	Novo,	 foram
recompensados	com	promoções,	ao	passo	que	os	oficiais	presbiterianos	eram
repelidos.	No	entanto,	enquanto	o	Exército	mantinha	o	poder	em	campo,	os
presbiterianos	 conservadores	 eram	 a	 maioria	 no	 Parlamento.	 As	 mudanças
foram	abaladas	de	 forma	dramática	com	a	captura	do	rei	em	1º	de	 junho	de
1647	por	uma	cavalaria	comandada	por	Cornet	George	Joyce,	provavelmente
agindo	 sob	 ordens	 secretas	 de	 Oliver	 Cromwell.	 Parece	 plausível	 que	 os
Independentes	 tenham	 descoberto	 uma	 conspiração	 de	 presbiterianos	 no
Parlamento	para	levar	o	rei	à	Escócia	e	retornar	com	ele	no	comando	de	um
Exército	 escocês	 e	 tenham	 agido	 para	 evitar	 que	 isso	 fosse	 realizado.	 O
próximo	passo	decisivo	foi	tomado	no	dia	14	de	junho,	quando	o	conselho	de
guerra	 do	 Exército,	 liderado	 por	 Fairfax,	 declarou	 que	 eles	 não	 eram	 um
Exército	 mercenário	 contratado	 para	 fazer	 o	 que	 o	 Estado	 mandasse,	 mas
eram	 “convocados	 e	 incitados	 por	 diversas	 declarações	 do	 Parlamento	 a
defenderem	os	direitos	justos	e	liberdades	de	nosso	próprio	povo”.7	Isso	fez	do
Exército	uma	força	abertamente	política.
A	captura	do	rei	colocou	as	tropas	no	controle	total	dos	eventos.	A	maioria
do	Parlamento	abandonou	a	 liderança	presbiteriana	e	buscou	a	 reconciliação
com	o	Exército	Novo.	Regimentos	foram	reunidos	em	Newmarket	nos	dias	4	e
5	de	junho	num	evento	que	aumentou	seu	senso	de	unidade	e	a	crença	de	que
seu	destino	—	 e	 o	do	país	—	 estava	 em	 suas	próprias	mãos.	No	 conselho	do
Exército	de	16	de	julho,	oficiais	superiores	apresentaram	um	documento	para
o	governo	do	reino,	conhecido	como	“Heads	of	the	Proposals”.	Redigido	por
Henry	 Ireton,	 o	 documento	 dava	 concessões	 notáveis	 ao	 rei,	 incluindo	 a
retomada	do	controle	do	Exército	por	ele	dez	anos	depois,	permitindo	que	os
bispos	permanecessem	e	que	o	Livro	de	Oração	Comum	fosse	usado,	embora
não	de	forma	compulsória.	O	rei	se	recusou	a	aceitar	as	propostas;	no	entanto,
em	2	de	agosto,	o	documento	foi	publicado	como	o	projeto	do	Exército	para	o
futuro	do	reino.
Enquanto	 isso,	 em	 26	 de	 julho,	 uma	 multidão	 de	 presbiterianos	 e
monarquistas	 deu	 um	 último	 lance	 de	 dados:	 invadiu	 a	 Câmara	 do
Parlamento,	 exigindo	 o	 retorno	 do	 rei	 e	 a	 renomeação	 do	 antigo	 conselho
presbiteriano	 para	 supervisionar	 a	 milícia	 londrina.	 Os	 membros	 do
Parlamento	 resistiram	 à	 pressão	 da	 multidão	 por	 cinco	 horas,	 até	 que	 um
grupo	 de	 aprendizes	 invadiu	 o	 salão	 e	 forçou	 os	membros	 do	Parlamento	 a
ordenarem	 a	 volta	 do	 rei	 para	 Londres.	 O	 incidente	 deu	 ao	 Exército	 um
pretexto	para	ocupar	a	capital.	Cinquenta	e	 sete	membros	do	Parlamento	da
ala	dos	Independentes	fugiram	para	a	segurança	do	quartel-general	de	Fairfax,
enquanto	os	membros	que	permaneceram	declararam	que	o	comando	dele	não
se	estendia	às	milícias	de	Londres.	No	dia	28	de	julho,	Fairfax	anunciou	que	o
Exército	marcharia	pela	 cidade	para	 escoltar	os	membros	do	Parlamento	 até
seus	lugares	e	para	restabelecer	a	liberdade	do	Parlamento.
Houve	 algumas	 tentativas	 de	 reação	 por	 parte	 do	 povo	 de	 Londres,	mas
quando,	 em	 4	 de	 agosto,	 4	 mil	 tropas	 do	 Exército	 Novo	 entraram	 em
Southwark,	a	realidade	da	situação	causou	impacto.	No	dia	seguinte,	Londres
estava	 segura,	 e	 Fairfax	 conseguiu	 escoltar	 o	Orador	 e	 os	 Independentes	 de
volta	ao	Parlamento.	No	dia	7	de	agosto,	houve	um	desfile	de	vinte	regimentos
no	Hyde	 Park,	 seguido	 por	 uma	marcha	 unificada,	 com	 tropas	 desarmadas
passando	 por	 todas	 as	 ruas	 de	 Londres.	 Depois	 de	 demonstrarem	 ser	 os
salvadores	 e	 não	 os	 inimigos	 do	 povo,	 as	 tropas	 deixaram	 a	 cidade	 e
acamparam	 nos	 arredores.	 Oficiais	 de	 alta	 patente	 montaram	 um	 quartel-
general	em	Putney,	a	oito	quilômetros	de	Westminster.
Apesar	 dessa	 vitória	 sobre	 os	 presbiterianos,	 o	 moral	 do	 Exército	 e	 sua
popularidade	começaram	a	diminuir.	O	povo	queria	se	ver	livre	dos	impostos
e	do	fardo	de	alojar	o	Exército.	O	Exército	queria	compensação	total,	mas	o
pagamento	das	tropas	não	era	mais	suficiente	para	aliviar	a	crise	crescente:	o
Exército	politizado	queria	mudanças	políticas.	Ninguém	era	capaz	de	encontrar
uma	 solução	 para	 os	 problemas	 do	 país	 que	 não	 envolvesse	 o	 rei,	 e	Carlos
estava	muito	ciente	de	ser	indispensável.	Era	de	seu	interesse,	pelo	menos	ele
acreditava	ser,	prolongar	todas	as	negociações,	enquanto	aguardava	auxílio	da
França	 ou	 Escócia.	 Ao	 fim	 do	 verão	 e	 início	 do	 outono,	 o	 Parlamento	 e	 o
Exército	estavam	desesperados	por	uma	solução.
No	 início	 de	 outubro,	 as	 negociações	 com	 o	 rei	 foram	 retomadas	 pelo
Exército,	 com	a	oferta	de	mais	 cláusulas	 favoráveis	 e	a	autorização	para	que
ele	formasse	um	conselho	de	monarquistas	em	Hampton	Court.8	No	dia	9	de
outubro,	 foi	publicado	um	documento	inspirado	nos	Niveladores,	“The	Case
of	 the	Armie	Truly	 Stated”	 (A	Versão	Verdadeira	 da	 Posição	 do	 Exército),
apresentado	a	Fairfax	no	Conselho	Geral	do	Exército	no	dia	18	de	outubro.
Apesar	 de	 inicialmente	 ter	 recebido	 com	 hostilidade	 o	 que	 considerou	 um
panfleto	subversivo,	o	conselho	decidiu	que	o	documento	deveria	ser	debatido
na	reunião	do	conselho	geral,	em	28	de	outubro,	convidando	os	proponentes	e
seus	defensores	civis	a	participarem.
Esse,	então,	foi	o	contexto	de	um	dos	episódios	mais	celebrados	da	história	da
democracia	—	os	Debates	de	Putney.9	O	“Heads	of	the	Proposals”	continuou
sendo	 o	 projeto	 oficial	 do	 Exército	 para	 o	 futuro	 do	 reino,	 enquanto	 um
documento	conhecido	como	“An	Agreement	of	 the	People”	 (Um	Acordo	do
Povo),	que	na	verdade	era	a	essência	de	“The	Case	of	the	Armie”,	tornou-se	o
centro	da	discussão	na	Igreja	da	Virgem	Maria,	em	Putney.
Cromwellconduziu	o	debate	de	abertura	em	28	de	outubro	na	ausência	de
Fairfax,	 que	 estava	 doente.	 O	 orador	 principal	 do	 comando	 superior	 do
Exército	 foi	Henry	Ireton,	que	redigira	o	“Heads	of	 the	Proposals”.	O	outro
lado	 foi	 representado	 pelo	 coronel	 Edward	 Sexby,	 um	Nivelador	 e	 agitador
eleito,	Robert	Everard,	conhecido	como	Agente	Novo,	também	representando
seu	 regimento,	 e	 o	 coronel	 Thomas	 Rainborough,	 antigo	 adversário	 de
Cromwell.10	 Os	 agitadores	 também	 levaram	 os	 civis	 John	 Wildman	 e
Maximilian	Petty.	Edward	Sexby	apresentou	os	representantes	que	defendiam
o	“The	Case	of	 the	Armie”	e	começou	com	um	ataque	 impetuoso	ao	rei	e	a
todos	 aqueles	 que	 buscavam	um	 acordo	 com	 ele,	 incluindo	 o	 Parlamento	 e,
pelo	menos	de	forma	implícita,	Cromwell	e	Ireton:
A	causa	de	nosso	pesar	está	baseada	em	duas	coisas.	Almejamos	satisfazer	a	todos	os	homens,	e	não
houve	 problemas;	 mas	 ao	 partirmos	 para	 a	 ação	 desagradamos	 a	 todos	 os	 homens.	 Nós	 nos
esforçamos	para	agradar	a	um	rei	e,	penso	eu,	a	não	ser	que	cortemos	todas	as	nossas	gargantas,	não
lhe	agradaremos.	E	já	apoiamos	uma	casa	de	pregos	podres	—	refiro-me	ao	Parlamento,	que	consiste
em	um	grupo	de	membros	podres.
O	 restante	 do	 primeiro	 dia	 foi	 tomado	 por	 questões	 práticas,	 e	 parece	 que
Cromwell	desejava	arrastar	os	procedimentos	o	máximo	possível,	enquanto	os
agitadores	estavam	ávidos	para	chegar	a	um	acordo.
No	segundo	dia,	29	de	outubro,	Robert	Everard	leu	o	“Acordo	do	Povo”.
Havia	quatro	propostas,	e	a	primeira	merece	ser	citada	na	íntegra:
Que	 o	 povo	 da	 Inglaterra,	 estando	 neste	 dia	 distribuído	 de	 modo	 muito	 desigual	 por	 condados,
cidades	e	distritos	para	a	eleição	de	seus	representantes	no	Parlamento,	deve	ser	dividido	com	mais
imparcialidade,	 de	 acordo	 com	 o	 número	 de	 habitantes:	 circunstâncias	 essas	 que,	 por	 quantidade,
local	e	modo,	devem	ser	estabelecidas	antes	do	fim	do	presente	Parlamento.
O	documento	também	propunha	que	o	Parlamento	deveria	ser	dissolvido	no
último	dia	de	setembro	de	1648	e	que	novos	parlamentos	fossem	eleitos	a	cada
dois	anos,	tendo	o	povo	como	autoridade	soberana	sobre	o	Parlamento,	não	o
contrário.	 Havia	 também	 uma	 lista	 dos	 aspectos	 da	 vida	 política	 que	 o
Parlamento	 não	 poderia	 alterar	 —	 em	 essência,	 uma	 carta	 de	 direitos	 que
incluía	 liberdade	 religiosa,	 o	 direito	 de	 recusar	 o	 serviço	militar,	 isenção	 de
perseguição	por	atos	cometidos	durante	a	guerra	civil,	uma	exigência	de	que
todas	as	leis	fossem	aplicadas	igualmente	a	todos	os	cidadãos	e	que	nenhuma
lei	 deveria	 apresentar	 “destruição	 evidente	 à	 segurança	 e	 ao	 bem-estar	 do
povo”.
Henry	 Ireton	 desferiu	 então	 um	 ataque	 contra	 a	 primeira	 cláusula,
argumentando	que	a	exigência	de	distribuição	de	posições	parlamentares	“de
acordo	 com	 o	 número	 de	 habitantes”	 implicava	 a	 cidadania	 masculina
universal.	 “Isso	 me	 faz	 pensar”,	 declarou,	 “que	 o	 significado	 é	 que	 todo
homem	que	 seja	 habitante	 deva	 ser	 considerado	 igualmente	 e	 deva	 ter	 igual
influência	nas	eleições	dos	representantes	[...]	e,	se	esse	for	o	significado,	tenho
algo	 a	 dizer	 contra	 isso.”	 Ireton	 declarou	 que	 essa	 medida	 ia	 contra	 “a
Constituição	 civil	 de	 seu	 reino,	 que	 é	 original	 e	 fundamental”,	 e	 que	 os
eleitores	existentes,	sujeitos	a	qualificações	de	acordo	com	seus	bens,	deveriam
permanecer	 assim.	 Esse	 foi	 o	 momento	 em	 que	 a	 questão	 da	 democracia
entrou	em	debate	aberto.
A	resposta	de	Maximilian	Petty	foi	curta	e	direta:	“Julgamos	que	todos	os
habitantes	que	não	perderam	seu	direito	de	nascença	devem	ter	voz	igual	nas
eleições.”	Em	seguida,	Thomas	Rainborough	apresentou	as	razões	pelas	quais
todos	os	homens	deveriam	ter	permissão	para	participar:
Pois	eu	penso	de	fato	que	o	homem	mais	pobre	que	existe	na	Inglaterra	tem	uma	vida	a	ser	vivida,
assim	 como	 o	 homem	mais	 grandioso.	 E,	 portanto,	 realmente,	 senhor,	 penso	 estar	 claro	 que	 todo
homem	que	viva	sob	um	governo	deve,	primeiro,	por	seu	próprio	consentimento,	colocar	a	si	mesmo
sob	tal	governo.	E	penso	que	o	homem	mais	pobre	da	Inglaterra	não	está	de	forma	alguma	obrigado,
em	sentido	estrito,	a	ter	um	governo	em	cuja	eleição	ele	não	pôde	se	expressar.
Rainborough	 chegara	 à	 conclusão	 natural	 da	 crença	 numa	 consciência	 cristã
individual	e	não	encontrou	nada	na	Bíblia	que	a	contradissesse:	“Não	encontro
nada	na	lei	de	Deus	que	diga	que	um	lorde	deva	escolher	vinte	burgueses,	um
cavaleiro	 deva	 escolher	 apenas	 dois	 e	 um	 homem	 pobre,	 nenhum.	 Não
encontro	nada	disso	na	lei	da	natureza	ou	na	lei	das	nações.”
Em	 resposta,	 Ireton	 argumentou	 que	 apenas	 um	 homem	 de	 posses	 tinha
verdadeiro	 interesse	 no	 reino,	 uma	 vez	 que	 sua	 própria	 fortuna	 estava
amarrada	 ao	 reino	—	 ele	 tinha	um	“interesse	 fixo	 e	 permanente”	—,	 e,	 ainda
que	 houvesse	 um	 direito	 natural	 de	 viver	 na	 Inglaterra	 não	 havia	 nenhum
direito	 natural	 ao	 voto.	 Além	 disso,	 se	 aqueles	 que	 não	 possuíam	 bens
estivessem	 no	 poder,	 simplesmente	 votariam	 para	 que	 toda	 a	 riqueza	 fosse
tirada	dos	que	a	possuíam:
Todos	 concordamos	 que	 as	 pessoas	 devem	 ter	 um	 representante	 no	 governo,	 mas	 que	 esse
representante	 seja	 tão	 igual	 quanto	 possível.	 A	 questão,	 porém,	 é:	 essa	 distribuição	 pode	 ser	 feita
igualmente	entre	todas	as	pessoas	ou	entre	os	iguais	que	possuem	em	si	o	interesse	da	Inglaterra?
Edward	 Sexby	 acusou	 Ireton	 de	 sugerir	 que	 os	 homens	 iriam	 contra	 os
mandamentos	de	Deus,	 roubando	 terras	que	não	 fossem	suas,	 e,	quanto	aos
privilégios,	Rainborough	perguntou:	“Eu	gostaria	de	saber	para	que	o	soldado
lutou	todo	esse	tempo.	Ele	lutou	para	se	escravizar,	para	dar	poder	a	homens
ricos.”
John	Wildman	viu	no	medo	da	anarquia	um	desvio	da	questão	real:	“Em
vez	de	analisarmos	a	primeira	proposta	e	 indagarmos	o	que	é	 justo,	entendo
que	estamos	nos	voltando	para	profecias	e	para	as	quais	pode	ser	o	resultado,
julgando	 a	 justiça	 da	 coisa	 por	 meio	 de	 sua	 consequência.	 Desejo	 que
possamos	retornar	à	questão	do	que	é	ou	não	correto.”	As	propostas	deveriam
ser	 julgadas	 por	 sua	 justiça,	 não	 por	 uma	 estimativa	 de	 seus	 possíveis
resultados.	 No	 entanto,	 eram	 as	 consequências	 o	 que	 mais	 importava	 para
Cromwell	e	Ireton.
Ainda	 que	 as	 palavras	 de	 Rainborough,	 Petty,	 Sexby,	Wildman	 e	 outros
agitadores	parecessem	excêntricas	para	a	época,	elas	refletiam	e	inspiravam	as
crenças	 e	 esperanças	 que	 eram	 difundidas	 na	 Inglaterra.	 Em	 relação	 às
inúmeras	discussões	públicas	realizadas	(e	os	panfletos	e	cartazes	produzidos)
durante	as	décadas	revolucionárias	do	século	XVII,	o	historiador	Christopher
Hill	 comentou:	“A	eloquência,	 a	 força	dos	 simples	artesãos	que	participaram
dessas	 discussões	 é	 espantosa.”11	 Ele	 citou	 com	 aprovação	 John	Milton,	 que
escreveu	sobre	“a	nação	nobre	e	potente,	que	desperta	como	um	homem	forte
após	o	sono	e	balança	os	cabelos	invencíveis	[...]	uma	nação	que	não	é	lenta	e
embotada,	 mas	 de	 espírito	 rápido,	 engenhoso	 e	 penetrante,	 perspicaz	 para
inventar,	sutil	e	vigorosa	para	discursar,	não	ficando	abaixo	de	qualquer	ponto
que	a	mais	alta	capacidade	humana	pode	alcançar”.
Os	Debates	de	Putney	duraram	até	11	de	novembro,	embora	tenham	sido
registrados	 por	 três	 dias	 no	 total.	 Como	 parecia	 haver	 poucas	 chances	 de
consenso	 no	 fórum	 aberto,	 Cromwell	 formou	 um	 comitê	 para	 delinear	 um
acordo	 a	 partir	 das	 discussões.	 Esse	 documento	 refletiu	 um	 número
surpreendente	 das	 propostas	 do	 “Acordo	 do	 Povo”	 original,	 incluindo	 a	 de
que	o	atual	Parlamento	deveria	ser	dissolvido	antes	de	setembro	de	1648,	e	as
eleições,	realizadas	a	cada	dois	anos	a	partir	de	então,	com	o	Parlamento	em
sessão	 por	 seis	 meses.	 Ao	 propor	 que	 o	 governo	 fosse	 conduzido	 com	 um
conselho	de	Estado,	o	documento	pressupunha	que	a	monarquia	e	a	Câmara
dos	 Lordes	 continuariam,mas	 com	 o	 poder	 residindo	 na	 Câmara	 dos
Comuns.
Além	disso,	dois	assuntos	cruciais	foram	abordados.	Primeiro,	foi	decidido
que	 as	 liberdades	 religiosas,	 o	 serviço	 militar	 obrigatório	 e	 a	 isenção	 de
punição	 por	 atos	 de	 guerra	 permaneceriam	 fora	 do	 alcance	 do	 novo
Parlamento,	dando	uma	clara	 indicação	de	que	essas	questões	 tinham	de	 ser
resolvidas	antes	de	setembro	de	1648.	Essa	foi	uma	vitória	notável	das	tropas	e
dos	Niveladores.	Segundo,	o	documento	propunha	que	o	próprio	Parlamento
deveria	decidir	sobre	as	qualificações	para	votar,	mas	que	todos	os	que	tinham
dado	alguma	contribuição	na	guerra	e	todos	os	que	entraram	para	o	Exército
antes	da	Batalha	de	Naseby	tinham	permissão	para	votar,	ao	passo	que	aqueles
que	 haviam	 lutado	 contra	 o	 Parlamento	 deveriam	 perder	 privilégios	 até	 o
terceiro	Parlamento	eleito.	Os	dízimos	também	deveriam	ser	substituídos	por
um	sistema	mais	justo	de	imposto	a	ser	determinado.
Os	agitadores	e	Niveladores	em	Putney	foram	o	primeiro	grupo	da	história
a	 defender	 o	 governo	 representativo	 em	 um	 Estado	 nacional,	 uma
Constituição	por	escrito	para	proteger	os	cidadãos	contra	o	Estado	e	a	definir
certos	direitos	universais:	o	direito	ao	silêncio	(em	resistência	ao	uso	frequente
da	tortura),	o	direito	à	representação	legal,	a	liberdade	de	consciência	e	debate,
a	 igualdade	 perante	 a	 lei,	 o	 direito	 de	 votar	 e	 o	 direito	 de	 remover	 tiranos.
Nenhuma	 dessas	 exigências	 havia	 sido	 reconhecida	 anteriormente	 por	 um
governo	nacional.
No	 entanto,	 as	 relações	 entre	 os	 agitadores	 e	 os	 oficiais	 de	 alta	 patente
começaram	a	enfraquecer	 logo	após	os	debates.	Os	Niveladores	no	conselho
começaram	a	ficar	impacientes	com	a	atitude	pouco	branda	dos	oficiais	com	o
rei	e	a	Câmara	dos	Lordes.	Ao	mesmo	tempo,	Cromwell	fazia	manobras	para
negar	o	poder	aos	agitadores.	Dois	 elementos	 se	 combinaram	para	a	derrota
do	 propósito	 dos	 Niveladores.	 O	 primeiro	 foi	 a	 percepção,	 por	 parte	 de
Cromwell	 e	 Fairfax,	 de	 que	 as	 ideias	 dos	 Niveladores,	 os	 quais	 eles	 antes
consideravam	 uma	 influência	 menor	 que	 poderia	 ser	 contornada	 sem
dificuldades,	 infiltraram-se	 de	 forma	 abrangente	 nas	 bases	 e	 no	 comando	do
Exército	 —	 isso	 ficou	 claro	 durante	 os	 debates.	 Ainda	 que	 permitissem	 a
elaboração	 de	 um	 acordo	 solidário,	 eles	 agiram	 rapidamente	 para	 tolher	 o
poder	 crescente	 dos	 agitadores	 e	 de	 seus	 companheiros	 Niveladores.	 Os
agitadores	solicitaram	uma	reunião	de	todos	os	regimentos	do	Exército	para	a
confirmação	do	 novo	 acordo,	mas	 os	 oficiais	 de	 alta	 patente	 viram	o	 perigo
que	isso	representava	para	a	unidade	do	Exército.
Na	reunião	seguinte	do	Conselho	Geral,	agora	com	a	condução	de	Fairfax,
Cromwell	declarou	que	a	cidadania	masculina	universal	era	uma	receita	para	a
anarquia	 e	 ordenou	 que	 os	 agitadores	 voltassem	 a	 seus	 regimentos.	 Com	 o
objetivo	de	impulsionar	seus	defensores	que	ainda	hesitavam,	Fairfax	revelou
que	 exigira	 da	 Câmara	 dos	 Comuns	 um	 aumento	 nos	 fundos	 mensais	 do
Exército	de	60	mil	para	100	mil	libras	e	a	reserva	de	terras	de	bispos	e	decanos
para	o	pagamento	de	salários	atrasados	dos	soldados.
O	outro	 elemento	que	acabou	com	qualquer	 esperança	de	uma	 Inglaterra
democrática	foi	a	retomada	de	guerra	incitada	pela	fuga	do	rei.	No	dia	11	de
novembro	 de	 1647,	 Carlos	 escapou	 de	 Hampton	 Court	 com	 a	 intenção	 de
chegar	à	França,	mas	na	Ilha	de	Wight	foi	detido	pelo	governador	e	levado	ao
Castelo	 de	 Carisbrooke.	 O	 Parlamento	 enviou	 a	 ele	 outro	 conjunto	 de
propostas	 (chamado	 “Four	 Bills”)	 com	 instruções	 para	 que	 o	 assinasse.	 O
documento	 exigia	 que	 ele	 abrisse	 mão	 da	 autoridade	 sobre	 o	 Exército	 e	 a
Marinha	por	vinte	anos,	buscasse	a	aprovação	do	Parlamento	para	qualquer
ação	militar,	 concedesse	 os	 direitos	 do	 Parlamento	 de	 se	 reunir	 sempre	 que
desejasse	 e	 anulasse	 todas	 as	 honras	 concedidas	 por	 ele	 desde	 o	 início	 do
conflito.	 Mas	 ele	 também	 recebeu	 delegações	 dos	 escoceses	 que	 temiam	 a
tomada	 de	 poder	 na	 Inglaterra	 por	 um	 grupo	 radical.	 Carlos	 assinou	 um
acordo	de	compromisso	com	os	escoceses,	em	26	de	dezembro,	e	contou,	pela
última	vez,	com	uma	 invasão	à	 Inglaterra.	Enquanto	 isso,	ocorriam	rebeliões
no	sul	e	oeste,	em	Kent	e	Essex.	A	maior	parte	delas	era	contra	o	Parlamento,
mais	do	que	a	favor	do	rei,	ainda	que	essa	diferenciação	começasse	a	se	perder.
No	 próprio	 Exército	 Novo,	 os	 Niveladores	 atiçavam	 o	 fogo	 da	 rebelião.
Num	 encontro	 do	 Exército	 em	Ware,	 Hertfordshire,	 em	 15	 de	 novembro,
apenas	quatro	dias	após	a	fuga	do	rei,	o	coronel	Rainborough	(não	mais	oficial
do	Exército	 e,	 portanto,	 não	 autorizado	 a	 estar	 presente)	 entregou	 a	 Fairfax
uma	 solicitação	 para	 que	 o	 “Acordo	 do	 Povo”	 fosse	 posto	 em	 prática	 por
completo.	 Fairfax	 ordenou	 que	 ele	 deixasse	 o	 campo,	mas	 um	 desafio	mais
sério	se	deu	com	a	chegada	do	regimento	do	coronel	Thomas	Harrison,	sem
oficiais	 e	 liderado	 pelo	 agitador	 Joseph	 Aleyn.	 Eles	 também	 não	 tinham	 o
direito	 de	 participar	 do	 encontro	 e	 usavam	 cópias	 do	 acordo	 presas	 aos
chapéus.	 Uma	 reprimenda	 por	 parte	 de	 Fairfax	 e	 a	 óbvia	 recusa	 de	 outros
regimentos	a	se	juntarem	à	rebelião	restabeleceram	a	ordem.	As	tropas	haviam
expressado	 suas	 opiniões,	 mas	 faziam	 parte	 de	 um	 Exército	 e	 juraram
obediência.	Fairfax	disse	a	cada	regimento	que	os	agentes	e	agitadores	haviam
combinado	 com	 elementos	 externos	 que	 dividiriam	 o	 Exército	 contra	 si
mesmo.	Em	seguida,	pediu	que	fosse	lida	a	sua	declaração	das	solicitações	do
Exército	para	si	próprio	e	para	o	país.	Estavam	inclusos	ajustes	de	pagamento
e	compensação,	e	parlamentos	com	duração	fixa	escolhidos	por	eleições	livres.
Fairfax	 estava	 ganhando	 o	 controle	 da	 situação	 quando	 o	 regimento	 de
Robert	Lilburne	entrou	em	campo,	depois	de	uma	rebelião	aberta	contra	seus
oficiais	nos	últimos	dezoito	dias.	Eles	também	usavam	cópias	do	acordo	presas
aos	 chapéus	 e	 não	 foram	 intimidados	 com	 tanta	 facilidade;	 somente	 quando
Cromwell	e	outros	oficiais	passaram	montados	entre	os	soldados	com	espadas
em	punho,	 os	homens	 começaram	a	 entrar	 em	ordem.	Fairfax	 conduziu	um
julgamento	 em	 corte	 marcial	 de	 diversos	 líderes	 de	 grupos	 rebeldes	 e
condenou-os	 à	morte.	Em	 seguida,	 adiou	 a	punição	 e	 selecionou	apenas	 três
para	tirarem	um	sorteio;	o	perdedor	foi	executado	diante	do	regimento	pelos
outros	dois.	Esse	foi	o	fim	simbólico	e	brutal	de	uma	rebelião	nascente	e	o	fim
de	 qualquer	 chance	 de	 dominação	 da	 política	 inglesa	 por	 parte	 dos
Niveladores.
Outros	 encontros	 em	 Watford	 e	 Kingston	 foram	 harmoniosos	 e,	 nos
primeiros	 meses	 de	 1648,	 o	 Exército	 Novo	 foi	 reduzido	 à	 metade,	 com	 a
expulsão	dos	radicais	e	a	diminuição	de	regimentos	 importunos.	 Insurreições
armadas	 em	 partes	 da	 Inglaterra	 e	 do	 País	 de	 Gales	 e	 a	 intervenção	 do
Exército	escocês	provocaram	o	que	 ficou	conhecido	como	a	Segunda	Guerra
Civil	 Inglesa.	 O	 Parlamento	 foi	 muito	 mais	 implacável	 com	 os	 envolvidos
nessa	guerra.	Após	a	Batalha	de	Preston	(agosto	de	1648),	em	que	Cromwell
derrotou	os	escoceses,	e	os	cercos	em	Pembroke	(julho)	e	Colchester	(agosto),
líderes	monarquistas	 foram	enforcados.	Em	setembro,	com	todas	as	rebeliões
dominadas,	uma	delegação	foi	enviada	mais	uma	vez	para	negociar	com	o	rei.
Exasperado	com	a	intransigência	de	Carlos,	Henry	Ireton	convenceu	Fairfax	a
abandonar	o	diálogo	e	 impor	as	propostas	do	Exército.	O	 rei	 foi	 transferido
para	 o	 Castelo	 de	 Hurst	 e,	 em	 6	 de	 dezembro,	 Ireton	 excluiu	 todos	 os
membros	do	Parlamento	que	ainda	eram	a	favor	de	negociações	com	o	rei.
Os	 que	 restaram	 —	 o	 Parlamento	 Remanescente	 —	 aprovaram	 uma
ordenação	 em	 1º	 de	 janeiro	 de	 1649	 para	 o	 estabelecimento	 de	 uma	 Corte
Suprema	que	julgasse	o	rei.	Carlos	recusou-se	a	responder	às	acusações	contra
ele,argumentando	que	não	havia	autoridade	acima	do	rei	 e	que	a	 corte	não
tinha	 direito	 de	 julgá-lo.	 A	 acusação,	 por	 meio	 do	 juiz	 supremo	 John
Bradshaw,	declarou	que	a	autoridade	máxima	no	país	era	a	do	povo:	“Senhor,
assim	como	a	lei	é	superior	ao	senhor,	então,	de	fato,	existe	algo	superior	à	lei
e	que	realmente	é	o	genitor	ou	autor	da	lei	—	e	esse	é	o	povo	da	Inglaterra.”12
O	Parlamento	Remanescente	acreditava	que,	enquanto	vivesse,	Carlos	seria
um	perigo	para	a	estabilidade	do	país,	e	tinha	de	ser	executado.	No	entanto,	a
corte	parlamentar	precisava	mostrar	os	fundamentos	de	sua	autoridade.	Assim,
a	crise	da	década	de	1640	viu	o	início	da	filosofia	política	moderna,	que	levou
à	 publicação	 do	 Leviatã,	 de	 Thomas	 Hobbes.	 O	 livro	 propunha	 a	 ideia	 da
sociedade	 funcionando	 por	meio	 de	 um	 contrato	 social	 entre	 governantes	 e
governados,	que	se	tornou	a	resposta	dos	filósofos	à	questão	da	legitimidade	e
de	como	a	sociedade	deveria	ser	governada.	O	contrato	social	seria	retomado
de	 formas	 diferentes	 por	 John	 Locke	 e	 Jean-Jacques	 Rousseau,	 as	 quais
influenciaram	diretamente	os	ativistas	políticos	durante	a	Revolução	Francesa.
No	dia	26	de	janeiro	de	1649,	Carlos	foi	acusado	de	ser	“um	tirano,	traidor
e	 assassino”	 por	 um	 tribunal	 que	 recorreu	 à	 autoridade	 do	 “povo	 da
Inglaterra”.	Quatro	dias	depois,	ele	foi	executado	em	frente	à	Mansion	House.
Houve	 outras	 rebeliões	 dos	 Niveladores	 em	 abril	 e	 maio,	 reprimidas	 por
Fairfax,	cada	vez	mais	desiludido.	Agora	Cromwell	e	Ireton	é	que	controlavam
os	 acontecimentos.	 Cromwell	 liderou	 uma	 expedição	 militar	 à	 Irlanda	 para
reprimir	uma	rebelião	católica	em	1649	e,	como	chefe	do	Exército,	 invadiu	a
Escócia	 em	 1650	 e	 1651.	 Quando	 voltou	 a	 Londres,	 o	 Parlamento
Remanescente	 estava	 em	desacordo	 quanto	 a	 uma	 série	 de	medidas	 cruciais
sobre	dissolução	e	eleições.	Cromwell	ficou	exasperado	com	essa	indecisão	e,
em	20	de	abril	de	1653,	obrigou	o	Parlamento	a	se	desfazer	e	tomou	o	controle
efetivo	 do	 país.	 Seu	 Protetorado	 durou	 até	 1658.	 Em	 1657,	 o	 Parlamento
ofereceu-lhe	 a	 Coroa,	 mas,	 após	 refletir	 intensamente,	 recusou:	 “Eu	 não
tentaria	restabelecer	aquilo	que	a	Providência	destruiu	e	deixou	para	trás,	e	eu
não	 construiria	 Jericó	 novamente.”	 Após	 a	 sua	 morte,	 em	 1658,	 seu	 filho,
Richard,	 foi	seu	sucessor,	mas,	com	pouco	apoio,	 foi	 forçado	a	renunciar	em
maio	de	1659.
Quando	a	monarquia	foi	restabelecida	em	1660,	o	Parlamento	foi	capaz	de
exercer	o	controle	que	almejara	nos	reinados	dos	Stuart.	Foi	o	Parlamento	que
convidou	 Carlos	 II	 a	 assumir	 o	 trono	 e,	 quando	 seu	 sucessor,	 Jaime	 II,
recusou-se	a	aceitar	seu	controle,	o	Parlamento	demonstrou	que	tinha	o	poder
máximo	 no	 reino	 depondo	 o	 rei	 e	 convidando	 Guilherme	 de	 Orange	 para
ocupar	 o	 trono.	 As	 condições	 impostas	 à	 monarquia	 pelo	 Parlamento,
apresentadas	na	Carta	de	Direitos	Inglesa	de	1689,	o	Ato	Trienal	de	1694	e	o
Ato	 de	 Sucessão	 de	 1701-02	 foram	 contemporâneos	 da	 fundação	 de	 uma
monarquia	 constitucional	 e	 da	 Constituição	 “equilibrada”	 de	 forma	 notória,
em	 que	 comuns,	 lordes	 e	 monarca,	 todos	 faziam	 seu	 papel.	 A	 estabilidade
política	 da	 Grã-Bretanha	 e	 seu	 êxito	 no	 cenário	 internacional	 nos	 séculos
XVIII	e	XIX	foram	atribuídos	a	esse	“Estado	ideal”,	mas	seria	difícil	afirmar
que	esse	era	um	passo	em	direção	à	democracia.	A	democracia,	arrancada	dos
soldados	 no	 campo	 de	 Batalha	 em	 Ware,	 transformou-se	 num	 palavrão	 —
todas	as	reformas	subsequentes	na	Grã-Bretanha	foram	introduzidas	devido	ao
fato	de	manterem	a	democracia	a	distância.	Foi	apenas	na	década	de	1880	que
a	palavra	voltou	a	ser	usada	com	sentido	favorável.
A	 Revolução	 Gloriosa,	 de	 1688-89,	 tornou-se	 o	 mito	 de	 fundação	 do
constitucionalismo	inglês,	e	nessa	ideologia	é	o	Parlamento,	e	não	o	povo,	que
é	 soberano.	 Na	 verdade,	 a	 soberania	 está	 na	 “Coroa	 no	 Parlamento”,	 um
termo	conveniente	em	sua	grandiosidade	e	intencionalmente	vago	que	permite
ao	 monarca	 deter	 certos	 poderes,	 entregando	 o	 governo	 do	 país	 ao
Parlamento.	Os	poderes	da	Coroa	 tornaram-se	 aos	poucos	mais	 cerimoniais,
mas	 permanece	 até	 hoje	 a	 possibilidade	 de	 intervenção	 do	 monarca	 num
momento	de	crise	política	ou	constitucional	para	recuperar	a	estabilidade.
Depois	 de	 1700,	 muitos	 europeus	 começaram	 a	 perceber	 que	 os
parlamentos	 tinham	 grande	 potencial	 enquanto	 instrumentos	 de	 governo,	 e
isso	se	deu,	em	grande	parte,	devido	ao	exemplo	da	Grã-Bretanha.	A	expansão
imperial	 do	 país,	 facilitada	 por	 uma	 Marinha	 extraordinariamente	 bem-
organizada	 e	 bem-sucedida	 (o	 equivalente	 moderno	 do	 Exército	 romano),
seguida	 pela	Revolução	 Industrial,	 deu	 ao	 país	 enorme	 êxito	 econômico	 em
casa	 e	 no	 exterior.	 Sua	 Constituição	 e	 a	 estabilidade	 política	 que	 ela
proporcionou	 foram	 um	 ótimo	 exemplo	 tanto	 para	 aqueles	 que,	 como
Voltaire,	defendiam	que	a	condição	de	uma	nação	não	dependia	de	monarcas
autocratas	quanto	para	aqueles	que	buscavam	a	liberdade	para	o	indivíduo.	Se
a	 Constituição	 britânica	 e	 o	 poder	 da	 nação	 tinham	 uma	 relação	 causal,	 é
difícil	 determinar.	 O	 que	 está	 claro	 é	 que	 a	 Grã-Bretanha	 tornou-se	 uma
sociedade	mais	aberta	do	que	a	maioria	de	suas	vizinhas	europeias.
Porém,	um	exame	mais	detalhado	da	política	eleitoral	na	Grã-Bretanha	do
século	XVIII	revela	um	grau	alarmante	de	nepotismo,	corrupção	e	ações	em
interesse	próprio,	 com	algumas	 limitações	 e	 inspeções	 formais.	Um	posto	no
Parlamento	 era	 concedido	 por	 conexões	 familiares	 ou	 pelo	 suborno	 do
pequeno	 número	 de	 votantes	 de	 um	 círculo	 eleitoral.	 Uma	 vez	 eleitos,	 os
membros	do	Parlamento,	em	sua	maioria,	tinham	pouca	participação,	e	o	país
era	governado	de	fato	por	uma	panelinha	de	pessoas	eminentes,	a	maior	parte
da	 Câmara	 dos	 Lordes,	 e	 que,	 portanto,	 nem	 sequer	 correspondiam	 aos
supostos	 representantes	 do	 povo.	 Dos	 24	 primeiros-ministros	 que	 atuaram
entre	1721	e	o	Ato	de	Reforma	de	1832,	dezesseis	eram	membros	da	Câmara
dos	Lordes.
O	 distrito	 de	 Scarborough,	 descrito	 com	 frequência	 pelo	 historiador	 Jack
Binns,	 oferece	 uma	 história	 típica:	 “Entre	 1715	 e	 1831,	 houve	 36	 eleições	 e
eleições	complementares	no	distrito	de	Scarborough,	porém	apenas	sete	delas
foram	disputadas	[...]	o	governo	central	exercia	controle	sobre	pelo	menos	uma
e,	 muitas	 vezes,	 ambas	 as	 vagas	 do	 eleitorado.”	 Porém,	 mesmo	 quando	 as
eleições	eram	disputadas,	a	política	 tinha	pouca	 importância	e	“as	rivalidades
pessoais	e	familiares	eram	mais	relevantes	[...]	um	candidato	independente	de
fato	 era	 algo	 muito	 excepcional.”	 Na	 década	 de	 1760,	 lorde	 Granby,
comandante	 supremo	 do	 Exército,	 venceu	 as	 eleições	 com	 sólido	 apoio	 do
governo.	Em	1768,	ele	indicou	o	filho	ilegítimo,	George	Manners,	que	ganhou
as	 eleições	 por	 29	 votos	 contra	 24,	 e	 o	 cargo	 permaneceu	 na	 família	 pelos
sessenta	 anos	 seguintes.13	 Ainda	 que	 questões	 nacionais,	 como	 guerra	 e
religião,	tivessem	efeito,	muitas	eleições	era	disputadas	com	base	em	questões
locais,	 com	 candidatos	 prometendo	 recompensas	 financeiras	 para	 ganhar
apoio.
Apesar	de	tudo	isso,	as	eleições	envolviam	mais	do	que	apenas	candidatos
indignos	 e	 eleitores	 corruptos.	 As	 campanhas	 mobilizavam	 grande	 parte	 da
população,	 e	 os	 candidatos	 se	 apresentavam	 diante	 do	 povo.	 Em	 muitos
lugares,	 formava-se	um	festival	completo,	com	estandartes,	 florões	e	brigadas
de	partidários.	Os	que	não	tinham	direito	ao	voto	participavam	da	diversão	e
tinham	 a	 chance	 de	 repreender	 ou	 aplaudir	 os	 candidatos.	 Os	 candidatos
faziam	 uma	 entrada	 grandiosa	 no	 dia	 da	 eleição,	 e	 quando	 o	 resultado	 era
divulgado,	 havia	 festas	 e	 fogueiras,	 danças	 e	 bebidas.	 Era	 a	 política	 como
entretenimento.
Na	Europa	do	século	XVIII,	os	políticos	vinham	de	uma	faixa	social	restrita
—	situaçãoque	durou	até	meados	do	século	XX.	A	Câmara	dos	Comuns	era
um	 exemplo	 típico:	 filhos	 de	 colegas	 e	membros	 da	 gentry	 [pequena	 e	média
nobreza	rural	aburguesada]	dominavam,	e	defender	os	interesses	da	família	era
tão	 importante	quanto	a	política	de	partidos.	Eram	cavalheiros	com	interesse
nos	 assuntos	 da	 nação,	mas	 com	 um	 interesse	maior	 nos	 seus	 próprios.	Os
eleitores	 eram	 da	 gentry	 também:	 na	 Grã-Bretanha,	 em	 1800,	 havia	 350	 mil
eleitores	numa	população	total	de	10	milhões.	Os	estudos	inovadores	de	Lewis
Namier	 a	 respeito	 do	 Parlamento	 no	 século	XVIII	 revelaram	 que	 a	 política
britânica	era	formada	por	uma	pequena	elite,	com	relações	de	parentesco	entre
todos	os	membros.
No	entanto,	esse	século	também	testemunhou	o	crescimento	econômico	que
trouxe	 prosperidade,	 educação	 e	 consciência	 política.	 Em	 algumas	 partes	 da
Europa,	como	Escócia,	Províncias	Unidas,	Suécia,	Bélgica	e	norte	da	França,
quase	100%	dos	homens	eram	alfabetizados	em	1800.	Isso,	juntamente	com	as
mudanças	 nas	 leis	 de	 impostos,	 levou	 a	 um	 aumento	 súbito	 nas	 vendas	 de
jornais,	periódicos	e	livros.	A	Grã-Bretanha	estava	mais	uma	vez	à	frente,	com
2,5	milhões	de	jornais	vendidos	em	1713	e	12,6	milhões	em	1775.	Em	1789,	os
estados	alemães	do	Sacro	Império	Romano	tinham	duzentos	jornais,	que	eram
lidos	por	3	milhões	de	pessoas.	Os	 jornais	holandeses	 eram	 lidos	na	França,
onde	os	 jornais	 foram	proibidos.	Após	a	deflagração	da	Revolução	Francesa,
em	1789,	cem	jornais	surgiram	imediatamente.	A	leitura	de	jornais	era	muito
maior	 do	 que	 sugerem	 as	 tiragens,	 uma	 vez	 que	 as	 salas	 de	 leitura,	 cafés,
hospedarias,	 sociedades	 literárias,	 academias	e	bares	 compravam	exemplares.
A	política	estendeu	seu	alcance	a	uma	parte	ainda	maior	da	população.
Os	 impulsos	 democráticos	 dos	 Niveladores,	 atuando	 por	 meio	 do	 Exército
Novo,	não	alcançaram	êxito.	A	herança	deixada	pelo	conflito	que	se	alastrou
pelas	 Ilhas	Britânicas	na	década	de	1640	 foi	uma	negação	da	democracia	em
favor	de	um	Parlamento	composto	pelos	ricos	e	bem-relacionados,	controlados
por	uma	pequena	elite.	A	suposição	de	que	o	Parlamento	falava	pelo	povo	não
era	mais	 válida	do	que	 a	dos	 antigos	parlamentos	medievais,	 e	 suas	práticas
eleitorais	eram	certamente	questionáveis.	Todavia,	durante	o	século	seguinte,	a
prática	das	 eleições	 estabeleceu-se	 com	 firmeza	na	Grã-Bretanha	 e	 em	outras
partes	da	Europa,	em	que	a	política	passou	a	fazer	parte	do	discurso	público.
E,	quando	uma	parte	 cada	vez	maior	da	população	britânica	 adquiriu	poder
econômico	 por	 meio	 da	 organização	 de	 trabalhadores	 industriais	 no	 fim	 do
século	 XIX,	 ela	 finalmente	 ganhou	 acesso	 ao	 poder	 político	 por	 meio	 das
eleições	 ao	 Parlamento	 —	 o	 mesmo	 Parlamento	 que	 rejeitara	 as	 propostas
democráticas	de	seus	ancestrais.	Ninguém	tinha	conhecimento	das	transcrições
dos	Debates	de	Putney	até	a	sua	descoberta	num	arquivo	de	Oxford	em	1890.
A	 geração	 que	 redescobriu	 os	 Niveladores	 seria	 a	 primeira	 a	 presenciar	 a
chegada	de	uma	democracia	plena	à	Grã-Bretanha.
A
6
DEMOCRACIA	NA	AMÉRICA
O	Cidadão	Eleitor
democracia	 teve	 uma	 vida	 instável	 nas	 cidades	 europeias	 no	 fim	 do
período	medieval,	nos	vales	dos	Alpes	e	nas	bases	do	Exército	Novo.	Por
mais	importantes	que	esses	fenômenos	tenham	sido	na	história	da	democracia,
eles	parecem	pequenos	diante	da	extraordinária	história	política	que	veio	em
seguida	 nos	 Estados	 Unidos	 da	 América.	 Enquanto	 os	 cidadãos	 europeus
ficavam	defasados	em	relação	a	Estados	cada	vez	mais	poderosos,	os	Estados
Unidos	estabeleciam	uma	democracia	numa	escala	jamais	vista	até	então.
O	novo	sistema	não	apenas	foi	mantido	por	mais	tempo	do	que	em	todos
os	 outros	 Estados	 democráticos,	 como,	 em	 seus	 primeiros	 setenta	 anos,
aproximadamente,	 os	Estados	Unidos	 inventaram	e	 efetivaram	uma	 série	de
práticas	 e	 princípios	 democráticos	 que	 fornece	 um	 modelo	 ao	 mundo.	 Na
década	 de	 1840,	 todo	 cidadão	 adulto,	 branco,	 do	 sexo	 masculino	 tinha	 o
direito	 de	 votar	 em	 eleições	 estaduais	 e	 federais;	 quase	 todos	 os	 oficiais
públicos	 importantes	 eram	 eleitos;	 uma	 série	 de	 instituições	 nacionais	 foi
estabelecida	 para	 proteger	 o	 cidadão	 do	 poder	 do	 Estado	 e	 da	 potencial
“tirania	da	maioria”;	órgãos	de	nível	nacional,	regional	e	 local	controlavam	e
limitavam	a	autoridade	do	Estado	federal;	surgiram	partidos	políticos	que	não
apenas	 arrecadavam	 fundos	 para	 campanhas	 eleitorais	 como	 estimulavam	 a
participação	e	a	cultura	política	de	engajamento	das	massas;	e	foi	estabelecido
o	difícil	conceito	de	oposição	leal.
A	história	de	como	isso	se	deu	é	muitas	vezes	deixada	de	lado	em	favor	da
retórica	 grandiosa	 de	 Thomas	 Jefferson	 e	 John	 Adams,	 mas	 a	 prática	 veio
muito	 antes	 da	 teoria.	 Neste	 capítulo,	 examinaremos	 primeiro	 as	 raízes	 da
democracia	nas	colônias	americanas:	as	igrejas	puritanas	e	os	antigos	distritos
ingleses.	Nenhum	dos	dois	fez	da	democracia	algo	inevitável,	mas	sem	eles	ela
não	existiria.
O	navio	Mayflower	zarpou	de	Plymouth	em	setembro	de	1620,	rumo	à	área	do
rio	 Hudson,	 mas	 foi	 desviado	 para	 o	 norte	 e	 atracou	 no	 cabo	 Cod,
Massachusetts.	Apesar	de	se	depararem	com	o	rigoroso	 inverno	setentrional,
os	 passageiros	 puritanos	 acreditavam	 que	 tinham	 vindo	 para	 criar	 uma
comunidade	 na	 qual	 a	 vontade	 de	 Deus	 poderia	 ser	 praticada	 —	 para
construírem,	 nas	 palavras	 posteriores	 de	 John	Winthrop,	 “uma	 cidade	 sobre
um	 monte”.	 Os	 puritanos	 haviam	 escapado	 da	 perseguição	 religiosa	 na
Inglaterra	e	buscavam	um	lugar	mais	próximo	de	Deus.	No	entanto,	apesar	do
status	mítico	do	Mayflower,	a	costa	leste	já	havia	sido	colonizada	por	europeus.
A	 colônia	 inglesa	 de	 Jamestown,	 na	 Virgínia,	 fundada	 em	 1607,	 foi	 uma
iniciativa	 mercantil,	 com	 uma	 população	 de	 comerciantes,	 artesãos	 e	 servos
por	contrato	que	buscavam	sua	liberdade.1	Dois	importantes	padrões	da	vida
americana	foram	estabelecidos	desde	o	início	—	os	individualistas	aventureiros
da	Virgínia	e	as	comunidades	puritanas	de	Massachusetts.
Embora	 houvesse	 colonizadores	 holandeses,	 espanhóis,	 suecos,
dinamarqueses,	 finlandeses,	 alemães	 e	 franceses	 na	 América	 do	 Norte,	 o
número	de	imigrantes	da	Grã-Bretanha	seria	predominante	e	decisivo.	Após	o
começo	 incerto	 e	 de	 brutal	 adversidade	 —	 quase	metade	 dos	 passageiros	 do
Mayflower	não	sobreviveu	ao	primeiro	inverno	—,	18	mil	puritanos	cruzaram	o
Atlântico	 em	 1642,	 e,	 em	 1700,	 havia	 100	mil	 vivendo	 na	Nova	 Inglaterra.
Imigrações	 posteriores	 incluíram	 outras	 seitas,	 como	 a	 numerosa	 colônia
quacre	na	Pensilvânia,	estendendo-se	a	oeste,	do	litoral	até	os	Apalaches.
Apesar	 da	 presença	 de	 diferentes	 grupos	 religiosos,	 as	 primeiras	 colônias
eram	dominadas	por	protestantes	não	conformistas.	Em	quase	todos	os	casos,
eles	 tinham	 uma	 crença	 fervorosa	 na	 comunidade	 da	 igreja	 e	 no	 valor
individual	de	cada	membro.	O	modo	como	essas	igrejas	eram	administradas	é
vital	porque,	como	escreveu	um	historiador	do	período,	nas	primeiras	décadas
das	 colônias	 da	 Nova	 Inglaterra,	 “os	 governos	 da	 Igreja	 e	 da	 cidade	 eram
praticamente	indistinguíveis”.2
É	importante	entender	que	as	diferentes	congregações	puritanas	provinham
de	 Igrejas	 Católicas	 e	 Anglicanas	 das	 quais	 haviam	 se	 retirado.	 Para	 os
puritanos	americanos,	não	havia	uma	instituição	separada	chamada	“a	Igreja”,
governada	e	oficiada	por	um	poder	remoto.	A	igreja	era	os	seus	membros,	não
o	 seu	 clero	nem	as	 suas	 edificações.	Ela	 era,	nas	palavras	de	William	Ames,
fundador	 do	 congregacionalismo,	 “uma	 irmandade	 de	 adeptos	 fiéis”.3	 A
expressão	“Casa	de	Encontro”,	usada	pelos	quacres,	revela	que	o	propósito	era
funcional,	não	sagrado	—	em	contraste	com	o	status	sagrado	da	Igreja	Católica.
Embora	a	base	das	igrejas	não	conformistas	fosse	a	fé	de	seus	membros,	elas
não	estavam	abertas	para	todos	quechegassem.	Os	 indivíduos	que	entravam
para	a	igreja	concordavam	em	se	comportar	de	certas	maneiras,	e	as	regras	de
comportamento	eram	extremamente	rigorosas:	os	puritanos	acreditavam	que	o
poder	traz	responsabilidade	e	que	a	comunidade	não	pode	ser	comandada	por
aqueles	 que	 levam	 uma	 vida	 irresponsável.	 Além	 disso,	 o	 dogma	 central	 da
teologia	 calvinista	 era	 de	 que	 os	 eleitos	 se	mostrassem	 à	 altura	 da	 graça	 de
Deus	 levando	 uma	 vida	 de	 simples	 devoção.	 Cada	 membro	 de	 uma	 igreja
puritana	assinava	um	pacto,	um	rito	solene	de	passagem	que	os	separava	do
restante	da	comunidade.	Além	disso,	as	igrejas	locais	eram	unidades	distintas,
e	embora	se	reunissem	num	sínodo,	onde	questões	de	fé	podiam	ser	debatidas
e	desentendimentos,	resolvidos,	o	sínodo	não	tinha	nenhum	poder	próprio.	De
fato,	os	puritanos	estavam	dispostos	a	limitar	a	autoridade	da	instituição	à	qual
pertenciam.
Em	cidades	de	Massachusetts,	como	Salém,	Lynn,	Weymouth,	Cambridge,
Medfield	 e	Marlborough,	 todas	 as	 igrejas	 locais	 realizavam	 uma	 corte	 geral
anual	 incluindo	 todos	os	membros.	Os	 cidadãos	honrados,	 o	que	 significava
membros	 do	 sexo	 masculino,	 elegiam	 um	 número	 de	 assistentes	 que
administrariam	 o	 governo	 da	 igreja	 (de	 fato,	 da	 cidade)	 e	 eles,	 por	 sua	 vez,
elegiam	 um	 governador.	Um	 grupo	 de	 presbíteros	 era	 criado	 e,	 dentre	 eles,
elegiam-se	assistentes	e	governadores,	que	permaneciam	no	cargo	por	períodos
consideráveis.	Nessas	comunidades	profundamente	religiosas,	supunha-se	que
eles	falavam	em	nome	de	Deus.
*
O	 sistema	 puritano	 de	 participação	 nas	 igrejas	 serviu	 de	 modelo	 para	 a
democracia	 americana	 antes	da	Guerra	de	 Independência	 e	durante	 algumas
décadas	 seguintes.	 As	 igrejas	 não	 conformistas	 foram	 a	 base	 de	 muitas	 das
cidades	 colonizadoras	 da	 costa	 leste,	 organizando	 tanto	 a	 sociedade	 secular
como	 a	 religiosa.	 O	 governo	 das	 primeiras	 colônias	 era	 guiado	 pela
necessidade	 prática	 de	 ter	 uma	 administração	 eficaz	 —	 alguém	 tinha	 de
construir	estradas,	 represar	rios,	punir	os	malfeitores	e	assim	por	diante.	Sua
estrutura	era	ditada	pela	falta	de	qualquer	autoridade	abrangente	e	pela	crença
profunda	das	igrejas	não	conformistas	na	igualdade	dos	fiéis.
Entretanto,	 para	 se	 tornarem	 uma	 democracia	 plena,	 os	 Estados	 Unidos
tinham	de	superar	um	elemento	central	do	puritanismo.	Sessenta	anos	após	a
Independência,	 o	 político	 francês	 Alexis	 de	 Tocqueville	 comentou	 que	 o
puritanismo	 “estava	 em	 conformidade	 com	 as	 teorias	 republicanas	 e
democráticas	 mais	 absolutas”.4	 Porém	 os	 puritanos	 não	 acreditavam	 em
direitos	 fundamentais	para	 todos.	Acreditavam,	em	vez	disso,	que	o	governo
dava	 a	 oportunidade	 de	 redenção	 coletiva	 e	 individual.	 Entendiam	 que	 isso
beneficiaria	a	 todos	e	 serviria	de	modelo	para	os	que	estavam	fora	da	 igreja.
Contudo,	 o	 governo	 em	 si	 era	 algo	 sério	 demais	 para	 permitir	 que	 todos
tomassem	 parte	 nele.	 Ecoando	 Aristóteles,	 adotaram	 a	 opinião	 de	 que	 o
governo	deveria	ser	deixado	aos	bons,	isto	é,	aos	membros	da	igreja.
Dois	 outros	 aspectos	 do	 início	 da	 vida	 colonial,	 ambos	 herdados	 das
práticas	 inglesas,	 são	 relevantes	 para	 o	 nosso	 tema.	 Primeiro,	 as	 formas	 de
votação	 e	 o	 governo	 das	 cidades	 seguiam	 os	 padrões	 ingleses.	 Como
argumentou	 um	 historiador,	 “ainda	 é	 de	 grande	 importância	 na	 história
americana	 o	 fato	 de	 que	 o	 povo	 inglês	 [...]	 estava	 muito	 familiarizado	 com
algum	 tipo	 de	 eleição”.5	 Já	 em	 1632,	 os	 colonizadores	 de	 Massachusetts
decidiram	 que	 cada	 vila	 deveria	 eleger	 dois	 representantes	 (como	 na
Inglaterra)	 para	 se	 reunirem	 com	 os	 assistentes	 e	 o	 governador,	 e	 que	 uma
corte	geral	trimestral	deveria	ouvir	as	opiniões	de	todos	os	cidadãos	honrados.
Segundo,	as	restrições	ao	voto	não	eram	baseadas	apenas	na	crença	puritana
no	 valor	 dos	 fiéis:	 as	 colônias	 americanas	 seguiam	 a	 prática	 inglesa	 de
restringir	os	direitos	de	voto	aos	que	possuíam	propriedades	plenas.
No	 decorrer	 do	 século	 XVIII,	 a	 população	 americana	 cresceu	 de	 forma
extraordinária.	De	um	total	de	cerca	de	50	mil	em	1650	e	250	mil	em	1700,
chegou	a	5,3	milhões	em	1800.	Boston	aumentou	seu	número	de	habitantes	de
3	mil,	 em	 1660,	 para	 7	mil,	 em	 1700,	 e	 depois	 para	 24	mil,	 em	 1800.6	 Os
novos	 imigrantes	 não	 eram	 mais	 somente	 protestantes	 não	 conformistas
fugindo	 da	 perseguição.	 Muitos	 eram	 migrantes	 em	 busca	 de	 uma	 vida
economicamente	melhor.	Conforme	a	população	crescia,	a	dimensão	religiosa
da	vida	comunitária	diminuía,	e	a	reunião	da	cidade	tomou	da	igreja	o	papel
de	 centro	 das	 questões	 comunitárias.	Houve	 também	 uma	 diluição	 do	 ideal
puritano	 à	 medida	 que	 os	 ricos	 e	 poderosos	 começaram	 a	 dominar	 essas
reuniões,	usando-as	para	o	avanço	de	seus	próprios	interesses.	A	participação
numa	reunião	da	cidade	era	 limitada	não	por	declarações	da	 igreja,	mas	por
variações	 na	 posse	 de	 bens,	 incluindo	 a	 lei	 dos	 40	 xelins,	 de	 1430.	 Apesar
disso,	 as	 reuniões,	 como	 escreveu	o	historiador	Hugh	Brogan,	 “propiciavam
um	treinamento	essencial	para	o	autogoverno”	e	cada	cidade	era,	em	essência,
uma	Cidade-Estado,	uma	democracia	direta	do	tipo	clássico	mais	puro.7
No	século	XVIII,	existia	uma	qualificação	para	a	posse	de	terras	em	muitas
colônias.	New	Hampshire	especificava	um	valor	de	50	libras;	Rhode	Island,	40
libras	ou	uma	renda	anual	de	aluguel	de	40	xelins;	a	Virgínia,	100	acres	sem
assentamentos	ou	25	acres	cultivados;	a	Carolina	do	Norte	e	Geórgia,	50	acres
fixos.	Enquanto,	na	 Inglaterra,	o	número	de	proprietários	de	 terras	diminuiu
entre	1750	e	1860,	em	consequência	dos	Atos	de	Cercamento	de	Terras,	nas
colônias,	 o	 cultivo	 crescente	 de	 terras	 representou	 um	 aumento	 contínuo	 do
número	de	proprietários.	Um	homem	chamado	Robert	Park	fora	da	Irlanda	à
Pensilvânia	 como	 arrendatário	 de	 terras,	 mas	 acabou	 conseguindo	 comprar
500	bons	acres	por	350	 libras.	Em	1725,	 ele	 escreveu	à	 família,	dizendo	que
estava	 no	 “melhor	 país	 do	 mundo	 para	 a	 gente	 trabalhadora	 e	 os
comerciantes”.
Ao	mesmo	 tempo	 que	 as	 cidades	 cresciam,	 os	 colonizadores	 ocupavam	 a
planície	 fértil	 entre	o	 litoral	e	os	Apalaches.	Eram	agricultores	 independentes
da	 Pensilvânia,	 estabelecendo	 propriedades	 rurais	 remotas,	 longe	 do	 alcance
dos	 governos	 das	 cidades.	Os	 vilarejos,	 como	 são	 conhecidos	 desde	 tempos
imemoriais	 na	 Europa,	 não	 existiam	 ali.	 Em	 vez	 deles,	 fazendas	 de	 famílias
eram	a	base	da	sociedade	rural.	Os	descendentes	desses	primeiros	fazendeiros,
indivíduos	ousados	e	desconfiados	da	autoridade.
A	colonização	europeia	na	América	do	Norte	não	foi	um	processo	benigno.	A
destruição	da	população	nativa	e	o	transporte	forçado	de	milhões	de	africanos
para	o	trabalho	escravo	demonstraram	uma	brutalidade	que	contrastava	com
os	princípios	morais	religiosos	dos	colonizadores.	A	colonização	do	continente
foi	 complicada	 de	 forma	 constante	 pela	 violenta	 rivalidade	 entre	 as	 nações
europeias.	 Guerras	 entre	 a	 Grã-Bretanha	 e	 França	 foram	 deflagradas	 com
regularidade	desde	1689,	culminando	no	conflito	conhecido	na	Europa	como	a
Guerra	dos	Sete	Anos	(1756-63)	e	nos	Estados	Unidos	como	a	Guerra	Franco-
Indígena.	Esse	 conflito	mudou	de	 forma	 fundamental	 a	 relação	 entre	 a	Grã-
Bretanha	 e	 suas	 treze	 colônias	 americanas.	 Até	 então,	 a	 pátria	 mãe	 se
contentara	 em	deixá-las	 cuidarem	de	 seus	 próprios	 assuntos,	 ainda	 que	 com
certas	 restrições	 —	 insistindo	 no	 uso	 de	 embarcações	 britânicas	 para	 todo
comércio	 internacional,	 por	 exemplo	 —,	 mas,	 durante	 a	 guerra,	 milhares	 de
tropas	 oficiais	 britânicas	 foram	 enviadas	 às	 colônias,	 deixando	 de	 lado
qualquer	questão	relacionada	aos	americanos	e	se	voltando	para	a	necessidade
estratégica	de	derrotar	a	França.
A	 guerra	 e	 a	 vitória	 britânica	 tiveram	 umasérie	 de	 consequências
inesperadas.	Os	britânicos	 acharam	que	 seus	 colonos	 fossem	 incapazes	de	 se
defender	e,	 então,	mais	 tropas	 foram	colocadas	nas	colônias.	Os	americanos,
por	outro	lado,	tinham	visto	as	tropas	britânicas	lutando	e	perceberam	que	elas
estavam	longe	de	ser	invencíveis,	ao	passo	que	suas	próprias	forças	não	oficiais
tinham	 lutado	com	mérito.	Além	disso,	a	 retirada	da	França	para	o	oeste	do
Mississippi	deixou	 livre	uma	área	vasta	a	ser	explorada	por	colonizadores,	e,
embora	o	governo	britânico	 tentasse	preservá-la	para	a	população	nativa,	ela
era	 amplamente	 ignorada.	 A	 consequência	 mais	 importante	 da	 guerra,	 no
entanto,	foi	o	ato	de	que	o	governo	britânico,	com	seu	erário	profundamente
endividado,	 foi	 forçado	a	 recuperar	os	 gastos	 com	as	 tropas	posicionadas	na
América	do	Norte	impondo	impostos	às	colônias.
Primeiro	 veio	 o	 Imposto	 do	 Açúcar,	 de	 1764,	 depois	 o	 Ato	 do	 Selo,	 de
1765,	 e,	 em	1767,	 os	Atos	de	Townshend	 introduziram	 impostos	 sobre	 chá,
papel,	tinta,	aço	e	vidro.	Os	colonos	americanos,	furiosos	com	as	autoridades
britânicas,	começaram	a	organizar	resistências.	Tumultos	contra	o	Ato	do	Selo
em	1765	 e	 1767	 foram	 seguidos,	 em	 1770,	 pela	morte	 de	 cinco	 colonos	 nas
mãos	 de	 tropas	 britânicas.	 Benjamin	 Franklin	 foi	 um	 caso	 típico	 de	 colono
indignado	com	essa	nova	agressão.	Anteriormente	um	monarquista	convicto,
Franklin	escreveu	sobre	colocar	“um	espelho	diante	de	alguns	ministros	para
que	 vissem	 suas	 caras	 feias,	 e	 a	 nação,	 sua	 injustiça”.8	 Comitês	 de
Correspondência	 e	 clubes,	 como	 o	 Filhos	 da	 Liberdade,	 trocavam
informações,	 descontentamentos	 e	 estratégias,	mostrando	 o	 desenvolvimento
de	 uma	 identidade	 característica	 americana.	 Havia	 um	 clima	 de	 busca	 pela
liberdade,	 e	 os	 colonos	 caminhavam	para	 a	 rebelião	 social	 —	 agricultores	 de
Nova	York	rebelaram-se	contra	proprietários	de	terras	britânicos,	e	lavradores
da	Carolina	do	Norte	confrontaram	seus	mestres	 legais.	Em	1773,	um	grupo
de	militantes	de	Boston	destruiu	uma	carga	de	chá	pertencente	à	Companhia
das	Índias	Orientais	—	a	famosa	Festa	do	Chá	de	Boston	—,	desencadeando	a
opressão	 britânica.	 Em	 setembro	 de	 1774,	 um	 Congresso	 Continental	 de
representantes	 das	 colônias	 reuniu-se	 na	 Filadélfia,	 onde	 decidiram	 fazer	 um
boicote	 aos	 produtos	 britânicos.	 A	 revolta	 aberta	 parecia	 inevitável,	 mas	 os
britânicos	estavam	malpreparados	para	 lidar	com	ela:	no	 início	da	década	de
1770,	os	impostos	de	Townshend	aumentavam	apenas	cerca	de	300	libras	por
ano,	uma	proporção	pequena	das	170	mil	libras	que	custava	a	manutenção	das
tropas	 britânicas	 nas	 colônias,	 enquanto	 o	 número	 de	 tropas	 era,	 de	 todo
modo,	completamente	inadequado	para	dominar	a	população.
Nos	dias	18	e	19	de	abril	de	1775,	o	general	Gage	realizou	a	famosa	marcha
de	Boston	a	Lexington	e	Concord	para	confiscar	os	armamentos	dos	colonos.
A	milícia	local	foi	alertada	por	Paul	Revere	e	William	Dawes,	e	o	líder	deles,
John	 Parker,	 disse	 a	 seus	 homens:	 “Não	 atirem,	 a	 menos	 que	 eles	 atirem
primeiro,	mas,	se	eles	pretendem	fazer	guerra,	que	ela	comece	agora.”	Assim
começou	a	Guerra	de	Independência.	Em	junho,	os	colonos	foram	derrotados
na	Batalha	de	Bunker	Hill,	mas	a	essa	altura	o	Congresso	Continental	era	o
governo	de	fato	de	uma	nação	emergente	em	rebelião.
Na	verdade,	muitos	colonos	foram	leais	aos	britânicos	inicialmente.	A	tarefa
das	forças	rebeldes	era	dar	continuidade	ao	conflito	por	tempo	suficiente	para
convencerem	 os	 outros	 colonos	 e	 forças	 externas	 —	 especialmente	 França	 e
Espanha	—	de	que	a	independência	era	uma	possibilidade	séria.	Nos	primeiros
meses	de	1776,	o	Exército	americano,	sob	o	comando	de	George	Washington,
tomou	Boston	do	general	Howe,	mas	Washington	foi	 forçado	a	se	retirar	de
Long	 Island,	 Nova	 York	 e	 Quebec.	 Quando	 o	 Congresso	 Continental	 se
reuniu	 na	 Filadélfia	 naquele	 verão,	 a	 perspectiva	militar	 era,	 na	melhor	 das
hipóteses,	difícil	e,	na	pior,	desoladora.	No	entanto,	o	Congresso	decidiu	que
deveria	seguir	em	frente	com	a	luta	pela	independência.	O	livreto	de	Thomas
Paine,	 Bom	 Senso,	 que	 defendia	 o	 direito	 dos	 colonos	 de	 governarem	 a	 si
mesmos,	tivera	um	impacto	enorme	no	início	do	ano,	chegando	a	vender	mais
de	500	mil	cópias.	A	Declaração	de	Independência,	redigida	durante	a	guerra,
principalmente	por	Thomas	 Jefferson,	 foi	 aprovada	pelo	Congresso	 em	4	de
julho	de	1776.	Declarava	a	posse	dos	direitos	naturais	por	todas	as	pessoas	e
seu	 direito	 de	 remover	 qualquer	 governo	 que	 pretendesse	 destruir	 esses
direitos:
Consideramos	 verdades	 evidentes	 que	 todos	 os	 homens	 são	 criados	 iguais,	 que	 são	 dotados	 pelo
Criador	 de	 certos	 Direitos	 inalienáveis,	 entre	 os	 quais	 estão	 a	 Vida,	 a	 Liberdade	 e	 a	 Busca	 pela
Felicidade.	Que,	a	fim	de	assegurar	esses	direitos,	os	Homens	instituem	Governos,	que	legitimam	seus
poderes	por	meio	do	consentimento	dos	governados,	que	sempre	que	qualquer	Forma	de	Governo	se
torne	destruidora	desses	fins,	é	o	Direito	do	Povo	alterá-la	ou	aboli-la	e	instituir	um	novo	Governo,
fundamentando-o	 e	 organizando-o	 conforme	 os	 princípios	 e	 os	 meios	 que	 lhe	 pareçam	 mais
adequados	para	a	obtenção	de	suas	Segurança	e	Felicidade.
Apesar	 da	 confiança	 expressa	 na	 declaração,	 a	 guerra	 ia	 mal	 para	 os
americanos.	No	final	de	dezembro	de	1776,	Washington	conseguiu	realizar	um
importante	 estratagema	 ao	 atravessar	 o	 rio	Delaware	 para	 tomar	Trenton	 e
Princeton,	em	Nova	 Jersey,	mas,	em	1777,	houve	outras	 reviravoltas,	 com	o
general	 Howe	 tomando	 a	 Filadélfia,	 e	 o	 general	 Burgoyne	 levando	 8	 mil
soldados	britânicos	do	Canadá	 ao	 sul.	Uma	virada	decisiva,	 porém,	ocorreu
em	outubro	de	1777,	quando	Burgoyne	se	viu	bloqueado	no	interior	do	estado
de	 Nova	 York	 e	 foi	 forçado	 a	 se	 render.	 Washington	 retirou	 o	 Exército
continental	para	o	vale	Forge,	na	Pensilvânia,	para	aguardar	o	fim	do	inverno
de	 1777-78	 e	 retornou	 numa	 posição	 muito	 mais	 forte.	 Os	 franceses
encorajaram-se	a	entrar	na	guerra	no	início	de	1778,	fornecendo	uma	frota	que
desafiou	 com	 êxito	 o	 monopólio	 britânico	 da	 rota	 marítima	 da	 costa.	 Sua
entrada	na	 guerra	 foi	 seguida	pela	Espanha	 e	 república	holandesa.	Uma	vez
que	Washington	garantiu	a	segurança	da	parte	central	das	colônias,	a	situação
no	sul,	após	uma	derrota	desastrosa	em	Camden,	começou	a	melhorar	para	os
americanos.	As	 tropas	conseguiram	cercar	o	general	Cornwallis	na	cidade	de
Yorktown,	 enquanto	 navios	 franceses	 impediram	 a	 chegada	 do	 apoio	 naval
britânico	ao	Exército	isolado.	Em	outubro	de	1781,	Cornwallis	rendeu-se	com
8	mil	homens,	e	a	guerra	acabou	de	fato.
O	 fim	 do	 conflito	 trouxe	 inúmeros	 problemas	 para	 o	 novo	 país.	 Numa
repetição	 sinistra	 do	 que	 houve	 com	 a	 Inglaterra	 em	 1647,	 os	 líderes
americanos	se	viram	no	comando	de	um	Exército	ao	qual	não	podiam	pagar.
Sem	 nenhum	 recurso	 financeiro	 ou	 legal	 para	 sustentá-lo,	 o	 papel-moeda
introduzido	para	financiar	a	guerra	não	tinha	valor	algum.	A	crise	foi	evitada
somente	 por	meio	 do	 apelo	 direto	 do	 general	George	Washington	 às	 tropas
não	pagas.	Enquanto	isso,	sem	uma	autoridade	central,	os	estados	individuais
tinham	de	seguir	adiante	com	o	processo	de	governo,	o	que	incluía	construir
relações	com	potências	estrangeiras.	O	governo	nacional	formara-se	de	acordo
com	os	Artigos	 de	Confederação	 aprovados	 em	1777	 e	 ratificados	 em	1781,
mas	 confirmavam	 a	 primazia	 dos	 estados	 trabalhando	 juntos	 numa
confederação	imprecisa.	Os	interesses	dos	diferentes	estados	logo	começaram	a
divergir.	 Alguns	 começaram	 a	 cunhar	 a	 própria	 moeda,	 e	 questões	 como	 a
sobrecarga	de	impostos	dos	estados	litorâneos	sobre	importações	a	caminho	do
interior	 ameaçaram	 desmantelar	 a	 confederação.	Nessa	 atmosfera,	 os	 líderes
políticos	 entenderam	 a	 necessidade	 de	 uma	 estrutura	 legal	 e	 políticaque
explicitasse	as	relações	entre	os	estados.	Em	maio	de	1787,	representantes	de
todos	 os	 estados,	 exceto	 Rhode	 Island,	 reuniram-se	 numa	 convenção
constitucional	na	Filadélfia	para	chegarem	a	um	acordo.
Enquanto	 a	 Declaração	 de	 Independência	 era	 um	 texto	 de	 retórica
grandiosa	elaborado	em	grande	parte	pela	pena	culta	de	Thomas	Jefferson,	a
Constituição	 foi	um	documento	 funcional	montado	durante	quatro	meses	de
discussões	acirradas,	trocas	e	concessões.	Em	setembro,	a	Convenção	aprovara
uma	Constituição	que	representava	uma	vitória	para	aqueles	que	pretendiam
construir	 um	 novo	 governo,	 e	 não	 um	 remendo	 do	 governo	 existente.	 Os
chamados	 federalistas	 defenderam	 com	 êxito	 um	 forte	 governo	 central	 com
alguma	 autoridade	 sobre	 os	 estados	 individuais,	 ao	 passo	 que	 os
antifederalistas	 viam	 o	 governo	 nacional	 como	 um	 servo	 dos	 estados,
destinado	 a	 coordenar	 suas	 solicitações	 e	 atividades.	 A	 Constituição	 federal
proposta	foi	então	enviada	aos	estados	para	debate	e	ratificação,	e	os	mesmos
argumentos	 foram	 repetidos.	 “O	 Federalista”,	 escrito	 por	 James	 Madison,
Alexander	Hamilton	e	 John	 Jay,	 e	publicado	no	 Independent	Journal	 e	no	New
York	 Packet	 em	1787	 e	 1788,	 foi	 uma	 tentativa	 de	 persuadir	 o	Congresso	do
estado	 de	Nova	York	 a	 ratificar	 a	Constituição.9	Os	 artigos	 defendiam	 com
eloquência	uma	“república	estendida”	conduzida	por	um	único	chefe	executivo
ou	presidente,	mas	não	se	pode	afirmar	que	afetaram	o	resultado	da	votação	—
a	 estatura	 de	 federalistas,	 como	 Washington,	 Jefferson	 e	 Madison,
provavelmente	foi	o	fator	decisivo.
Depois	 que	 a	 Constituição	 circulou,	 ficou	 claro	 que	 um	 elemento
importante	 estava	 ausente:	 não	 havia	 referência	 alguma	 aos	 direitos	 dos
cidadãos.	Isso	foi	corrigido	em	1789,	quando	as	dez	emendas	conhecidas	como
a	 Carta	 de	 Direitos	 foram	 acrescentadas.	 Aqui	 vemos	 conexões	 que
atravessam	 séculos	 e	 o	 Atlântico,	 uma	 vez	 que	 os	 direitos	 apresentados	 são
ampliações	 de	 propostas	 registradas	 por	 escrito	 pela	 primeira	 vez	 pelos
Niveladores	 ingleses	 e	 posteriormente	 colocadas	 em	 prática	 pelo	 Parlamento
inglês	 de	 1689.	 Os	 estados	 passaram,	 um	 de	 cada	 vez,	 a	 ratificar	 a
Constituição,	 com	 Rhode	 Island	 e	 Vermont	 (que	 haviam	 se	 separado	 do
estado	de	Nova	York)	resistindo	até	1790	e	1701,	respectivamente.	Benjamin
Franklin	 escreveu:	 “Nossa	 Constituição	 está	 em	 efetiva	 execução,	 e	 todos
parecem	prometer	que	ela	vai	durar,	mas	neste	mundo	só	existem	duas	coisas
certas:	a	morte	e	os	impostos.”10
Os	 Estados	 Unidos	 tinham	 uma	 Constituição	 que	 explicitava	 os	 poderes
relativos	 de	 seu	 governo	 federal	 e	 estadual	 com	 suas	 estruturas,	 incluindo	 a
separação	do	Legislativo,	Executivo	e	Judiciário.	Ela	fornecia	detalhes	de	como
o	 Congresso	 e	 o	 presidente	 deveriam	 ser	 eleitos	 e	 quais	 deveriam	 ser	 seus
poderes.	 Também	 pressupunha	 uma	 Corte	 Suprema	 como	 guardiã	 dessa
Constituição.	 Tratava-se	 de	 uma	 estrutura	 política	 impressionante	 que	 deu
legitimidade	à	nação	enquanto	república	federal,	com	garantias	para	os	direitos
civis	 e	 políticos	 dos	 cidadãos.	 Mas	 até	 que	 ponto	 esse	 novo	 país	 era
democrático?
A	 participação	 política	 em	 larga	 escala	 corria	 nas	 veias	 dos	 cidadãos	 das
colônias	 americanas.	Ela	 sobreviveria	 à	 transição	de	 semi-autonomia	 colonial
para	Estado	independente,	e,	se	sobrevivesse,	que	forma	tomaria?	Sabemos	a
resposta	à	primeira	pergunta	—	a	democracia	sobreviveu.	A	resposta	à	segunda
pergunta	nos	mostra	 o	 quanto	 essas	 questões	 são	decididas,	 não	por	mentes
admiráveis	em	salas	de	reunião,	mas	na	confusão	e	no	agito	da	vida	cotidiana
e	 nas	 suposições	 e	 determinações	 da	 população.	 Depois	 de	 aprovadas	 a
Constituição	 e	 a	Carta	de	Direitos,	 a	 grande	 tarefa	dos	Pais	Fundadores	 era
prover	um	governo	federal	que	se	baseasse	no	espírito	da	democracia	local	e	a
ele	permanecesse	fiel.
A	Declaração	de	Independência	afirmara	que	“todos	os	homens	são	criados
iguais,	que	são	dotados	pelo	Criador	de	certos	Direitos	 inalienáveis,	entre	os
quais	estão	a	Vida,	a	Liberdade	e	a	busca	pela	Felicidade”.	Essa	frase	sonora,
elaborada	 em	meio	 a	 uma	 guerra	 contra	 o	 rei,	 dava	 o	motivo	 pelo	 qual	 os
homens	não	deveriam	ser	governados	por	um	tirano;	mas	só	o	fato	de	terem
sido	criados	 iguais	não	 significa	que	permaneçam	assim.	A	questão	de	quem
tinha	o	direito	de	votar	ainda	era	baseada	na	propriedade,	e	o	novo	governo
federal	deixou	as	questões	de	elegibilidade	aos	estados	individuais	(como	havia
sido	antes	com	as	colônias).	Em	seis	estados,	a	atenção	aos	direitos	de	voto	foi
reduzida,	 enquanto	 outros	 mantiveram	 os	 arranjos	 existentes.	 Todos	 os
estados	estabeleceram	um	mínimo	de	bens	para	a	qualificação.
Isso	não	soa	como	o	nascimento	de	uma	democracia,	mas	nas	cinco	décadas
seguintes	 houve	 uma	mudança	 estável	 de	 privilégio	 do	 proprietário	 de	 bens
para	 o	 cidadão	 do	 sexo	 masculino.	 Em	 Nova	 York,	 em	 1787,	 o	 voto	 foi
estendido	 a	 todos	 os	 proprietários	 de	 terras,	 sem	 importar	 o	 valor,	 e	 as
votações	foram	realizadas	para	as	eleições	estaduais.	Ao	mesmo	tempo,	porém,
o	 Congresso	 ordenou	 que	 os	 novos	 estados	 introduzidos	 à	 União	 tivessem
uma	propriedade	de	50	acres	como	qualificação	para	o	direito	de	voto	—	um
requisito	 mais	 rigoroso	 que	 o	 vigente	 em	 todos	 os	 estados	 existentes,
mostrando	 que	 muitos	 dos	 homens	 eminentes	 no	 nível	 federal	 estavam
deixando	para	trás	os	costumes	e	impulsos	locais.
De	fato,	a	ideia	de	uma	democracia	limitada	nos	padrões	britânicos,	com	o
Congresso	 eleito	 por	 um	pequeno	número	 e	 saído	 de	 uma	parte	 da	 elite	 da
sociedade,	 havia	 sido	 cogitada	 na	 Convenção	 Constitucional.	 Quando	 se
discutiu	 a	 questão	 de	 permitir	 que	 os	 estados	 estabelecessem	 suas	 próprias
qualificações	 para	 o	 voto,	 o	 representante	 da	 Virgínia,	 Edmund	 Randolph,
declarou	 que	 “nosso	 principal	 perigo	 provém	 das	 partes	 democráticas	 das
constituições	 [dos	 estados]”.	 Esse	 foi	 um	 claro	 alerta	 contra	 a	 ampliação
excessiva	dos	direitos	dos	cidadãos,	mas	 também	havia	um	entendimento	de
que	a	legitimidade	de	qualquer	governo	—	e	uma	guerra	acabara	de	ser	travada
para	depor	um	regime	 impopular	—	só	poderia	existir	por	meio	da	soberania
do	povo,	e	isso	significava	uma	democracia	baseada	na	ampla	participação	dos
cidadãos.	Em	resposta	a	Randolph,	Benjamin	Franklin	declarou	que	“o	amor
do	 país	 floresce	 quando	 as	 pessoas	 comuns	 votam	 e	 enfraquece,	 como	 na
Inglaterra,	quando	elas	não	podem	fazê-lo”.11	Por	outro	lado,	James	Madison
defendeu	 uma	 “república	 ampla”,	 alertando	 quanto	 aos	 perigos	 de	 uma
democracia	 federal:	 “Ao	 ampliarem	 demais	 o	 número	 de	 eleitores,	 os
representantes	 ficam	muito	 pouco	 familiarizados	 com	 todas	 as	 circunstâncias
locais	 e	 interesses	 menores;	 já	 ao	 reduzi-lo	 demais,	 eles	 se	 tornam
desnecessariamente	 apegados	 a	 essas	 questões	 e	 muito	 pouco	 aptos	 a
compreender	e	realizar	questões	nacionais	maiores.”12	Apesar	dos	argumentos
de	 Madison	 e	 dos	 temores	 de	 Randolph,	 a	 tentativa	 de	 aprovar	 uma
qualificação	de	propriedade	de	terras	para	todos	os	estados	foi	derrotada,	e	a
Convenção	Federal	aprovou	a	ampliação	fragmentada	do	direito	de	voto	que
já	estava	em	vigor.
Os	 americanos	 tinham	 conhecimento	 da	 estabilidade	 e	 prosperidade
geradas	 pela	 Constituição	 britânica	 tripartida	 (Coroa,	 Lordes	 e	 Comuns),	 e
muitos	 queriam	 o	 mesmo	 tipo	 de	 governo	 “equilibrado”	 na	 América.	 O
presidente	 federal,	 o	 Senado	 e	 a	 Câmara	 dos	 Representantes	 refletiam	 a
disposição	 tripartida.	Originalmente,	 a	 ideia	 de	 um	 Senado	 partiu	 da	 crença
ainda	comum	numa	elite	natural,	mas	que	não	foi	sustentada	por	muito	tempo
nos	 Estados	 Unidos,	 e	 o	 Senado	 se	 tornou	 um	 elemento	 na	 estrutura	 do
governo	em	vez	de	uma	entidade	representandoum	grupo	ou	estado	diferente
na	sociedade.	As	duas	câmaras	do	Congresso	resolveram	outro	problema	para
os	 federalistas:	 como	 garantir	 que	 todos	 os	 estados	 se	 sentissem	 igualmente
valorizados,	sem	deixar	de	refletir	a	distribuição	populacional.	O	Senado	tinha
dois	representantes	de	cada	estado,	enquanto	os	eleitorados	da	Câmara	eram
baseados	na	 população.	Essa	 também	 foi	 uma	 repetição	da	 prática	 britânica,
que	delineou	uma	distinção	entre	eleitorados	de	condado	e	de	distrito.
No	 entanto,	 ainda	 que	 as	 estruturas	 possam	 ter	 sido	 semelhantes,	 os
pressupostos	práticos	e	culturais	eram	totalmente	diferentes.	Na	Grã-Bretanha,
partia-se	 do	 princípio	 de	 que	 os	 proprietários	 de	 terras	 do	 partido	 Whig
falavam	por	todos,	e	a	votação	era	algo	quase	indiferente	no	processo	político,
uma	vez	que	a	sociedade	tinha	seus	líderes	“naturais”.	Na	América,	a	votação
tornou-se	 central,	 já	 que	 era	 o	 processo	 do	 qual	 resultava	 a	 autoridade.	Os
americanos	 começaram	 a	 reconhecer	 isso	 ao	 chamarem	 seu	 novo	 país	 de
democracia,	 referindo-se	 a	 um	 país	 em	 que	 os	 líderes	 eram	 escolhidos	 e
podiam	 ser	 removidos	 pelo	 povo.	 Já	 em	 1809,	 numa	 atmosfera	 obscurecida
pela	ameaça	de	mais	uma	guerra	contra	a	Grã-Bretanha,	o	renomado	jornalista
e	 pregador	 Elias	 Smith	 escreveu:	 “O	 governo	 adotado	 aqui	 é	 uma
DEMOCRACIA.	É	bom	que	compreendamos	essa	palavra,	tão	ridicularizada
pelos	 inimigos	 internacionais	 de	 nosso	 país	 [...]	 Meus	 amigos,	 jamais	 nos
envergonhemos	da	democracia.”13
Diferenças	 importantes	 persistiam	 entre	 os	 americanos.	 Vários	 Pais
Fundadores,	 incluindo	 George	 Washington,	 Thomas	 Jefferson	 e	 James
Madison,	 eram	 proprietários	 de	 terras	 na	 Virgínia	 que	 viam	 os	 Estados
Unidos	como	um	país	de	cavalheiros	agricultores	que	cuidavam	de	uma	nação
em	 expansão	 gradual	 pelo	 continente.	 Eles	 acreditavam	 na	 América	 das
pequenas	 cidades	 e	 estavam	 consternados	 com	 o	 crescimento	 delas.
Desprezavam	 os	 ricos	 industriais	 e	mercadores,	 temendo	 que	 o	 acúmulo	 de
poder	político	por	uma	classe	abastada	arruinaria	os	princípios	que	serviam	de
base	 à	 nação.	 Jefferson	 expressou	 a	 sua	 preocupação	 da	 seguinte	 maneira:
“Espero	que	exterminemos	em	seu	início	a	aristocracia	de	nossas	corporações
baseadas	 no	 dinheiro	 que	 já	 ousam	 desafiar	 nosso	 governo	 a	 um	 teste	 de
forças	e	oferecer	resistência	às	leis	de	nosso	país.”14
A	principal	 figura	a	 lutar	contra	o	desprezo	aristocrático	pelo	comércio	foi
Alexander	Hamilton.	 Imigrante	 caribenho	que	não	 era	 fiel	 a	nenhum	estado
em	particular,	ele	via	sua	terra	adotada	como	um	país	com	um	centro	forte	e
estável,	não	um	conjunto	de	estados	reunidos	por	conveniência	individual.	Ele
acreditava	que	um	centro	federal	poderoso	poderia	unir	os	interesses	políticos,
agrícolas	e	comerciais	do	país	de	modo	que	beneficiasse	a	todos.	A	proposta-
chave	de	Hamilton,	encaminhada	em	1790,	era	a	de	um	banco	nacional	que
trabalharia	com	o	governo	federal	para	administrar	as	questões	financeiras	da
nação.	O	debate	a	 respeito	do	banco	dividiu	a	nação	porque	envolvia	o	que
deveria	ser	a	essência	do	país.	Aqui	temos	uma	divisão	que	oferece	diferentes
versões	 da	 América	 —	 um	 país	 de	 propriedades	 rurais	 e	 vilarejos	 com	 um
governo	pequeno,	 em	 contraste	 com	uma	potência	 capitalista	 canalizando	os
talentos	da	classe	mercantil	para	o	fortalecimento	do	governo	federal.
Durante	o	debate,	surgiu	uma	questão	crucial:	esperava-se	que	os	cidadãos
colocassem	 de	 lado	 seus	 interesses	 pessoais	 e	 agissem	 (votassem)	 de	 acordo
com	 os	 interesses	 do	 povo	 e	 da	 nação	 como	 um	 todo	 ou	 a	 democracia	 se
apoiaria	 na	 noção	 de	 que,	 se	 todos	 agissem	 por	 seus	 próprios	 interesses,	 o
interesse	do	 todo	 também	seria	 contemplado?	Na	assembleia	da	Pensilvânia,
William	Findley,	um	ex-tecelão,	falou	em	nome	de	devedores	e	detentores	de
papel-moeda	 já	 existente	 contra	a	 reestruturação	do	banco.	Robert	Morris,	o
comerciante	mais	 rico	da	Filadélfia	e	aristocrata	à	antiga,	alegou	que	Findley
tinha	interesse	pessoal	no	caso	e	que,	portanto,	suas	opiniões	não	deveriam	ser
consideradas.	 Findley	 respondeu	 que	 a	 neutralidade	 do	 adversário	 era	 uma
impostura,	 uma	 vez	 que	 ele	 tinha	 interesse	 na	 reestruturação	 do	 banco.
Também	alegou	que	era	legítimo	os	interessados	apresentarem	suas	opiniões,
desde	que	declarassem	 seus	 interesses	 e	não	 impedissem	que	os	outros,	 com
interesses	 contrários,	 fizessem	 o	 mesmo.	 Aos	 nossos	 ouvidos,	 o	 argumento
parece	 bastante	 racional,	 mas,	 na	 época,	 era	 absolutamente	 revolucionário.
Desafiava	a	suposição	habitual	de	que	os	políticos	têm	de	ser	imparciais	e	que
deveriam	buscar	um	“bem	público”	despersonificado.	Em	vez	disso,	deveriam
reconhecer	que	eles,	e	a	política	em	geral,	faziam	parte	da	confusão	de	trocas	e
interesses	divergentes	da	sociedade.
Esse	 debate	 reflete	 um	 desenvolvimento	 mais	 amplo,	 no	 qual	 a
predominância	 da	 gentry	 proprietária	 de	 terras	 dava	 lugar	 a	 uma	 sociedade
mais	comercial	na	qual	os	cidadãos	se	orgulhavam	de	trabalhar	para	o	próprio
sustento.	Na	verdade,	a	pequena	classe	ociosa	de	ricos	proprietários	de	terras
era	cada	vez	mais	desprezada	à	medida	que	ficava	difícil	manter	sua	alegação
de	agir	pelos	interesses	da	nação.	Benjamin	Franklin	escreveu	em	1782	que	um
americano	ficaria	mais	orgulhoso	se	“um	genealogista	pudesse	lhe	provar	que
dez	gerações	de	ancestrais	e	parentes	seus	tivessem	sido	 lavradores,	 ferreiros,
torneiros,	 tecelões	 [...]	e,	consequentemente,	 [...]	membros	úteis	da	sociedade,
do	 que	 se	 pudesse	 apenas	 provar	 que	 eram	Cavalheiros,	 sem	 fazer	 nada	 de
valor,	apenas	vivendo	sem	ocupação	à	custa	do	 trabalho	dos	outros”.15	Essa
crença	 de	 que	 o	 trabalho	 era	 mais	 nobre	 que	 a	 riqueza	 herdada	 ou	 não
merecida	ajudou	a	sustentar	a	democracia	na	América.
Thomas	 Jefferson	 acreditava	 que	 o	 Estado	 federal	 deveria	 permanecer	 o
menor	 possível,	 enquanto	 Alexander	 Hamilton	 pensava	 que	 uma	 união	 de
estados	 bem-organizada	 com	um	centro	 enérgico	 e	 poderoso	poderia	 levar	 à
prosperidade	nacional.	Essa	divisão	introduziu	a	política	partidária	nos	Estados
Unidos.	Jefferson	concorreu	com	John	Adams	(do	mesmo	partido	Federalista
de	Hamilton)	 à	 presidência	 em	 1796	 —	 a	 primeira	 eleição	 presidencial	 a	 ser
disputada.	 Jefferson	 perdeu	 e	 foi	 nomeado	 vice-presidente,	 mas	 divergia
completamente	 de	Adams	 quanto	 às	 relações	 com	 os	 franceses,	 assim	 como
quanto	aos	poderes	do	governo	central,	e	decidiu	retirar-se	de	Washington	em
vez	 de	 servir	 numa	 coalizão.	 Jefferson	 conseguiu	 assumir	 a	 presidência	 em
1800,	derrotando	Adams.
A	contribuição	inestimável	dessa	primeira	divisão,	com	homens	de	estatura
nacional	 consagrada	 dos	 dois	 lados,	 à	 política	 da	 nação	 foi	 o	 conceito	 de
oposição	 leal.	 Era	 vital	 para	 a	 estabilidade	 que	 os	 debates	 sobre	 questões
importantes	 como	 a	 guerra,	 os	 poderes	 federais	 e	 os	 direitos	 dos	 cidadãos
pudessem	ocorrer	sem	que	os	participantes	fossem	acusados	de	deslealdade.	A
política	democrática	dos	Estados	Unidos,	assim	como	na	Atenas	antiga,	tinha
de	 aprender	 a	 tomar	 posse	 dos	 conflitos	 da	 sociedade	 e	 contê-los	 em	 fóruns
legítimos.	A	democracia	exige	que	o	Executivo	preste	contas	e	que	um	debate
saudável	 seja	 conduzido	 sem	 medo	 de	 perseguições;	 que	 a	 oposição	 ao
governo	seja	valorizada	como	uma	parte	leal	do	processo	político	da	nação.
Quando	 Jefferson	 candidatou-se	 contra	 Adams	 em	 1800,	 ninguém	 podia
acusar	 nenhum	 dos	 dois	 de	 deslealdade	 à	 nação.	 Desde	 a	 eleição	 anterior,
políticos	 de	 diferentes	 níveis	 haviam	 começado	 a	 tomar	 posição	 junto	 aos
Republicanos	 Democratas	 ou	 aos	 Federalistas	 de	 Adams	 ou	 Hamilton,	 de
modo	 que	 os	 partidos	 estavam	 vencendo	 eleições	 em	 diferentes	 níveis	 e
diferentes	 arenas.	 Era	 possível	 que	 um	 partido	 perdesseas	 eleições
presidenciais,	mas	retivesse	o	poder	no	Senado,	o	que	dava	a	possibilidade	de
ganhar	a	presidência	ou	o	poder	no	Congresso	na	próxima	vez.	Ainda	assim,	a
rivalidade	 política	 podia	 ser	 feroz:	 num	 dos	 incidentes	 mais	 chocantes	 da
política	 americana,	 Alexander	Hamilton	 foi	 assassinado	 num	 duelo,	 por	 seu
adversário	político,	o	vice-presidente	Aaron	Burr,	em	julho	de	1804.
Em	1800,	um	sistema	de	partidos	políticos	rivais	começava	a	se	consolidar.
Numa	nação	 em	que	 a	maioria	 da	 população	 era	 descendente	 de	 imigrantes
recentes	 ou	 imigrantes,	 poderíamos	 esperar	 que	 a	 política	 partidária	 tivesse
surgido	 com	partidos	 representando	os	 escoceses	ou	 irlandeses,	puritanos	ou
quacres,	 fazendeiros	ou	transportadores	marítimos;	mas	parece	que	a	própria
multiplicidade	social	contribuiu	para	que	não	fosse	assim	—	nenhum	grupo	era
suficientemente	 numeroso	 para	 ganhar	 poder	 sozinho.	 Então,	 os	 partidos
políticos	eliminaram	os	limites	étnicos,	religiosos	e	sociais.	O	resultado	foi	que,
no	 início	do	 século	XIX,	os	 eleitores	 americanos	 foram	 totalmente	 cativados
pela	política	partidária.	A	atmosfera	 festiva	—	discursos,	banquetes,	o	espírito
esportivo	do	“tudo	ou	nada”*	—	começou	a	se	tornar	uma	obsessão	nacional,
uma	 característica	 decisiva	 do	 novo	 país.	 Jornalistas	 se	 deliciaram	 com	 as
oportunidades	de	trapacear,	espalhar	boatos	e	fazer	ataques	pessoais.	Políticos
locais	 trabalhavam	 arduamente,	 e	 alguns	 viram	 uma	 boa	 forma	 de	 ganhar
dinheiro.	 Num	 âmbito	 mais	 sério,	 o	 público	 e	 os	 jornalistas	 reagiram	 às
habilidades	 dos	 políticos	 de	 tratarem	 de	 assuntos	 importantes	 em	 termos	 de
retórica,	 persuadindo,	 seduzindo	 e	 entretendo	 multidões	 em	 encontros
públicos.	Novos	imigrantes	—	a	população	havia	aumentado	para	8	milhões	em
1814	 —	 foram	 atraídos	 pela	 inovação	 e	 pelo	 entusiasmo	 das	 eleições	 e
rivalidades	partidárias.
A	 primeira	 fase	 da	 política	 partidária	 iniciou	 o	 processo	 de	 familiarização
das	pessoas	com	a	oposição	leal.	Foi	o	momento	em	que	uma	vasta	gama	de
interesses	 da	 sociedade	 começou	 a	 se	 unir	 e	 se	 organizar	 pela	 presença	 de
partidos	com	chances	realistas	de	obtenção	de	poder.	Os	partidos	começaram	a
se	organizar,	 fortalecendo	o	processo	político.	Essa	 foi,	no	entanto,	uma	 fase
breve.	Quando	os	Estados	Unidos	entraram	em	guerra	contra	a	Grã-Bretanha
(1812-15),	 tanto	os	Federalistas	como	os	Republicanos	apresentavam	divisões
internas.	Os	Federalistas	 foram	desaparecendo	à	medida	que	mais	pessoas	se
juntavam	aos	Republicanos,	que,	por	 sua	vez,	 assemelhavam-se	menos	a	um
partido	e	mais	a	uma	coalizão	de	governo.
Apesar	do	interesse	crescente	pelo	espetáculo	da	política,	a	aristocracia	rural
da	 Virgínia	 ainda	 sentia	 que	 seu	 papel	 era	 servir	 ao	 bem	 público,	 o	 que	 a
afastou	do	próprio	crescimento	e	da	crítica	de	colegas.	Jefferson	escreveu:	“Se
eu	só	pudesse	ir	para	o	céu	com	um	partido	[político],	escolheria	não	ir.”	Ele	e
outros	aristocratas	não	gostavam	da	disciplina	e	das	concessões	necessárias	aos
partidos	 políticos.	 Contudo,	 apesar	 da	 brevidade,	 o	 primeiro	 sistema	 de
partidos	políticos	começara	a	descobrir	na	prática	como	estabelecer	instituições
e	ajustes	que	transformariam	o	sonho	utópico	da	Declaração	de	Independência
num	sistema	político	viável	que	pudesse,	acima	de	tudo,	sobreviver.
Uma	nova	fase	da	política	americana	teve	início	com	a	eleição	presidencial
de	 1824.	 Durante	 os	 doze	 anos	 anteriores,	 a	 política	 partidária	 havia
estagnado,	 com	 o	 domínio	 do	 partido	 Republicano	 em	 todos	 os	 níveis.	 No
entanto,	em	1824,	o	partido	não	chegou	a	um	consenso	quanto	ao	candidato	à
presidência,	o	que	 levou	à	 candidatura	de	quatro	 republicanos.	 John	Quincy
Adams,	de	Nova	York,	filho	do	segundo	presidente,	John	Adams,	era	o	único
com	o	apoio	total	de	seu	partido	estadual.	Sendo	secretário	de	Estado	do	então
presidente	 James	 Monroe,	 ele	 também	 tinha	 fortes	 ligações	 com	 a	 elite
governante	 da	 Virgínia.	 O	 principal	 adversário	 de	 Adams	 era	 um	 tipo
totalmente	novo	de	político.	Andrew	Jackson	vinha	do	Tennessee,	afastado	do
centro	da	política	americana,	e	tornara-se	uma	figura	nacional	em	razão	do	seu
comando	das	forças	vitoriosas	na	Batalha	de	Nova	Orleans,	em	1815.	Jackson
levou	 uma	 energia	 transformadora	 à	 democracia	 dos	 Estados	 Unidos,	 mas,
apesar	de	obter	a	maioria	dos	votos	dos	colégios	eleitorais,	nenhum	candidato
ganhou	uma	maioria	 total.	De	acordo	com	as	regras	vigentes,	a	Câmara	dos
Representantes	 tinha	 o	 poder	 de	 decidir	 quem	 era	 o	 vencedor	 e	 escolheu
Adams.	O	 resultado	 enfureceu	os	defensores	de	 Jackson,	 e,	 nos	 quatro	 anos
seguintes,	houve	todo	tipo	de	difamação	entre	os	dois	lados.	Os	defensores	de
Jackson	retratavam	Adams	como	corrupto	e	o	acusaram	de	se	fartar	da	tigela
pública	e	de	transformar	a	Casa	Branca	num	antro	de	jogatina	(Adams	levara
uma	 mesa	 de	 bilhar).	 Em	 resposta,	 Jackson	 foi	 acusado	 de	 ser	 assassino,
bígamo	e	comerciante	de	escravos.	Ainda	que	possa	não	ter	sido	algo	sério,	o
episódio	certamente	acabou	com	o	confortável	domínio	da	política	nacional	na
Virgínia.	Os	 dois	 homens	 dividiram	 os	Republicanos,	 e	 dois	 novos	 partidos
nasceram:	os	Democratas,	liderados	por	Jackson	e	seu	parceiro	de	campanha,
Martin	van	Buren,	e	os	Whigs.
A	 eleição	 presidencial	 de	 1828	 envolveu	 mais	 avanços	 na	 democracia
americana,	 com	 os	membros	 do	 colégio	 eleitoral	 agora	 designados	 por	 voto
popular	(eles	antes	agiam	de	forma	independente),	e	os	membros	dos	partidos
passaram	 a	 ter	 mais	 influência	 nas	 políticas.16	 Essa	 foi	 comprovadamente	 a
primeira	 eleição	 presidencial	 democrática,	 com	 o	 impressionante
comparecimento	 de	 58%	 dos	 eleitores,	 o	 que	 se	 deveu	 em	 grande	 parte	 ao
estilo	 populista	 de	 Andrew	 Jackson,	 a	 seu	 cortejo	 a	 uma	 parcela	 ampla	 de
eleitores	e	à	chegada	de	inúmeros	jornais	com	interesse	na	política	nacional.17
A	eleição	foi	vencida	por	Jackson,	e,	quando	tomou	posse,	apenas	a	Virgínia	e
a	 Carolina	 do	Norte	 ainda	 tinham	 a	 posse	 de	 terras	 como	 requisito	 para	 o
direito	de	voto	—	e	a	Virgínia	deixou	de	ter	em	1830.	As	eleições	atraíam	uma
percentagem	maior	de	eleitores	de	uma	população	em	crescimento.	Na	eleição
presidencial	de	1840,	o	comparecimento	foi	de	78%.
Os	novos	partidos	políticos	eram	bastante	diferentes	de	seus	predecessores
—	mais	tribais,	populistas,	organizados	e	dedicados	a	vencer.	Os	candidatos	dos
partidos	 eram	 antes	 escolhidos	 em	 reuniões	 no	 Congresso,	 mas	 a	 partir	 de
1828	 as	 convenções	 introduziram	 uma	 grande	 quantidade	 de	 membros	 de
partidos	no	processo,	além	de	propiciarem	fóruns	para	a	discussão	aberta	das
políticas.	 A	 chamada	 Regência	 de	 Albany,	 organização	 política	 dos
Democratas	 criada	 na	 década	 de	 1820,	 foi	 um	 protótipo	 para	 os	 futuros
partidos	 políticos.	 Era	 uma	 máquina	 bem	 organizada	 que	 tinha	 a	 vitória
eleitoral	 como	 principal	 objetivo.	 Enquanto	 os	 partidos	 eram	 essencialmente
agrupamentos	 de	 pessoas	 com	 as	 mesmas	 opiniões,	 a	 Regência	 de	 Albany
introduziu	 uma	 noção	 de	 ordem	 e	 disciplina	 de	 modo	 que	 os	 eleitores
soubessem	o	que	o	partido,	assim	como	seus	candidatos	individuais,	defendia.
Uma	 de	 suas	 principais	 inspirações,	William	 E.	Marcy,	 escreveu:	 “Quando
eles	[os	políticos	de	Nova	York]	estão	buscando	vitória,	admitem	a	intenção	de
desfrutar	dos	benefícios	que	ela	trará.	Se	são	derrotados,	esperam	retirar-se	do
cargo.	 Se	 vencem,	 exigem,	 por	 questão	 de	 direito,	 as	 vantagens	 do	 sucesso.
Não	veem	nada	de	errado	na	regra	de	que	ao	Vitorioso	pertencem	os	espólios
do	 Inimigo.”18	 O	 político	 nova-iorquino	 Martin	 van	 Buren	 reforçou	 a
influência	dos	partidos	introduzindo	o	benefício	do	clientelismo	na	Assembleia
Legislativa	do	estado:	quem	ganhasse	podia	nomear	cerca	de	4	mil	oficiais,	que
então	 trabalhariam	 para	 manter	 o	 emprego	 atravésda	 reeleição	 do	 partido
governante.	Van	Buren	levou	essa	prática	à	política	nacional	quando	se	tornou
presidente	em	1837.
Essa	 segunda	 fase	 dos	 partidos	 políticos	 nos	 Estados	 Unidos	 (chamada
formalmente	pelos	historiadores	de	Segundo	Sistema	de	Partidos)	foi	marcada
pela	 rivalidade	 entre	 Democratas	 e	 Whigs,	 com	 mais	 organização	 e
agressividade	que	na	 época	de	 Jefferson	 e	Adams.	O	 sistema	durou	até	que,
diante	 da	 impotência	 para	manter	 a	 nação	 unida,	 Abraham	 Lincoln	 acabou
com	 ele	 às	 vésperas	 da	 guerra	 civil.	 Partidos	 políticos	 haviam	 existido	 em
outros	lugares,	com	destaque	para	a	Grã-Bretanha,	por	pelo	menos	um	século
antes	 da	 fundação	 dos	 Estados	Unidos,	 enquanto	 em	 outros	 países,	 como	 a
França,	 facções	 políticas	 representavam	 diferentes	 grupos	 da	 sociedade.	Mas
foram	 os	 Estados	 Unidos	 que	 deram	 origem	 ao	 partido	 moderno,	 com
ideologia	abrangente,	habilidade	de	transformar	interesses	ou	preconceitos	em
políticas	 e	 lealdade	 tribais.	A	audácia,	 a	 efervescência	 e	o	 entusiasmo	que	os
partidos	 americanos	 engendraram	 levaram	 uma	 energia	 extraordinária	 à
política	democrática.
Os	Estados	Unidos	não	tinham	um	modelo	para	construir	uma	nação.	Os
cidadãos	 aprenderam	 aos	 poucos,	 a	 partir	 da	 experiência,	 a	 aceitar	 que	 a
atividade	política	 organizada	 em	apoio	 ou	oposição	 ao	 governo	 era	 legítima.
Os	 partidos	 acabaram	 se	 tornando	 essenciais	 para	 a	 sobrevivência	 de	 uma
sociedade	politizada,	articulando	necessidades	públicas	e	resolvendo	disputas.
Numa	 nação	 em	 que	 todos	 os	 eleitores	 tinham	 uma	 opinião,	 os	 partidos
funcionavam	 para	 desenvolver	 políticas	 coerentes,	 baseadas	 em	 ideologias
consistentes.	Não	foi	a	Constituição	nem	os	Pais	Fundadores	que	articularam
as	 grandes	 questões	 da	 nação,	 foram	 os	 partidos	 políticos,	 seus	 membros	 e
suas	reuniões.	O	sistema	de	partidos	levou	as	chamadas	pessoas	“comuns”	ao
governo,	 transformando	 a	 compreensão	 que	 elas	 tinham	 da	 sociedade	 de
formas	que	 estavam	 longe	de	 ser	 contempladas	na	Europa.	Logo	 ficou	 claro
para	 muitos	 que,	 eleitos	 e	 nomeados	 para	 cargos	 que	 envolviam	 salários,	 a
lealdade	e	o	trabalho,	os	partidários	podiam	levar	uma	vida	digna.	Como	já	foi
dito	muitas	vezes,	se	um	homem	honesto	podia	ter	uma	vida	boa,	o	desonesto
poderia	 ter	 uma	 ainda	 melhor.	 Contudo,	 quando	 os	 partidos	 estavam	 bem
estabelecidos,	o	outro	lado	de	seus	poderes	também	ficou	visível.	Como	vimos
em	Nova	York,	havia	tantos	oficiais	públicos	protegidos	por	oficiais	eleitos	que
os	chefes	dos	partidos	detinham	um	poder	imenso	que	os	tornava	efetivamente
invulneráveis	à	opinião	ou	à	escolha	do	eleitor.
Além	de	desenvolverem	os	partidos	políticos,	os	Estados	Unidos	passavam
por	 uma	 revolução	 silenciosa	 no	 direito	 de	 voto.	 Um	 estado	 após	 o	 outro
mudou	 o	 requisito	 para	 votação	 de	 adultos	 do	 sexo	 masculino	 com
propriedades	 para	 os	 que	 pagavam	 impostos.	 Na	 década	 de	 1840,	 essa
mudança	já	estava	completa,	e	em	quase	todos	os	estados	o	voto	era	direito	de
todos	 os	 adultos	 brancos	 do	 sexo	masculino.	 Isso	 não	 se	 dava	 sempre	 pelos
motivos	mais	puros:	no	sul,	dar	o	voto	a	 todos	os	homens	brancos	era	uma
forma	de	indicar	sua	superioridade	aos	escravos,	e	os	requisitos	de	pagamento
de	 impostos	 foram	 restabelecidos	 no	 sul	 após	 a	 guerra	 civil	 para	 excluir	 os
negros	da	votação.	No	entanto,	a	cidadania	masculina	se	tornou	idêntica,	em
linhas	gerais,	ao	direito	de	voto.
Enquanto	 as	 eleições	 nacionais	 e	 presidenciais	 eram	 os	 eventos	 mais
importantes	do	calendário	político,	a	democracia	americana	estava	bem-servida
pelas	camadas	de	instituições	que	se	colocavam	entre	o	indivíduo	e	o	Estado.
Alexis	 de	 Tocqueville	 fez	 um	 relato	 de	 suas	 viagens	 de	 1831	 pelos	 Estados
Unidos	em	seu	livro	Democracia	na	América.	Ele	observou	o	poder	e	a	eficiência
do	 governo	 local,	 as	 diversas	 entidades	 de	 igrejas	 e	 sociedades	 locais	 que
cuidavam	 dos	 interesses	 de	 seus	 membros	 de	 maneira	 diferente	 do	 Estado
potencialmente	 todo-poderoso:	 “Os	 americanos	 criam	 associações	 para	 doar
livros	 [...]	 desse	 modo,	 fundam	 hospitais,	 prisões	 e	 escolas	 [...]	 Sempre	 que
existe	um	chefe	em	algum	empreendimento	novo,	vemos	o	governo	na	França
e	um	homem	de	posição	 elevada	na	 Inglaterra;	 já	 nos	Estados	Unidos,	 com
certeza	 encontraremos	 uma	 associação.”19	 O	 eminente	 filósofo	 político
britânico	 e	membro	do	Parlamento,	 John	 Stuart	Mill,	 considerava	 comissões
locais	 e	 distritos,	 com	 suas	 preocupações	 paroquiais	 limitadas,	 impedimentos
ao	bom	governo;	mas,	depois	de	 ler	Tocqueville,	entendeu	que	sua	presença
era	essencial	e	que	seus	eventuais	antagonismos	e	regras	inconvenientes	eram
salvaguardas	necessárias	para	o	indivíduo	contra	o	poder	do	Estado.
A	história	dos	Estados	Unidos	mostra	que	as	disposições	políticas	refletem	a
cultura	 da	 sociedade,	 mas	 também	 que	 são	 limitadas	 pelas	 forças	 operantes
dentro	da	mesma	cultura.	Restavam	problemas	profundos	que	a	combinação
de	Constituição,	votos	para	todos	os	homens	brancos	e	partidos	entusiasmados
não	conseguiu	resolver.	A	questão	mais	importante	era	a	escravidão.	Embora
muitos	 fossem	 contra	 ela,	 nenhum	 partido	 estava	 preparado	 para	 defender
uma	plataforma	de	abolição	nacional.	Em	1854,	em	resposta	ao	Ato	de	Kansas
—Nebraska,	que	revogava	um	limite	estabelecido	para	a	escravidão,	Abraham
Lincoln	 foi	 forçado	 a	 formar	 um	 novo	 partido	Republicano	 com	 a	 intenção
explícita	de	manter	a	União	coesa	em	face	da	secessão	dos	estados	do	sul.
Foi	 a	 escravidão	 legal	dos	negros	que	 fez	 com	que	Abraham	Lincoln,	 em
meio	à	guerra,	 reavaliasse	o	significado	da	democracia	americana.	No	dia	19
de	 novembro	 de	 1863,	 ele	 compareceu	 à	 inauguração	 do	 cemitério	 para	 os
mortos	da	Batalha	de	Gettysburg	na	Pensilvânia.	O	discurso	de	Gettysburg	é
notável	por	 sua	brevidade	—	Lincoln	 falou	por	apenas	 três	minutos	—	e	pelo
poder	de	 sua	 eloquência.	É	muito	 significativo	que	Lincoln	 tenha	 evocado	 a
Declaração	 de	 Independência	 em	 seu	 discurso,	 e	 não	 a	 Constituição,
lembrando	aos	ouvintes	que	os	Estados	Unidos	haviam	 falhado	na	 tarefa	de
pôr	em	prática	os	princípios	nos	quais	 foram	 fundados:	 “Oitenta	e	 sete	anos
atrás,	 nossos	 pais	 criaram	 neste	 continente	 uma	 nova	 nação,	 concebida	 em
liberdade	e	dedicada	à	proposição	de	que	todos	os	homens	são	criados	iguais.”
Para	 Lincoln,	 os	 mortos	 de	 guerra	 deram	 suas	 vidas	 para	 que	 uma	 nação
baseada	 no	 princípio	 de	 igualdade	 pelo	 nascimento	 sobrevivesse.	 Ainda	 que
não	 use	 a	 palavra,	 o	 floreio	 final	 é	 um	 chamado	 à	 luta	 em	 defesa	 da
democracia,	que	ele	entendia	estar	nas	mãos	do	povo,	não	dos	 líderes:	“Nós
aqui	determinamos	com	muito	respeito	que	esses	homens	não	 terão	morrido
em	vão,	que	esta	nação	de	Deus	terá	um	novo	nascimento	da	liberdade	e	que
o	governo	do	povo,	pelo	povo	e	para	o	povo	não	desaparecerá	da	Terra.”
A	habilidade	 dos	Estados	Unidos	 de	 permanecer	 uma	democracia	 ainda	 era
questionada	por	alguns	na	Europa	na	década	de	1830	—	e,	se	ela	sobreviveu,
isso	não	chega	a	provar	que	a	democracia	era	uma	forma	estável	de	governo.
Em	1832,	um	comentador	britânico	escreveu:
Nosso	argumento	contra	o	exemplo	específico	dos	Estados	Unidos	é	toda	a	história	da	democracia,	a
turbulência	 e	 a	 destruição	 dos	 Estados	 gregos;	 a	 queda	 das	 liberdades	 na	 república	 romana;	 a
confusão	do	Parlamento	Longo,	seguido	pela	mão	de	ferro	de	Cromwell;	os	horrores	da	Revolução
Francesa;	 a	 debilidade	 das	 repúblicas	 da	 América	 do	 Sul;	 lemos	 uma	 história	 convincente,	 o
despotismo	de	muitos	gerando	o	 tormento	de	 todos	e	 terminando	com	o	poder	absoluto	de	alguns.
Isso	é	repetido	de	Atenas	a	Bogotá.20
No	 entanto,	 os	 americanos	 não	 temiam	 muito	 que	 a	 democracia
enfraquecesse	 seu	 país	 —	 pelo	 contrário,	 tinham	 orgulho	 do	 sistema	 que
haviamcriado.	E	pessoas	do	mundo	todo,	na	Europa	e	na	América	do	Sul	em
particular,	inspiraram-se	nos	Estados	Unidos	—	uma	nação	independente,	que
sobreviveu	e	prosperou,	tornando-se	ainda	mais	democrática.
Nota:
*	Referência	ao	sistema	eleitoral	winner-takes-all,	em	que	todos	os	votos	de	um	colégio	eleitoral	vão	para
um	candidato,	desprezando	o	número	de	votos	diretos	minoritários.	(N.	T.)
O
7
FRANÇA,	1789-95
O	Cidadão	Ativista
s	acontecimentos	da	Revolução	Francesa	já	foram	infinitamente	descritos
e	 debatidos.	 Um	 novo	 mundo	 político	 parecia	 surgir	 em	 1789	 para
desmoronar	em	meio	ao	viciante	derramamento	de	sangue	do	Terror	apenas
cinco	 anos	 depois.	 Uma	 combinação	 estonteante	 de	 inspiração	 e	 alerta,	 a
Revolução	Francesa	foi	um	acontecimento	político	que	afetou	o	mundo	todo.
Na	 maior	 e	 mais	 poderosa	 nação	 da	 Europa	 —	 um	 continente	 prestes	 a
dominar	 o	 mundo	 —,	 os	 poderes	 estabelecidos	 havia	 muito	 tempo	 foram
derrubados	 e	 acabaram	 sendo	 substituídos	 pelo	 protótipo	 de	 um	 Estado
nacional	moderno.
Onde	e	como	a	Revolução	e	suas	consequências	se	encaixam	numa	história
da	 democracia?	 A	 aplicação	 de	 um	 modo	 particular	 de	 entendimento	 da
política	 revolucionária	 indicava	 que	 havia	 apenas	 uma	 forma	 possível	 de
governo	 verdadeiro	 —	 qualquer	 outro	 caminho	 era	 visto	 como	 traição,	 uma
traição	 à	 Revolução	 e	 ao	 povo	 da	 França.	 No	 fim,	 a	 destruição	 física	 dos
adversários	 tornou-se	a	 forma	com	que	a	pessoas	demonstravam	poder;	esse
foi	o	 legado	sombrio	da	Revolução.	A	crença	num	único	caminho,	o	uso	do
terror	 contra	 adversários	 políticos,	 a	 ilegitimidade	 de	 qualquer	 forma	 de
oposição,	o	pressuposto	de	agir	“em	nome	do	povo”:	todas	essas	ideias	seriam
adotadas	pelos	autodenominados	regimes	revolucionários	do	mundo	nos	dois
séculos	 seguintes.	A	 criação	do	Estado	 centralizado	moderno	 controlado	por
um	 pequeno	 grupo	 ou	 por	 um	 único	 ditador	 também	 deixou	 sua	marca	 na
história	subsequente.	Na	história	da	democracia,	esse	certamente	é	o	vilão,	o
dragão	que	tem	de	ser	destruído	para	que	a	democracia	possa	funcionar.
Por	outro	lado,	a	França	deu	a	seu	povo	direitos	políticos	e	liberdades	que
estavam	 além	 até	 mesmo	 dos	 que	 tinham	 os	 cidadãos	 dos	 recém-fundados
Estados	 Unidos.	 Na	 década	 de	 1790,	 vinte	 turnos	 de	 eleições	 foram
acompanhados	por	panfletos,	cartazes,	reuniões	e	discursos	que	inflamaram	a
nação.	 Os	 governos	 franceses	 introduziram	 uma	 série	 de	 reformas	 agrárias,
tributação	 progressiva,	 regimes	 de	 pensão,	 combate	 à	 fome	 e	 financiamento
estatal	para	escolas.	Padronizaram	pesos	e	medidas	e	estabeleceram	um	sistema
jurídico	 justo	 e	 estruturas	 eficazes	 para	 a	 administração	 de	 seu	 vasto	 país.
Inspiraram	o	povo	a	aspirar	à	democracia	e	estimularam	a	crença	de	que	todo
indivíduo	 tem	 certos	 direitos	 fundamentais	 a	 serem	 preservados.	 A	 história
permite	 a	 coexistência	 dessas	 contradições	 e	 que	 pessoas	 com	 as	 melhores
intenções	causem	grandes	danos.
Na	década	de	1780,	a	França	era	o	gigante	 irregular	da	Europa.	Por	mais	de
cem	 anos,	 sua	 posição	 estratégica,	 recursos	 naturais	 abundantes	 e	 imensa
população,	 combinados	 com	 as	 habilidades	 políticas	 e	 diplomáticas	 de	 uma
série	 de	ministros	 competentes,	 fizeram	da	França	 a	 grande	 potência	militar,
econômica	e	cultural	do	continente.	A	partir	da	década	de	1750,	essa	posição
foi	 ameaçada	 pelo	 poder	 marítimo	 crescente	 da	 Grã-Bretanha	 e	 pelo
militarismo	 agressivo	 da	 Prússia	 em	 terra.	 No	 entanto,	 a	 França	 continuou
sendo	a	 força	política	 e	 cultural	dominante	na	Europa:	 sua	 língua	era	 falada
em	 todas	 as	 cortes,	 sua	 moda	 era	 seguida	 em	 toda	 parte,	 seus	 escritores	 e
artistas	lidos	e	admirados	com	entusiasmo.
Porém,	no	decorrer	do	século	XVIII,	a	sociedade	francesa	ficou	dividida.	O
rei	de	Versalhes	 estava	 cercado	de	 cortesãos	que	prosperavam	e	decaíam	de
acordo	com	sua	proximidade	com	o	regime	autocrático.	O	governo	sobreviveu
enquanto	a	França,	 terra	de	enorme	capacidade	agrícola,	podia	alimentar	seu
povo,	 arrecadar	 impostos	 suficientes	 e	 se	 defender	 contra	 os	 inimigos.	 No
entanto,	 o	 desenvolvimento	 da	 impressão,	 o	 aumento	 da	 alfabetização	 e	 a
ampliação	 do	 governo	 levaram	 ao	 surgimento	 de	 um	novo	 tipo	 de	 cidadão.
Advogados,	oficiais	públicos,	médicos	e	comerciantes	—	além	de	figuras	como
Voltaire	e	Diderot	—	 tornaram-se	 leitores	ávidos,	 ligados	por	meio	de	clubes,
sociedades	 e	 locais	 de	 encontro	 às	 informações	 e	 ideias	 de	 fora	 de	 suas
localidades.	Esses	 homens	 instruídos	 sabiam	das	 liberdades	 políticas	 na	Grã-
Bretanha,	 Países	 Baixos,	 Estados	 Unidos	 e	 Estados	 germânicos,	 e	 tinham
consciência	 do	 contraste	 com	 a	 sua	 própria	 situação.1	 Embora	 escritores
franceses	como	o	filósofo	político	Montesquieu	tivessem	destaque	na	análise	de
diferentes	métodos	 de	 governo,	 nenhum	deles	 pôde	 ser	 colocado	 em	prática
em	 seu	 próprio	 país.	 Havia	 também	 milhões	 de	 pobres,	 tanto	 nas	 cidades
menosprezadas	como	no	interior,	onde	viviam	80%	da	população	francesa.	A
pobreza	 desoladora	 dos	 camponeses	 e	 pobres	 urbanos,	 tratados	 mais	 como
animais	de	carga	que	como	seres	humanos,	ajuda-nos	a	entender	a	explosão	de
violência	que	estava	prestes	a	ocorrer.	Quando	a	Bastilha	foi	tomada,	em	14	de
julho	 de	 1789,	 o	 governador,	 De	 Launay,	 foi	 capturado,	 decapitado,	 e	 sua
cabeça,	carregada	na	ponta	de	uma	lança.	Oito	dias	depois,	o	 intendente	real
de	Paris,	De	Sauvigny,	 junto	 com	 seu	 sogro,	Foulon	—	que	 afirmara	que,	 se
estivessem	 com	 fome,	 os	 pobres	 poderiam	 comer	 feno	 —,	 foram	 presos	 e
decapitados.	A	cabeça	de	Foulon	foi	exibida	em	desfile	de	forma	semelhante,
só	que	com	a	boca	cheia	de	feno.
Tudo	isso	ainda	estava	por	vir	quando,	na	primavera	de	1789,	Luís	XVI,
sob	a	pressão	de	seus	conselheiros,	convocou	a	assembleia	dos	Estados	Gerais
em	Versalhes.	Ao	fim	da	década	de	1780,	o	governo	francês	estava	falido.	O
país	havia	se	saído	mal	em	guerras	na	Europa	e	nas	Américas,	e	uma	série	de
colheitas	 ruins	 deixou	muitos	 à	 beira	 da	 inanição.	 No	 século	 anterior,	 uma
sucessão	 de	 reis	 Bourbon,	 de	 vida	 longa,	 governou	 de	 cima	 para	 baixo,
escolhidos	por	Deus	para	reinar	sobre	o	povo,	mas	a	França	do	Ancien	Régime
não	 era	 a	 autocracia	 centralizada	 que	 é	 retratada	 às	 vezes.	 O	 foco
compreensível	em	Paris	deixa	de	lado	a	extraordinária	multiplicidade	do	reino
—	um	imenso	território	unido	por	apenas	dois	elementos:	a	lealdade	ao	rei	e	a
religião	católica,	praticada	por	97%	do	povo	francês.	Ao	longo	dos	séculos,	os
reis	franceses	haviam	governado	com	êxito,	realizando	acordos	para	absorver
diferentes	 províncias,	 principados,	 ducados	 e	 bispados,	 ainda	 que	 cada	 uma
dessas	regiões	mantivesse	um	conjunto	diferente	de	poderes	e	 jurisdições	nos
quais	 as	 cidades	 tinham	 o	 direito	 de	 cobrar	 impostos	 e	 pedágios,	 línguas
diferentes	eram	faladas	e	diferentes	pesos	e	medidas	usados.	A	vida	da	maioria
dos	 franceses	 era	 centrada	 no	 vilarejo	 comercial	 mais	 próximo,	 enquanto	 o
comércio	 da	 nação	 era	 quase	 impossibilitado	 por	 regulamentações	 e	 péssima
infraestrutura	 —	 era	 mais	 fácil	 para	 as	 províncias	 do	 leste	 da	 França	 fazer
comércio	 com	 a	 distante	 Prússia	 que	 com	 Paris.	 Uma	 história	 recente	 dá	 o
exemplo	 da	 região	 do	Languedoc,	 em	Corbières,	 cujas	 129	 paróquias,	 todas
formadas	 por	 falantes	 de	 provençal,	 eram	 administradas	 separadamente	 de
Carcassonne,	 Narbona,	 Limoux	 e	 Perpinhã,	 enquanto	 as	 fronteiras	 internas
para	questões	judiciais,	por	sua	vez,	eram	diferentes	para	impostos	e	questões
da	Igreja.	Nessa	única	região,	havia	cinquenta	unidades	diferentes	para	medir	a
terra,	com	os	mesmos	termos	variando	muito	em	diferentes	áreas	—	um	sétérée,
por	exemplo,	variava	de	0,16	a	0,51	hectare.	O	imposto	sobre	o	sal,	o	maior
imposto	indireto	da	França,	variavade	1,10	a	60	livres,	dependendo	de	onde	a
pessoa	morava.2
Apesar	 de	 sua	magnificência,	 o	 regime	 de	Versalhes	 tinha	 pouco	 alcance
nessas	 províncias	 distantes.	 Somente	 seis	 pequenos	 ministérios	 cuidavam	 de
um	 país	 de	 28	 milhões	 de	 pessoas;	 era	 compreensível	 que	 contasse	 com
agentes	 e	 administrações	 locais.	 Uma	 série	 de	 quinze	 parlements,	 criados	 por
monarcas	 desde	 1300,	 tinha	 alguma	 jurisdição	 sobre	 questões	 legais	 e,	 em
alguns	 casos,	 tributação,	mas	 sua	 autoridade	 e	 alcance	 variavam	muito	 —	 o
parlement	de	Paris	controlava	quase	metade	do	 território	da	França,	enquanto
os	outros	estabeleciam-se	em	torno	de	um	pequeno	distrito.
A	cultura	e	a	identidade	locais	eram	o	centro	da	vida	pública	na	França	pré-
revolucionária.	 Entre	 600	 mil	 e	 700	 mil	 pessoas	 viviam	 em	 Paris,	 e	 Lyon,
Marselha	 e	 Bordéus	 tinham	 todas	 mais	 de	 100	 mil	 habitantes	 —	 em
comparação,	Bristol,	a	segunda	maior	cidade	da	Inglaterra,	 tinha	cerca	de	60
mil	habitantes	—,	com	Nantes,	Lille,	Rouen	e	Toulouse	não	muito	atrás.	Em
vilarejos	 medievais	 abarrotados,	 artesãos	 trabalhavam	 em	 ofícios
especializados	 e	 pequenas	 manufaturas	 —	 milhares	 de	 tecelões,	 vidreiros,
tipógrafos,	 ferreiros,	 xilógrafos	 e	 pedreiros	 conviviam	 com	 açougueiros,
padeiros	e	donos	de	mercearias.	Ainda	que	considerados	pessoas	comuns,	os
mestres	e	artífices	de	cada	ofício	tinham	muito	orgulho	de	seu	conhecimento	e
habilidade.	Havia	 também	grandes	 fábricas	—	uma	 fábrica	de	papel	em	Paris
empregava	350	trabalhadores	—,	mas	a	maior	parte	do	trabalho	artesanal	era
de	 pequena	 escala,	 com	 trabalhadores	 reunidos	 em	 associações	 ilegais
conhecidas	 como	 compagnonnages.	 Os	 trabalhadores	 não	 qualificados	 faziam
serviços	domésticos	e	em	construções,	intercalados	com	trabalhos	sazonais	no
interior.	 Para	 o	 trabalhador	 urbano,	 a	 vida	 era	 continuamente	 árdua	 —
expedientes	de	dezesseis	horas,	 com	 famílias	 inteiras	morando	 e	 trabalhando
em	dois	cômodos.
As	 classes	 médias	 francesas	 tendiam	 a	 seguir	 carreiras	 na	 administração
pública	e	no	direito.	Empregar	dinheiro	na	terra	para	obter	direitos	senhoriais
também	 era	 considerado	 um	 investimento	 prudente	 e	 uma	 forma	 de	 entrar
para	 os	 patamares	 inferiores	 da	 nobreza.	 Não	 se	 tratava	 apenas	 de	 vaidade
social	 —	 ser	membro	 da	 nobreza	 abria	 oportunidades	 que	 estavam	 fechadas
para	 os	 outros:	 oficiais	 do	 Exército	 francês,	 por	 exemplo,	 tinham	 de
comprovar	 quatro	 gerações	 de	 nobreza.	 (As	 alcunhas	 adotadas	 pelos
revolucionários	Maximilien	de	Robespierre	e	Georges	d’Anton,	por	exemplo,
denunciam	 as	 aspirações	 nobres	 de	 suas	 famílias.)	 As	 classes	 médias	 eram
reconhecidas	pela	educação	e,	embora	o	regime	tivesse	banido	qualquer	livro
considerado	 subversivo,	 textos	 radicais	 circulavam	 livremente	 e	 eram
discutidos	 em	 clubes	 onde	 a	 burguesia	 urbana	 se	 reunia.	 Junto	 com	 obras
políticas	 sérias,	 surgiram	 sátiras	 de	 diversos	 graus	 de	 crueldade	 —	 o	 rei	 era
retratado	 como	 impotente	 com	 frequência,	 apesar	de	 sua	 rainha	 ter	 tido	 três
filhos.
Para	 a	 maioria	 dos	 súditos	 da	 área	 rural	 francesa,	 o	 trabalho	 árduo	 e
implacável	 era	 o	 centro	 da	 existência,	 com	 a	 contínua	 escassez	 de	 alimentos
que	tornava	a	vida	precária,	na	melhor	das	hipóteses.	A	expectativa	de	vida	no
país	 era	 inferior	 a	 cinquenta	 anos.	 Uma	 série	 de	 boas	 colheitas	 a	 partir	 da
década	de	1750	propiciou	um	aumento	de	cerca	de	3	milhões	de	habitantes.	A
população	numerosa	e	a	estrutura	complexa	da	sociedade	tinham	todas	que	ser
sustentadas,	 no	 fim,	 pelos	 trabalhadores	 do	 campo.	 Pequenos	 fazendeiros	 e
camponeses	cultivavam	cerca	de	40%	da	terra,	embora	essa	porção	geralmente
fosse	enfeudada,	de	modo	que	pagamentos	referentes	tinham	de	ser	feitos	aos
senhores	 feudais.	Quando	 as	 colheitas	 começaram	 a	 fracassar,	 na	 década	 de
1780,	revoltas	por	alimentos	começaram	a	irromper	nas	cidades,	enquanto,	no
interior,	 o	 ressentimento	 contra	 o	 dízimo	 e	 os	 impostos	 feudais	 fervia	 sob	 a
superfície.
Artesãos,	 camponeses	 e	 burgueses	 formavam	 99%	 da	 população	 que
compunha	 o	 chamado	Terceiro	Estado.	A	 nobreza,	 ou	 Segundo	Estado,	 era
composta	por	125	mil	pessoas,	ou	0,4%	da	população.	Sua	principal	 fonte	de
renda	era	a	 terra,	da	qual	possuía	cerca	de	um	terço,	com	direitos	senhoriais
sobre	 a	 maior	 parte	 do	 restante.	 Embora	 o	 senhor	 enobrecido	 em	 sua
propriedade	 do	 interior	 tivesse	 pouco	 em	 comum	 com	 alguém	 do	 círculo
interno	fabulosamente	rico	do	rei,	a	nobreza	dava	acesso	a	privilégios	e	renda.
Os	 nobres	 costumavam	 ter	 moinhos	 em	 vilarejos	 e	 prensas	 de	 azeitonas,	 e
tinham	 o	 poder	 de	 proibir	 qualquer	 concorrência.	 Arrecadavam	 impostos
sobre	 vendas	 de	 terras	 e	 casamentos,	 e	 tinham	 o	 direito	 de	 não	 pagar	 os
camponeses	 em	 suas	 terras	 na	 época	 da	 colheita.	 Profissões	 importantes
também	eram	reservadas	à	nobreza	—	o	genovês	Jacques	Necker,	por	exemplo,
era	o	único	plebeu	no	ministério	do	rei	—	e,	quaisquer	que	fossem	as	diferenças
entre	si,	os	nobres	tinham	um	interesse	coletivo	em	manter	o	status	quo.
A	Igreja	era	o	Primeiro	Estado	do	reino,	com	cerca	de	170	mil	clérigos	—
0,6%	 da	 população	 total	 —	 servindo	 aos	 fiéis.	 Enquanto	 os	 padres	 das
paróquias	 recebiam	pagamentos	 irrisórios,	 os	 bispados	 eram	 reservados	para
as	famílias	nobres	e	eram	fartamente	remunerados.	A	renda	da	Igreja	vinha	do
dízimo	pago	sobre	as	colheitas	e	de	suas	próprias	terras	vastas	—	cerca	de	10%
da	 França	 —	 e	 propriedades	 urbanas.	 Em	 Angers,	 por	 exemplo,	 a	 Igreja
possuía	75%	das	 terras	da	cidade.	Ela	empregava	padres,	administradores	de
propriedades,	 servos,	 escrivães,	 construtores,	 advogados	 e	 oficiais	 de	 justiça.
Em	 muitas	 paróquias	 rurais,	 o	 padre	 era	 praticamente	 o	 único	 habitante
alfabetizado.	Embora	a	maioria	dos	parisienses	fosse	alfabetizada,	registros	de
casamentos	 de	 Luc-Vendée	 sugerem	 que	 apenas	 0,5%	 dos	 noivos	 conseguia
assinar	o	nome	de	forma	legível.
O	Ancien	Régime	começou	a	decair	na	década	de	1780,	quando	a	arrecadação	de
impostos	não	fornecia	mais	a	renda	necessária	para	o	governo,	e	a	agricultura
francesa	 não	 produzia	 o	 suficiente	 para	 alimentar	 a	 população.	 Ao	 mesmo
tempo,	membros	de	clubes	de	leitura,	lojas	maçônicas	e	salões	começaram	a	se
livrar	 das	 restrições	 da	 censura	 e	 a	 falar	 abertamente	 de	 conceitos,	 como	 o
cidadão	e	o	Estado,	moralidade	na	vida	pública	e	os	benefícios	da	meritocracia.
Um	acordo	comercial	com	a	Grã-Bretanha	em	1786	afetou	a	indústria	têxtil	de
forma	negativa,	enquanto	as	colheitas	ruins	de	1785	e	1788	quase	levaram	os
camponeses	à	inanição	e	reduziram	a	renda	feudal	da	nobreza.	Ela	reagiu	com
agressividade,	 impondo	e	aumentando	 impostos;	o	conceito	 feudal	de	noblesse
oblige,	em	que	o	privilégio	é	passado	de	mão	em	mão	com	a	responsabilidade
de	 proteção,	 foi	 exposto	 como	 uma	 impostura,	 com	 a	 nobreza	 cuidando	 de
seus	próprios	 interesses.	Porém	a	 aristocracia	 também	estava	 sob	pressão	do
alto	—	de	um	rei	que	precisava	manter	o	país	solvente.
Em	 1788,	 Luís	 XVI	 buscou	 auxílio	 financeiro	 de	 sua	 Assembleia	 de
Notáveis,	depois	do	parlement	de	Paris.	Os	membros	do	parlement,	no	entanto,	a
par	 das	 tendências	 de	 insatisfação	 e	 divergência	 que	 corriam	 pelo	 país,
aconselharam-no	 a	 convocar	 uma	 reunião	 dos	 Estados	 Gerais,	 uma	 antiga
entidade	 que	 havia	 se	 reunido	 pela	 última	 vez	 em	 1614.	 As	 eleições	 para	 a
escolha	 de	 representantes	 dos	 três	 estados	 foram	 marcadas	 para	 março	 de
1789.	 O	 clero	 e	 a	 nobreza	 (ainda	 que	 juntos	 representassem	 apenas	 1%	 da
população)	 teriam	 trezentos	 representantes	 cada,	 e	 o	 Terceiro	 Estado,
seiscentos.	Todos	os	distritos	que	existiam	em	1614	(conhecidos	como	baillages
e	 sénéchausées)	 foram	 usados	 como	 eleitorado	 para	 a	 eleição	 de	 1789,com	 a
adição	de	outros	para	acomodar	as	mudanças	na	população.
A	eleição	 foi	um	processo	de	dois	estágios:	em	cada	distrito,	uma	reunião
aberta	 foi	 realizada	 para	 a	 escolha	 dos	 representantes.	 Os	 escolhidos
participariam	 de	 uma	 assembleia	 formal	 do	 eleitorado	 que	 selecionaria	 os
representantes	a	serem	enviados	a	Versalhes.	Os	eleitores	do	Terceiro	Estado
qualificados	 para	 a	 eleição	 incluíam	 todos	 os	 homens	 acima	 de	 25	 anos	 que
pagassem	impostos	diretos	—	o	que	significava,	na	prática,	que	quase	todos	os
homens	eram	qualificados.	Somente	em	Paris	a	qualificação	era	superior,	com
a	 exigência	 de	 impostos	 de	 seis	 livres,	 o	 que	 desqualificava	 metade	 da
população	 masculina	 adulta.	 As	 eleições	 do	 Terceiro	 Estado	 foram
complicadas	por	 regras	diferentes	nas	paróquias	 rurais	 e	nas	 cidades	em	que
membros	das	corporações	de	ofício	de	mercadores	e	comerciantes	 formavam
colégios	 eleitorais,	 cada	 uma	 escolhendo	 um	 representante	 para	 cada	 cem
membros.
Esses	 procedimentos	 eleitorais	 são	 algo	 surpreendente,	 uma	 vez	 que	 a
França	era	um	país	autocrático	sem	nenhuma	suposta	tradição	democrática,	e
os	Estados	Gerais	não	eram	convocados	há	mais	de	160	anos.	Nessas	eleições
não	havia	partidos	políticos,	nem	sequer	tendências	organizadas,	e	o	governo
não	tentou	 influenciar	a	escolha	de	candidatos.	Em	vez	disso,	acredita-se	que
cada	 eleitorado	 tenha	 escolhido	 o	 homem	 mais	 proeminente	 em	 sua
comunidade.	Os	candidatos	estavam	unidos	em	sua	crença	de	que	o	povo	da
França	 deveria	 ter	 poder	 de	 decisão	 no	 governo.	 A	 identidade	 política	 da
maioria	dos	representantes	só	seria	exteriorizada	após	as	eleições.
É	fácil	entender	por	que	as	eleições	de	1789	revigoraram	o	país:	elas	foram
o	 fórum	 perfeito	 para	 uma	 efusão	 de	 descontentamentos	 e	 uma	 fonte	 de
esperança	 por	 um	 futuro	 melhor.	 O	 inglês	 Arthur	 Young	 estava	 no	 porto
atlântico	 de	 Nantes	 nas	 semanas	 seguintes	 ao	 anúncio	 da	 convocação	 dos
Estados	 Gerais.	 “Nantes	 está	 tão	 inflamada	 pela	 causa	 da	 liberdade	 como
qualquer	 cidade	 da	 França	 pode	 estar”,	 relatou.	 “As	 conversas	 que
testemunhei	aqui	provam	como	é	grande	a	mudança	provocada	na	mente	dos
franceses,	 e	não	creio	que	 será	possível	que	o	governo	atual	dure	mais	meio
século.”3	As	 eleições	 tiveram	um	efeito	 eletrizante	na	população:	 as	 reuniões
foram	 amplamente	 divulgadas,	 as	 virtudes	 dos	 candidatos,	 debatidas,	 e	 a
perspectiva	 de	 envolvimento	 do	 povo	 no	 destino	 da	 França,	 celebrada.	 A
política	virou	de	repente	o	centro	da	discussão	livre	e	aberta	numa	sociedade
em	que	as	 ideias	subversivas	haviam	sido	reprimidas.	Foi	essa	energia	e	esse
entusiasmo	que	deram	aos	representantes	do	Terceiro	Estado	a	confiança	para
agirem	 como	 fizeram	 em	 seguida.	 Nessa	 eleição,	 gigantes	 da	 história
revolucionária,	como	Mirabeau,	Robespierre	e	os	Abbé	Sieyès,	começaram	sua
carreira	política.
Durante	 a	 campanha,	 o	 governo	 suspendeu	 a	 censura	 rigorosa	 das
publicações	políticas,	e	mais	de	4	mil	folhetos	foram	publicados	nos	doze	meses
após	maio	 de	 1788.	 Além	 disso,	 as	 assembleias	 dos	 eleitorados	mantiveram
listas	 de	 descontentamentos	 —	 cahiers	 de	 doléances	 —	 para	 serem	 usadas	 como
memorandos	pelos	representantes	de	todos	os	três	estados	em	Versalhes.	Esses
documentos	históricos	 inestimáveis	mostram	a	concordância	entre	os	estados
quanto	à	necessidade	de	criar	um	sistema	de	impostos	mais	justo	e	de	aplicar
leis	de	forma	consistente	pela	França.	Porém,	enquanto	os	camponeses	falavam
em	 remover	 o	 serviço	 feudal,	 e	 os	 burgueses	 urbanos	 defendiam	 uma	 nova
sociedade,	em	que	as	oportunidades	estavam	abertas	a	 todos,	a	 liberdade	era
um	 direito	 e	 o	 privilégio	 era	 inaceitável,	 a	 nobreza	 queria	 o	 reforço	 do
privilégio	 e	da	hierarquia,	um	papel	menor	para	o	 rei	 e	poder	maior	para	 si
mesma.
Em	maio	 de	 1789,	 os	 representantes	 dos	 Estados	 Gerais	 reuniram-se	 em
Versalhes.	 Ali,	 os	 dois	 mundos	 colidiram:	 de	 um	 lado,	 a	 opulência
extraordinária	 da	 corte	 real,	 seu	 palácio	 do	 tamanho	 de	 um	 vilarejo,	 seu
monarca	como	um	semideus;	do	outro,	os	advogados,	comerciantes	e	médicos
de	Amiens,	Besançon	e	Marselha.	Se	o	rei	pensava	que	os	plebeus	do	Terceiro
Estado	ficariam	deslumbrados	e	intimidados	diante	de	Versalhes,	estava	muito
enganado.	 Os	 seiscentos	 representantes	 sabiam	 que	 estavam	 levando	 as
expectativas	 e	 esperanças	 da	 população	 e	 que	 o	 rei,	 pelo	 contrário,	 estava
isolado.	Quando	foi	exigido	que	os	representantes	do	Terceiro	Estado	usassem
trajes	 e	 capas	 pretos,	 que	 os	marcavam	 como	 os	mais	 inferiores	 nesse	 local
profundamente	 hierarquizado,	 isso	 simplesmente	 lhes	 deu	 um	 sentimento
persistente	de	solidariedade.	Durante	as	tensas	negociações,	os	representantes
se	 recusaram	a	aprovar	 impostos	 sem	 reforma	política	 e,	 em	 junho	de	1789,
anunciaram	 que	 o	 Terceiro	 Estado	 era	 a	 única	 entidade	 representativa	 do
povo.	Depois	de	convidarem	membros	de	outros	Estados	para	 juntarem-se	a
eles,	no	dia	17	de	junho	os	representantes	do	Terceiro	Estado	declararam-se	a
Assembleia	Nacional	da	França.	No	dia	20	de	junho,	Luís	XVI	impediu	que	os
representantes	 entrassem	 em	 seu	 salão	 de	 reuniões.	 Em	 resposta,	 eles	 se
reuniram	num	salão	próximo,	onde	fizeram	o	famoso	Juramento	da	Quadra	de
Tênis,	 no	 qual	 comprometiam-se	 a	 permanecer	 em	 sessão	 até	 conceberem	 e
aprovarem	 uma	 nova	 Constituição	 para	 a	 França.	 Diante	 das	 tentativas	 de
Luís	 XVI	 de	 lhes	 negar	 um	 local	 de	 reunião,	 declararam	 ser	 a	 Assembleia
Nacional	onde	quer	que	os	representantes	escolhessem	congregar-se.	Tratava-
se	agora,	por	meio	de	suas	próprias	declarações,	de	uma	conferência	legislativa
e	constitucional.
O	poder	dos	representantes	era	validado	pelas	pessoas	que	os	elegeram,	e
eles	 estavam	 preparados	 para	 fazer	 valer	 esse	 poder	 contra	 a	 autoridade
costumeira	 do	 rei	 e	 da	 nobreza.	 Embora	 Luís	 XVI	 ainda	 controlasse	 o
Exército	—	de	fato,	20	mil	mercenários	estrangeiros	estavam	posicionados	em
Paris	 —,	 os	 acontecimentos	 em	 Versalhes	 estavam	 sendo	 observados
atentamente	da	capital,	onde	revoltas	já	haviam	forçado	a	retirada	parcial	das
tropas.	A	maioria	dos	plebeus	parisienses	não	tinha	direito	de	voto	nas	eleições
dos	 Estados	 Gerais,	 mas	 eram	 eles	 que	 viriam	 a	 salvar	 a	 nova	 Assembleia
Nacional.	 No	 dia	 12	 de	 julho,	 Thomas	 Jefferson,	 “ministro	 da	 França”	 nos
Estados	Unidos,	 testemunhou	 um	 confronto	 entre	 tropas	 alemãs	 e	 suíças,	 a
serviço	do	rei,	e	uma	multidão	de	parisienses:	“Os	cavalos	avançaram,	mas	a
posição	vantajosa	do	povo	e	a	chuva	de	pedras	forçaram-nos	a	recuar...	Esse
era	o	sinal	da	insurreição	universal,	e	essa	cavalaria,	para	não	ser	massacrada,
retirou-se	na	direção	de	Versalhes.”	Dois	dias	depois,	uma	multidão	de	8	mil
pessoas	 tomou	 a	 prisão	 da	 Bastilha	 em	 Paris,	 libertou	 os	 prisioneiros	 e
decapitou	o	intendente.	Multidões	já	haviam	atacado	postos	alfandegários,	que
acreditavam	 estar	 impedindo	 a	 chegada	 de	 cereais	 à	 cidade,	 e	 saqueado	 52
vagões	 de	 trigo	 vindos	 do	 seminário	 católico	 de	 Saint-Lazare.	 O	 rei	 ficou
impotente	 com	 a	 incapacidade	 do	 Exército	 de	 reagir	 contra	 os	 cidadãos	 de
Paris;	 Jefferson	 ficou	 estupefato	 ao	 ver	 multidões	 pegarem	 em	 armas	 no
Palácio	 dos	 Inválidos	 enquanto	 “um	 corpo	 de	 5	 mil	 soldados	 estrangeiros,
acampados	num	espaço	de	400	metros,	não	reagia”.4	O	controle	da	cidade	pela
nova	ordem	tornou-se	permanente	por	meio	da	formação	da	Guarda	Nacional,
leal	à	assembleia	e	comandada	pelo	general	Lafayette.
No	vácuo	de	poder	que	ela	ajudara	a	criar,	a	Assembleia	Nacional	recebeu	a
oportunidade	 de	moldar	 o	 futuro	 da	 nação.	A	 legitimidade	 conferida	 a	 seus
representantes	por	meio	das	eleições	causara	a	destruição	da	autoridade	real	de
um	modo	que	ninguém	poderia	ter	previsto.	Os	ministros	do	rei	insistiramque
ele	cedesse	à	assembleia	e,	na	manhã	de	15	de	julho,	Luís	XVI	dirigiu-se	aos
representantes	e	pediu	a	sua	ajuda	para	restaurar	a	ordem.	Tratava-se	de	uma
renúncia	abjeta.
No	 dia	 seguinte,	 numa	 cerimônia	 extraordinária,	 Luís	XVI	 foi	 levado	 de
seu	palácio	reluzente	em	Versalhes	às	ruas	ameaçadoras	da	capital.	Cerca	de
60	mil	parisienses	cercaram	as	ruas	com	mosquetes	roubados	da	Bastilha	e	do
Palácio	 dos	 Inválidos,	 além	 de	 lanças,	 espadas,	 foices	 e	 outras	 armas
improvisadas.	A	carruagem	do	rei	estava	cercada	por	membros	da	assembleia,
a	 pé,	 em	 sua	 passagem	 pela	 multidão.	 Alguns	 gritavam	 “Vive	 la	 nation”.
Ninguém	 gritou	 “Vive	 le	 roi”.	 No	 Hôtel	 de	 Ville,	 a	 Câmara	 Municipal,	 o
presidente	 do	Terceiro	 Estado	 e	 novo	 prefeito	 de	 Paris,	 Jean-Sylvain	 Bailly,
pediu	ao	rei	que	aceitasse	um	presente,	uma	fita	decorativa	tricolor.	Após	essa
humilhação	pública,	o	rei	foi	escoltado	de	volta	a	Versalhes	por	uma	tropa	da
Guarda	Nacional.
O	colapso	repentino	da	autoridade	do	regime	real	 foi	saudado	em	cidades
da	França	por	ações	 imediatas:	nobres	foram	forçados	a	deixar	seus	cargos	e
conselhos	alternativos	e	milícias,	estabelecidos	no	lugar	do	aparato	do	Estado
Bourbon.	 Por	 toda	 a	 França,	 os	 soldados	 ficaram	 do	 lado	 do	 povo	 numa
atitude	decisiva,	 recusando-se	a	pagar	 taxas,	 impostos	e	dízimos.	No	 interior,
desespero	 e	 esperança	 combinavam-se	 à	 medida	 que	 os	 aldeões	 voltaram-se
contra	 seus	 senhores,	 fazendo	 fogueiras	 com	 os	 registros	 feudais	 que	 os
mantinham	 em	 servidão.	No	 início	 de	 agosto,	 a	Assembleia	Nacional	 aboliu
formalmente	o	sistema	feudal:	a	busca	por	privilégios,	a	servidão	e	o	trabalho
não	remunerado	foram	considerados	ilegais	nos	chamados	decretos	de	agosto.
Se	as	eleições	dos	representantes	do	Terceiro	Estado	começaram	a	politizar
a	 nação,	 a	 tomada	 do	 poder	 pela	 Assembleia	 Nacional	 liberou	 uma	 nova
torrente	de	energia	política.	A	avalanche	de	 folhetos	 transformou-se	na	 fonte
de	esperança	do	povo	e	no	foco	de	sua	ira.	Para	muitos	historiadores,	esse	é	o
verdadeiro	 legado	da	Revolução	Francesa.	Partimos	do	pressuposto	de	que	a
política	 é	 espaço	 em	 que	 o	 destino	 da	 nação	 é	 decidido	 e	 que	 os	 políticos
existem	para	 representar	 nossos	 interesses	 e	 resolver	 nossos	 problemas;	mas
foi	 essa	 revolução	 e	 as	 eleições	 concomitantes	 que,	 pela	 primeira	 vez	 na
Europa	moderna,	 fizeram	da	política	o	 centro	da	vida	das	pessoas	 e	de	 suas
preocupações	com	o	país.
O	marco	seguinte	na	situação	que	mudava	rapidamente	ocorreu	no	dia	26
de	agosto,	quando	a	assembleia	lançou	a	Declaração	dos	Direitos	do	Homem	e
do	 Cidadão.	 Ela	 continha	 dezessete	 princípios,	 começando	 com	 a	 sonora
declaração	de	que:	“Os	homens	nascem	e	permanecem	livres	e	iguais	quanto	a
seus	 direitos.”	O	documento	 prossegue	 afirmando	 que	 “O	princípio	 de	 toda
soberania	 reside	essencialmente	na	nação.	Nenhum	órgão	ou	 indivíduo	pode
exercer	 qualquer	 autoridade	 que	 não	 se	 origine	 diretamente	 da	 nação”.
Durante	séculos,	a	França	havia	sido	governada	por	uma	dinastia	autocrática.
A	 soberania	 era	 concedida	aos	 reis	por	Deus	e	Seu	 reino	pertencia	a	 eles.	A
declaração	jogou	tudo	isso	fora.	O	tom	sagrado	do	documento	é	uma	repetição
proposital	 dos	pronunciamentos	 reais,	 destinados	 a	 conferir	 seriedade	 a	uma
afirmação	universal.	O	objetivo	 era	não	apenas	que	 fosse	o	 anúncio	de	uma
nova	era	de	ouro	para	a	França,	mas	também	para	o	mundo.
A	 declaração	 deve	muito	 aos	 filósofos	 e	 escritores	 da	 época,	 que	 haviam
estudado	 uma	 vasta	 quantidade	 de	 textos	 contemporâneos	 e	 antigos,	 e
chegado	a	conclusões	racionais	e	refletidas	sobre	como	as	sociedades	deveriam
ser	governadas.	Entretanto,	a	distância	entre	a	teoria	resultante	e	a	prática	real
do	governo	levou-os	a	imaginar	uma	sociedade	ideal	em	que	a	humanidade	se
aperfeiçoava	 de	 alguma	 forma.	 Jean-Jacques	 Rousseau	 é	 o	 modelo	 dessa
tendência,	 e	 sua	 influência	 é	 clara	 na	 cláusula	 6	 da	 Declaração:	 “A	 lei	 é	 a
expressão	 da	 vontade	 geral.	 Todo	 cidadão	 tem	 o	 direito	 de	 participar
pessoalmente	ou	por	meio	de	seu	representante,	de	sua	fundação.	Ela	deve	ser
a	mesma	para	todos,	seja	para	proteger	ou	punir.”
A	 Vontade	 Geral	 era	 o	 conceito	 central	 de	 uma	 boa	 sociedade	 para
Rousseau.	 Sua	 obra	 de	 1762	 O	 contrato	 social,	 abre	 com	 a	 famosa	 frase:	 “O
homem	nasce	livre,	mas	em	toda	parte	está	acorrentado.”	Com	isso,	ele	queria
dizer	que	 são	 as	 estruturas	da	 sociedade,	 em	particular	 a	 sociedade	 europeia
moderna,	que	aprisionam	a	humanidade,	e	que,	se	elas	fossem	eliminadas,	os
homens	poderiam	de	fato	viver	em	liberdade.	Mas	como	uma	sociedade	assim,
desimpedida,	 seria	 administrada?	 Rousseau	 acreditava	 que	 deve	 haver	 um
propósito	 comum	 na	 sociedade,	 a	 Vontade	 Geral,	 que	 é	 oriunda	 das
necessidades	 e	 desejos	 individuais	 do	 povo	 e	 que,	 no	 entanto,	 transcende	 a
individualidade.	 Essa	 entidade	 abstrata	 une	 as	 pessoas,	 formando	 uma
sociedade	coerente:	“Cada	um	de	nós	coloca	sua	pessoa	e	todo	o	seu	poder	em
comum	sob	a	direção	suprema	da	vontade	geral;	e,	no	grupo,	recebemos	cada
membro	como	uma	parte	indivisível	do	todo.”5
Essa	 é	 uma	 reminiscência	 da	 visão	 de	 Platão	 de	 uma	 sociedade	 que	 é
priorizada	em	relação	às	vidas	de	seu	povo,	mas	Rousseau	defendia	que	somos
nós,	não	a	nossa	posse	de	propriedades	ou	títulos,	que	nos	tornamos	dignos	de
votar	 e	 dirigir	 as	 questões	 políticas	 da	 nação.6	 Porém,	 como	 observou	 o
historiador	 político	 Jonathan	 Israel,	 a	 história	 da	 Revolução	 muitas	 vezes	 é
vista	pelo	prisma	das	ideias	de	Rousseau,	enquanto	a	miríade	de	vozes	radicais
que	influenciaram	o	impulso	inicial	para	a	liberdade	e	a	igualdade	é	ignorada.
Os	 últimos	 estágios	 da	 Revolução	 mostraram	 o	 triunfo	 do	 idealismo	 de
Rousseau,	mas	as	primeiras	fases	foram	inspiradas	pelas	vozes	pragmáticas	do
chamado	 “Iluminismo	 Radical”,	 incluindo	 Pierre	 Bayle,	 Montesquieu,
Voltaire,	Denis	Diderot	 e	 Baron	 d’Holbach,	 além	 de	 escritores	 estrangeiros,
como	John	Locke,	Thomas	Paine	e	Mary	Wollstonecraft.	As	opiniões	desses
pensadores	diferiam,	mas	estimularam	debates	que	questionavam	os	princípios
da	monarquia,	da	hierarquia	social,	da	discriminação	religiosa	e	da	autoridade
da	Igreja.	Além	disso,	conforme	escreveu	Tocqueville	sobre	a	Revolução:	“É
verdade	que	ela	pegou	o	mundo	de	surpresa	e,	no	entanto,	foi	o	resultado	de
um	 trabalho	muito	mais	 longo,	 o	 término	 súbito	 e	 violento	 de	 um	 trabalho
realizado	por	dez	gerações	de	homens.”7
O	 rei	 se	 recusou	 a	 aceitar	 a	 Declaração	 dos	 Direitos	 do	 Homem	 e	 os
decretos	de	agosto,	e	havia	sinais	de	que	oficiais	do	Exército	real	estavam	se
preparando	para	agir	contra	a	Assembleia	Nacional.	Mais	uma	vez,	o	povo	de
Paris	 interveio.	No	dia	 2	de	outubro,	um	grupo	de	 cerca	de	7	mil	mulheres
marchou	de	Paris	a	Versalhes,	acompanhadas	de	um	destacamento	da	Guarda
Nacional.	Elas	invadiram	a	assembleia	e	enviaram	uma	comitiva	ao	rei,	que	o
forçou	de	maneira	efetiva	a	aceitar	os	decretos	da	assembleia.	Não	contentes
com	essa	vitória,	as	mulheres	insistiram	para	que	a	família	real	e	a	Assembleia
Nacional	voltassem	a	Paris	 com	elas,	o	que	 fizeram,	 sem	reagir,	no	dia	6	de
outubro.	Esse	foi	um	acontecimento	de	extrema	importância	para	fortalecer	a
Revolução.	A	 assembleia	 fora	 salva	pela	 intervenção	das	 pessoas	 comuns	de
Paris	 —	 pessoas	 a	 quem	 havia	 sido	 negado	 o	 direito	 de	 votar	 em	 seus
representantes.	Para	os	parisienses,	essa	foi	a	sua	revolução.
Uma	 vez	 estabelecidos	 em	 Paris,	 os	 membros	 da	 assembleia	 iniciaram	 a
reconstrução	 do	 país	 com	 intensa	 energia.	 O	 Ancien	 Régime	 valia-se	 das
distinções	entre	grupos,	ao	passo	que,	depois	de	1789,	a	França	era	uma	nação
de	 cidadãos	 livres	unidos	por	um	propósito	 comum	—	 liberté,	 egalité,	 fraternité.
Protestantes	 e	 judeus	 receberam	os	mesmos	 direitos	 dos	 católicos.Todos	 os
níveis	 do	 governo,	 assim	 como	 o	 Judiciário,	 o	 Exército,	 a	 polícia	 e	 a	 Igreja,
foram	abertos	por	meio	da	proibição	de	privilégios	especiais	e	da	 introdução
da	 prestação	 de	 contas	 e	 das	 eleições.	 A	 assembleia	 criou	 31	 comitês,	 que
realizavam	seu	trabalho	com	vigor.	Oitenta	e	três	departamentos	substituíram
a	 antiga	 miscelânea	 das	 administrações	 provinciais,	 cada	 um	 planejado	 de
modo	que	a	capital	 regional	estivesse	a	 fácil	alcance	de	 todas	as	comunas.	O
status	especial	das	cidades	e	vilarejos	antigos	foi	reduzido	de	forma	intencional,
com	 a	 decisão	 de	 que	 os	 nomes	 dos	 departamentos	 seriam	 inspirados	 em
características	geográficas	—	o	departamento	que	incluía	Bordéus,	por	exemplo,
foi	 chamado	 de	 Gironda,	 nome	 de	 seu	 rio	 principal.	 Leis	 e	 decretos	 foram
traduzidos	para	os	dialetos	 locais,	e	o	sistema	 judiciário	 foi	unificado	a	partir
de	um	único	conjunto	de	leis;	os	crimes	capitais	diminuíram	drasticamente,	e
formas	 brutais	 de	 execução	 foram	 substituídas	 pela	 guilhotina.	 Juízes	 de	 paz
foram	 eleitos,	 e	 o	 acesso	 às	 cortes,	 facilitado,	 inclusive	 com	 a	 redução	 de
custos.	Prefeitos	e	vereadores	foram	sujeitos	a	eleições	(ainda	que	com	um	pré-
requisito	 de	 propriedades	 para	 os	 candidatos),	 enquanto	 os	 conselhos	 de
vilarejos	 ficaram	 livres	 do	 domínio	 de	 senhores	 feudais,	 recebendo	 a
responsabilidade	 de	 supervisionar	 a	 administração	 e	 as	 obras	 públicas.
Necessitando	 desesperadamente	 de	 fundos,	 a	 assembleia	 estatizou	 todas	 as
terras	 da	 Igreja	 e	 começou	 a	 leiloá-las.	 Embora	 tenha	 havido	 objeções	 a
algumas	dessas	medidas,	em	geral	elas	tiveram	imensa	aceitação	popular.
No	 entanto,	 a	 Assembleia	 Nacional	 também	 apresentou	 a	 proposta	 que,
mais	do	que	qualquer	outra,	dividiria	a	França.	A	Constituição	Civil	do	Clero
deu	ao	governo	autoridade	sobre	a	 Igreja	Católica.	Os	párocos	deveriam	ser
eleitos	 e,	 segundo	uma	medida	 aprovada	 em	novembro	 de	 1790,	 tinham	de
jurar	lealdade	ao	governo.	Apenas	cerca	de	metade	fez	o	juramento,	e	amplas
variações	regionais	revelaram	uma	França	dividida,	com	especial	resistência	do
oeste	 e	 sudoeste.	 Ali,	 a	 Igreja	 era	 o	 centro	 da	 vida	 comunitária,	 o	 pároco
geralmente	 um	 homem	 do	 local,	 e	 as	 reuniões	 informais	 que	 aconteciam
depois	 da	missa	 eram	usadas	 para	 resolver	 questões	 da	 comunidade.	Para	 o
governo,	um	assunto	importante	estava	em	jogo,	pois	não	seria	permitido	que
posições	 privilegiadas	 existissem	 numa	 sociedade	 igualitária.	 Não	 poderia
permitir,	 por	 exemplo,	 que	 um	 sínodo	 da	 igreja	 tomasse	 decisões	 que
afetassem	 as	 políticas	 públicas.	 Com	 o	mesmo	 espírito,	 o	 governo	 aboliu	 as
corporações	de	ofício	—	por	acreditar	que	a	participação	iria	conferir	vantagens
que	 não	 estavam	 abertas	 aos	 outros	 —	 e,	 em	 junho	 de	 1791,	 todas	 as
associações	 de	 empregadores	 e	 empregados	 foram	 proibidas.	 Ao	 mesmo
tempo,	clubes	políticos	brotaram	por	toda	a	França	—	sociedades	 jacobinas,	o
Clube	Cordelier,	em	Paris,	Amigos	da	Constituição	e	sociedades	fraternas	—,
todos	 em	 vigorosa	 correspondência	 mútua	 sobre	 as	 questões	 urgentes	 do
momento.
Dois	anos	depois,	a	Revolução	transformara	a	sociedade	de	acordo	com	a
visão	da	assembleia	e	os	desejos	do	povo	da	França,	mas	o	clima	no	país	ficou
sombrio	em	junho	de	1791,	quando	o	rei	e	a	rainha,	temendo	medidas	ainda
mais	 radicais	 e	 profundamente	 perturbados	 pela	 tomada	 da	 Igreja,	 tentaram
fugir	do	país	disfarçados.	Foram	reconhecidos	e	detidos	em	Varennes,	antes	da
humilhação	de	serem	levados	de	volta	a	Paris.	Embora	o	status	do	rei	estivesse
aparentemente	 intacto,	 esse	 episódio	 foi	 um	 divisor	 de	 águas:	 Luís	 era	 um
prisioneiro	de	fato	em	seu	próprio	país,	com	a	real	perspectiva	de	ser	socorrido
por	potências	monarquistas.
Em	setembro	de	1791,	uma	nova	Constituição	foi	aprovada	pela	assembleia
e	pelo	rei.	É	notável,	à	luz	do	que	estava	para	acontecer,	o	caráter	conservador
do	 documento.	 Embora	 a	 assembleia	 permanecesse	 um	 órgão	 legislativo,	 o
Executivo	seria	formado	pelo	rei	e	seus	ministros,	com	o	poder	de	veto	do	rei
sobre	 a	 legislação.	 O	 Judiciário	 tornou-se	 independente	 tanto	 do	 Executivo
como	do	Legislativo,	e	o	direito	de	voto	ficou	restrito	aos	cidadãos	ativos.
Embora	 todos	 concordassem	 que,	 a	 princípio,	 todas	 as	 pessoas	 —	 isto	 é,
todos	 os	 homens:	 as	 mulheres	 eram	 excluídas	 de	 quase	 todos	 os	 direitos
conferidos	 aos	 cidadãos	 —	 devessem	 ter	 o	 direito	 de	 voto,	 a	 assembleia
restringiu	 o	 direito	 àqueles	 que	 ela	 julgava	 serem	 capazes	 de	 votar	 com
responsabilidade.	“Cidadãos	ativos”	eram	os	homens	com	mais	de	25	anos	que
pagavam	 o	 correspondente	 a	 três	 dias	 de	 salário	 em	 impostos	 anuais,	 não
estivessem	falidos	e	não	fossem	criados,	vivessem	no	mesmo	colégio	eleitoral
há	um	ano	e	estivessem	alistados	na	Guarda	Nacional.	Eles	deviam	escolher
representantes	 que,	 por	 sua	 vez,	 elegeriam	os	membros	 da	 nova	Assembleia
Legislativa,	 que	 substituiria	 a	 Assembleia	 Nacional.	 A	Constituição	 de	 1791
exigia	 que	 os	 representantes	 fossem	 donos	 ou	 arrendatários	 de	 terras	 que
rendessem	o	equivalente	a	pelo	menos	cem	dias	de	salário.	A	Constituição	era,
portanto,	muito	mais	 restritiva	 nos	 requisitos	 para	 representantes	 do	 que	 as
regras	 para	 a	 eleição	 do	 Terceiro	 Estado	 em	 março	 de	 1789.	 De	 um	 total
estimado	 de	 7	 milhões	 de	 adultos	 do	 sexo	masculino,	 cerca	 de	 4,3	 milhões
eram	 classificados	 como	 cidadãos	 ativos,	 e	 apenas	 50	 mil	 como	 potenciais
representantes.	 Isso	de	uma	população	 total	 (incluindo	menores	de	 idade)	de
cerca	 de	 28	 milhões.	 O	 jornalista	 e	 político	 parisiense	 Camille	 Desmoulins
protestou	 contra	 o	 uso	 da	 expressão	 “cidadão	 ativo”,	 argumentando	 que
alguém	que	arriscava	a	vida	para	abrir	os	portões	da	Bastilha	é	mais	ativo	que
um	homem	que	possui	uma	grande	propriedade	e	não	faz	nada.
A	pobreza	generalizada	significava	que,	dependendo	do	distrito,	apenas	de
10	 a	 20%	 da	 população	 masculina	 estavam	 qualificados	 para	 votar.	 A
Constituição	de	1791	decretava	que	as	eleições	 seriam	realizadas	a	cada	dois
anos.	 Nenhum	 representante	 poderia	 ser	 eleito	 por	 mais	 de	 dois	 mandatos
consecutivos,	 embora	 fosse	 permitido	 candidatar-se	 mais	 uma	 vez	 após	 um
afastamento.	 Num	 ato	 extraordinário,	 a	 Assembleia	 Nacional	 aprovou	 uma
resolução	 proposta	 por	 Maximilien	 Robespierre,	 representante	 de	 Arras,
proibindo	seus	representantes	de	se	candidatarem	para	a	primeira	Assembleia
Legislativa.	 Essa	 foi	 uma	 decisão	 fatal,	 que	 privou	 a	 nova	 assembleia	 da
experiência	 obtida	 com	 muito	 esforço	 pelos	 representantes	 da	 assembleia
Nacional,	 ao	mesmo	 tempo	 que	 transformava	 os	 políticos	 ambiciosos	 dentre
eles	num	foco	alternativo	de	poder.
As	eleições	 foram	realizadas	em	setembro	de	1791.	Os	745	 representantes
que	foram	eleitos	eram	todos	homens	ricos,	a	maioria,	de	propriedades,	não	do
comércio,	 muitos	 deles	 advogados.	 Desde	 o	 verão	 de	 1789,	 muitos	 nobres
haviam	deixado	a	França,	e,	em	novembro	de	1791,	a	Assembleia	Legislativa
aprovou	uma	 lei	 solicitando	que	os	 chamados	 émigrés	 retornassem	ou	 seriam
condenados	à	morte.	O	rei,	de	modo	previsível,	vetou	a	medida,	aumentando
a	 distância	 entre	 monarca	 e	 assembleia.	 Em	 fevereiro	 de	 1792,	 a	 Áustria,
liderada	pelo	cunhado	de	Luís,	o	imperador	Leopoldo	II,	formou	uma	aliança
com	a	Prússia,	com	a	intenção	de	invadir	a	França	e	libertar	o	rei.	Em	abril,	a
França	 estava	 em	 guerra	 contra	 a	 Áustria,	 e,	 ao	 fim	 de	 julho,	 o	 Exército
prussiano	invadiu	Paris,	e	seu	comandante	prometeu	massacrar	os	habitantes	a
menos	 que	 o	 rei	 e	 a	 rainha	 fossem	 liberados	 ilesos.	 O	 resultado	 viria	 a
radicalizar	ainda	mais	a	população	de	Paris.
A	essa	altura,	alguns	membros	da	Assembleia	Nacional	dissolvida	pareciam
lamentar	sua	decisãode	entregar	o	poder	a	seus	sucessores	e	buscaram	outras
vias	 para	 exercerem	 sua	 influência.	 Nessa	 fase	 crucial	 da	 Revolução,	 a
Comuna	de	Paris	 começou	 a	 ganhar	 autoridade.	Ela	 havia	 sido	 estabelecida
em	 1789	 como	 o	 conselho	 da	 cidade,	 com	 Jean-Sylvain	 Bailly	 como	 seu
primeiro	prefeito	eleito.	Bailly	fora	presidente	do	Terceiro	Estado	e	liderara	os
representantes	no	Juramento	da	Quadra	de	Tênis,	mas,	quando,	em	julho	de
1791,	 ele	 ordenou	 que	 a	 Guarda	 Nacional	 usasse	 a	 força	 para	 dispersar	 as
multidões	 no	Campo	 de	Marte,	 tanto	 o	 prefeito	 como	 a	Comuna	 perderam
apoio	 popular.	 Em	 9	 de	 agosto	 de	 1792,	 um	 grupo	 de	 radicais	 do	 clube
jacobino,	incluindo	Robespierre,	tomou	o	controle	efetivo	do	Hôtel	de	Ville,	e
declarou-se	a	Comuna	Revolucionária.	No	dia	seguinte,	uma	multidão	invadiu
o	Palácio	das	Tulherias	e	matou	os	guardas	suíços	do	rei,	 forçando	a	 família
real	a	buscar	a	proteção	da	Assembleia	Legislativa.	A	Comuna,	 incitada	pelo
êxito	 e	 agora	 no	 controle	 efetivo	 de	 Paris,	 recusou-se	 a	 reconhecer	 a
autoridade	 da	 assembleia	 em	 sua	 cidade,	 cerrou	 os	 portões	 e	 começou	 a
publicar	listas	de	“inimigos	da	Revolução”.	Em	reconhecimento	ao	fato	de	que
o	 rei	havia	 sido	deposto,	 a	Assembleia	Legislativa	 concordou	que	uma	nova
entidade,	 a	 Convenção	 Nacional,	 deveria	 ser	 eleita	 para	 elaborar	 uma
Constituição.
Enquanto	os	acontecimentos	seguiam	rapidamente	em	Paris,	o	restante	do
país,	 pelo	menos	 em	grande	parte,	 dava	 apoio	 total	 à	Revolução.	O	 escritor
inglês	Richard	Twiss	descreveu	o	que	viu	quando	viajava	pelo	norte	da	França
em	1792:
Em	todas	as	cidades	entre	Calais	e	Paris,	uma	árvore	adulta	(geralmente	um	álamo)	foi	plantada	na
praça	do	mercado	[...]	no	alto	da	árvore	ou	de	um	poste	há	uma	touca	vermelha	de	 lã	ou	algodão,
chamada	 de	 Barrete	 da	 Liberdade,	 com	 flâmulas	 em	 torno	 do	 poste,	 ou	 fitas	 vermelhas,	 azuis	 e
brancas	[...].	Todos	os	brasões	que	antes	decoravam	os	portões	dos	Hôtels	são	retirados	[...].	Nenhum
uniforme	é	usado	pelos	criados;	esse	distintivo	da	escravidão	também	é	abolido.8
O	povo	de	Paris	salvara	a	Revolução	em	1789;	agora	haviam	se	transformado
no	fator	de	controle	de	sua	política.	Os	jacobinos	da	Comuna	obtiveram	poder
ao	 se	 aliarem	 aos	 desejos	 do	 povo	 parisiense	 —	 um	 impulso	 aparentemente
democrático,	 mas	 de	 efeito	 tóxico.	 A	 Assembleia	 Legislativa	 com	 seus
membros	 inexperientes	 estava,	 em	 agosto	 de	 1792,	 à	 beira	 do	 colapso.	 Os
padres	 que	 haviam	 se	 recusado	 a	 prestar	 juramento	 de	 lealdade	 foram
suspensos	e	estavam	presos	por	traição.	Entre	2	e	6	de	setembro,	com	Paris	em
pânico	devido	à	aproximação	do	Exército	prussiano,	240	padres	e	cerca	de	mil
outros	 prisioneiros	 foram	 executados,	 enquanto	 muitos	 membros	 da
Assembleia	 Legislativa,	 acreditando	 correr	 perigo,	 fugiram	 da	 cidade.	 O
romancista	Restif	de	la	Bretonne	testemunhou	uma	execução:
Vi	uma	mulher	surgir,	pálida	como	suas	roupas	de	baixo	[...].	Eles	a	fizeram	subir	um	amontoado	de
cadáveres.	 Mandaram-na	 gritar	 “Vida	 longa	 à	 nação”.	 Ela	 se	 recusou	 com	 desdém.	 Então	 um
assassino	agarrou-a,	arrancou	seu	vestido	e	abriu	sua	barriga.	Ela	caiu,	e	os	outros	acabaram	com	ela.
Nunca	 um	 horror	 assim	 havia	 se	 apresentado	 à	 minha	 imaginação.	 Tentei	 fugir;	 minhas	 pernas
fraquejaram.9
Finalmente,	 no	 dia	 19	 de	 setembro	 de	 1792,	 a	 Assembleia	 Legislativa
dissolveu-se	 e	 deu	 lugar	 à	 recém-eleita	 Convenção	 Nacional.	 É	 possível
defender	 que,	 até	 meados	 de	 1792,	 a	 Revolução	 presenciara	 uma	 transição
relativamente	tranquila	de	um	regime	autocrático	a	um	governo	constitucional
baseado	em	princípios	liberais.	Essa	visão	é	sustentada	pela	medida	aprovada
pela	Assembleia	Legislativa	 em	agosto	de	1792,	que	 concedeu,	pela	primeira
vez,	 direito	 de	 voto	 a	 todos	 os	 homens	 acima	de	 21	 anos,	 excluindo	 apenas
criados.	 Parecia	 que	 uma	 democracia	 fora	 criada	 no	 espaço
extraordinariamente	curto	de	três	anos.	Porém,	uma	base	de	poder	alternativa
passara	a	existir	na	 forma	da	Comuna	Revolucionária,	enquanto	os	próprios
revolucionários	dividiam-se	 cada	vez	mais	 em	 facções.	A	principal	divisão	 se
deu	entre	girondinos	e	jacobinos.	No	início,	foi	uma	separação	pessoal	e	tribal
tanto	quanto	por	ideologia	política,	em	que	cada	facção	era	leal	a	certos	líderes
—	 Brissot	 e	 Robespierre	 em	 particular.	 De	 fato,	 os	 girondinos	 começaram
como	membros	do	clube	jacobino,	mas,	à	medida	que	a	Revolução	prosseguia,
os	 jacobinos	distinguiram-se	por	uma	postura	mais	radical,	querendo	destruir
tudo	que	havia	para	manter	a	pureza	da	nova	ordem.
Para	a	história	da	democracia,	o	ano	de	1792	foi	um	divisor	de	águas.	Até
então,	a	Revolução	fora	controlada	pelos	advogados	e	comerciantes	burgueses
que	participavam	da	assembleia,	ainda	que	com	apoio	entusiástico	das	classes
baixas.	Depois,	 conforme	mostram	 os	 eventos	 de	 1792,	 os	 trabalhadores	 de
Paris	—	que	se	tornaram	conhecidos	como	os	sans-culottes	—	ficaram	impacientes
com	 o	 governo	 representativo	 e	 com	 o	 tempo	 levado	 para	 que	 as	 medidas
entrassem	 em	 vigor.	 Eles	 passaram	 a	 exigir	 uma	 democracia	 direta,	 em	 que
cada	pessoa	expressasse	sua	opinião	nos	fóruns	do	poder,	o	que	ia	de	encontro
à	democracia	representativa	dos	burgueses.	Rousseau	havia	sido	um	crítico	do
modelo	 parlamentar	 britânico:	 “Se	 os	 ingleses	 pensam	 que	 são	 livres,
enganam-se;	 são	 livres	durante	a	eleição	dos	membros	do	Parlamento;	assim
que	eles	 são	eleitos,	 as	pessoas	 são	escravas:	não	 contam	mais	para	nada.”10
Os	 sans-culottes	 podem	 não	 ter	 sido	 estudantes	 de	 Rousseau,	 mas	 os	 líderes
jacobinos	 que	 buscavam	 canalizar	 o	 poder	 do	 povo	 parisiense	 sem	 dúvida
eram.
As	 eleições	 para	 a	Convenção	Nacional	 foram	 as	 primeiras	 realizadas	 no
país	 por	 sufrágio	 universal	 masculino	 desde	 a	 Atenas	 antiga.	 Não	 foi
surpreendente,	 dada	 a	 ameaça	 à	 Revolução	 e	 à	 reeleição	 de	 muitos
representantes	da	primeira	Assembleia	Nacional,	que	a	Convenção	fosse	uma
entidade	mais	 radical	que	sua	predecessora.	O	povo	 francês	 foi	encorajado	a
acreditar	 que	 seus	 representantes	 eram	 emissários,	 eleitos	 para	 obedecer	 a
ordens.	 Cartas	 a	 membros	 da	 Convenção	 muitas	 vezes	 terminavam	 com	 a
frase	“ton	egal	en	droit”	—	“seu	igual	sob	a	 lei”.	Foram	aprovadas	medidas	que
permitiam	 aos	 eleitores	 cassar	 o	 mandato	 de	 qualquer	 representante	 que
deixasse	 de	 seguir	 a	 instrução	 recebida	 —	 um	 claro	 elemento	 de	 democracia
direta	 introduzido	 na	 tentativa	 de	 superar	 as	 desvantagens	 identificadas	 na
democracia	representativa.
Entre	 os	 clubes	 políticos	 de	 Paris,	 os	 jacobinos	 ganharam	 o	 apoio	 das
multidões	da	capital	e	tomaram	o	controle	efetivo	da	Convenção	Nacional.	Em
21	 de	 setembro	 de	 1792,	 a	 Convenção	 declarou	 que	 a	 França	 era	 uma
república.	Mas	não	havia	um	histórico	de	movimento	republicano	na	França.
Em	1789,	quase	todos	os	políticos	queriam	uma	monarquia	constitucional,	e,
até	 a	 proclamação	 da	 república,	 a	 França	 era	 um	 reino	 com	 um	 monarca
deposto.	Agora	o	poder	do	monarca	estava	nas	mãos	da	Convenção	Nacional,
que	se	tornou	a	governante	absoluta	sem	nenhuma	outra	instituição	capaz	de
desafiar	 ou	 limitar	 sua	 autoridade	 ou	 suas	 ações.	 A	 Convenção,	 que
permaneceu	 em	 sessão	 durante	 todos	 os	 anos	 cataclísmicos	 da	 Revolução,
continuou	 sendo	 tanto	 legislativa	 como	 executiva.	 A	 anulação	 de	 qualquer
separação	de	poder	(conceito	delineado	por	Montesquieu)	estava	completa	em
abril	de	1793,	quando	a	Convenção	nomeou	o	Comitê	de	Segurança	Pública	e
o	Tribunal	Revolucionário,	 que	 se	 tornaram,	 respectivamente,	 o	 gabinete	de
fato	e	a	Suprema	Corte	da	terra.	E,	dentro	da	própria	Convenção,	a	oposição
ao	grupo	governante	foi	suprimida:	em	parte	por	ideologia	—	a	crença	de	que
havia	uma	forma	única	e	inquestionável	de	conduzir	a	Revolução—	e	em	parte
por	 causa	 das	 constantes	 lutas	 pelo	 poder,	 o	 conceito	 de	 oposição	 leal	 não
chegou	a	se	desenvolver.
Em	setembro	de	1792,	o	Exército	prussiano,	invasor,	foi	cercado	na	Batalha
de	Valmy,	 em	grande	parte	por	uma	 força	de	voluntários	 inexperientes.	Em
dezembro,	com	a	nação	ainda	sob	a	ameaça	de	inimigos	externos	e	internos,	o
rei	foi	levado	diante	da	Convenção	para	responder	à	acusação	de	alta	traição	e
crimes	 contra	 o	 Estado.	O	 líder	 dos	 jacobinos,	 Saint-Just,	 declarou:	 “A	meu
ver,	 não	há	meio-termo:	 esse	 homem	 tem	de	 reinar	 ou	morrer!	Ele	 oprimiu
uma	nação	livre;	declarou-se	seu	inimigo;	abusou	das	 leis:	ele	tem	de	morrer
para	garantir	a	tranquilidade	do	povo,	uma	vez	que	tinha	em	mente	destruir	o
povo	para	assegurar	a	sua.”11
O	rei	 foi	considerado	culpado	por	 todos	os	693	representantes.	A	maioria
votou	pela	pena	de	morte	e,	em	21	de	janeiro	de	1793,	a	nação	mais	poderosa
da	 Europa	 executou	 seu	 monarca.	 Entretanto,	 em	 alguns	 meses,	 a	 nova
república	 teve	 de	 lidar	 com	 uma	 guerra	 civil	 e	 com	 a	 constante	 ameaça	 de
invasão.	Uma	 rebelião	 em	massa	 na	 região	 de	Vendée,	 no	 oeste	 da	 França,
combinou-se	com	rebeliões	em	vilarejos	e	cidades,	incluindo	Lyon,	a	segunda
maior	 cidade	 do	 país.	 Algumas	 rebeliões	 eram	 monarquistas,	 outras	 eram
contra	 a	 supressão	 do	 cristianismo,	 outras	 ainda	 eram	 lideradas	 pelos
girondinos,	 que	 se	opunham	à	 tomada	do	poder	pelos	 jacobinos.	A	 resposta
jacobina	 em	Paris	 foi	prender	deputados	girondinos	na	Convenção	Nacional
(21	seriam	executados	em	outubro)	e	tomar	o	Comitê	de	Segurança	Pública.
Os	jacobinos	estavam	no	poder	quando	a	França	enfrentava	sua	crise	mais
grave.	Apesar	da	vitória	em	Valmy,	a	ameaça	de	invasão	ainda	era	grande.	No
verão	 de	 1793,	 o	 regime	 instituiu	 o	 famoso	 levée	 en	masse,	 recrutando	 para	 o
Exército	 todos	 os	 cidadãos	 qualificados.	O	 resultado	 foi	 a	 transformação	 da
França	 numa	 nação	 militarizada,	 voltada	 para	 a	 guerra	 total.	 Com	 a
sobrevivência	da	nova	nação	em	jogo,	a	guerra	contra	a	Prússia,	a	Áustria	e	os
contrarrevolucionários	seria	diferente	de	tudo	o	que	acontecera	antes.	Regimes
europeus	 anteriores	 haviam	 sido	 cautelosos	 quanto	 a	 Exércitos	 em	 massa,
vendo	a	possibilidade	de	 seus	 súditos	pegarem	em	armas	como	uma	ameaça
potencial.	 Os	 Exércitos	 geralmente	 eram	 pequenos,	 comandados	 por
aristocratas	e	reforçados	por	mercenários.	Os	líderes	revolucionários	da	França
tinham	 a	 visão	 oposta	 e	 contaram	 com	 os	 cidadãos	 como	 interventores	 da
nação	 soberana.	 O	 povo	 francês	 respondeu	 à	 causa	 com	 enorme	 vigor	 e
comprometimento,	e	os	resultados	foram	espantosos	e	abrangentes.	O	Exército
francês	 já	era	uma	organização	altamente	profissional	e	meritocrática.	O	 levée
colocou	 à	 sua	 disposição	 os	 recursos	 de	 uma	 imensa	 nação,	 junto	 com	uma
população	 extremamente	 motivada,	 e	 o	 número	 de	 homens	 armados
aumentou	rápido	de	200	mil	para	900	mil.
O	povo	da	França	não	 estava	 lutando	para	 conquistar	 território	nem	por
influência	 política	 internacional.	 Lutava,	 em	 primeiro	 lugar,	 para	 salvar	 seu
país	 e,	 depois,	 para	 livrar	 da	 tirania	 o	 povo	 de	 outras	 nações.	 Assim,	 sua
guerra	 era,	 em	princípio,	 uma	batalha	 ideológica.	Durante	os	dezenove	 anos
seguintes,	 o	 Exército	 francês	 permaneceu	 praticamente	 invencível.	 Enquanto
os	 Exércitos	 anteriores	 tendiam	 a	 ser	 táticos	 em	 batalha,	 preservando	 suas
tropas	e	tentando	esquivar-se	do	inimigo,	as	forças	francesas	dirigiam-se	direto
ao	 centro	 das	 forças	 adversárias,	 usando	 o	 peso	 do	 número	 e	 um	 fogo	 de
artilharia	 devastador	 para	 arrasá-las	 no	 campo	 de	 batalha.	 Os	 eventos
mostraram	que	o	sonho	de	muitos	pensadores	iluministas,	o	de	que	as	nações
governadas	 com	 o	 consentimento	 do	 povo	 poderiam	 viver	 em	 paz	 e
tranquilidade,	era	uma	ilusão	ingênua.	Elas	também	entrariam	em	guerra,	não
apenas	para	sobreviver,	mas	também	para	levar	a	liberdade	a	seus	vizinhos.
No	 dia	 24	 de	 junho	 de	 1793,	 os	 membros	 da	 Convenção	 Nacional
aprovaram	a	Constituição	que	haviam	sido	eleitos	para	promulgar.	Todos	os
homens,	 incluindo	 residentes	 estrangeiros,	 teriam	direito	 de	 voto,	 desde	 que
morassem	no	colégio	eleitoral	por	pelo	menos	seis	meses.	Os	colégios	eleitorais
tinham	um	número	próximo	de	habitantes,	e	um	único	deputado	era	eleito	de
forma	 direta.	 A	 nova	 Assembleia	 Legislativa	 seria	 eleita	 todo	 ano.	 Essa
Constituição,	 embora	 ratificada	pela	Convenção,	 foi	 surpreendida	por	 certos
eventos	 e	 não	 chegou	 a	 entrar	 em	 vigor	 (ainda	 que	 suas	 regras	 eleitorais
tenham	sido	usadas	na	França	durante	a	maior	parte	do	período	entre	1852	e
1940).
Enquanto	 isso,	 em	 Paris,	 a	 política	 da	 Revolução	 entrava	 numa	 fase
sombria.	Um	grupo	paranoico	de	homens	no	poder	com	um	profundo	senso
moral,	a	aplicação	rigorosa	da	razão	ao	mundo	confuso	da	política	e	a	avidez
dos	 revolucionários	 pela	destruição	de	qualquer	 inimigo	que	 fosse	percebido
contribuíram	 para	 o	 conflito	 fatal,	 em	 que	 uma	 sequência	 interminável	 de
pessoas	 foi	 levada	a	um	 tribunal	 improvisado	para	depois	 serem	decapitadas
na	Place	de	la	Révolution.	O	Terror,	que	durou	de	setembro	de	1793	a	julho
de	 1794,	 ofuscou	 as	 conquistas	 da	 Revolução	 —	 as	 reformas	 agrárias,	 o
imposto	progressivo,	o	sistema	de	pensões,	o	combate	à	fome,	os	fundos	para	a
educação	e,	é	claro,	o	direito	de	voto	masculino	universal.	Os	jacobinos	podem
ter	 acreditado	 que	 um	 período	 de	 ditadura	 era	 necessário	 numa	 emergência
nacional,	mas	 suas	 ações	 claramente	 contradizem	 o	 documento	 fundamental
da	revolução,	a	Declaração	dos	Direitos	do	Homem.	Como	muitos	que	viriam
a	seguir	seus	passos	nos	duzentos	anos	seguintes,	eles	acreditavam	conhecer	o
caminho	verdadeiro	e	que	as	injustiças	cometidas	contra	indivíduos	eram	um
preço	racional	a	ser	pago	pelo	bem	da	humanidade.
Na	 primavera	 de	 1794,	 a	 Revolução	 já	 perdia	 qualquer	 sentido	 que	 não
fosse	 a	própria	preservação.	Líderes	 revolucionários	notáveis,	 como	Georges
Danton,	Olympe	 de	Gouge	 (importante	 defensor	 do	 direito	 das	mulheres)	 e
Camille	 Desmoulins,	 foram	 guilhotinados.	 Intelectuais	 e	 artistas,	 incluindo
Antoine	Lavoisier	e	André	Chenier,	foram	executados	no	verão.	A	Revolução
era	 como	 uma	 porca	 comendo	 a	 própria	 ninhada.	 Em	 junho,	 o	 tribunal
revolucionário	 passou	 a	 prescindir	 de	 testemunhas,	 e	 todos	 os	 dias	 os
prisioneiros	 faziam	 uma	 aparição	 superficial	 diante	 de	 um	 grupo	 de	 jurados
antes	 de	 serem	 levados	 à	 Place	 de	 la	 Révolution.	 Não	 se	 tratava	 de	 uma
batalha	de	esquerda	contra	direita	(termos	inventados	durante	a	Revolução):	à
medida	que	o	povo	de	Paris	fazia	pressão	por	medidas	ainda	mais	radicais,	os
jacobinos	 voltavam-se	 contra	 seus	 antigos	 defensores,	 prendendo	 tanto
“extremistas”	 como	 “indulgentes”.	 Sociedades	 e	 clubes	 políticos	 fecharam;
acabara	a	fase	da	democracia	popular,	em	que	os	sans-culottes	ditavam	condições
a	seus	líderes.12
Ninguém	 parecia	 saber	 mais	 o	 propósito	 da	 Revolução.	 Maximilien
Robespierre,	que	surgiu	como	seu	líder	efetivo	em	1793,	refletiu	intensamente
sobre	a	questão	durante	os	meses	do	Terror.	Em	fevereiro	de	1794,	ele	 foi	à
Convenção	para	declarar	suas	ideias:
Qual	é	o	fim	que	nos	esforçamos	para	alcançar?	O	usufruto	tranquilo	da	liberdade	e	da	igualdade;	o
reino	da	 justiça	 eterna,	 cujas	 leis	 estão	 gravadas,	 não	 em	mármore	 ou	pedra,	mas	 nos	 corações	 de
todos	 os	 homens...	 Que	 tipo	 de	 governo	 pode	 realizar	 esses	 prodígios?	 Somente	 o	 governo
republicano	ou	democrático:	as	duas	palavras	são	sinônimas.
Mas	 essa	 democracia	 não	 deveria	 envolver	 a	 participação	 do	 povo;	 para
Robespierre,	em	vez	disso,	ela	era	um	processo	semimístico:
Qual	 é,	 então,	 o	princípio	 fundamental	do	governo	democrático	ou	popular,	 em	outras	palavras,	 a
base	essencial	que	o	sustentae	o	 faz	 funcionar?	É	a	virtude	 [...]	que	não	é	nada	senão	o	amor	pela
terra	de	nascimento	e	suas	leis	[...]	esse	sentimento	sublime	pressupõe	uma	preferência	pelo	interesse
público	 acima	 de	 todos	 os	 interesses	 particulares	 [...]	 No	 sistema	 da	 Revolução	 Francesa,	 o	 que	 é
imoral	é	insensato,	e	o	que	corrompe	é	contrarrevolucionário.13
Essa	combinação	fatal	de	política	e	moralidade	foi	o	que	ocasionou	o	Terror.
Tornou-se	 impossível	 discordar	 de	 adversários	 políticos	 sem,	 para	 todos	 os
propósitos,	 acusá-los	 de	 serem	 traidores.	 Robespierre	 e	 seus	 colegas
dispensaram	 de	 forma	 implícita	 a	 análise	 mal-afamada,	 porém	 muito	 mais
prudente	(baseada	em	anos	de	experiência	no	governo),	de	Maquiavel	de	que
o	 propósito	 moral	 e	 a	 política	 deveriam	 permanecer	 bem	 separados.	 Eles
preferiram	Rousseau	a	Maquiavel,	Platão	a	Demócrito.
O	Terror	acabou	quando	o	Exército	da	coalizão	estrangeira	 foi	derrotado
em	junho	de	1794:	a	nação	não	mais	corria	perigo	mortal.	Um	golpe	em	27	de
julho	 levou	 à	 prisão	 de	Robespierre.	Ele	 tentou	 suicidar-se,	mas,	 juntamente
com	 dezesseis	 colegas	 jacobinos,	 foi	 executado	 no	 dia	 seguinte.	 Durante	 o
restante	 do	 ano,	 os	 jacobinos	 foram	 perseguidos	 e	 levados	 à	 guilhotina.
Historiadores	 observaram	 que	 a	 perda	 de	 vidas	 nos	 meses	 do	 Terror	 —
estimativas	variam	de	16	mil	a	30	mil	—	foi	muito	menor	do	que	na	supressão
brutal	da	 contrarrevolução	 em	Vendée,	 em	que	morreram	de	120	mil	 a	450
mil	 pessoas.	 No	 entanto,	 o	 Terror	 permanece	 um	 símbolo	 poderoso	 da
Revolução,	 em	 razão	 de	 sua	 violência	 aparentemente	 viciante	 e	 ao	 terrível
alerta	de	que	as	melhores	 intenções	—	os	maravilhosos	conceitos	abstratos	de
liberté,	egalité	e	fraternité	—	podem	gerar	as	piores	consequências.
A	 Convenção	Nacional	 afastou-se	 de	 suas	 tendências	 democráticas.	 Uma
nova	 Constituição	 introduzida	 em	 1795	 apresentava	 duas	 câmaras:	 o
Conselho	dos	Antigos,	com	250	postos,	e	o	Conselho	dos	Quinhentos	(um	eco
da	Atenas	antiga).	A	idade	mínima	para	os	representantes	era	de	40	e	30	anos,
respectivamente,	 com	 um	 pré-requisito	 de	 residência	 de	 quinze	 e	 dez	 anos,
além	 de	 qualificações	 por	 propriedades.	 As	 eleições	 diretas	 acabaram,	 e	 o
eleitorado	 reduziu-se	 de	 7	 milhões	 para	 cerca	 de	 100	 mil.	 Ainda	 assim,	 as
eleições	 trouxeram	 deputados	 que	 eram	 contra	 o	 Diretório	 governante	 de
cinco	 homens,	 o	 que	 anulou	 os	 resultados	 em	muitos	 dos	 colégios	 eleitorais
tanto	 em	 1798	 como	 em	 1799.	 Em	 novembro	 de	 1799,	 outro	 golpe	 acabou
com	esse	sistema,	e	Napoleão	Bonaparte,	o	general	mais	conhecido	da	França,
assumiu	o	poder.	Napoleão	apresentou	novas	Constituições	em	1799	e	1802;
as	 duas	 introduziam	 estruturas	 complexas	 de	 votação	 que	 resultaram	 numa
lista	 da	 qual	 ele	 poderia	 escolher	membros	 adequados	 para	 um	Senado,	 um
corpo	 tribunal	 e	 legislativo.	 Como	 seu	 modelo,	 Augusto	 César,	 Bonaparte
manteve	 a	 estrutura	 de	 uma	 Constituição	 representativa	 e	 simplesmente
controlava	todos	os	cargos	significativos.	Em	novembro	de	1804,	após	grandes
êxitos	em	campanhas	militares	estrangeiras,	Napoleão	declarou-se	imperador.
O	movimento	em	direção	ao	direito	de	voto	pleno	para	o	sexo	masculino	e	à
democracia	foi,	portanto,	 interrompido,	mas	a	Constituição	revolucionária	de
1793	 deu	 aos	 futuros	 regimes	 franceses	 um	 caminho	 a	 seguir.	 Apesar	 dos
resultados	 caóticos,	 a	Revolução	 efetivara	 uma	 transição	 de	 uma	monarquia
absoluta	 para	 um	 sistema	 político	 que	 poderia	 corresponder	 à	 vontade
popular.	 A	 educação	 pública	 passou	 a	 ser	 vista	 como	 um	 direito	 básico	 do
cidadão,	 assim	 como	 um	 elemento	 importante	 de	 uma	 democracia	 em
funcionamento.	As	novas	 estruturas	 administrativas	da	Revolução	 formaram
um	modelo	 que	 seria	 seguido	 pelo	mundo.	O	Estado	moderno,	 baseado	 na
unidade	étnica,	numa	cultura	coerente	e	na	combinação	entre	um	centro	forte
e	autonomia	local,	foi	estruturado	pela	primeira	vez	na	França.
Qual	 foi,	 no	 entanto,	 o	 êxito	 da	Revolução	 num	dos	 elementos-chave	 da
democracia	—	fazer	com	que	o	povo	vote?	Os	registros	de	votos	nas	eleições
no	 período	 revolucionário	 são	 incompletos,	 mas	 os	 que	 sobreviveram	 são
reveladores.	Na	eleição	de	1791,	Paris	tinha	aproximadamente	80	mil	eleitores
qualificados,	 dos	 quais	 17	 mil	 votaram.	 Elegeram	 946	 representantes	 para
escolherem	 seus	 deputados	 —	 apesar	 de	 terem	 se	 candidatado,	 somente	 200
dos	946	votaram.	Nas	eleições	para	a	Convenção	Nacional,	em	1792,	de	um
eleitorado	total	de	7	milhões,	apenas	700	mil	votaram.	Qual	a	razão	disso?	Um
historiador	das	eleições	 francesas	comentou	que	“a	corrupção,	as	 fraudes	e	a
violência	 eram	 praticadas	 por	 candidatos	 de	 todas	 as	 facções	 e	 por	 seus
defensores;	 mesmo	 quando	 a	 lei	 previa	 o	 voto	 secreto,	 os	 eleitores	 muitas
vezes	 eram	 forçados	 a	 votar	 publicamente	 diante	 de	 uma	 multidão”.14	 Nos
colégios	eleitorais	de	Paris	para	as	eleições	da	Convenção	em	agosto	de	1792,
por	exemplo,	os	eleitores	tinham	de	declarar	seu	voto	em	voz	alta	“perante	o
povo”.	Porém	 isso	 só	 explica	 em	parte	 os	 números	 extremamente	 baixos	de
comparecimento	num	país	que	estava	estimulado	pela	política	da	Revolução.	A
discrepância	entre	o	direito	de	voto	e	a	sua	prática	permanece	um	dos	grandes
paradoxos	da	França	revolucionária.
O	país	 levou	o	movimento	 pela	 liberdade	 a	 grande	 parte	 da	Europa,	 por
meio	de	suas	conquistas	e	de	seu	exemplo.	O	Estado	nacional,	governado	com
o	consentimento	e	o	envolvimento	do	povo,	e	definido	por	seus	cidadãos	e	não
por	 sua	 monarquia,	 era	 um	 futuro	 animador	 a	 ser	 alcançado.	 A	 França
avançou	 muito	 nessa	 direção	 antes	 de	 ser	 subjugada	 pela	 violência.	 Ainda
assim,	o	 impacto	e	o	 legado	da	Revolução	 foram	enormes.	Além	de	mostrar
que	a	liberdade	podia	ser	conquistada	(e	potencialmente	perdida)	pelo	simples
ato	 de	 eliminar	 a	 ordem	 estabelecida,	 ela	 aplicou	 um	 novo	 tipo	 de
nacionalismo	em	que	o	povo,	a	língua	e	a	cultura	definiam	a	nação.	Esses	dois
conceitos	 de	 liberalismo	 e	 nacionalismo,	 originados	 a	 partir	 da	 Revolução,
viriam	 a	 dominar	 a	 política	 da	 Europa	 e,	 por	 extensão,	 de	 grande	 parte	 do
mundo	 durante	 os	 150	 anos	 seguintes.	 A	 democracia	 foi	 um	 elemento
importante	nessa	luta.	O	efeito	inicial	da	Revolução	Francesa	e	do	Terror	foi
afastar	 as	 pessoas	 da	 democracia	 —	 parecia	 que	 dar	 poder	 às	 classes	 mais
baixas	resultaria	em	caos	e	derramamento	de	sangue	—,	mas	os	princípios	de
que	 a	 soberania	 encontrava-se	 no	 povo	 e	 de	 que	 todas	 as	 pessoas	 tinham
direitos	iguais	persistiram,	embora	fossem	ressurgir	apenas	meio	século	depois
como	forças	políticas	na	Europa.
E
8
REPÚBLICAS	DA	AMÉRICA	LATINA
O	Cidadão	Subjugado
nquanto	 a	 democracia	 passava	 por	 um	 renascimento,	 reincidindo	 na
França,	 o	 continente	 da	 América	 do	 Sul	 estava,	 com	 uma	 distância	 de
algumas	décadas,	recebendo	a	mensagem	libertadora	da	Revolução.	Como	na
França,	um	regime	aparentemente	sólido	que	estivera	no	poder	havia	séculos
foi	 eliminado	em	apenas	alguns	anos	e	 substituído	por	uma	série	de	Estados
nacionais.	E,	em	comum	com	seus	colegas	rebeldes	da	América	do	Norte,	os
potenciais	 líderes	 dessas	 novas	 nações	 precisavam	 criar	 uma	 autoridade
legítima	 que	 lhes	 daria	 o	 direito	 de	 governar.	 Enquanto	 o	 Brasil	 recorria	 à
monarquia,	outras	nações	buscavam	legitimidade	na	democracia	republicana	—
a	 soberania	 da	 Coroa	 espanhola	 foi	 substituída	 pela	 soberania	 do	 povo.	 A
democracia	chegou	à	América	Latina	na	década	de	1820,	bem	antes	de	chegar
à	maior	 parte	 da	 Europa	Ocidental,	mas	 desde	 o	 início	 essa	 democracia	 foi
refreada,	obstruída	e	minada	pelo	legado	histórico	da	região.
Foi	Pascual	de	Andagoya	quem	primeiro	ouviu	rumores	de	uma	terra	em
que	 tudo	 era	 feito	 de	 ouro	 —	 o	 El	 Dorado,	 lugar	 deriquezas	 fabulosas	 em
algum	ponto	 ao	 sul,	 num	 local	 em	que	 os	 habitantes	 chamavam	de	Birú	 ou
Pirú.	 Isso	 foi	 por	 volta	 de	 1520,	 e	 Andagoya	 era	 um	 jovem	 explorador
espanhol	que	viajou	do	Panamá	à	Colômbia.	Ele	 tentou,	sem	sucesso,	 seguir
mais	 ao	 sul,	 e,	 em	 sua	 volta	 ao	 Panamá,	 a	 notícia	 se	 espalhou	 através	 da
comunidade	de	aventureiros	espanhóis.	A	conquista	recente	do	Império	Asteca
do	México	 por	 Hernán	 Cortés	 mostrara	 que	 tais	 rumores	 às	 vezes	 tinham
fundamento.	Francisco	Pizarro	organizou	expedições	 a	partir	do	Panamá	em
1524,	1526	e	1530,	atraído	cada	vez	mais	ao	sul	por	histórias	a	respeito	de	um
rei	que	governava	um	vasto	império.	Em	1534,	ele	havia	descoberto	a	capital
inca,	 destruído	 o	 centro	 do	 seu	 império	 e	 executado	 o	 imperador.	 Os
conquistadores	 reivindicaram	 o	 território	 para	 a	 Coroa	 espanhola	 e
estabeleceram	uma	capital	provisória	 em	 Jauja.	Então,	Pizarro	deu	um	passo
significativo,	 fundando	 uma	 nova	 cidade	 na	 costa	 de	 Lima	 —	 o	 centro	 do
império	 espanhol	 na	 América	 viria	 a	 ser	 um	 porto	 para	 o	 transporte	 de
mercadorias,	não	um	centro	administrativo	no	interior.
Os	 espanhóis	 foram	 às	Américas	 do	 Sul	 e	Central	 não	 como	 uma	 nação
com	o	objetivo	de	conquistar	terras,	mas	como	aventureiros	em	busca	de	ouro.
Assim	como	muitas	outras	colônias	europeias,	a	América	Espanhola	deu	início
a	uma	série	de	postos	de	comércio,	extraindo	riquezas	do	território	com	o	uso
de	trabalho	forçado	da	população	nativa	e	enviando-as	para	a	Espanha.	Lima
tinha	o	monopólio	desse	comércio.	Quando	os	espanhóis	se	aventuraram	mais
ao	sul	do	Peru,	atravessaram	os	Andes	e	chegaram	ao	que	hoje	é	a	Argentina,
estabelecendo	 um	 povoado	 em	 Santiago	 del	 Estero	 em	 1553.	 Antes	 disso,
exploradores	 espanhóis	 também	 haviam	 descido	 pela	 costa	 leste,
estabelecendo-se	em	Buenos	Aires	em	1536.1	Cidades	semelhantes	apareceram,
como	Assunção	e	Montevidéu.	Mercadores	portugueses	começaram	a	cultivar
cana-de-açúcar	na	costa	do	Brasil,	levando	escravos	de	Cabo	Verde	e,	depois,
do	interior	do	continente	africano.	A	cidade	do	Rio	de	Janeiro	e	uma	série	de
outras	vilas	litorâneas	foram	formadas	para	dar	conta	desse	tráfico.	São	Paulo,
Belém	 e	 Paramaribo	 e	 outros	 postos	 de	 comércio	 foram	 estabelecidos	 por
mercadores	holandeses,	portugueses	e	espanhóis.
Depois	 que	 os	 conquistadores	 ocuparam	 o	 território	 e	 subjugaram	 a
população	 nativa,	 a	 Coroa	 espanhola	 assumiu	 o	 controle	 formal	 de	 suas
colônias	por	meio	de	uma	sequência	de	vice-reis.	Em	contraste	com	a	América
do	Norte,	a	 terra	 foi	 repartida	entre	cortesãos	poderosos	e	aventureiros	—	os
que	 tomaram	 posse	 primeiro	 e	 aqueles	 a	 quem	 o	 vice-rei	 e	 o	 rei	 deviam
favores.	 Essa	 estrutura	 de	 posse	 deu	 forma	 a	 uma	 economia	 baseada	 na
exploração	da	 terra,	primeiro	em	busca	de	minerais,	depois	para	pastagens	e
agricultura.	 Tratava-se	 de	 uma	 economia	 rural	 com	 os	 principais	 centros
urbanos	 funcionando	 como	 canais	 para	 o	 comércio,	mas	não	para	 o	 tipo	de
manufatura	 pré-industrial	 que	 caracterizava	 as	 cidades	 europeias.	 As
habilidades	 dos	 nativos	 em	 cerâmica,	 trabalhos	 em	 metal	 e	 tecidos	 foram
desprezadas	 e	 todas	 as	 mercadorias	 de	 alta	 qualidade	 eram	 importadas	 da
pátria	mãe.	A	economia	colonial	não	tinha	impulso	ou	incentivo	para	inovar,
diversificar	ou	se	desenvolver.
Na	América	 Espanhola,	 a	 rígida	 estrutura	 de	 classes	 do	 início	 da	 Europa
moderna	foi	mantida,	com	a	nova	riqueza	injetada	como	agente	social.	Assim
como	na	própria	Espanha,	uma	sociedade	católica	hierárquica	conservava	suas
tradições,	 com	 cada	 colônia	 sendo	 administrada	 por	 uma	 pequena	 elite	 de
nobres	 que	 dirigia	 uma	 classe	 do	 que	 poderíamos	 chamar	 de	 mercadores
aventureiros.	Junto	com	eles,	vinham	administradores	profissionais,	advogados
e	 funcionários	 públicos	 que	 atuavam	 por	 conta	 do	 governo.	 Esses	 súditos
europeus	da	Coroa	espanhola,	conhecidos	coletivamente	como	 criollos,	viviam
entre	uma	população	mista	de	povos	nativos	e	escravos	importados	cujo	status
era	determinado	pela	raça	—	índios	mestiços	(mestizos)	tinham	o	status	mais	alto
entre	os	não	europeus;	e	os	escravos	negros,	o	mais	baixo.	A	longevidade	das
colônias	significava	que	essa	hierarquia	rígida,	mantida	por	meio	de	repressão
brutal,	foi	profundamente	incorporada.
Noventa	 por	 cento	 das	 exportações	 da	 América	 Latina	 para	 a	 Espanha
eram	 de	 prata	 e	 ouro.	 Como	 o	 viajante	 britânico	 Basil	 Hall	 descreveu	 na
década	de	1830:
O	único	propósito	atribuído	à	existência	das	Américas	era	o	de	recolher	os	metais	preciosos	para	os
espanhóis;	e	se	os	cavalos	selvagens	e	o	gado	que	infestavam	o	país	pudessem	ter	sido	treinados	para
esse	 trabalho	 os	 habitantes	 poderiam	 ter	 sido	 todos	 dispensados,	 e	 o	 sistema	 colonial	 teria	 sido
perfeito.2
O	 continente	 estava	 dividido	 em	 cinco	 vice-reinos:	 Nova	 Espanha
(aproximadamente,	 México,	 Guatemala	 e	 Cuba);	 Nova	 Granada	 (Equador,
Colômbia	 e	Venezuela);	Brasil	 (leal	 à	Coroa	portuguesa,	 que	 foi	 unificada	 à
Espanha	entre	1580	e	1640);	La	Plata	(Argentina,	Paraguai,	Bolívia	e	Uruguai)
e	 Peru	 (incluindo	 o	 Chile).	 O	 Peru	 controlava	 todo	 o	 comércio	 com	 a
Espanha:	 somente	 os	 portos	 peruanos	 tinham	 permissão	 para	 receber
mercadorias	 espanholas,	 que	 então	 eram	 carregadas	 para	 o	 outro	 lado	 dos
Andes,	para	o	restante	do	continente,	atravessando,	por	exemplo,	uma	 trilha
de	3	mil	quilômetros	até	Buenos	Aires.3	Do	outro	lado	do	Atlântico,	só	Cádiz
e	Sevilha	 tinham	permissão	para	 comercializar	 com	as	Américas.	Duas	vezes
por	 ano,	 um	 comboio	 imenso	 de	 navios,	 fortemente	 protegido,	 partia	 da
Espanha	 a	Lima,	 carregado	de	produtos	manufaturados	 (tecidos,	 porcelanas,
móveis,	 armas,	 máquinas),	 e	 retornava	 com	 barras	 de	 ouro	 e	 prata.	 O
resultado	 dessas	 restrições	 foi	 uma	 rápida	 expansão	 do	 comércio	 de
mercadorias	 contrabandeadas,	 com	 navios	 britânicos,	 franceses	 e	 holandeses
próximos	 de	 Buenos	 Aires,	 Santiago,	 Veracruz	 e	 Caracas	 atendendo	 às
necessidades	de	ávidos	compradores.
A	 infraestrutura	 dos	 vice-reinados	 revelava	 seus	 propósitos	 —	 cidades
portuárias	 dominadas,	 construídas	 para	 controlar	 a	 exploração	do	 interior,	 e
centros	 administrativos	 desenvolvidos	 apenas	 onde	 eram	 necessários	 para
proteger	 o	 comércio	 de	mercadorias	 e	 apaziguar	 populações	 nativas.	 Vastas
extensões	de	 terras	 ficaram	na	posse	de	um	pequeno	número	de	 famílias.	A
intenção	 original	 dos	 donos	 era	 buscar	 ouro	 e	 prata,	 mas	 depois	 essas
propriedades	imensas,	ou	haciendas,	tornaram-se	terras	agrícolas,	e	seus	donos,
os	 estancieros,	 os	 homens	 mais	 poderosos	 da	 América	 do	 Sul.	 Alguns
historiadores	 defendem	 que	 a	 estrutura	 patriarcal	 e	 os	 costumes	 rígidos	 das
haciendas	 tornaram-se	 um	 modelo,	 com	 os	 estancieros	 criando	 sociedades	 sul-
americanas	 à	 sua	 imagem.	 Se	 os	 estancieros	 monopolizavam	 a	 terra,	 os
mercadores	 tinham	 um	 controle	 semelhante	 do	 comércio.	 Na	 América	 do
Norte,	 uma	 classe	média	 rural	 e	 de	 pequenas	 cidades	 formara	 um	mercado
movimentado	 para	 os	 produtos	 manufaturados,	 propiciando	 a	 base	 para
inovações	 e	 desenvolvimento	 de	 recursos	 e	 habilidades.	 No	 final	 do	 século
XVII,	 esses	 colonos	 construíam	 navios,	 produziam	 tecidos,	 vidro,	 papel	 e
materiais	 de	 construção.	 A	 pequena	 base	manufatureira	 na	 América	 Latina,
por	 outro	 lado,	 fazia	 uso	 da	 mão	 de	 obra	 forçada	 de	 nativos.	 Somente	 em
meados	do	século	XIX	estabeleceu-se	uma	pequena	classe	média	rural.
Simón	Bolívar,	o	homem	que	conduziria	muitas	das	colônias	espanholas	à
independência,	 revelou	 como	 esse	 sistema	 alimentava	 o	 ressentimento	 de
rebeldes	contra	a	Coroa	espanhola	na	década	de	1820:
Os	americanos,	no	sistema	espanhol	agora	estabelecido,	não	têm	outro	lugar	na	sociedade	senãoo	de
meros	 consumidores;	mesmo	nessa	 condição,	 são	 oprimidos	 por	 restrições	 espantosas,	 tais	 como	o
cultivo	de	frutas	europeias	[...]	uma	proibição	de	fábricas	[...]	e	restrições	aduaneiras	entre	províncias
americanas	para	que	não	comercializem,	dialoguem	ou	sequer	realizem	acordos	umas	com	as	outras.
No	fim,	sabem	qual	é	nosso	destino?	Campos	em	que	cultivamos	milho,	cereais,	café,	cana,	cacau	e
algodão	[...]	[e]	as	profundezas	da	terra	para	escavar	ouro	que	nunca	satisfaz	essa	nação	gananciosa.4
Porém,	em	seus	próprios	termos,	o	império	espanhol	foi	um	sucesso.	Durante
três	 séculos,	 manteve	 a	 população	 pacífica,	 enquanto	 explorava	 os	 recursos
naturais	 do	 continente	 com	 grande	 êxito	 —	 algo	 que	 nenhum	 outro	 império
moderno	 foi	 capaz	 de	 obter	 por	 um	 período	 tão	 longo.	 Levando	 isso	 em
consideração,	é	notável	a	rapidez	com	que	o	império	desmoronou.
As	 rebeliões	 contra	 a	 Coroa	 espanhola	 nas	 primeiras	 décadas	 do	 século
XIX	 surgiram	 de	 indignações	 articuladas	 por	 Bolívar	 e	 estimuladas	 pelos
eventos	na	América	do	Norte	e	Europa.	A	aliança	entre	Espanha	e	França	e	a
subsequente	 humilhação	 nas	 mãos	 de	 Napoleão	 deixaram	 muitos	 criollos
frustrados	 e	 desgostosos	 com	 os	 governantes	 de	 sua	 pátria.	 Um	 grupo	 de
líderes	inspiradores,	que	incluía	Francisco	de	Miranda,	Simón	Bolívar,	José	de
San	Martín	e	Bernardo	O’Higgins,	surgiu	para	transformar	os	sentimentos	de
revolta	em	campanhas	práticas.
O	momento	de	menor	sorte	para	a	Espanha	foi	em	1803,	quando	Napoleão
forçou	 o	 rei	 Fernando	 VII	 a	 renunciar	 e	 colocou	 no	 trono	 seu	 irmão,	 José
Bonaparte,	 que	 introduziu	 uma	 nova	 Constituição	 liberal.	 Os	 espanhóis	 se
rebelaram	 contra	 a	 ocupação	 francesa,	 e	 um	 comitê	 governativo,	 ou	 junta,
estabeleceu-se	em	Sevilha	para	governar	em	nome	de	Fernando.	Em	1809,	a
junta	 declarou	 que	 o	 império	 da	 América	 do	 Sul	 era	 parte	 da	 Espanha	 e
convidou	colonos	a	elegerem	representantes	para	a	Junta	Central	em	Sevilha.
Mais	 de	 cem	 cidades	 da	 América	 Espanhola	 participaram	 das	 eleições	 com
grandes	 porções	 da	 população,	 mesmo	 aqueles	 sem	 direito	 de	 voto,
envolvendo-se	no	processo.	Na	prática,	os	colonos	tinham	apenas	um	pequeno
número	 de	 representantes	 na	 Assembleia	 Legislativa,	 as	 Cortes,	 mas,	 ainda
assim,	um	sistema	de	consulta	foi	estabelecido	por	toda	a	América	Espanhola,
que	persistiria	durante	toda	a	turbulência	política	que	se	seguiu.	Fernando	VII
retomou	o	 trono	 espanhol	 em	1813,	 após	 a	 derrota	 de	Napoleão	 na	Guerra
Peninsular,	mas,	àquela	altura,	a	maioria	das	colônias	americanas	da	Espanha
estava	num	estado	de	guerra	civil	entre	republicanos,	buscando	autonomia,	e
monarquistas,	leais	à	pátria	mãe.	Os	republicanos	foram	vitoriosos.
Em	1822,	Simón	Bolívar	era	presidente	da	Grã-Colômbia,	um	novo	Estado,
que	abrangia	aproximadamente	o	antigo	vice-reino	de	Nova	Granada.	No	sul,
o	 argentino	 José	 de	 San	 Martín,	 em	 aliança	 com	 Bernardo	 O’Higgins,	 do
Chile,	 havia	 se	 tornado	 uma	 força	 dominante.	 San	Martín	 queria	 criar	 uma
nova	monarquia	na	América	do	Sul	com	um	príncipe	de	sangue	espanhol,	ao
passo	 que	 Bolívar	 imaginava	 uma	 nova	 república.	 Em	 julho	 de	 1822,	 os
Exércitos	de	San	Martín	e	Bolívar	aproximaram-se,	cada	um	por	sua	conta,	do
valioso	 vice-reino	 do	 Peru.	 Com	 o	 objetivo	 de	 evitar	 um	 conflito	 entre	 os
colonos,	 os	 líderes	 concordaram	 em	 se	 encontrar	 na	 importante	 cidade
portuária	de	Guayaquil.	Bolívar	ofereceu	um	banquete	a	San	Martín	em	26	de
julho,	no	qual	 fez	um	brinde	aos	“Dois	homens	mais	grandiosos	da	América
do	Sul,	o	general	San	Martín	e	eu”.	San	Martín,	soldado	profissional,	sabia	que
o	Peru	não	poderia	ser	tomado	dos	espanhóis,	a	menos	que	os	dois	Exércitos
trabalhassem	 em	 conjunto,	 e	 Bolívar	 aparentemente	 deixou	 claro	 que	 ele
comandaria	as	forças	e	governaria	a	república	resultante.	San	Martín	não	viu
opção	 senão	 conceder	 a	 Bolívar	 o	 comando	 dos	 dois	 Exércitos.	 Desistiu	 de
qualquer	 reivindicação	 de	 posse	 do	 Peru,	 voltou	 para	 a	 Argentina	 e	 depois
para	a	França.	Com	San	Martín,	a	visão	de	uma	monarquia	para	a	América
Espanhola	desapareceu.
A	colônia	portuguesa	do	Brasil	 também	havia	sido	profundamente	afetada
pela	 invasão	 de	 Napoleão	 à	 península	 Ibérica	 em	 1807,	 seguida	 da	 fuga	 da
família	real	portuguesa	para	o	Rio	de	Janeiro.	Em	1820,	o	novo	governo	em
Lisboa	pediu	ao	rei	para	voltar,	mas	Pedro,	o	príncipe	herdeiro,	permaneceu
no	 Brasil	 e	 recusou-se	 a	 desfazer	 a	 estrutura	 de	 governo	 independente	 ali
construída	durante	os	anos	de	exílio.	Em	1822,	ele	declarou	a	independência,
que	foi	confirmada	em	1823	pela	vitória	sobre	as	forças	enviadas	pelas	Cortes
de	Lisboa.	Pedro	foi	coroado	“Imperador	Constitucional	e	Defensor	Perpétuo
do	Brasil”.
Uma	vez	 livres	do	 controle	da	metrópole,	 como	as	 ex-colônias	deveriam	 ser
governadas?	 O	 que	 dava	 legitimidade	 a	 líderes	 como	 Simón	 Bolívar,	 que
ganhara	 o	 poder	 através	 de	 batalhas	 militares?	 A	 questão	 territorial
acrescentava	complicadores:	o	continente	deveria	ser	dividido	em	nações,	e,	se
fosse	 o	 caso,	 como?	 Bolívar	 sonhava	 em	 unificar	 a	 América	 do	 Sul	 numa
grande	república,	mas	logo	ficou	claro	que	essa	ambição	jamais	seria	realizada.
À	 parte	 os	 obstáculos	 geográficos,	 forças	 de	 liberalismo	 e	 conservadorismo
lutavam	por	supremacia	em	cada	colônia.	Diferentemente	dos	Estados	Unidos,
não	havia	uma	aceitação	geral	de	uma	filosofia	política	ou	sistema	de	governo
específicos.	Um	problema	central	 foi	que	Bolívar,	 figura	dominante	no	norte
do	 continente,	 ainda	que	 fosse	um	republicano	 convicto,	não	era	democrata.
Para	 ele,	 as	 eleições	 eram	 “o	 maior	 flagelo	 das	 repúblicas	 e	 geram	 apenas
anarquia”.5	 Em	 1815,	 ele	 escrevera	 que	 acontecimentos	 na	 América	 do	 Sul
“provaram	que	as	instituições	inteiramente	representativas	não	se	adequam	ao
nosso	caráter,	costume	e	conhecimento	presente”	e,	em	1819,	ele	declarou:	“A
liberdade	 completa	 e	 a	 democracia	 absoluta	 são	 os	 recifes	 onde	 todas	 as
esperanças	republicanas	afundaram.”
Embora	 isso	 faça	 Bolívar	 parecer	 um	 antidemocrata	 mordaz,	 ele	 era	 um
pensador	 político	 sofisticado,	 com	 um	 conhecimento	 abrangente	 de	 história
política.	 Em	 1819,	 ele	 também	 escreveu	 que	 a	 Venezuela	 deveria	 ser	 uma
república	e	que	“seus	princípios	deveriam	ser	a	soberania	do	povo,	a	divisão
de	 poderes,	 a	 liberdade	 civil,	 a	 proibição	 da	 escravidão	 e	 a	 abolição	 da
monarquia	 e	 de	 privilégios”.	 Isso,	 contudo,	 não	 significava	 democracia:
“Atenas	 nos	 oferece	 o	 exemplo	mais	 brilhante	 de	 uma	 democracia	 absoluta,
mas,	 ao	 mesmo	 tempo,	 Atenas	 é	 o	 exemplo	 mais	 melancólico	 da	 extrema
fraqueza	 desse	 tipo	 de	 governo.”	 Bolívar	 via	 na	 “democracia	 absoluta”	 da
antiga	Atenas	 a	 razão	 do	 declínio	 da	 cidade	—	 uma	 visão	 comum	no	 século
XIX.	 Assim,	 ele	 argumentou	 em	 1826	 que	 “um	 presidente	 vitalício	 com	 o
poder	de	 escolher	 seu	 sucessor	 é	 a	 inspiração	mais	 sublime	 entre	os	 regimes
republicanos”.6	É	difícil	 encontrar	 a	 correspondência	 entre	 isso,	 a	 “soberania
do	 povo”	 e	 a	 “abolição	 de	 privilégios”,	 mas	 Bolívar	 acreditava	 que	 eles
poderiam	 ser	 alcançados	 da	melhor	 forma	 por	 intermédio	 de	 um	 presidente
que	entendesse	as	necessidades	de	seu	povo.
Isso	era	mais	semelhante	ao	Império	Romano	que	à	república	romana,	e,	no
entanto,	 foi	consagrado	na	Constituição	que	Bolívar	elaborou	para	a	Bolívia,
país	 cujo	nome	 foi	 inspirado	no	 seu.	Embora	ele	gozasse	de	grande	 lealdade
pessoal,	isso	não	chegava	a	constituir	um	meio	de	garantir	a	legitimidade	para
governar	 uma	 nação.	 A	 necessidade	 de	 legitimidade	 ajudara	 a	 fazer	 dos
Estados	Unidos	 uma	 democracia.	O	 fato	 de	 que	 o	mesmo	 requisito	 não	 foi
atendido	na	América	do	Sul	levou	a	constantes	disputas	sangrentas,	durante	os
170	 anos	 seguintes,	 pela	 definiçãode	 quem	 iria	 governar.	 O	 Estado	 Pan-
Andino	 imaginado	 por	 Bolívar	 não	 chegou	 a	 existir,	 e	 a	 Grã-Colômbia
desintegrou-se	 sob	 pressões	 internas,	 levando	Bolívar	 à	 sua	 observação	mais
conhecida:	 “A	 América	 é	 ingovernável.	 Aqueles	 que	 serviram	 à	 revolução
araram	o	mar.”7
Em	cada	uma	das	novas	nações,	as	revoluções	políticas	de	1810-25	haviam
ocorrido	 sem	mudanças	 na	 estrutura	 da	 sociedade	 ou	 em	 seus	 fundamentos
econômicos.	Em	vez	de	sofrerem	uma	revolução	que	eliminasse	as	hierarquias,
as	elites	se	mantiveram	no	poder	e	se	adaptaram	às	novas	realidades	políticas.
As	 restrições	das	quais	Bolívar	 reclamara	permaneceram	—	a	única	diferença
era	 que	 não	 eram	 mais	 impostas	 pela	 Espanha.	 Na	 verdade,	 as	 antigas
divergências	 e	 rivalidades	 nos	 vice-reinados	 entre	 liberais	 e	 conservadores,	 e
entre	 centralistas	 e	 aqueles	 à	 favor	 da	 autonomia	 local,	 tornaram-se	 mais
agudas.
Os	 movimentos	 de	 independência	 foram	 inspirados	 pela	 doutrina	 do
liberalismo,	 que	 impulsionou	 as	 revoluções	 americana	 e	 francesa,	mas	 como
ela	 seria	 implementada	 em	 sociedades	 que	 eram	 senhoriais,	 hierárquicas	 e
divididas	 racialmente?	 Esse	 se	 tornou	 um	 problema	 persistente	 na	 cultura
latino-americana:	 líderes	 políticos	 ávidos	 para	 implementar	 estruturas	 e
políticas	 liberais	 tiveram	 de	 enfrentar	 grupos	 que	 se	 beneficiavam	 dos
privilégios	arraigados	da	era	espanhola.	Se	esses	grupos	tivessem	simplesmente
resistido	 a	 todas	 as	 tentativas	 de	 mudança	 política	 ou	 social,	 a	 história	 da
América	 do	 Sul	 teria	 sido	 mais	 simples,	 mas	 os	 estancieros	 com	 frequência
permitiam	 que	 as	mudanças	 ocorressem	 na	 superfície,	 enquanto	 agiam	 para
minar	seus	efeitos	na	sociedade.
A	 instabilidade	 política	 persistiu	 porque	 nenhum	 grupo	 —	 liberais,
conservadores,	estancieros,	a	Igreja	—	reconhecia	o	direito	legítimo	de	outro	para
governar.	 Cada	 um	 queria	 maximizar	 o	 próprio	 poder,	 mesmo	 que	 isso	 se
desse	às	custas	da	nação.	Essa	falta	de	coesão	nacional	e	lealdade	não	era,	em
geral,	 algo	 surpreendente	 no	 início	 do	 século	 XIX:	 ninguém,	 na	 década	 de
1810,	 pensava	 em	 si	 mesmo	 como	 argentino,	 venezuelano	 ou	 colombiano.
Porém,	 entendiam	 ser	 diferentes	 do	 norte:	 “Eles	 [os	 norte-americanos]	 eram
um	povo	 novo”,	 escreveu	 o	 liberal	mexicano	 Servando	Teresa	 de	Mier,	 em
1823,	 “homogêneo,	 laborioso,	 esforçado,	 esclarecido,	 com	 todas	 as	 virtudes
sociais	 e	 educados	 por	 uma	 nação	 livre.	 Nós	 somos	 um	 povo	 antigo,
heterogêneo,	sem	diligência,	inimigo	do	trabalho,	querendo	viver	do	emprego
público	 como	 os	 espanhóis,	 tão	 ignorantes	 em	 grupo	 quanto	 nossos
antepassados	e	enfraquecidos	pelos	vícios	de	três	séculos	de	escravidão”.8	Em
tempos	 recentes,	 passamos	 a	 evitar	 atribuir	 características	 a	 um	 povo	 desse
modo	 —	 na	 história	 da	 democracia,	 mais	 importantes	 que	 qualquer	 hábito
cultural	 eram	 as	 estruturas	 predominantes	 que	 permitiam	 aos	 ricos	 e
poderosos	continuarem	no	controle	das	alavancas	do	poder.
As	 primeiras	 lutas	 internas	 de	 nações	 como	 a	 Argentina	 ecoavam	 as	 dos
Estados	 Unidos,	 com	 uma	 facção	 exigindo	 uma	 federação	 flexível	 de
províncias,	 e	 outra,	 uma	 nação	 com	 um	 centro	 forte.	 Em	 contraste	 com	 o
norte,	 no	 entanto,	 essas	 disputas	 foram	 travadas	 em	 combate	 armado.	 Nas
décadas	após	a	independência,	a	política	era	prejudicada	pela	cultura	herdada
de	 clãs,	 facções,	 patronagem,	 clientelismo	 e	 famílias	 influentes.	 A	 ideologia
política	 era	 menos	 importante	 que	 as	 conexões,	 o	 parentesco	 e	 o	 acesso	 a
pessoas	poderosas.
No	entanto,	uma	 forma	de	democracia	 começou	a	 surgir.	Assim	como	os
revolucionários	 franceses,	os	 líderes	da	América	Espanhola	queriam	abolir	as
divisões	 da	 sociedade	 em	 corporações	 e	 reconheciam	 a	 igualdade	 essencial
entre	os	homens	(as	mulheres	estavam	ausentes	dessa	consideração	de	forma
generalizada).	 As	 jovens	 nações	 declararam	 a	 chegada	 desse	 novo	 mundo
político	de	modo	constitucional;	em	1811,	a	Venezuela	deu	o	direito	de	voto	a
todos	 os	 cidadãos	 do	 sexo	masculino	 e	 homens	 de	 cor	 livres	 acima	 dos	 21
anos;	no	Chile,	todos	os	habitantes	livres	receberam	direitos	políticos	iguais,	e
a	 própria	 Constituição	 de	 1812	 foi	 ratificada	 pelo	 povo	 por	 meio	 de	 seus
representantes.	Em	outros	 lugares,	a	redação	da	Constituição	deixava	espaço
para	as	manobras	que	viriam	a	caracterizar	o	futuro	político	do	continente.	No
Peru,	a	Constituição	de	1823	declarava	que	“a	soberania	reside	na	nação	e	é
exercida	 pelos	 oficiais	 aos	 quais	 a	 nação	 delegou	 seus	 poderes”	 —	 porém
deixou	 o	 método	 de	 seleção	 dos	 representantes	 e	 oficiais	 aberto	 à
interpretação.	 Nesse	 caso,	 os	 cidadãos	 eram	 homens	 acima	 de	 25	 anos	 que
tivessem	 propriedades	 ou	 uma	 profissão	 e	 não	 tivessem	 registros	 de
comportamento	 “anticidadão”.	 Na	 Argentina,	 diferentes	 províncias	 criaram
suas	próprias	leis:	em	1819,	Santa	Fé	deu	cidadania	e	direito	de	voto	a	todos	os
homens	adultos,	excluindo	apenas	devedores	públicos;	em	1821,	Buenos	Aires
concedeu	o	direito	de	voto	a	 todos	os	homens	 livres	nascidos	no	país	 acima
dos	 20	 anos	 —	 incluindo	 servos	 e	 operários	 (esses	 não	 estavam	 inclusos	 na
expressão	 “adulto	 do	 sexo	masculino”	 em	 outros	 lugares);	 as	 províncias	 de
Salta	e	Mendoza	fizeram	o	mesmo	em	1823	e	1827,	respectivamente.
Apesar	dessas	declarações	de	 intenção	democrática,	a	história	subsequente
da	América	Latina	mostra	 como	 as	 elites	 existentes	 usaram	 as	 estruturas	 do
governo	 representativo	 para	 reforçar	 sua	 própria	 manutenção	 no	 poder.
Juntamente	 com	 liberais	 e	 conservadores,	 federalistas	 e	 unionistas,
reformadores	e	tradicionalistas,	a	Igreja	Católica	também	tinha	um	importante
papel	 social	 e	político.	Com	sua	enorme	 riqueza	derivada	de	 terras,	dízimos,
doações	 e	 propriedades,	 a	 Igreja	 era	 vista	 por	 liberais	 como	um	obstáculo	 à
liberdade	 política	 e	 à	 economia	 do	 livre	 comércio,	 na	 qual	 todo	 cidadão	 era
igual	perante	a	lei,	 independentemente	de	credo	ou	status.	Os	conservadores,
por	outro	lado,	acreditavam	que	a	fé	católica	era	a	força	unificadora	em	novas
nações	de	diferentes	raças,	propiciando	a	coesão	social.	Essa	visão	foi	expressa
por	 um	 defensor	 do	 general	 Santa	 Anna,	 que	 o	 encorajava	 a	 se	 tornar	 um
ditador	no	México	em	1853:
Acima	de	tudo	está	a	necessidade	de	preservar	a	religião	católica,	porque	acreditamos	nela	e	porque,
mesmo	 que	 não	 a	 considerássemos	 divina,	 consideramo-la	 o	 único	 laço	 comum	 entre	 todos	 os
mexicanos	quando	todos	os	outros	foram	rompidos;	é	a	única	coisa	capaz	de	manter	a	raça	hispano-
americana	e	de	livrá-la	dos	grandes	perigos	aos	quais	está	exposta.9
Esses	sentimentos	revelam	a	divisão	existente	na	América	Latina.	Os	 liberais
acreditavam	 no	 Estado-Nação,	 na	 livre	 iniciativa	 e	 no	 livre	 comércio	 entre
países;	 os	 conservadores	 ainda	mantinham	 a	 ideia	 da	 América	 Latina	 como
entidade	continental,	com	o	catolicismo	como	elemento	unificador.	O	que	era
ainda	 mais	 significativo,	 os	 conservadores	 se	 opunham	 a	 qualquer	 ordem
constitucional	 que	 excluísse	 a	 Igreja,	 e	 o	 conflito	 quanto	 ao	 papel	 da	 Igreja
contribuía	de	forma	acentuada	para	a	contínua	instabilidade	política.	Durante
o	 século	 XIX,	 os	 republicanos	 liberais	 esforçaram-se	 para	 diminuir	 os
privilégios	 legais	 da	 Igreja,	 sua	 influência	 na	 educação	 e	 riqueza
desproporcional.	 Porém,	 a	 maioria	 das	 pessoas	 permaneceu	 profundamente
leal	 à	 Igreja;	 em	 particular,	 o	 catolicismo	 conservou	 raízes	 profundas	 no
interior,	entre	camponeses	e	índios.
Além	 desses	 conflitos	 internos,	 as	 novas	 nações	 logo	 sofreram	 pressões	 de
potências	 externas	 que	 teriam	 um	 efeito	 decisivo	 em	 seu	 destino	 político.	 A
primeira	 grande	 influência	 externa	 era	 asuperpotência	que	 controlava	quase
todos	 os	 aspectos	 do	 comércio	 mundial	 e	 das	 finanças	 internacionais	 —	 o
Império	 Britânico.10	 Os	 antigos	 sonhos	 do	 El	 Dorado	 encontraram	 eco	 nas
ações	das	 companhias	mineradoras	 sul-americanas	que	 surgiram	 subitamente
nas	 bolsas	 de	 valores	 do	 mundo	 na	 década	 de	 1830,	 e	 os	 governos	 de
Colômbia,	México,	Peru,	Chile	e	Buenos	Aires	fizeram	enormes	empréstimos
que	se	esforçavam	para	pagar.	A	Grã-Bretanha	viu	nos	países	recém-liberados
da	 América	 do	 Sul	 uma	 oportunidade	 de	 expandir	 seu	 comércio	 e	 sua
influência,	 e,	 enquanto	 a	 Marinha	 oferecia	 proteção	 contra	 incursões
espanholas	e	francesas,	o	capital	e	as	mercadorias	britânicos,	produzidos	com
muito	 mais	 eficiência	 que	 nas	 economias	 locais,	 invadiam	 o	 continente.	 Os
bancos	 nacionais	 de	 Buenos	 Aires,	 Chile	 e	 México	 faliram,	 e	 foram
substituídos	por	bancos	controlados	pela	Grã-Bretanha,	 tais	como	o	London,
Buenos	Ayres	e	River	Plate	Bank	Ltd	e	o	London	Bank	of	Mexico	and	South
America.	Ao	 explorar	 totalmente	 suas	 vantagens	 econômicas	 e	 financeiras,	 a
Grã-Bretanha	 foi	 capaz	de	extrair	 acordos	 comerciais	que	aumentaram	ainda
mais	seu	controle	comercial	da	América	do	Sul.
Os	Estados	Unidos,	enquanto	isso,	haviam	reconhecido	as	novas	nações.	A
Doutrina	Monroe,	 de	 1823,	 declarava	 que,	 embora	 os	 Estados	 Unidos	 não
fossem	interferir	nos	negócios	europeus,	resistiriam	aos	esforços	de	estender	as
monarquias	 europeias	 a	 “este	 hemisfério”	 e	 se	 oporiam	 a	 qualquer	 tentativa
por	 parte	 das	 potências	 europeias	 de	 recuperar	 territórios	 perdidos.	 No
entanto,	a	Grã-Bretanha	era	muito	mais	importante	para	a	América	Latina	do
que	 os	 Estados	 Unidos,	 e	 era	 o	 reconhecimento	 britânico	 que	 a	 América
Espanhola	 desejava.	O	ministro	 de	Negócios	 Estrangeiros,	George	Canning,
estava	 consciente	 das	 complexidades	 envolvidas	 no	 reconhecimento	 de	 um
grupo	de	repúblicas	por	parte	de	uma	monarquia	constitucional,	mas	acabou
seguindo	em	frente	em	1825.	Um	viajante	britânico	escreveu	sobre	esse	ano:
“Todas	as	pessoas	em	Bogotá	estão	quase	enlouquecidas	de	alegria	porque	o
vice-presidente	 acabou	 de	 receber	 a	 informação	 providencial	 [...]	 de	 que	 o
governo	britânico	reconheceu	a	independência	do	México,	da	Colômbia	e	de
Buenos	Ayres	 [...]	os	colombianos	correndo	para	 todos	os	 lados	 feito	 loucos,
exclamando	‘Agora	somos	uma	nação	independente!’”11
Os	 bancos	 e	 empresas	 britânicos	 controlavam	 seções-chave	 da	 economia
latino-americana,	 incluindo	 ferrovias,	 telégrafos	 e	 docas.	 Tinham	 pouco
interesse	em	desenvolver	a	economia	do	continente	além	do	fornecimento	de
mercadorias	 baratas	 —	 carnes	 e	 cereais,	 nitratos	 e	 minérios	 —	 para	 o	 seu
próprio	 mercado	 em	 rápida	 expansão.	 Se	 o	 domínio	 britânico	 dificultou	 o
desenvolvimento	 no	 século	 XIX,	 um	 obstáculo	 igualmente	 severo	 à
prosperidade	econômica	e	à	estabilidade	política	foi	a	longa	série	de	guerras	—
tais	como	entre	Argentina	e	Brasil,	e	México	contra	França	e	Estados	Unidos
—,	 as	 quais	 duraram	 até	 1867.	 Dado	 o	 grande	 distúrbio	 causado	 por	 esses
conflitos,	é	compreensível	o	ritmo	lento	do	desenvolvimento	econômico.
Como	essas	dificuldades	econômicas	e	estruturas	sociais	herdadas	afetam	o
desenvolvimento	 da	 democracia?	 A	 maioria	 dos	 Estados-Nação	 emergentes
esforçou-se	para	aprovar	uma	Constituição	que	unisse	o	povo,	as	províncias	e
o	 centro;	 poderosos	 grupos	de	 interesses	 não	 estavam	preparados	para	 fazer
sacrifícios	 pelo	 bem	 de	 uma	 nação	 que	 parecia	 existir	 apenas	 no	 nome.	No
vácuo	 que	 foi	 criado,	 surgiu	 a	 figura	 do	 caudillo,	 uma	 eminência	 parda	 que
usava	 redes	 de	 clientes	 e	 fregueses	 e	 defensores,	 assim	 como	 sua	 habilidade
militar	(geralmente	no	comando	de	seu	próprio	grupo	de	milícia)	para	adquirir
influência.	Ele	 tratava	a	política	como	um	jogo	de	poder	em	que	o	ganhador
levava	espólios	que	incluíam	qualquer	riqueza	disponível.	Os	caudillos	existiam
em	todos	os	níveis	da	sociedade,	e	as	grandes	famílias	aristocráticas	tinham	de
aprender	 a	 lidar	 com	 homens	 ambiciosos	 das	 classes	 mais	 baixas,	 em	 geral
trocando	 proteção	 e	 estabilidade	 por	 poder	 político	 e	 suas	 recompensas
econômicas.	 Quando	 a	 burocracia	 real	 foi	 desabonada,	 depois	 de	 1820,	 os
caudillos	cresceram	e	alguns	se	tornaram	líderes	nacionais.
Simón	Bolívar	 foi	 talvez	o	primeiro	exemplo,	mas	 logo	apareceram	outros
nos	níveis	regional	e	nacional.	José	Gaspar	Rodriguez	de	Francia	(1766-1840)
formou	 a	 nação	 do	 Paraguai,	 enquanto	 José	 Cecilio	 del	 Valle	 (1776-1834)
tentou	criar	as	Províncias	Unidas	da	América	Central.	A	Argentina,	contudo,
foi	o	local	de	destaque	do	caudillismo.	O	primeiro	caudillo	a	obter	poder	nacional
foi	 Juan	Manuel	de	Rosas	 (1793-1877).	Nascido	numa	 família	 rica,	 teve	uma
vida	 de	 fazendeiro	 e	 gaúcho,	 fazendo	 sua	 própria	 fortuna	 no	 setor	 de
frigorífico.	Como	outros	estancieros,	administrava	sua	fazenda	como	um	Estado
em	miniatura,	usando	seus	próprios	homens	armados	para	deter	os	ladrões	de
gado.	Rosas	foi	eleito	governador	da	província	de	Buenos	Aires	pela	primeira
vez	em	1829.	Durante	um	período	de	afastamento	do	cargo	de	1832	a	1835,
ele	travou	uma	guerra	selvagem	contra	os	povos	nativos	dos	pampas,	o	que	fez
com	que	ele	ganhasse	o	apoio	dos	fazendeiros	—	aos	quais	deu	terras	—	e	uma
reputação	de	brutalidade.	Em	sua	volta	ao	poder,	usou	o	controle	da	capital
para	 dominar	 o	 país,	 mas	 não	 conseguiu	 fazer	 com	 que	 a	 Argentina	 se
consolidasse	 como	 nação.	 Rosas	 tornou-se	 o	 epítome	 do	 caudillo	 arrogante,
usando	uma	combinação	de	força	e	carisma	para	manipular	o	sistema	eleitoral
de	modo	a	obter	poder	político	 legítimo.	Mas,	 em	1852,	os	outros	 estancieros,
antes	 seus	 defensores	 tácitos,	 optaram	 pela	 estabilidade	 em	 vez	 do	 governo
pessoal	caótico	de	Rosas	e	o	derrotaram	em	batalha.	A	Argentina	acostumou-
se	 ao	 conflito	 armado	 interno	 e	 a	 forças	 militares	 que	 se	 consideravam	 as
criadoras	 da	 nação.	 Somente	 em	 1880	 um	 país	 verdadeiramente	 unificado
emergiu	—	sete	décadas	turbulentas	após	a	independência.
Esse	padrão	 foi	 repetido	no	continente	à	medida	que	uma	série	de	 líderes
carismáticos	 assumia	 o	 controle,	 aliando-se	 a	 grupos	 poderosos,	 usando	 os
sistemas	 eleitorais	 quando	 necessário	 e,	 quando	 não,	 ignorando-os.	 Um
resultado	 disso	 foi	 uma	 pletora	 de	 Constituições	 sempre	 que	 os	 governos
buscavam	manter-se	no	poder	mudando	as	regras	eleitorais,	ou	quando	líderes
militares	organizavam	golpes	e	depois	devolviam	o	controle	aos	civis.	O	Peru,
por	 exemplo,	 se	 declarou	 independente	 em	 1821.	 Sua	Constituição	 de	 1823
aboliu	a	monarquia,	e	três	outras	Constituições	vieram	em	seguida,	em	1828,
1834	e	1839.	A	presidência	mudou	de	mãos	nada	menos	que	doze	vezes	entre
1826	 e	 1845.	 As	 Constituições	 eram	 cada	 vez	 mais	 liberais,	 estabelecendo
eleições	 populares	 diretas	 para	 presidente	 e	 assembleias,	 mas	 não
proporcionavam	estabilidade	num	país	em	que	diferentes	grupos	de	 interesse
não	 reconheciam	 o	 direito	 dos	 outros	 de	 governar.	 Em	 1845,	 o	 marechal
Ramón	 Castilla	 subiu	 ao	 poder	 e	 governou	 como	 ditador	 efetivo	 até	 1862.
Uma	Constituição	mais	 liberal,	 em	1856,	 foi	 logo	 seguida	pelo	 retrocesso	de
mais	 uma	 Constituição	 que	 conferia	 poderes	 excessivos	 ao	 presidente;	 com
breves	interregnos,	esta	permaneceu	em	vigor	até	1920.
Vizinha	do	Peru,	a	Bolívia	seguiu	um	padrão	semelhante,	quando	Andrés
de	 Santa	 Cruz	 assumiu	 a	 presidência	 em	 1829	 e	 governou	 como	 ditador
durante	 a	 década	 seguinte.	Depois	 de	 1840,	 o	 país	 passou	 por	 uma	 série	 de
golpes	e	Constituições	efêmeras	que	ofereciam	direitos	democráticos,	mas	não
podiam,	na	prática,	proporcioná-los.	Pode-se	dizer	que	a	situação	na	terra	natal
de	 Bolívar,	 a	 Venezuela,	 era	 ainda	 mais	 instável.	 A	 Constituição	 de	 1830declarava	uma	democracia,	mas,	na	prática,	o	país	foi	governado	durante	todo
o	 século	 XIX	 por	 uma	 série	 de	 oligarquias	 conflitantes.	 De	 1830	 a	 1900,
Caracas	 passou	 por	 pelo	 menos	 trinta	 insurreições	 armadas	 lideradas	 por
caudillos	locais,	com	o	objetivo	de	depor	o	presidente.
No	 México,	 a	 liberalização	 política	 foi	 firmada	 na	 Constituição,	 mas	 a
abolição	 legal	 das	 divisões	 de	 classes	 teve	 pouco	 efeito	 real.	Um	historiador
descreve	 a	 situação	 do	México	 com	 palavras	 que	 poderiam	 ser	 aplicadas	 a
qualquer	 uma	 das	 nações	 das	 Américas	 Central	 e	 do	 Sul:	 “Os	 cidadãos
estavam	divididos	de	forma	rígida	pelas	barreiras	de	classe,	geografia	e	etnia,
muitas	das	quais	permaneceram	firmes	até	o	século	XX	[...]	As	eleições	eram
inexpressivas,	 e	 a	maioria	 da	 população	 permaneceu	 às	margens	 da	 política
nacional.”12	A	Constituição	 federal	de	1824	deu	autonomia	a	vinte	estados	e
quatro	territórios.	O	México	abrangia	então	grande	parte	dos	atuais	estados	do
Texas,	Novo	México	e	Califórnia,	e	essa	Constituição	liberal	com	autonomia
regional	atraiu	colonizadores	“anglos”	do	leste	dos	Estados	Unidos.	Em	1835,
no	 entanto,	 uma	 nova	 Constituição	 retirou	 a	 autonomia	 dos	 estados	 e
centralizou	 o	 poder	 na	 Cidade	 do	 México.	 A	 partir	 de	 então,	 o	 país	 ficou
dividido	entre	conservadores	protegidos	por	líderes	militares	como	Santa	Anna
e	 liberais	dominados	pela	 figura	de	Benito	 Juarez.	O	poder	mudou	de	mãos,
em	 geral	 de	 forma	 violenta,	 com	 as	 eleições	 tendo	 pouca	 influência	 na
definição	de	quem	estava	no	poder	(Juarez	chegou	a	ser	eleito	quatro	vezes	à
presidência).	A	Constituição	de	1857	prometia	liberdade	de	expressão,	reunião
e	 imprensa	 e	 reafirmava	 a	 abolição	 da	 escravatura,	 mas	 a	 implementação
dependia	de	quem	estava	no	poder.	O	 caudillo	mexicano	arquetípico,	Porfirio
Díaz,	 tomou	 o	 poder	 em	 1876	 e	 governou	 por	 35	 anos.	 A	 Constituição
permaneceu,	 mas	 as	 eleições	 eram	 manipuladas	 e	 o	 poder	 se	 manteve	 nas
mãos	de	poucos.
As	 tentativas	 políticas	 de	 formar	 nações	 enquanto	 entidades	 liberais
continuaram	 em	 face	 de	 realidades	 de	 poder	 desoladoras.	Na	Argentina,	 em
1853,	a	Constituição	previa	igualdade	perante	a	lei	ao	confirmar	a	abolição	da
escravatura	e	de	títulos	de	nobreza	e	ao	conferir	os	mesmos	direitos	a	todos	os
habitantes,	não	apenas	aos	cidadãos.	Isso	incluía	liberdade	de	expressão,	de	ir
e	vir,	de	propriedade	e	associação.	Todos	os	homens	adultos	tinham	o	direito
de	 votar	 em	 deputados	 da	 Câmara	 e	 do	 Senado.	 O	 documento	 é,	 para	 os
argentinos,	 central	 em	 sua	 história	 política,	 que,	 ainda	 assim,	 permaneceu
dominada	por	poderes	antidemocráticos.
Por	volta	de	1870,	a	América	do	Sul	começou	a	gozar	de	maior	estabilidade	e
prosperidade.	 Menos	 conflitos	 e	 uma	 demanda	 crescente	 por	 mercadorias
significavam	que	países	como	Argentina,	Chile,	Uruguai	e	Venezuela	podiam
conquistar	seu	lugar	no	mundo.	Uma	perspectiva	mais	internacional	levou	ao
aumento	de	medidas	 liberais,	o	que	 levou	a	uma	modernização	sustentável	e
ao	estabelecimento	de	bancos	nacionais,	Forças	Armadas,	escolas	e	Judiciário.
Além	disso,	o	desenvolvimento	de	ferrovias	e	telégrafos	ajudou	a	unificar	esses
países	 geograficamente.	 Na	 Argentina,	 isso	 permitiu	 uma	 expansão	 ainda
maior	para	os	pampas,	para	onde	a	maior	parte	dos	índios	remanescentes	foi
repelida	 e	 onde	 os	 pardos	 eram	 usados	 para	 a	 criação	 de	 gado.	 De	 1880	 a
1914,	a	Argentina	cresceu	a	uma	taxa	anual	de	5%	e	se	tornou	um	dos	países
mais	 ricos	 do	mundo.	Oportunidades	 em	 expansão	 levaram	 a	 uma	 enorme
imigração,	principalmente	da	Espanha	e	da	Itália:	a	população	aumentou	de	2
milhões,	em	1870,	para	5,5	milhões,	em	1920.
Bancos	 e	 empresas	 britânicos,	 em	 particular,	 colheram	 os	 benefícios,
ampliando	 seu	 envolvimento	 e	 consolidando	 seu	 papel	 de	 força	 econômica
dominante	 no	 continente.	 As	 empresas	 britânicas	 eram	 proprietárias	 de
ferrovias,	bancos,	estabelecimentos	comerciais	e	fábricas,	e	a	Grã-Bretanha	era
o	 principal	 mercado	 para	 carne	 e	 trigo,	 enviando,	 em	 troca,	 produtos
manufaturados	 à	 Argentina.	 Surgiu	 uma	 elite	 anglo-argentina,	 que	 uniu	 os
estancieros	para	a	criação	de	uma	classe	dominante	que	controlava	a	economia	e
a	 política	 do	 país.	 Num	mercado	 de	 produtos	 manufaturados	 e	 culturas	 de
rendimento,	pequenos	agricultores	e	fazendeiros	eram	excluídos.	As	terras	que
já	 não	 estavam	 nas	 mãos	 de	 grandes	 proprietários	 foram	 adquiridas	 por
investidores	 de	 grande	 escala	 que	 empregavam	 trabalhadores	 de	 baixa
remuneração.	A	 falta	 de	 uma	 classe	média	 rural	 —	 um	 grupo	 de	 produtores
inovadores	e	possível	mercado	para	os	produtos	manufaturados	—	continuou,
portanto,	 desestimulando	 o	 desenvolvimento	 de	 um	 sistema	 industrial	 com
base	no	próprio	país.
A	virada	do	século	XX	foi	um	período	de	crescimento	acentuado	na	maior
parte	 da	 América	 Latina,	 mas,	 embora	 estejamos	 vendo	 suas	 fraquezas
estruturais	 com	 o	 auxílio	 da	 retrospectiva,	 a	 precariedade	 da	 situação	 era
compreendida	 de	 forma	 ampla	 na	 época.	 O	 político	 e	 historiador	 argentino
Vicente	 Fidel	 López	 escreveu,	 na	 década	 de	 1870:	 “Somos	 o	 curral	 dos
estrangeiros,	 uma	 parte	 do	 território	 estrangeiro,	 porque	 não	 temos
independência	alguma.”13	Nem	mesmo	o	 influxo	de	 imigrantes	em	massa	no
fim	do	século	XIX	não	alterou	os	fatos	fundamentais	da	sociedade	argentina.
Sem	mercado	interno	para	os	produtos,	o	acesso	aos	mercados	internacionais
permaneceu	sendo	o	eixo	da	economia.	Os	conflitos	 internos	da	Argentina	e
de	 outros	 países	 latino-americanos	 permitiram	 o	 desenvolvimento	 de	 uma
sociedade	 dual.	 Por	 um	 lado,	 as	 Constituições	 liberais	 e	 eleições	 periódicas
davam	a	aparência	de	uma	democracia	liberal,	mas,	como	o	poder	econômico
estava	 concentrado	nas	mãos	de	poucos	 (incluindo	empresas	britânicas),	 isso
fez	do	aspecto	público	da	política	uma	 farsa.	Na	 realidade,	 todos	os	poderes
significativos	eram	estabelecidos	e	negociados	por	meios	obscuros.
A	América	Latina	continuou	sendo	um	conjunto	de	nações	independentes,
com	estruturas	 sociais	desiguais	 arraigadas,	 com	bolsões	de	prosperidade	 em
meio	 à	 pobreza	 predominante.	 A	 democracia	 foi	 legislada	 em	 suas
Constituições,	mas	 pouco	 praticada	nos	 corredores	 do	 poder.	Embora	 tenha
tido	um	início	notável,	a	democracia	na	América	Latina	era,	ao	final	do	século
XIX,	não	muito	diferente	da	europeia,	em	que	líderes	políticos	apresentavam
uma	retórica	de	liberalismo	e	princípios	democráticos,	mas	o	poder	permanecia
nas	mãos	de	uma	faixa	estreita	da	sociedade.
“A
9
EUROPA	NO	SÉCULO	XIX
O	Cidadão	Rejeitado
batalha	 é	minha.	 E,	 se	 os	 prussianos	 chegarem	 logo,	 a	 guerra	 terá	 um
fim.”
A	declaração	do	duque	de	Wellington	 foi	proferida	pouco	após	as	quatro
horas	de	18	de	junho	de	1815.	A	Batalha	de	Waterloo	deu	um	fim	às	Guerras
Napoleônicas	e	anunciou	o	começo	de	uma	nova	fase	da	política	europeia.	A
era	 revolucionária	 e	 napoleônica	 da	 França	 havia	 alterado	 profundamente	 a
geopolítica,	 mas	 também	 a	 linguagem	 e	 os	 pressupostos	 políticos	 de	 todo	 o
continente.	 Os	 cinquenta	 anos	 seguintes	 testemunharam	 a	 luta	 de	 líderes	 e
cidadãos	europeus	para	encontrar	um	modo	de	acomodar	a	nova	política	ao
contexto	das	vastas	mudanças	sociais,	econômicas	e	tecnológicas	geradas	pela
industrialização.
A	 Revolução	 Francesa	 introduziu	 a	 prática	 da	 democracia	 nacional	 na
Europa,	 e	 as	 conquistas	 do	 Exército	 francês	 de	 partes	 da	 Alemanha,	 Países
Baixos,	 Itália	 e	 Espanha	 —	 com	 a	maioria	 dos	 outros	 países	 forçada	 a	 fazer
aliança	com	a	França	—	difundiram	os	ideais	da	política	liberal.	Em	novembro
de	1814,	quando	Napoleão	estava	 exilado	em	Elba,	 a	principais	potências	 se
uniram	em	Viena	 sob	a	orientação	de	Klemens	von	Metternich,	ministro	do
Exterior	da	Áustria,	para	estabeleceremas	fronteiras	dos	Estados	europeus	que
haviam	 sido	 fortemente	 fragmentados	 por	 duas	 décadas	 de	 conquistas
francesas.
Na	Europa	Central	em	particular,	as	mudanças	haviam	sido	profundas.	Um
grande	 número	 de	 reinos,	 principados,	 cidades	 e	 bispados	 independentes
formando	 a	 instável	 associação	 do	 Sacro	 Império	 Romano	 havia	 sido
dominado	 anteriormente	 pelo	 reino	 da	 Prússia,	 ao	 norte,	 e	 pelo	 Império
Austríaco,	ao	sul.	Esse	“centro	frágil”	da	Europa	foi	organizado	em	unidades
administráveis	por	Napoleão	e	depois	amalgamado	na	Confederação	do	Reno.
Após	sua	derrota,	essas	terras	retomaram	a	independência	e,	embora	o	Sacro
Império	 Romano	 não	 tivesse	 sido	 ressuscitado,	 a	 Prússia	 e	 a	 Áustria
continuaram	sua	luta	por	influência	no	centro	de	língua	germânica	na	Europa.
Quando	os	franceses	foram	forçados	a	deixar	a	Itália,	a	Áustria	voltou	a	impor
seu	governo	na	maior	parte	do	norte,	incluindo	as	províncias	mais	prósperas.
Na	sequência	da	derrota	francesa,	o	objetivo	em	Viena	era	criar	uma	série
de	 Estados	 fortes	 com	 governos	 que	 reconhecessem	 as	 fronteiras	 uns	 dos
outros	como	um	caminho	para	a	paz	e	a	 segurança.	O	Congresso	 teve	êxito
nessa	 finalidade.	 Durante	 o	 século	 seguinte,	 as	 guerras	 entre	 as	 principais
potências	 europeias	 ficaram	 restritas	 à	 Guerra	 da	 Crimeia,	 de	 1854-55,	 às
guerras	 pela	 independência	 italiana	 (1859	 e	 1866),	 à	 Guerra	 Prusso-
Dinamarquesa,	de	1864,	à	Guerra	Austro-Prussiana,	de	1866	(Guerra	das	Sete
Semanas),	 e	 à	 Guerra	 Franco-Prussiana,	 de	 1870-71	 —	 um	 recorde	 notável
numa	era	tão	militarista.
O	outro	objetivo	do	Congresso	de	Viena	era	determinar	que	esses	Estados
devessem	ser	capazes	de	resistir	às	pressões	revolucionárias	que	derrubaram	o
Ancien	 Régime	 na	 França.	 Os	 Exércitos	 franceses	 não	 apenas	 haviam
conquistado	a	maior	parte	da	Europa	Continental,	mas	 criaram	Estados	que
refletiam	 a	 filosofia	 da	 Revolução,	 estabelecendo	 governos	 constitucionais
(ainda	 que,	 na	 prática,	 dominados	 por	 homens	 nomeados	 pela	 França),
igualdade	perante	a	lei	e	um	código	prático	de	governo	e	 jurisdição	legal.	Os
governos	de	toda	a	Europa,	apesar	de	sentirem-se	forçados	a	aprovar	leis	que
garantiam	a	igualdade	perante	a	lei	e	a	tolerância	religiosa,	aprovaram	medidas
que	 restringiam	 o	 liberalismo.	 Entre	 os	 Estados	 germânicos,	 Metternich
persuadiu	uma	Dieta	relutante	a	promulgar	uma	série	de	leis	com	a	finalidade
de	restringir	a	liberdade	de	imprensa.	Os	governos	queriam	ter	mais	controle
da	 população:	 um	 registro	 dos	 habitantes	 de	Berlim	 começou	 a	 ser	 feito	 em
1799,	 e	 um	 censo	 nacional	 regular	 foi	 introduzido	 na	 França	 em	 1836,	 na
Dinamarca	em	1840	e	na	Grã-Bretanha	em	1841.	Ainda	mais	alarmante	foi	a
manifestação	 de	 60	 mil	 pessoas	 em	 favor	 da	 reforma	 política	 em	 1819,	 no
parque	de	St.	Peter,	em	Manchester;	quinze	pessoas	foram	mortas	num	ataque
da	mesma	cavalaria	que	lutou	em	Waterloo,	e	a	palavra	Peterloo	tornou-se	um
símbolo	 do	 radicalismo	 britânico	 reprimido	 pela	 autoridade.	 O	 Ato	 de
Reforma	britânico	de	1832	 foi	 realizado	 com	a	 função	 explícita	de	 sufocar	 a
possibilidade	de	revolução,	ao	passo	que	a	Lei	dos	Pobres,	de	1834,	alterava
uma	 série	 de	 obrigações	 locais	 para	 que	 as	 paróquias	 atendessem	 aos
necessitados	por	meio	de	um	sistema	nacional	que	garantia	que	qualquer	um
que	 se	 beneficiasse	 de	 auxílios	 (através	 de	 asilos)	 deveria	 estar	 em	 piores
condições	que	qualquer	pessoa	com	trabalho.
Por	mais	de	trinta	anos,	o	espírito	de	Viena	reinou	na	Europa,	com	regimes
que	 restringiam	o	 acesso	 ao	poder	 e	o	direito	de	voto,	 tendo	 como	pano	de
fundo	uma	batalha	entre	as	ideias	liberais	e	os	poderes	conservadores.	Na	Grã-
Bretanha,	 por	 exemplo,	 as	 Leis	 de	 Associações,	 que	 proibiam	 associações
trabalhistas,	 foram	revogadas	em	1824,	mas,	dez	anos	depois,	os	Mártires	de
Tolpuddle	foram	condenados	por	meio	de	uma	lei	obscura	relativa	à	prestação
de	juramentos	—	o	impulso	liberal	por	trás	da	medida	anterior	foi	anulado	por
um	 Judiciário	 conservador.	 Em	 1830,	 a	 assembleia	 francesa	 arquitetou	 a
remoção	do	idoso	Carlos	X	do	trono,	em	favor	do	supostamente	liberal	Luís
Felipe.	No	entanto,	uma	vez	no	poder,	o	chamado	Rei	Cidadão	revelou-se	tão
conservador	quanto	seu	antecessor.	O	rei	Frederico	Guilherme	III	da	Prússia
abandonou	as	promessas	feitas	em	1813	de	uma	Constituição	liberal	e,	após	a
derrota	 de	 Napoleão,	 governou	 como	 monarca	 ditatorial.	 Em	 todos	 esses
casos,	os	poderes	governantes	apresentaram	discursos	em	defesa	dos	princípios
liberais	antes	de	retroceder.
Embora	 a	 maioria	 dos	 cidadãos	 não	 desejasse	 uma	 revolução	 plena,	 na
mesma	escala	dos	eventos	de	1789,	suas	necessidades	não	eram	atendidas	pelo
status	quo.	A	Restauração,	como	ficaram	conhecidas	as	décadas	após	o	Congresso
de	Viena,	perpetuou	o	erro	histórico	do	Ancien	Régime	ao	deixar	de	reconhecer
as	 mudanças	 fundamentais	 na	 sociedade	 e	 de	 lidar	 com	 elas.	 Em	 primeiro
lugar,	a	Europa	estava	em	transição	de	economia	predominantemente	agrícola
e	 artesanal	 para	 uma	 sociedade	 de	maioria	 urbana	 e	 industrial.	 Em	 1855,	 a
Grã-Bretanha	foi	a	primeira	nação	europeia	a	ter	mais	habitantes	nas	cidades
que	no	interior.	Para	a	Europa	como	um	todo,	esse	ponto	foi	atingido	no	final
do	século	XIX,	mas	o	processo	estava	avançado	na	década	de	1840,	 junto	a
um	 crescimento	 geral	 da	 população.	 Em	 segundo	 lugar,	 as	 classes	 médias
urbanas	 —	 oficiais	 do	 governo,	 advogados,	 comerciantes,	 donos	 de	 lojas,
médicos,	 contadores	 —	 estavam	 cada	 vez	 mais	 expostas	 às	 ideias	 e	 debates
políticos	 por	 meio	 de	 jornais,	 revistas	 e	 folhetos.	 A	 transformação	 nas
comunicações	foi	completa,	com	o	crescimento	das	ferrovias,	do	telégrafo	e	de
outras	 tecnologias	 novas	 —	 em	 1814,	 o	The	Times	 de	 Londres	 adquiriu	 uma
prensa	 tipográfica	 capaz	 de	 produzir	 mais	 de	 mil	 páginas	 por	 minuto.	 Em
1855,	 os	 jornais	 britânicos	 ficaram	 finalmente	 isentos	 do	 imposto	 do	 selo,	 o
Telegraph	surgiu	como	o	primeiro	jornal	nacional	popular,	e	o	Liverpool	Post	e	o
Manchester	 Guardian	 tornaram-se	 jornais	 diários.	 Na	 maioria	 das	 cidades
europeias,	os	jornais	cobriam	debates	políticos	e	eram	compartilhados	em	cafés
e	sociedades	de	leitura.	Na	metade	do	século,	as	classes	médias	em	crescimento
transformavam-se	numa	voz	bem-informada	e	influente	da	sociedade	europeia.
Eis	o	terceiro	aspecto:	essas	pessoas	sabiam	muito	bem	que	eram	cada	vez
mais	responsáveis	pela	criação	e	administração	da	nova	sociedade.	Ganharam
uma	 identidade	definitiva	e	uma	confiança	em	seu	próprio	valor	e	virtude,	e
desenvolveram	 opiniões	 tanto	 a	 respeito	 da	 aristocracia	 fundiária,	 que
reivindicava	 o	 direito	 de	 governá-las,	 como	 dos	 trabalhadores	 que
empregavam.	Se	a	Revolução	Francesa	deixou	um	medo	aterrorizante	de	uma
rebelião	 das	 bases	 da	 população,	 as	 classes	 médias	 também	 começaram	 a
perder	 a	 paciência	 com	 seus	 superiores	 na	 escala	 social	 (mas	 inferiores
moralmente),	 que	 governavam	 as	 nações	 da	 Europa	 de	 acordo	 com	 seus
próprios	interesses.	Elas	não	queriam	simplesmente	ter	uma	voz	mais	forte	na
sociedade,	queriam	um	tipo	diferente	de	sociedade.
O	modelo	que	a	França	revolucionária	forneceu	para	os	simpatizantes	com
as	 ideias	 liberais	 era	 o	 de	 uma	 nação	 baseada	 na	 soberania	 do	 povo.	 Os
contornos	 da	 nação	 francesa	 não	 seriam	mais	 delineados	 de	 acordo	 com	 as
preferências	 e	 negociações	 de	monarcas	 e	 cortesãos,	mas	 de	 acordo	 com	 os
desejos	do	povo:	o	povo	 francês	era	a	nação	 francesa.	Haviam	sido	 tomadas
medidas	para	dar	ao	povo	uma	 identidade	comum	e	um	senso	de	unidade	e
propósito,	em	troca	dos	quais	lhe	eram	concedidos	direitos	iguais.	As	pessoas
haviam	se	unido	nessa	nova	nação	e	lutado	—	primeiro	por	sua	sobrevivência,
depois	para	punir	seus	inimigos	e,	finalmente,	para	construir	um	império.	Os
Exércitos	 franceses,preenchidos	 por	 grandes	 quantidades	 de	 citoyens
entusiasmados,	haviam	tido	um	êxito	extraordinário:	em	apenas	duas	décadas,
de	 1792	 a	 1812,	 a	 França	 havia	 conquistado	 a	 quase	 totalidade	 da	 Europa
Continental.	 Essa	 foi	 a	 outra	 grande	 lição	 dos	 anos	 revolucionários	 —	 uma
nação	baseada	numa	cultura,	 linguagem	e	 identidade	 comuns	podia	 alcançar
harmonia	 interna	 e	 grandeza	 externa.	 Essas	 duas	 tendências	 —	 liberalismo	 e
nacionalismo	 —	 iriam	 dominar	 a	 política	 da	 Europa	 no	 século	 XIX,	 com	 a
democracia	seguindo	os	exemplos	dessas	forças	poderosas.
A	 tentativa	 de	 preservar	 o	 status	 quo	 na	Europa	 finalmente	 falhou,	 de	 forma
dramática,	 durante	 o	 ano	 de	 1848,	 o	 ano	 das	 revoluções.	 Ainda	 que,	 em
termos	de	emprego,	a	Europa	ainda	fosse,	em	grande	parte,	agrícola,	do	início
para	meados	do	século	XIX,	a	indústria	impulsionava	as	mudanças	sociais.	As
tensões	 entre	 os	 sistemas	 de	 produção	 que	 chegavam	 e	 as	 enormes
quantidades	de	artesãos	e	Handwerker	em	centros	como	Lille,	Lyon,	Aachen	e
Leipzig	geraram	greves	e	tumultos.	Não	apenas	as	fábricas	estavam	excluindo
os	 artesãos	 de	 seu	mercado	 tradicional,	 como	 a	 vida	 dos	 operários	 não	 era
nada	 invejável.	 Trazido	 do	 interior,	 analfabeto,	 mal	 pago	 e	 maltratado,	 a
expectativa	de	vida	do	trabalhador	de	uma	fábrica	de	Lilly	na	década	de	1840,
por	 exemplo,	 era	 de	 cerca	 de	 30	 anos,	 e	 o	 salário	 real	 dos	 trabalhadores
franceses	 diminuiu	 a	 cada	 ano,	 de	 1817	 a	 1848.	 Os	 trabalhadores	 alemães
viram	seus	salários	caírem	para	um	quarto	durante	a	década	de	1840,	e	suas
condições	de	trabalho	também	eram	pavorosas.
Se	 essas	 condições	 foram	 motivo	 de	 descontentamento	 entre	 os
trabalhadores,	 houve	 paralelos	 em	 outros	 setores	 da	 sociedade.	 Tanto	 as
grandes	 famílias	 de	 comerciantes	 e	 banqueiros,	 cujo	 poder	 estava	 crescendo,
como	 as	 classes	 médias	 em	 desenvolvimento	 estavam	 desiludidas	 com	 a
incapacidade	 de	 seus	 governantes	 de	 administrarem	 a	 transição	 para	 a
industrialização.	O	manejo	 desastroso	 dos	 investimentos	 governamentais	 em
ferrovias	e	a	superprodução	catastrófica	de	aço,	influenciada	pelo	governo,	na
década	de	1840,	 exasperaram	os	 industriais	 e	 a	burguesia.	Na	Alemanha,	os
chefes	 da	 indústria	 também	 estavam	 frustrados	 com	 a	 fragmentação	 do
mercado	 doméstico,	 exigindo	 mais	 integração	 política	 para	 aumentar	 as
possibilidades	 comerciais.	A	 tributação	 causou	ainda	mais	descontentamento,
especialmente	 nas	 regiões	 em	 que	 o	 poder	 político	 encontrava-se	 em	 outros
locais	 —	 os	 impostos	 pagos	 pelas	 províncias	 italianas	 da	 Venécia	 e	 da
Lombardia,	por	exemplo,	sustentavam	o	Império	Austríaco.
É	interessante	que	as	pressões	ao	governo	vindas	de	cima	e	debaixo	foram
consideravelmente	 moderadas	 nos	 dois	 países	 industrializados	 mais
desenvolvidos	da	Europa	—	Grã-Bretanha	e	Bélgica.	A	Grã-Bretanha	enfrentou
desafios	 políticos	 em	 1848,	 mas	 nenhuma	 revolução,	 porque	 sucessivos
governos	 já	 haviam	 tomado	 medidas	 para	 tranquilizar	 tanto	 os	 industriais
como	as	classes	médias.	Os	sistemas	político,	comercial	e	bancário,	incluindo	o
uso	 de	 ações	 e	 os	 esquemas	 de	 subscrição	 pública	 para	 infraestrutura,
atendiam	bem	às	necessidades	dos	industriais;	a	Lei	dos	Pobres,	de	1834,	deu
o	sinal	verde	para	a	exploração	da	mão	de	obra	barata,	ao	passo	que	o	Ato	das
Corporações	 Municipais,	 de	 1835,	 permitiu	 que	 as	 classes	 médias
administrassem	 cidades	 grandes	 e	 pequenas.	 Na	 Bélgica,	 a	 Constituição	 de
1831	foi	vista	como	um	modelo	de	liberalismo	para	o	restante	do	continente.
O	requisito	de	propriedade	para	votar	nas	câmaras	 inferiores	do	Parlamento
era	 extremamente	 baixo,	 o	 Senado	de	 líderes	 respeitados	 era	 uma	 influência
estabilizadora	e	exigia-se	que	o	monarca	fizesse	um	juramento	de	obediência	à
Constituição	ao	assumir	o	trono.	Aqui,	o	governo	trouxera	de	forma	efetiva	os
comerciantes	e	as	classes	médias	para	a	esfera	política.
Porém	as	Constituições	e	as	 leis	de	representação	política	nunca	contam	a
história	 toda.	 Em	 outras	 partes	 da	 Europa,	 as	 Constituições	 davam	 direitos
políticos	 sem	permitir	os	meios	para	exercê-los.	Na	França,	 cerca	de	240	mil
homens	 estavam	 qualificados	 para	 votar	 e	 se	 candidatar	 nas	 eleições	 para	 a
Câmara	dos	Deputados,	mas	mais	de	dois	terços	dos	deputados	em	1840	eram
do	grupo	mais	rico,	os	18	mil	que	pagavam	mais	de	mil	francos	em	impostos.
Ainda	que	os	industriais	poderosos	pudessem	entrar	para	esse	grupo,	as	classes
profissionais	 e	 a	 pequena	burguesia	 estavam	 excluídas.	As	 barreiras	 políticas
eram	 apenas	 uma	 parte	 da	 história.	 Na	 Áustria,	 França	 e	 Prússia,	 sistemas
arcanos	 determinavam	 que	 estudantes	 qualificados,	 como	 advogados,
funcionários	públicos	ou	médicos,	geralmente	 teriam	de	 trabalhar	por	 longos
períodos	como	aprendizes	e	esperar	muitos	anos	até	que	houvesse	vagas	para
os	 cargos.	Havia	 um	 número	 excessivo	 de	 pessoas	 qualificadas	 para	 poucos
cargos	disponíveis,	e	o	governo	não	era	capaz	de	oferecer	soluções.	Tudo	isso
criou	uma	atmosfera	de	impotência	e	frustração	entre	as	classes	médias,	que	se
sentiam	marginalizadas	 à	medida	 que	 a	 influência	 política	 e	 o	 avanço	 social
ficavam	além	do	seu	alcance.
Enquanto	os	efeitos	da	industrialização	foram	sentidos	de	modo	mais	agudo
nos	 centros	 urbanos	 em	 crescimento,	 a	 situação	 no	 interior	 tornava-se
desesperadora.	 De	 1800	 a	 1840,	 a	 população	 da	 Europa	 cresceu	 de	 190
milhões	 para	 270	 milhões,	 incluindo	 um	 aumento	 intenso	 em	 algumas
populações	 rurais	 —	 75%	 no	 leste	 da	 Prússia,	 por	 exemplo.	 Embora	 tivesse
havido	 melhoras	 significativas	 na	 produtividade	 e	 mais	 terras	 cultivadas,	 as
dificuldades	no	abastecimento	alimentar	eram	imensas.	A	migração	do	campo
para	 as	 pequenas	 e	 grandes	 cidades	 também	 causou	 tensões	 sociais.	 Nos
pontos	 em	 que	 a	 agricultura	 capitalista	 conflitava	 com	 os	 direitos
consuetudinários,	 como	 no	 sul	 e	 no	 centro	 da	 França,	 houve	 resistência
violenta.	 O	 espectro	 de	 1789	 continuou	 a	 assombrar	 os	 senhores	 de	 terras
semifeudais	da	Europa,	perturbando	a	tranquilidade	de	seus	castelos	e	solares.
Na	década	de	1840,	muitos	moradores	das	áreas	rurais	eram	extremamente
pobres,	 gastando	 70%	 de	 sua	 renda	 com	 alimentação	 e	 terrivelmente
vulneráveis	 aos	 aumentos	 de	 preço	de	 produtos	 básicos,	 como	 a	 batata	 e	 os
cereais.	As	colheitas	do	início	da	década	de	1840	foram	ruins	na	Europa,	e	a
destruição	da	safra	de	batatas	em	1845-47	causou	uma	escassez	generalizada,
especialmente	na	Irlanda.	Lá	e	em	outros	lugares,	a	infraestrutura	fraca	para	o
transporte,	 o	 crescimento	 da	 população	 e	 um	 sistema	 social	 instável
contribuíram	 para	 a	 catástrofe.	 Na	 Irlanda,	 a	 situação	 foi	 exacerbada	 pela
indecisão	e	a	falta	de	ação	lastimáveis	das	autoridades	britânicas	—	outro	sinal
da	 incapacidade	 de	 os	 governos	 lidarem	 com	 as	 realidades	 das	 novas
economias.	 As	 condições	 de	 vida	 dos	 pobres	 rurais	 e	 urbanos	 por	 toda	 a
Europa	pioraram	de	forma	dramática	com	o	aumento	vertiginoso	do	preço	dos
alimentos	básicos:	o	preço	do	trigo	e	do	centeio	na	Alemanha	aumentou	60%
em	 apenas	 dois	 anos	 desde	 1845;	 em	 outros	 lugares,	 houve	 registros	 de
aumentos	 de	 200%.	Um	 comentarista	 escreveu:	 “Os	 habitantes	 da	 província
que	é	chamada	de	pérola	da	Coroa	prussiana,	a	Silésia,	vivem	em	condições
piores	que	as	dos	presidiários.”
Os	 desastres	 naturais	 somaram-se	 às	 colheitas	 ruins.	 Inundações
devastadoras	 causadas	 pelo	 rio	 Vístula	 arrasaram	 plantações	 por	 todo	 o
Império	Austríaco,	levando	milhares	de	camponeses	necessitados	a	Viena	—	no
entanto,	as	autoridades	austríacas	ainda	exportavam	trigo.	Em	muitos	lugares,
as	 pessoas	 decidiram	 resolver	 os	 problemas	 por	 conta	 própria,	 ocupando
depósitos	 de	 cereais	 e	 engenhos,	 interceptandocomboios	 de	 trigo	 em	 rios	 e
canais.	 Esses	 distúrbios	 no	 campo	 e	 o	 colapso	 da	 autoridade	 levaram
trabalhadores	 itinerantes	às	cidades	—	a	maioria	homens	 jovens	com	pouco	a
perder.
Os	 problemas	 sociais	 no	 interior	 exacerbaram	 os	 problemas	 já	 existentes
nas	cidades.	O	comércio	foi	desfavorecido	pela	queda	dos	preços	das	ações	e
pela	 ameaça	 às	 finanças	 nacionais,	 com	 o	 desaparecimento	 do	 crédito	 para
negócios.	 Em	 Viena,	 com	 o	 governo	 imperial	 endividado	 além	 de	 seus
recursos,	os	principais	bancos	faliram.	Nenhuma	dessas	condições	é	precursora
certa	 de	 revoluções	 —	muitas	 delas	 ocorrem	 em	 outras	 situações	 —,	 mas	 os
levantes	de	1848	não	foram	eventos	isolados;	em	vez	disso,	foram	indicadores
de	 mudança.	 O	 ano	 de	 1848	 foi	 um	 ponto	 de	 transição,	 um	 marcador	 no
século	em	que	a	democracia	passou	de	ameaça	à	sociedade	civilizada	a	um	de
seus	 principais	 componentes.	 Precisamos	 fazer	 uma	 breve	 análise	 dos
acontecimentos	nos	três	principais	países	europeus	afetados	—	Áustria,	Prússia
e,	primeiro,	França.
Após	 a	 derrota	 de	 Napoleão,	 a	 dinastia	 dos	 Bourbon	 retomou	 o	 poder	 na
pessoa	 de	 Luís	XVIII	 (Luís	XVII	morrera	 em	 1795,	 sem	 assumir	 o	 trono).
Para	 se	 salvaguardar	 contra	 mais	 uma	 revolução,	 o	 Congresso	 de	 Viena
insistiu	que	o	rei	adotasse	uma	nova	Constituição,	o	que	resultou	na	Carta	de
1814.	 Ela	 restringia	 o	 poder	 do	 monarca	 e	 estipulava	 a	 existência	 de	 uma
Câmara	de	Pares	e	uma	Câmara	de	Deputados,	esta	eleita	por	meio	de	uma
qualificação	 de	 propriedade	 restrita	 que	 conferia	 o	 direito	 de	 voto	 a	 90	mil
cidadãos.	O	 reino	 ainda	 tinha	o	 controle	do	Exército	 e	o	direito	de	declarar
guerra;	também	criava	leis	com	seus	ministros	e	as	enviava	para	a	aprovação
da	Câmara.	 Seus	 súditos	 tinham	 igualdade	 perante	 a	 lei,	 e	 as	 liberdades	 de
culto	 religioso,	 expressão	 e	 imprensa	 estavam	 garantidas.	 Essa	 Constituição
colocou	a	França	em	pé	de	igualdade,	de	modo	geral,	com	as	outras	nações	da
Europa:	um	Estado	constitucional	com	garantias	liberais,	mas	com	o	acesso	ao
poder	 extremamente	 limitado	 e	 autoridade	 arbitrária	 ainda	 mantida	 pelos
governantes.
Com	a	sua	morte	em	1824,	Luís	foi	sucedido	pelo	irmão	mais	novo,	Carlos,
que	 foi	arruinado	pelo	 legado	da	Revolução	de	1789.	Carlos	propôs	uma	 lei
que	 permitia	 aos	 nobres	 fugidos	 do	 país	 na	 década	 de	 1790	 exigirem
compensação	financeira.	A	Câmara	dos	Deputados	recusou-se	a	aprovar	a	lei,
e	 a	 consequente	 crítica	 do	 rei	 tornou-se	 tão	 intensa	 que	 ele	 propôs	 a
reintrodução	da	censura.	A	câmara	vetou	mais	essa	solicitação	e,	em	março	de
1830,	 aprovou	 uma	 moção	 de	 ausência	 de	 confiança	 no	 rei	 e	 em	 seus
ministros.	 Carlos	 desfez	 as	 duas	 câmaras,	 mas	 as	 eleições	 resultaram	 numa
casa	ainda	mais	liberal.	O	rei	reagiu	emitindo	as	abomináveis	Ordenanças	de
Julho,	 que	 suspendiam	 a	 imprensa,	 dissolviam	 a	 Câmara	 dos	 Deputados	 e
removiam	seu	direito	de	 fazer	emendas	na	 legislação.	O	resultado	foram	três
dias	 de	 revolução,	 nos	 quais	 o	 povo	 de	 Paris	 tentou	 tomar	 o	 controle	 da
cidade.	O	rei	abdicou	ao	trono	e	fugiu	para	a	Grã-Bretanha,	sendo	substituído
pelo	duque	de	Orleans,	que	passou	a	se	chamar	Luís	Felipe.
Apesar	 de	 ser	 um	 membro	 da	 família	 real,	 o	 novo	 Rei	 Cidadão	 era
conhecido	 por	 sua	 afinidade	 com	 as	 ideias	 liberais	 —	 lutara	 do	 lado
revolucionário	 em	Valmy	e	 Jemappes.	Ele	 introduziu	 a	Carta	Constitucional
de	1830,	que	reduzia	os	requisitos	para	o	voto,	permitindo	que	cerca	de	200
mil	 pessoas	 participassem	 das	 eleições.	 A	 liberdade	 de	 imprensa	 foi
restabelecida,	e	o	poder	do	rei	para	 introduzir	 leis	 foi	removido,	enquanto	as
três	 cores	 revolucionárias	 substituíam	 o	 branco	 e	 dourado	 do	 brasão	 dos
Bourbon	na	bandeira	da	França.	Porém,	apesar	desse	início	liberal,	Luís	Felipe
tornou-se	 cada	 vez	 mais	 intransigente,	 e	 seus	 ministros,	 em	 particular	 o
primeiro-ministro	 François	 Guizot,	 não	 corresponderam	 às	 mudanças	 na
sociedade	francesa.
Em	1848,	as	forças	que,	como	vimos,	desestabilizavam	a	Europa	atingiram
um	ponto	 crítico	 na	 França.	As	manifestações	 públicas	 foram	proibidas,	 não
restando	vias	de	expressão	para	as	discordâncias	políticas.	Para	driblarem	as
restrições,	grupos	de	oposição	deram	início	a	uma	série	de	reuniões,	chamadas
champagne	de	banquets,	nas	quais	as	pessoas	se	encontravam	socialmente	com	o
objetivo	de	discutir	questões	políticas.	Elas	também	foram	proibidas,	o	que	deu
fim	 à	 última	 via	 de	 protesto.	 Em	 resposta,	 em	 22	 de	 fevereiro,	 multidões
ocuparam	 as	 ruas	 de	 Paris,	 seguindo	 para	 o	 Palácio	 das	Tulherias	 e	 para	 a
Câmara	dos	Deputados.	“Uma	multidão	poderosa,	armada	com	paus	e	barras
de	 ferro,	 lutou	 para	 arrebentar	 o	 portão	 e	 infligir	 uma	 vingança	 sumária	 a
Guizot”,	 escreveu	um	visitante	 americano,	Percy	St.	 John.	 “As	 janelas	 foram
quebradas	com	pedras.	Altos	gritos	de	‘Vive	la	Reforme!’	foram	seguidos	por	A
bas	Guizot!’”	1
Em	seu	romance	A	educação	sentimental,	Gustave	Flaubert	descreveu	a	mesma
noite:
Discursos	 inflamados	 eram	declamados	nas	 esquinas;	o	 repique	de	 sinos	 ressoava	 furiosamente	 [...]
fundiam-se	 balas	 de	 chumbo,	 laminavam-se	 cartuchos.	 As	 árvores	 nos	 bulevares,	 os	 mictórios
públicos,	bancos,	trilhos	e	lâmpadas	a	gás	haviam	sido	destruídos	[...]	pela	manhã,	Paris	estava	coberta
de	barricadas.	A	resistência	durou	pouco;	a	Guarda	Nacional	juntava-se	aos	rebeldes	por	toda	parte,	e
às	oito	horas	o	povo	de	Paris	estava	no	controle.
As	manifestações	e	tumultos	de	fevereiro	de	1848	tiveram	êxito	na	derrubada
do	governo	porque	a	Guarda	Nacional	uniu-se	à	rebelião,	mas	também	porque
o	 rei	 e	 a	 elite	 governante	 haviam	 perdido	 a	 confiança	 em	 sua	 própria
capacidade	 de	 governar.	 Como	 Flaubert	 comentou:	 “Suavemente,	 de	 forma
espontânea,	a	monarquia	estava	desaparecendo.”2	Em	23	de	fevereiro,	Guizot
renunciou	e,	na	sequência	da	morte	de	52	manifestantes,	o	rei	renunciou	logo
em	 seguida.	 Um	 governo	 provisório	 foi	 formado	 rapidamente	 e,	 em	 26	 de
fevereiro,	 a	 Segunda	 República	 foi	 declarada	 enquanto	 o	 espírito	 de	 1789
tomava	conta	da	nação.	As	eleições	para	uma	Assembleia	Constituinte	foram
realizadas	no	domingo	de	Páscoa	com	sufrágio	universal	masculino,	gerando	9
milhões	 de	 novos	 eleitores,	 embora	 o	 requisito	 de	 três	 anos	 de	 residência
excluísse	um	grande	número	de	trabalhadores	itinerantes.
No	 entanto,	 as	 esperanças	 republicanas	 de	 um	 recomeço	 logo	 foram
arruinadas,	quando	a	Igreja,	em	particular,	fez	valer	toda	a	sua	influência	sobre
os	 paroquianos.	A	 França	 ficou	 dividida	 entre	 um	 interior	 conservador	 e	 as
cidades	 radicais.	 A	maioria	 das	 pessoas	 ainda	 era	 residente	 da	 área	 rural,	 e
mais	 da	 metade	 dos	 deputados	 eleitos	 era	 de	 partidos	 conservadores.	 Um
tumulto	em	Rouen	contra	os	resultados	da	eleição	levou	à	morte	de	59	pessoas
—	a	contrarrevolução	começara	dois	meses	após	o	início	da	revolução.
A	 Comissão	 Executiva	 que	 formou	 o	 novo	 governo	 excluiu	 o	 líder
republicano	 radical	 Luís	 Blanc,	 e	 uma	 invasão	mal-executada	 da	 assembleia
por	parte	de	protestantes,	em	15	de	maio,	deu	ao	governo	um	pretexto	para
prender	 vários	 outros	 radicais.	 Uma	 revolta	 de	 trabalhadores	 em	 Paris,
conhecida	como	Dias	de	Junho,	foi	reprimida	de	modo	brutal	por	tropas	que
mataram	 cerca	 de	 1.500	 manifestantes,	 com	 uma	 estimativa	 de	 15	 mil
deportados	para	a	Argélia.	As	classes	médias	parisienses,	apesar	de	quererem
reformas	 liberais	e	acesso	ao	poder,	 ficaram	satisfeitas	em	ver	uma	repressão
de	 militantes	 da	 classe	 trabalhadora.	 Essa	 foi	 uma	 divisão	 crucial	 que
pressagiou	o	desenvolvimento	político	da	Europa	durante	o	restante	do	século
XIX.
Em	 novembro	 de	 1848,	 uma	 nova	 Constituição	 foi	 aprovada	 na	 França,
com	sufrágio	universal	masculino.	Uma	única	assembleia,	de	750deputados,
eleita	a	cada	 três	anos,	escolheria,	por	sua	vez,	um	Conselho	de	Estado	para
propor	uma	legislação.	Um	presidente	com	poderes	executivos,	eleito	por	voto
direto,	 teria	 um	mandato	 de	 quatro	 anos.	Nesse	momento,	 a	 França	 parecia
estar	avançando	para	se	tornar	uma	democracia,	ainda	que	permitindo	apenas
que	homens	votassem.	Em	seguida,	Luís	Napoleão,	sobrinho	do	imperador	e
herdeiro	da	dinastia	dos	Bonaparte,	candidatou-se	nas	eleições	presidenciais	de
dezembro	de	1848.	Seu	nome	lhe	rendeu	a	imensa	maioria	dos	votos.
No	início,	Luís	Napoleão	governou	em	conjunto	com	a	assembleia,	mas,	em
dezembro	 de	 1851,	 depois	 de	 recusada	 sua	 emenda	 constitucional,	 que	 lhe
permitiria	 concorrer	 a	 um	 segundo	 mandato,	 ele	 organizou	 um	 golpe	 de
Estado.	Uma	insurreição	contra	o	golpe	foi	liderada,	entre	outros,	pelo	escritor
Victor	 Hugo,	 que	 descreveu	 os	 acontecimentos	 nas	 ruas	 de	 Paris	 em	 4	 de
dezembro:	 “De	 repente,	 diante	 de	 um	 sinal,	 um	 tiro	 de	 mosquete,	 não
importando	de	onde	nem	de	quem,	a	rajada	de	balas	caía	sobre	a	multidão	[...]
Num	piscar	de	olhos,	houve	um	massacre	num	trecho	de	um	quarto	de	légua
do	 bulevar.”3	Um	 ano	 depois,	 Luís	Napoleão	 desfez	 a	 Segunda	República	 e
declarou	o	Segundo	 Império	Francês,	 em	que	 ele	 era	o	 imperador	Napoleão
III.	 Embora	 as	 eleições	 continuassem	 sendo	 realizadas,	 a	 democracia	 durara
apenas	três	anos.
Em	 1848,	 o	 Império	 Austríaco	 estendia-se	 sobre	 a	 maior	 parte	 das	 atuais
Hungria,	República	Tcheca	e	Eslováquia,	e	do	norte	dos	Bálcãs,	além	do	norte
da	Itália	e	partes	da	Polônia	e	da	Ucrânia.	O	imperador	da	Áustria,	Fernando
I,	 também	era	rei	da	Hungria,	Boêmia	e	Lombardia-Venécia.	A	Constituição
lhe	dava	autoridade	para	escolher	os	ministros;	a	Dieta	eleita	era	simplesmente
um	corpo	consultivo,	e	o	ministro	austríaco	do	Exterior,	Metternich,	o	homem
mais	 poderoso	 do	 império.	 Depois	 de	 guiar	 o	 país	 durante	 as	 Guerras
Napoleônicas,	 primeiro	 negociando	 uma	 aliança	 com	 a	 França	 e	 depois	 se
unindo	aos	aliados	vitoriosos,	o	 líder	dirigente	do	Congresso	de	Viena	ainda
ocupava	 o	 cargo	 34	 anos	 depois.	 No	 entanto,	 o	 império	 dos	 Habsburgo
enfrentava	 as	 mesmas	 pressões	 que	 a	 França.	 As	 classes	 profissionais	 e
comerciais	em	crescimento	consideravam	o	governo	imperial	incompetente	na
economia,	 exigiam	 uma	 reforma	 na	 Constituição	 e	 mais	 participação	 no
governo.	 Ao	mesmo	 tempo,	 o	 interior	 da	 Europa	 Central	 passava	 pela	 sua
própria	revolução.	Os	sistemas	feudais	de	propriedade	e	trabalho	entravam	em
colapso	sob	a	pressão	do	comércio,	o	que	deu	mais	liberdade	aos	camponeses	e
permitiu	 aos	 donos	 de	 terras	 produzirem	 alimentos	 de	 forma	mais	 eficiente.
Porém,	 o	 livre	 comércio	 minou	 a	 segurança	 do	 trabalho	 rural	 e	 do
fornecimento	 alimentar.	 Além	 disso,	 a	 Áustria	 foi	 assolada	 por	 revoltas
nacionalistas	 de	 poloneses,	magiares	 e	 italianos,	 que	 logo	 viriam	 a	 se	 unir	 a
eslovacos,	 tchecos,	 romenos,	 croatas	 e	 eslovenos.	 No	 mundo	 nacionalista
inspirado	 pela	 França,	 um	 império	 poliglota	 parecia	 constituir	 um
anacronismo,	uma	vez	que	os	diferentes	grupos	viam	seu	 futuro	em	Estados
étnicos	ou	pelo	menos	em	entidades	que	protegeriam	as	identidades	de	grupo.
As	pressões	financeiras	e	sociais	acabaram	por	levar	o	governo	austríaco	à
crise.	 A	 revolução	 em	 Paris	 revelara	 a	 vulnerabilidade	 de	 qualquer
administração	 que	 não	 atuasse	 com	 agilidade.	 Em	 março	 de	 1848,	 o
conservador	Metternich	foi	forçado	a	deixar	o	cargo,	e,	no	mês	seguinte,	uma
Constituição	mais	 liberal	 foi	 introduzida	 para	 as	 áreas	 alemãs	 no	 centro	 do
império,	 ainda	 que	 a	 procrastinação	 do	 governo	 tenha	 atrasado	 sua
implementação.	As	reformas	introduzidas	nos	Estados	Pontifícios	estimularam
os	 italianos	 e	 a	Venécia	 e	 a	 Lombardia	 sob	 domínio	 austríaco	 a	 exigirem	 o
mesmo,	 enquanto	 a	Dieta	 húngara	 adotava	 sua	 própria	Constituição	 liberal,
que	 equivalia	 a	 uma	declaração	de	 independência.	A	 reação	 entre	 os	 setores
eslavos	 do	 império	 foi	 imediata,	 com	 um	 congresso	 pan-eslavo	 reunido	 em
Praga	em	junho,	com	a	intenção	de	obter	maiores	direitos	políticos.
No	 verão	 de	 1848,	 os	 radicais	 de	 Viena,	 frustrados	 com	 os	 atrasos	 do
governo,	exigiram	mais	mudanças	sob	a	bandeira	do	“partido	do	progresso”.
Em	maio,	a	atmosfera	na	capital	era	tão	hostil	que	a	corte	imperial	fugiu	para
Innsbruck,	embora	tivessem	persuadido	o	imperador	a	retornar	em	agosto.	O
problema	 dos	 radicais	 por	 todo	 o	 império	 foi	 que,	 uma	 vez	 introduzidas	 e
realizadas	 as	 eleições,	 os	 eleitores	 trouxeram	 de	 volta	 grande	 parte	 dos
deputados	 conservadores,	 por	 serem	estes	os	homens	mais	proeminentes	 em
seus	 distritos.	 Isso	 gerou	mais	 frustração	 e,	 em	outubro	 de	 1848,	 estudantes
vienenses	começaram	um	tumulto	que	culminou	com	o	linchamento	do	conde
Latour,	membro	do	gabinete.	A	maior	parte	da	burguesia	da	cidade,	cerca	de
100	mil	 pessoas,	 junto	 com	 o	 imperador	 e	 sua	 corte,	 deixou	Viena,	 que	 foi
bombardeada	pelo	Exército	austríaco,	matando	de	3	mil	a	5	mil	pessoas.	Em
dezembro,	a	crise	política	chegou	ao	fim	quando	convenceram	o	imperador	a
renunciar	em	favor	de	seu	sobrinho,	Francisco	José,	que	iniciou	um	reinado	de
68	anos	com	a	declaração	de	lei	marcial	e	a	reversão	imediata	da	maioria	das
reformas	 liberais.	 A	 política	 liberal	 do	 império	 dos	 Habsburgo	 terminou	 e
permaneceu	abafada	até	a	catástrofe	de	1914.
Napoleão	e	o	Congresso	de	Viena	haviam	reduzido	os	Estados	germânicos	a
35	monarquias	 e	 quatro	 cidades	 livres.	 Eles	 foram	 agrupados	 na	 Federação
Germânica,	 ainda	 que	 se	 tratasse	 apenas	 de	 uma	 aliança	 diplomática	 —	 até
mesmo	 George	 IV	 da	 Grã-Bretanha	 participava	 como	 rei	 de	 Hanover.	 O
objetivo	do	Congresso	de	Viena	era	estabilizar	essa	área	com	potencial	para	se
tornar	problemática	por	meio	de	boas	relações	entre	as	duas	forças	dominantes
—	Prússia	e	Áustria.	Desde	que	os	 líderes	conservadores	desses	países	fossem
mantidos	 no	 poder,	 a	 situação	 parecia	 estar	 controlada.	 O	 rei	 Frederico
Guilherme	III	prometeu,	em	1813,	 instituir	uma	Constituição	para	a	Prússia,
embora	 ela	 ainda	 não	 estivesse	 redigida	 quando	 ele	 morreu,	 em	 1840.	 Sua
principal	 realização	 foi	 diminuir	 a	 influência	 austríaca	 ao	 formar	 uma	 união
aduaneira,	 ou	 Zollverein,	 com	 os	 outros	 Estados	 germânicos,	 excluindo	 a
Áustria	de	forma	intencional.	Quando	Frederico	Guilherme	IV	sucedeu	ao	pai,
atenuou	as	restrições	à	imprensa	e	também	prometeu	uma	Constituição	para	a
Prússia,	mas	recusou	uma	assembleia	eleita	pelo	povo.	A	assembleia	nacional,
reunida	 em	 1847,	 foi	 uma	 Dieta	 de	 representantes	 das	 províncias	 do	 reino
prussiano	 com	 poderes	 limitados	 para	 o	 aumento	 de	 impostos	 e	 sujeita	 às
convocações	do	rei.
A	 Prússia	 teve	 destaque	 na	 Federação	 Germânica,	 mas	 o	 aspecto
predominante	 dessa	 era	 foi	 a	 ascensão	 do	 liberalismo,	 que	 trazia	 consigo	 o
desejo	de	uma	única	nação	germânica.	Camponeses,	artesãos,	profissionais	da
classe	média,	 donos	 de	 lojas,	 comerciantes	 e	 industriais	 tinham	 todos	 razões
para	 estarem	 insatisfeitos	 com	 o	 status	 quo.	 A	 Alemanha	 ainda	 era	 uma
sociedade	 agrícola	 tradicional,	mas	 caminhava	para	 a	 industrialização.	Assim
como	em	outros	 lugares	da	Europa,	os	 industriais	e	a	burguesia	acreditavam
que	 o	 governo	 era	 incompetente	 para	 lidar	 com	 a	 modernização.	 Uma
estrutura	bancária	com	regras	flexíveis	para	o	crédito,	por	exemplo,	não	havia
sido	 desenvolvida	 em	 lugar	 algum,	 exceto	 na	 Grã-Bretanha	 e	 na	 Bélgica,
enquanto	a	 infraestrutura	 e	o	 sistema	educacional	 eram	 inadequados	para	as
crescentes	demandas	 industriais	 e	 comerciais.	A	 economia	 em	 transformação
ocasionou	 novos	 fenômenos,	 como	 o	 ciclo	 econômico	 no	 qual	 a	 demanda
diminui	e	o	desemprego	aumenta	de	 forma	periódica.	Os	primeiros	sinaisde
desemprego	 cíclico	 foram	 sentidos	 em	Colônia,	Viena	 e	 Paris.4	Camponeses
do	 sul	 da	 Alemanha	 invadiram	 os	 castelos	 grandiosos	 de	 seus	 senhores,	 e
Ludwig,	 rei	 da	 Bavária,	 já	 envolvido	 num	 escândalo,	 abdicou	 do	 trono	 em
março	 de	 1848,	 depois	 que	 a	 notícia	 da	 morte	 de	 Luís	 Felipe	 levou	 as
multidões	 às	 ruas	 de	 Munique.	 O	 fim	 do	 feudalismo	 levou	 camponeses
libertados	às	cidades	em	crescimento	em	busca	de	trabalho	nas	indústrias.	Isso
colocou	trabalhadores	industriais	e	artesãos	uns	contra	os	outros,	enquanto	as
classes	médias	 exigiam	 reformas	 liberais,	mas	 também	uma	medida	 enérgica
contra	as	violentas	rebeliões	de	camponeses	e	trabalhadores.
O	que	tornou	única	a	situação	em	terras	alemãs	foi	o	desejo	de	unificação
nacional.	Uma	Alemanha	unificada	 interessava	aos	 liberais	 como	uma	 forma
de	 passar	 da	 confusão	 de	 reinos	 autocráticos	 para	 um	Estado	 constitucional
com	 garantias	 de	 liberdade	 e	 direitos	 políticos.	 Comerciantes	 e	 industriais
também	 viam	 vantagens	 na	 transformação	 do	Zollverein	 num	único	mercado
alemão	 para	 seus	 produtos.	 O	 obstáculo	 —	 o	 que	 é	 notável,	 em	 vista	 dos
acontecimentos	 futuros	 —	 era	 a	 classe	 governante	 prussiana,	 que	 via	 uma
nação	alemã	como	uma	ameaça	ao	seu	poder.
Em	 1847,	 Frederico	 Guilherme	 IV	 convocou	 a	 Dieta	 prussiana	 com	 o
intuito	 de	 aumentar	 a	 receita	 para	 a	 construção	 de	 ferrovias,	 e,	 de	modo	 já
tradicional,	a	dieta	exigiu	reformas	em	troca	de	impostos.	O	rei	percebeu	que
um	apoio	 liberal	seria	útil	em	sua	 luta	contra	a	gentry	que	dominava	a	Dieta;
então,	quando	as	revoltas	 irromperam	em	Berlim,	em	março	de	1848,	diante
da	 notícia	 da	 demissão	 de	 Metternich,	 o	 rei	 pareceu	 abraçar	 a	 causa	 do
nacionalismo	alemão	e	anunciou	sua	intenção	de	conceder	as	reformas.
A	essa	altura,	um	Estado	nacional	alemão	se	 tornara	o	objetivo	central	de
todos	aqueles	que	exigiam	a	reforma	política.	Um	grupo	de	políticos	liberais	de
toda	 a	 Confederação	 Germânica	 reuniu-se	 num	 “pré-parlamento”	 em
Frankfurt,	de	31	de	março	a	4	de	abril	de	1848,	para	preparar	o	terreno	para
uma	Assembleia	Constituinte	que	redigiria	uma	Constituição	nacional	alemã.
Essa	 se	 tornou	 a	 Assembleia	 de	 Frankfurt,	 que	 foi	 eleita	 sob	 condições
restritivas,	que	excluíam	a	maior	parte	dos	trabalhadores	—	os	requisitos	para
votar	variavam	de	um	Estado	para	outro	—	e	durou	de	maio	de	1848	a	maio
de	1849.	A	assembleia	queria	formar	um	Estado	nacional,	mas	não	conseguia
definir	 se	 ele	 deveria	 ser	 monárquico,	 republicano,	 federal,	 democrático,
secular,	 católico	 ou	 luterano.	 Ou	 se	 deveria	 incluir	 apenas	 os	 membros	 da
Confederação	ou	todas	as	terras	alemãs,	incluindo	a	Áustria.	As	contradições
internas	 da	 assembleia	 ficaram	 claras	 à	 medida	 que	 ela	 buscava	 estabelecer
medidas	 liberais,	 tal	 como	 a	 igualdade	 perante	 a	 lei,	 ao	 mesmo	 tempo	 que
convidava	Frederico	Guilherme	para	ser	o	monarca,	a	quem	ela	serviria.
Em	 março	 de	 1848,	 houve	 uma	 rixa	 entre	 a	 Dinamarca	 e	 a	 Federação
Germânica	a	respeito	dos	ducados	de	Schleswig	e	Holstein.5	O	conflito	fez	da
unidade	 alemã	 uma	 questão	 de	 toda	 a	 Europa	 e,	 o	 que	 foi	 ainda	 mais
relevante,	 gerou	 uma	 divisão	 entre	 nacionalismo	 e	 liberalismo.	 Tanto	 os
nacionalistas	 alemães	 como	 os	 liberais	 prussianos	 haviam	 incentivado
Frederico	 Guilherme	 a	 invadir	 Schleswig-Holstein,	 mas,	 quando	 a	 Prússia
sofreu	 pressão	 internacional	 para	 se	 retirar	 em	 1852,	 o	 reino	 perdeu
credibilidade	como	o	potencial	líder	de	uma	Alemanha	liberal.	O	rei,	frustrado
com	 esse	 fracasso,	 demitiu	 seus	 ministros	 liberais,	 e	 o	 reacionário
Junkerparlament,	dominado	pelos	grandes	proprietários	de	terras,	retomou	sua
posição	no	poder.	A	partir	de	1852,	a	esperança	dos	liberais	de	que	a	Prússia
viesse	 a	 fazer	 parte	 de	 uma	 nação	 alemã	 baseada	 numa	Constituição	 liberal
desapareceu.	A	Constituição	elaborada	pela	Assembleia	de	Frankfurt	foi	uma
letra	morta.	Era	o	início	de	uma	reversão	que	teria	consequências	profundas.
A	 crença	 numa	 Alemanha	 unificada	 como	 veículo	 para	 estimular	 a	 política
liberal	 foi	 substituída	 por	 uma	 visão	 de	 unidade	 nacional	 como	 meio	 de
transformar	a	Alemanha	numa	grande	potência	que	pudesse	dominar	o	centro
da	 Europa.	 Os	 legados	 gêmeos	 da	 Revolução	 Francesa	 —	 liberalismo	 e
nacionalismo	—	foram	separados	de	modo	fatal.
Enquanto	 protestos	 e	 repressões	 violentos	 cresciam	 e	 diminuíam	 pelo
continente	europeu,	na	Grã-Bretanha	os	eventos	tomaram	um	rumo	diferente.
Em	1846,	após	um	debate	acirrado,	o	primeiro-ministro	Robert	Peel	promoveu
com	 êxito	 a	 aprovação	 da	 Revogação	 das	 Leis	 do	 Milho	 pelo	 Parlamento.
Permitir	 a	 importação	 de	 milho	 barato	 foi	 um	 golpe	 contra	 as	 classes
proprietárias	 de	 terras	 e	 favoreceu	 tanto	 os	 industriais	 como	 seus	 operários.
Um	 argumento	 central	 era	 o	 de	 que,	 se	 as	 pessoas	 tinham	 de	 gastar	 uma
porção	 menor	 de	 sua	 renda	 com	 pão,	 poderiam	 gastar	 mais	 com	 produtos
manufaturados,	o	que	permitiria	que	a	indústria	prosperasse.	O	início	de	uma
mudança	 no	 poder	 da	 agricultura	 para	 a	 manufatura	 era	 palpável.	 Em
contraste	 com	 a	 França,	 Áustria	 e	 Prússia,	 na	 Grã-Bretanha	 um	 governo
conservador	estava	preparado	para	ir	contra	seus	aliados	tradicionais	em	face
das	realidades	comerciais	em	transformação.
Em	 termos	 de	 modernização	 parlamentar,	 o	 Ato	 de	 Reforma	 de	 1832
resolvera	 alguns	 dos	 absurdos	 no	 sistema	 existente,	 possibilitando	 uma
distribuição	de	votos	mais	justa	—	mas	o	Parlamento	e	o	rei	foram	convencidos
a	aceitar	o	ato	com	a	promessa	de	que	ele	refrearia,	em	vez	de	fazer	avançar,	a
democracia.	O	conde	Grey,	responsável	pelo	projeto	de	lei,	foi	claro	quanto	à
questão:	 “O	 princípio	 de	 minha	 reforma	 é	 evitar	 a	 necessidade	 de	 uma
revolução	[...]	[não	há	ninguém]	mais	contrário	a	parlamentos	anuais,	sufrágio
universal	e	eleições	do	que	eu.”6	Medida	liberal	clássica	do	século	XIX,	o	Ato
de	 Reforma	 concedeu	 direitos	 políticos	 às	 classes	 médias,	 introduzindo	 um
requisito	 de	 propriedade	 para	 eleitores,	 que	 substituía	 as	 regras	 arcanas,	 e
excluindo	 os	 trabalhadores.	 Em	 resposta,	 uma	 organização	 informal	 de
reformadores	com	ideias	afins	redigiu	a	Carta	do	Povo,	em	1838,	que	exigia
direito	 de	 voto	 universal	 masculino,	 igualdade	 entre	 eleitorados,	 eleições
anuais,	voto	secreto,	abolição	de	requisitos	de	propriedade	e	pagamento	para
os	membros	do	Parlamento.	O	cartismo,	como	ficou	conhecido,	é	considerado,
de	modo	geral,	 o	primeiro	movimento	 em	massa	da	 classe	 trabalhadora.	Os
cartistas,	que	levaram	a	possibilidade	de	democracia	ao	país	mais	poderoso	do
mundo,	não	apenas	lutaram	pela	reforma	política,	mas	também	convenceram
os	trabalhadores	de	que	o	direito	de	voto	era	importante	para	a	sua	vida.	Esse
impulso	 dos	 benefícios	 da	 democracia	 para	 os	 trabalhadores	 ia	 contra	 a
corrente	 dos	 tempos	 e	 foi	 incentivado	 e	 apoiado	 pelos	 jornais	 do	 norte
industrial	da	Inglaterra.
Em	1839,	os	cartistas	enviaram	uma	petição	ao	Parlamento,	que	a	Câmara
dos	Comuns	recusou-se	a	ouvir	—	um	gesto	de	desprezo	que	convenceu	alguns
radicais	de	que	a	força	era	a	única	via	para	a	mudança	política.	Nesse	mesmo
ano,	 vinte	 defensores	 dos	 cartistas	 foram	 mortos	 ao	 tentar	 libertar
companheiros	da	prisão	em	Newport,	Gales	do	Sul,	mas	outras	revoltas	não	se
concretizaram.	Em	vez	disso,	em	maio	de	1842,	os	cartistas	apresentaram	outra
petição	ao	Parlamento,	dessa	vez	assinada	por	3	milhões	de	pessoas.	Mais	uma
vez,	 Westminster	 rejeitou-a.	 Alguns	 cartistas	 se	 candidataram	 às	 eleições	 —
Fergus	 O’Connor,	 editor	 do	 Northern	 Star	 e	 principal	 cartista,	 tornou-se	 o
membro	do	Parlamento	por	Nottingham	em	1847	—,	outros	discursaram	nos
hustings,*	mas	depois	se	retiraram	em	protesto	contra	a	falta	de	democracia	do
sistema.	Com	 as	 forças	 doParlamento	 e	 do	 Estado	 voltadas	 contra	 eles,	 os
cartistas	 tiveram	 de	 contar	 com	 o	 apoio	 do	 povo	 a	 seus	 objetivos.	 Com	 as
rebeliões	ameaçando	derrubar	governos	pela	Europa,	o	Estado	britânico	ficou
extremamente	alerta	para	os	perigos.
Em	10	de	abril	de	1848,	cerca	de	150	mil	defensores	dos	cartistas	reuniram-
se	no	parque	de	Kennington,	em	Londres.	Mais	de	100	mil	policiais	especiais
foram	 recrutados,	 e	 o	 Exército	 recebeu	 ordens	 para	 impedir	 que	 os
manifestantes	atravessassem	o	Tâmisa.	Porém,	o	cartismo	era	um	movimento
predominantemente	 pacífico,	 e	 o	 encontro,	 que	 havia	 sido	 convocado	 para
demonstrar	 apoio	 à	 apresentação	 que	O’Connor	 faria	 de	 uma	 nova	 petição
para	 o	 Parlamento,	 transcorreu	 sem	 violência.	 No	 entanto,	 o	 governo
apavorou-se	a	ponto	de	aprovar	uma	legislação	proibindo	assembleias	públicas
e	sancionou	uma	nova	Lei	sobre	Atos	de	Traição.	O	cartismo	continuou	após
1848,	mas	a	 intervenção	do	governo	acabou	de	forma	efetiva	com	o	impulso
do	movimento.
Qual	 foi	 então	 o	 destino	 da	 democracia	 na	 Europa	 após	 1848?	 Em
retrospectiva,	 podemos	 identificar	um	padrão	 repetido	de	 forma	 aproximada
na	maior	 parte	 da	 Europa	Central	 e	Ocidental.	 Regimes	 conservadores	 que
haviam	permanecido	fiéis	ao	espírito	repressor	do	Congresso	de	Viena	foram
derrubados	ou	 forçados	 a	 se	 liberalizar.	As	pressões	para	 a	mudança	vieram
por	 meio	 de	 uma	 aliança	 entre	 liberalismo	 e	 nacionalismo	 inspirada	 pela
Revolução	 Francesa	 e	 foram	 impulsionadas	 pelos	 problemas	 sociais.	 Essa
mudança,	no	entanto,	foi	efêmera,	e	as	forças	conservadoras	logo	recuperaram
a	supremacia	no	continente.	Após	1848,	porém,	o	conservadorismo	era	muito
diferente	 do	 que	 havia	 antes.	 Ele	 começou	 a	 abraçar	 a	 causa	 popular	 da
unidade	e	identidade	nacionais.
Para	 os	 revolucionários	 franceses,	 o	 liberalismo	 e	 o	 nacionalismo	 eram
inseparáveis,	mas	 as	 decepções	 de	 1848,	 em	 especial	 a	 falha	 na	 tentativa	 de
aliar	 o	 sentimento	 crescente	 de	 identidade	 nacional	 ao	 desejo	 de	 um	 acesso
mais	amplo	ao	poder,	geraram	uma	transformação	notável.	As	classes	médias,
antes	 progressistas,	 ainda	 queriam	 ter	 acesso	 ao	 poder,	 mas	 adotaram	 o
nacionalismo	em	detrimento	da	democracia.	Esse	foi	o	nascimento	do	que	veio
a	 ser	 conhecido	 como	 liberalismo	 clássico.	 A	 liberdade	 diante	 das	 restrições
religiosas,	da	monarquia,	das	tarifas	do	comércio	e	das	regras	do	governo	era
considerada	suficiente	para	proporcionar	uma	prosperidade	duradoura	e	uma
sociedade	 digna	 —	 pelo	 menos	 para	 as	 classes	 médias.	 Na	 Alemanha	 em
particular,	mas	também	na	França	e	na	Áustria,	as	forças	de	reação	aliaram-se
ao	 nacionalismo	 —	 a	 opinião	 conservadora	 defendia	 a	 ideia	 de	 um	 Estado
baseado	em	seu	povo	e	em	suas	tradições.	Esse	foi	um	desenvolvimento	crucial
na	 história	 europeia.	As	 forças	 conservadoras	 se	 estabeleceram	 com	base	 no
nacionalismo	que	dominara	a	França	nos	anos	revolucionários	e	o	dissociaram
do	liberalismo	que	inspirou	os	revolucionários.
Entretanto,	 os	 conservadores	que	 governaram	após	 1848	 entenderam	que
precisavam	levar	em	conta	as	forças	liberais	da	sociedade.	Liberais	em	todos	os
países	queriam	 fortalecer	 seu	Parlamento	diante	dos	caprichos	do	monarca	e
de	aristocratas	ampliando	o	direito	de	voto	para	incluir	as	classes	médias.	Para
eles,	 contudo,	 a	 preocupação	 principal	 era	 um	 governo	 constitucional	 e
competente,	 e	 não	 expressão	 da	 vontade	 do	 povo	 por	 meio	 do	 sufrágio
universal.	 De	 fato,	 o	 conceito	 era	 ridicularizado	 até	 mesmo	 por	 candidatos,
como	 o	 nacionalista	 italiano,	 o	 conde	 Cavour,	 que	 declarou:	 “Ninguém
deveria	 ser	 eleitor,	 a	 menos	 que	 sua	 renda	 e	 inteligência	 indiquem...	 um
interesse	incontestável	na	ordem	social.”7
Depois	de	1848,	as	forças	conservadoras	retomaram	seu	domínio,	mas,	do
meado	 ao	 fim	 da	 década	 de	 1860,	 as	 pressões	 liberais	 e	 nacionalistas,
geralmente	 em	 conflito,	 começaram	 a	 ter	 impacto	 sobre	 todos	 os	 Estados
europeus.	A	complexa	série	de	guerras	que	levou	à	unificação	italiana	começou
em	1859,	quando	um	Exército	piemontês,	comandado	por	Cavour	e	apoiado
pela	 França,	 tomou	 a	 Lombardia	 da	 Áustria.	 A	 essa	 altura,	 Cavour	 estava
empenhado	 em	 obter	 o	 controle	 do	 norte	 e	 não	 em	 unificar	 a	 Itália	 inteira,
mas,	 no	 ano	 seguinte,	 convenceu	 Giuseppe	 Garibaldi,	 comandante	 de	 uma
tropa	 irregular,	 a	 liderar	 uma	 expedição	 à	 Sicília.	 Garibaldi	 tomou	 a	 Sicília,
depois	Nápoles	 (ambos	 reinos	 independentes	 anteriormente)	 e	 declarou	 suas
intenções	de	anunciar	um	reino	da	Itália	em	sua	capital	histórica,	Roma.	Em
junho	 de	 1861,	 apesar	 de	 Roma	 e	 Venécia	 ainda	 estarem	 fora	 do	 controle
italiano,	Cavour	afirmou	em	seu	leito	de	morte:	“A	Itália	está	formada.”
O	 papel	 de	 Garibaldi	 de	 soldado	 comum	 transformado	 em	 líder	 rebelde
transmitiu	 a	 mensagem	 inspiradora	 de	 que	 os	 governantes	 aristocráticos
podiam	ser	derrubados	em	nome	do	nacionalismo	e	da	reforma.	No	entanto,
aqui	também,	as	medidas	liberais	tiveram	seus	limites.	A	Constituição	italiana
de	 1861	 (que	 durou	 até	 1946)	 dava	 ao	 rei	 o	 poder	 Executivo	 exclusivo,	 o
comando	das	Forças	Armadas,	o	direito	de	declarar	guerra,	de	nomear	todos
os	ministros,	de	fazer	tratados	e	alianças	e	de	nomear	os	membros	do	Senado.
Consequentemente,	 o	 movimento	 republicano	 liderado	 por	 Garibaldi	 não
conseguiu	 assegurar	 o	 poder,	 e	 o	 próprio	 Garibaldi	 foi	 preso	 em	 1862.	 A
Câmara	 inferior	 era	 eleita,	 ao	 passo	 que	 o	 Parlamento	 bicameral	 só	 estava
autorizado	 a	 aprovar	 a	 legislação,	 com	 direito	 de	 veto	 sobre	 tributação	 e
alterações	 nas	 fronteiras	 do	 reino.	 O	 preço	 da	 unificação	 foi	 esmagar	 as
divergências	e	a	diversidade.	Em	1861,	Cavour	escreveu	ao	rei	Vítor	Emanuel
a	 respeito	 das	 dificuldades	 com	 Nápoles:	 “Temos	 de	 impor	 a	 unificação
nacional	à	parte	mais	fraca	e	mais	corrupta	da	Itália.	Quanto	aos	meios,	resta
pouca	dúvida:	força	moral	e,	caso	seja	insuficiente,	força	física.”8
Enquanto,	 na	 Itália,	 o	 nacionalismo	 prevalecia	 sobre	 o	 liberalismo,	 em
outras	 partes	 da	 Europa	 a	 pressão	 pelas	 reformas	 liberais	 foi	 sentida	 e
considerada	 na	 década	 de	 1860.	 Na	 Grã-Bretanha,	 o	 Ato	 de	 Reforma
começara	a	tornar	o	sistema	parlamentar	mais	consistente	(embora	o	direito	de
voto	 ainda	 permanecesse	 severamente	 restrito).	 Apesar	 do	 declínio	 do
movimento	 cartista,	 organizações	 como	 a	 Liga	 da	 Reforma	 e	 a	 União	 da
Reforma	 aproximaram	 os	 liberais	 da	 classe	 média	 dos	 sindicatos	 de
trabalhadores	 especializados	 na	 exigência	 do	 sufrágio	 universal	 masculino.
Outros,	 tal	 como	 John	 Stuart	 Mill	 —	 autor	 de	 O	 governo	 representativo	 —,
defendiam	 reformas	 que	 concedessem	 direitos	 civis	 à	 chamada	 respeitável
classe	dos	trabalhadores,	mantendo	as	massas	fora	do	processo.	Essa	era	uma
estratégia	clássica	do	século	XIX,	e,	em	1866,	o	primeiro-ministro	do	partido
Liberal,	William	Gladstone,	esboçou	um	projeto	de	 lei	que	estendia	o	direito
de	 voto	 a	 trabalhadores	 especializados.	 Porém,	 elementos	 do	 partido	Liberal
rebelaram-se,	 deixando	 para	 o	 novo	 membro	 do	 partido	 Tory,	 Benjamin
Disraeli,	a	tarefa	de	aprovar	uma	emenda	estendendo	o	direito	de	voto	a	todos
os	 chefes	 de	 família	 e	 aos	 homens	 que	 pagassem	 pelo	 menos	 10	 libras	 de
aluguel.	 Essa	 medida	 parcial	 permitiu	 que	 os	 conservadores	 falassem	 em
defender	o	país	 contra	a	democracia,	ao	mesmo	 tempo	em	que	satisfaziam	o
crescente	sentimento	liberal.	Ainda	assim,	nas	décadas	seguintes,	começou	a	se
falar	em	democracia	em	alguns	círculos	como	uma	meta	desejável	—	o	espírito
de	Putney	estava	prestes	a	ressurgir.
Na	França,	Luís	Napoleão,	que	se	declarara	imperador	em	1852,	manteve	o
sufrágio	universal	masculino	estabelecido	pelo	governo	provisório	de	1848.	O
problema	para	os	liberais	aquiera	a	impotência	do	Parlamento	em	comparação
com	 o	 poder	 do	 Executivo,	 dominado	 pelo	 imperador.	 Luís	 Napoleão
reconheceu	 a	 necessidade	 de	 reforma,	 ainda	 que	 apenas	 para	 deter	 um
movimento	 republicano,	 e,	 em	 novembro	 de	 1860,	 medidas	 modestas
permitiram	 que	 a	 assembleia	 revisasse	 alguns	 projetos	 de	 lei	 e	 solicitasse	 a
participação	 de	 alguns	 ministros	 no	 Parlamento.	 Restrições	 à	 liberdade	 de
imprensa	 foram	 suspensas	 em	 1868,	 dando	 um	 impulso	 a	 mais	 à	 política
liberal,	e	as	eleições	de	1869	deram	aos	liberais	poder	suficiente	para	exigirem
um	 Executivo	 que	 se	 originasse	 exclusivamente	 do	 Parlamento.	 Em	 1870,
nomearam	Émile	Ollivier	primeiro-ministro	e	pediram	que	redigisse	uma	nova
Constituição,	a	qual,	 repleta	de	contradições	—	colocando	o	 imperador	como
chefe	do	Estado	e	presidente	do	Conselho	de	Ministros,	e	chamando	a	nação
de	 império	 “parlamentar”	 —,	 foi	 aprovada	 por	 maioria	 esmagadora	 num
plebiscito	de	maio	de	1870.	Algumas	semanas	depois,	no	entanto,	o	império	foi
derrubado	por	Exércitos	invasores	prussianos.	Como	escreveu	um	historiador:
“O	 Segundo	 Império	 quase	 resolveu	 o	 problema	 da	 conciliação	 entre
monarquia	e	democracia	—	mas	não	de	fato	nem	a	tempo.”9
A	 invasão	 prussiana	 também	 causou	 outra	 revolta	 política	 na	 capital
francesa.	A	Comuna	de	Paris	foi	resultado	da	rendição	francesa	à	Prússia	e	da
formação	do	novo	governo	de	Adolphe	Thiers.	O	povo	de	Paris	não	confiava
em	 Thiers,	 por	 acreditar	 que	 ele	 estava	 trabalhando	 para	 restaurar	 a
monarquia	após	a	destituição	de	Luís	Napoleão	em	 julho	de	1870.	Também
estavam	 ofendidos	 pela	 insistência	 prussiana	 em	 realizar	 uma	 marcha	 da
vitória	 pela	 cidade.	Quando	o	desfile	 acabou,	 e	 os	 prussianos	 voltaram	para
casa,	Thiers	 ordenou	que	 o	Exército	 regular	 desarmasse	 a	Guarda	Nacional
parisiense	e	confiscasse	seus	quatrocentos	canhões.	Duas	unidades	do	Exército
se	 rebelaram,	 executaram	 seus	 generais	 e	 juntaram-se	 à	 Guarda	 Nacional.
Outras	 tropas	 seguiram	 o	 exemplo,	 e	 Thiers	 ordenou	 uma	 evacuação	 de
policiais	e	de	todos	os	oficiais	do	governo.	De	março	a	maio	de	1871,	o	povo
de	Paris	estava	no	controle	da	cidade.	A	comuna	declarou-se	a	favor	de	uma
democracia	 republicana,	 e	 as	 votações	 para	 um	 conselho	 da	 comuna	 foram
realizadas	 em	 28	 de	 março	 de	 1871,	 com	 a	 eleição	 de	 uma	 mistura	 de
trabalhadores	 especializados	 e	 profissionais.	 Suas	 políticas	 eram	 seculares
(separavam	a	 Igreja	 do	Estado)	 e	 progressistas	 (aboliam	o	 trabalho	noturno,
por	 exemplo),	 e,	 embora	 tenham	 se	 reunido	 por	 apenas	 sessenta	 dias,	 os
membros	do	conselho	planejaram	educação	gratuita	e	outras	medidas	sociais,
tais	 como	 a	 abolição	 da	 prostituição.	 As	 mulheres	 também	 tiveram	 intensa
participação	na	estrutura	das	políticas	comunais.
Em	21	de	maio,	 tropas	 francesas	 leais	 ao	 governo	de	Thiers	 entraram	na
cidade	e,	durante	as	duas	semanas	seguintes,	tomaram	o	controle	de	Paris.	As
represálias	 foram	brutais	—	estimativas	do	número	de	defensores	da	 comuna
mortos	em	batalha	ou	executados	variam	de	10	mil	a	50	mil,	com	outros	7	mil
deportados	para	Nova	Caledônia.	Mais	uma	revolução	francesa	terminara	de
forma	violenta,	e	a	democracia	plena	foi	mais	uma	vez	adiada.
Na	 Prússia,	 a	 situação	 política	 tornou-se	 confusa	 em	 meio	 às	 políticas
expansionistas	 de	 Otto	 von	 Bismarck,	 que	 não	 apenas	 dominava	 a	 política
europeia,	mas	 também	personificava	a	nova	aliança	entre	conservadorismo	e
nacionalismo,	manipulando	 com	 eficácia	 uma	Constituição	 democrática	 para
restringir	 o	 acesso	 ao	 poder.	Bismarck	 começou	 sua	 carreira	 em	1851	 como
representante	 da	 Prússia	 no	 Parlamento	 da	 Confederação	 Germânica.	 Seus
oito	 anos	 em	 Frankfurt	 o	 transformaram	 de	 cético	 a	 defensor	 convicto	 da
unificação	alemã.	Após	períodos	como	embaixador	na	Rússia,	França	e	Grã-
Bretanha,	 Bismarck	 voltou	 a	 Berlim	 em	 1862	 para	 servir	 ao	 novo	 rei,
Guilherme	 I,	 como	 primeiro-ministro	 e	 ministro	 das	 Relações	 Exteriores.
Depois	 de	 provocar	 guerras	 contra	 a	 Dinamarca	 (1864),	 Áustria	 (1866)	 e
França	 (1870-71),	 Bismarck	 alcançou	 seu	 objetivo	 de	 unificar	 o	 Império
Alemão	e,	na	sequência	da	Guerra	Franco-Prussiana,	testemunhou	a	coroação
de	Guilherme	I	como	imperador	da	Alemanha	no	Palácio	de	Versalhes	em	18
de	janeiro	de	1871.
A	 Confederação	 do	 norte	 da	 Alemanha,	 formada	 em	 1866,	 forneceu	 a
Constituição	 para	 o	 novo	 império	 com	 o	 imperador,	 ou	 kaiser	 —	 cargo
reservado	 para	 o	 rei	 da	 Prússia	 —,	 auxiliado	 por	 um	 chanceler	 que	 era
nomeado	por	ele	 e	 a	 ele	prestava	 contas.	O	Reichstag	da	Alemanha	unificada,
eleito	 pela	 primeira	 vez	 em	 1871,	 era	 escolhido	 por	 sufrágio	 universal
masculino,	enquanto	a	Câmara	Superior,	ou	Bundesrat,	continha	representantes
de	 todos	 os	 estados	 alemães.	 Bismarck	 precisava	 do	 apoio	 da	 maioria	 no
Reichstag,	e	a	administração	de	seus	membros,	 junto	com	sua	proximidade	do
kaiser,	 foi	a	chave	de	seu	poder.	De	 início,	o	chanceler	 foi	capaz	de	 trabalhar
com	a	maioria	 liberal,	 uma	vez	que	 compartilhavam	a	 causa	da	opressão	da
vasta	 população	 católica.	 Quando	 os	 liberais	 deixaram	 de	 ser	 a	 maioria,
Bismarck	 foi	 sagaz	 o	 bastante	 para	 aprovar	medidas	 conservadoras,	 que	 lhe
conferiram	 popularidade	 mediante	 a	 nova	 atmosfera	 do	 Reichstag	 e	 de	 seus
eleitores.
Todos	 os	 adultos	 do	 sexo	 masculino	 podiam	 votar	 nas	 eleições	 para	 o
Reichstag	 —	 mas	 a	 pouca	 importância	 disso	 ficou	 clara	 quando,	 em	 1878,
Bismarck	baniu	o	principal	partido	socialista,	o	SDAP	(depois	SPD).	Como	era
um	político	astuto,	juntou	a	proibição	do	partido	à	introdução	de	um	sistema
de	previdência	social	que	fornecia	seguro	de	saúde	e	contra	acidentes,	além	de
pensões.	 Sua	 mensagem	 ao	 povo	 da	 Alemanha	 estava	 clara	 —	 vocês	 não
precisam	 do	 socialismo	 para	 ter	 benefícios	 sociais.	 Apesar	 dessas	 medidas
populares,	 a	 posição	 sólida	 do	 chanceler	 fez	 da	 Alemanha	 um	 arremedo	 de
democracia	—	os	eleitores	não	tinham	nenhum	poder	para	retirá-lo	do	cargo,	e
ele	 continuava	 aprovando	 leis	 que	 diminuíam	 a	 autoridade	 dos	 órgãos
formados	por	votação.
Nas	monarquias	irmãs,	Áustria	e	Hungria,	a	democracia	também	começava
a	passar	por	severas	restrições.	Eleitores	da	Hungria	tinham	de	ter	propriedade
de	um	valor	que	desqualificava	a	maioria.	Na	Áustria,	o	Reichstag	era	eleito	de
forma	 indireta,	 a	 partir	 de	 quatro	 grupos	 —	 donos	 de	 terras,	 câmaras	 de
comércio	 e	 contribuintes	 urbanos	 e	 rurais	 —,	 excluindo	 a	 maior	 parte	 da
população.	Na	Hungria,	os	eleitorados	eram	manipulados	de	modo	a	impedir
que	 os	 eleitores	 eslavos	 elegessem	 seus	 próprios	 representantes,	 com	 os
magiares	dominando	os	resultados.
Enquanto	 isso,	 a	 Rússia	 fortalecia-se	 em	 razão	 da	 dissolução	 do	 Império
Otomano.	 Durante	 o	 reinado	 comparativamente	 liberal	 de	 Alexandre	 II,
houve	 a	 emancipação	 dos	 servos	 em	 1861	 e	 medidas	 para	 a	 reforma	 dos
sistemas	 judiciário	 e	penal,	 além	da	 introdução	dos	 governos	 representativos
locais.	As	pressões	para	 a	mudança	na	Rússia	 tinham	as	mesmas	origens	de
outros	 lugares:	 uma	 classe	 média	 cada	 vez	 mais	 letrada,	 combinada	 com
industriais	 que	 defendiam	 um	 regime	 competente	 no	 processo	 de
modernização.	 No	 entanto,	 a	 Rússia	 ainda	 era	 uma	 autocracia	 e,	 frustrados
diante	 da	 ausência	 de	 mudanças	 políticas,	 grupos	 revolucionários,	 como	 o
Narodnaya	 Volya	 [Vontade	 do	 Povo],	 lançaram	 mão	 da	 violência.
Ironicamente,	o	czar	foi	assassinado	em	março	de	1881,	apenas	dias	depois	de
o	ministro	do	Interior,	general	Loris-Melikov,	apresentar-lhe	a	proposta	de	um
plano	para	um	Parlamento,	ou	Duma.	Até	mesmo	esses	passos	hesitantes	foram
eliminados	pelo	assassinato,	e	todas	as	reformas	políticas	foram	canceladas.
As	doutrinas	do	liberalismo	clássicosurgiram	no	período	de	1840	a	1880.	Para
os	 liberais	 do	 século	 XIX,	 a	 libertação	 dos	 poderes	 da	 monarquia,	 da
aristocracia	e	da	Igreja	trouxera	uma	era	de	livre	comércio	e	empreendimento,
progresso	e	prosperidade.	Foi	apenas	no	fim	do	século	XIX	que	essa	situação
começou	 a	 perder	 força.	 O	 livre	 comércio	 funcionava	 para	 as	 economias
dominantes,	mas	não	para	as	outras,	 e	a	 falta	de	 regulamentação	 funcionava
para	 os	 poderosos,	mas	 não	 para	 o	 restante.	 Tudo	 isso	 ficou	 claro	 somente
quando	a	classe	dos	trabalhadores	industriais	começou	a	perceber	seu	próprio
poder	—	e	uma	das	aplicações	desse	poder	foi	exigir	democracia.
Nota:
*	Plataformas	em	que	candidatos	ao	Parlamento	se	dirigiam	aos	eleitores.	(N.	T.)
Fóruns	da	Democracia	I
Anfiteatro	grego,	Epidauro
Fóruns	da	Democracia	I
Piazza	del	Campo	e	Palazzo	Publico,	Siena
A	Batalha	Pela	Democracia
O	Juramento	da	Quadra	de	Tênis,	20	de	junho	de	1789
A	Batalha	Pela	Democracia
O	grande	encontro	cartista	no	parque	de	Kennington,	10	de	abril	de	1848
A	Batalha	Pela	Democracia
Luta	diante	de	uma	barricada	em	Berlim,	1848
A	Batalha	Pela	Democracia
Simón	Bolívar
Votando
Mulher	votando	durante	a	primeira	eleição	do	Japão	após	a	guerra,	1946
Votando
Mulheres	votando	na	eleição	geral	britânica,	1964
Votando
Mulheres	votando	na	eleição	geral	britânica,	1964
Votando
Eleitores	na	Caxemira,	2011
Votando
Eleitores	sul-africanos,	2007
Desafiar	e	Sobreviver
O	presidente	dos	Estados	Unidos,	Harry	Truman,	na	cabine	de	votação,	em	1950
Desafiar	e	Sobreviver
John	F.	Kennedy	e	Richard	Nixon	num	estúdio	de	TV	para	o	primeiro	debate	televisionado	entre
candidatos	à	presidência	dos	Estados	Unidos,	1960
Desafiar	e	Sobreviver
O	chanceler	alemão,	Franz	von	Papen	(no	centro),	diante	da	urna,	1932
Nova	e	Velha	Democracia
O	presidente	dos	EUA,	Barack	Obama,	cumprimenta	visitantes	no	Lincoln	Memorial,	em	Washington,
2011
Nova	e	Velha	Democracia
O	presidente	soviético,	Mikhail	Gorbachev,	e	o	presidente	russo,	Boris	Yeltsin,	no	Parlamento	russo	após
o	fracasso	do	golpe,	agosto	de	1991
Fóruns	da	Democracia	II
Votação	no	Parlamento	Europeu,	2011
Fóruns	da	Democracia	II
Governo	e	oposição	encaram-se	na	Câmara	dos	Comuns	britânica,	século	XVIII
S
11
ÍNDIA
O	Cidadão	Independente
e	procurássemos	um	país	para	o	estabelecimento	da	mais	nova	democracia
do	mundo,	a	Índia	de	1947	não	estaria	no	topo	da	lista:	colônia	britânica
que	nunca	fora	uma	nação,	sociedade	baseada	em	castas,	dividida	pela	religião,
com	uma	profusão	de	idiomas	e	a	maior	parte	da	população	na	pobreza,	sob
constante	ameaça	de	inanição.	Acima	de	tudo,	a	Índia,	diferentemente	de	todas
as	 outras	 democracias	 modernas,	 não	 era	 europeia.	 (As	 democracias	 das
Américas	 do	 Sul	 e	 do	 Norte	 haviam	 sido	 estabelecidas	 e	 administradas	 por
imigrantes	 europeus	 e	 seus	 descendentes.)	 No	 entanto,	 um	 sistema	 político
democrático	criou	raízes	na	Índia	e	persiste	até	hoje.	As	eleições	de	2009	para	a
Câmara	Inferior,	ou	Lok	Sabha,	do	15º.	Parlamento,	tiveram	um	eleitorado	de
714	milhões,	dos	quais	420	milhões	votaram	—	mais	do	que	os	eleitorados	dos
Estados	Unidos	e	de	todos	os	países	da	União	Europeia	 juntos.	A	política	se
tornou	 a	 força	 vital	 da	 Índia,	 onde	 milhões	 de	 vozes	 podem	 ser	 ouvidas	 e
milhares	de	reivindicações	divergentes	são	ventiladas,	negociadas	e	resolvidas
em	público.
As	explicações	para	essa	história	notável	são	tão	diversas	quanto	o	próprio
país	 e	 giram	 em	 torno	 de	 se	 os	 elementos-chave	 que	 permitiram	 que	 a
democracia	florescesse	após	a	 independência	eram	profundamente	 intrínsecos
à	cultura	indiana	ou	se	a	democracia	era	um	conceito	original	ao	qual	a	nação
conseguiu	 se	adaptar.	É	hoje	de	 conhecimento	geral	que	a	 independência	 foi
uma	 preparação,	 não	 uma	 ruptura	 na	 história	 da	 democracia	 na	 Índia	 —	 a
democracia	 estava	 inserida	no	 subcontinente	muito	 antes	da	 saída	 formal	da
Grã-Bretanha.	Existe	 também	a	visão	de	que	o	domínio	britânico	deveria	ser
visto	 a	 partir	 do	 processo	 contínuo	 da	 história	 indiana.	Nessa	 perspectiva,	 a
administração	 colonial	 deixou	 um	 legado	 influente,	 mas	 muito	 da	 cultura
indiana	permanecera	 inalterado	durante	o	período	colonial.	A	 independência
simplesmente	 permitiu	 que	 a	 cultura	 predominante	 continuasse	 como	 antes,
mas	 com	 o	 povo	 indiano	 no	 controle	 do	 centro	 político.	 No	 entanto,
precisamos	equilibrar	essa	leitura	da	história	com	o	reconhecimento	de	que	a
Índia	 contemporânea	 é	 uma	 criação	 moderna	 que	 combina	 inovação	 e
adaptabilidade	 com	 uma	 continuidade	 extraordinária.	 Para	 compreendermos
esses	 argumentos	 abstratos,	 precisamos	 examinar	 a	 história	 da	 Índia	 antes	 e
depois	da	chegada	dos	britânicos.
Desde	os	séculos	IV	e	III	a.C.,	quando	o	território	da	Índia	era	governado	pelo
Império	 Mauria,	 o	 subcontinente	 tem	 acomodado	 um	 conjunto	 de	 culturas
diversas	 e	 unificadas	 simultaneamente	 —	 pessoas	 em	 diferentes	 áreas
compartilhavam	práticas	culturais	com	costumes	variados.	Tanto	o	hinduísmo
como	o	budismo	espalharam-se	pela	região,	unindo	o	povo	do	sul	da	Ásia	não
apenas	pela	crença	religiosa,	mas	por	atitudes	sociais	e	culturais.	O	hinduísmo
transformou-se	 numa	 estrutura	 social	 durante	 a	 chamada	 Era	 Clássica,	 do
século	 IX	 ao	 XVII.	 Nesse	 período,	 partes	 do	 noroeste	 da	 Índia	 foram
invadidas	 e	 colonizadas	 por	 muçulmanos	 da	 Pérsia,	 os	 mogóis,	 enquanto	 o
Império	 Hindu	 de	 Vijayanagara	 se	 tornou	 uma	 força	 dominante	 no	 sul	 do
século	XIV	ao	XVII.	O	Império	Mogol	estabeleceu-se	por	completo	no	reino
de	Akbar,	o	Grande	(1542-1605),	chegando	a	se	estender	de	Cabul,	no	norte,
até	 Calicute,	 no	 sul,	 e	 ao	 delta	 do	 Ganges,	 no	 leste.	 Os	 mogóis	 não
interferiram	na	 fé	 hindu	de	 seus	 súditos,	 e	Akbar	 usou	uma	 combinação	 de
líderes	 muçulmanos	 e	 nativos,	 conhecida	 como	 jagirdar,	 para	 governar	 o
império.	Esses	dirigentes	locais	arrecadavam	impostos	e	organizavam	a	defesa
de	 suas	 regiões	 por	meio	 de	 uma	 equipe	 de	 administradores	 (zamindars).	O
império	fazia	uso	de	autoridades	estabelecidas	em	algumas	áreas,	ao	passo	que,
em	outras,	introduziu	seus	administradores	e	oficiais	para	criar	uma	burocracia
imperial	efetiva.	A	corte	mogol	era	peripatética,	e	os	2	mil	 jagirdars	tinham	de
comparecer	 com	 regularidade,	 independentemente	 do	 local	 escolhido	 pelo
imperador.
A	 característica-chave	 do	 império	 era	 a	 autonomia	 concedida	 às	 regiões:
desde	 que	 os	 líderes	 locais	 apresentassem	 os	 impostos	 e	 não	 desafiassem	 a
autoridade	do	centro,	eram	quase	sempre	deixados	em	paz.	Porém	essa	mesma
autonomia	 contribuiu	 para	 o	 fim	 do	 império.	 No	 século	 XVIII,	 os	 mogóis
tornaram-se	 vítimas	 de	 seu	 próprio	 êxito.	Nessa	 época,	 as	 diferentes	 regiões
haviam	 crescido	 em	prosperidade	 e	 autoconfiança.	Os	 líderes	 das	 províncias
tornaram-se	menos	rigorosos	no	envio	de	impostos	ao	centro,	o	qual,	por	sua
vez,	enfraqueceu	de	forma	progressiva.	As	rebeliões	nas	regiões,	por	exemplo
as	guerras	do	Decã,	que	começaram	em	1670,	desafiaram	a	autoridade	central
com	sucesso.	Após	a	morte	de	Aurangzeb,	o	último	grande	imperador	mogol,
em	 1707,	 muitos	 dos	 jagirdars	 cortaram	 seus	 laços	 com	 a	 corte	 imperial,
criando	Estados	 semi-independentes	 em	Hyderabad,	Bengala	 e	Oudh.	O	 fim
veio	quando	Délhi	foi	saqueada	por	um	Exército	persa	em	1739,	e	o	Trono	do
Pavão	mogol,	levado	como	espólio	de	guerra.	O	império	não	desapareceu,	mas
o	Grande	Mogol	 tornou-se	 apenas	 um	 dentre	muitos	 líderes	 regionais,	 cada
um	com	a	sua	própria	base	de	poder.
A	subsequente	conquista	do	subcontinente	 indiano	pelos	britânicos	 foi	 tão
gradual	 que	 pode	 ser	 vista	 como	 uma	 continuação	 do	 sistema	 de	 governo
mogol	com	outro	nome.	O	envolvimento	da	Companhia	das	Índias	Orientais
teve	 início	 em	 1615,	 quando	 sir	 Thomas	 Roe	 liderou	 uma	 missão	 até	 o
imperador	mogolNuruddin	 Salim	 Jahangir.	Durante	 os	 cem	 anos	 seguintes,
empregados	 da	 companhia	 comercializaram	 com	 partes	 do	 império,	 alguns
deles	 estabelecendo	postos	de	 comércio	no	 subcontinente.	Durante	 todo	 esse
tempo,	 a	 companhia	 era	 independente	 do	 governo	 britânico,	 embora	 tivesse
privilégios	especiais;	primeiro,	concedidos	pela	rainha	Elizabeth	em	1600	e,	em
seguida,	por	Oliver	Cromwell,	pelo	rei	Carlos	II	e	pelo	Parlamento	britânico,
em	 1708.	 Em	 retorno	 por	 esses	 privilégios,	 a	 companhia	 pagou	 quantias
consideráveis	 ao	 governo	 britânico.	 Suas	 principais	 mercadorias	 eram	 o
algodão,	a	seda	e	outros	produtos	têxteis,	como	tintura	índigo,	mas	havia	um
comércio	secundário	lucrativo	de	ópio	e	tabaco.	À	medida	que	suas	operações
se	 expandiam,	 a	 companhia	 passou	 a	 montar	 fábricas	 e	 construir	 pequenas
fortalezas	para	proteger	suas	propriedades.	Em	1717,	ela	recebeu	permissão	do
imperador	 mogol	 para	 comercializar	 em	 Bengala	 sem	 pagar	 direitos
aduaneiros.	Um	comércio	intenso	ali	e	em	outras	partes	da	Índia	e	do	leste	da
Ásia	 permitiu	 que	 a	 companhia	 prosperasse,	 mas	 sem	 qualquer	 plano	 de
conquista:	 parecia	 não	 haver	 motivos	 para	 se	 desejar	 um	 domínio	 político,
desde	que	o	comércio	estivesse	lucrativo	e	estável.
A	 Guerra	 dos	 Sete	 Anos	 (1756-63)	 mudou	 a	 situação.	 Em	 1757,	 Robert
Clive	comandou	 forças	da	Companhia	das	 Índias	Orientais,	 com	o	apoio	do
Grande	 Mogol,	 contra	 os	 nawab	 de	 Bengala	 e	 os	 franceses	 na	 Batalha	 de
Plassey.	A	vitória	de	Clive	fez	da	companhia	a	governante	de	fato	de	Bengala,
a	joia	da	coroa	da	Índia,	mas	ainda	não	havia	indicações	de	que	a	proteção	dos
direitos	 britânicos	 levaria	 a	 uma	 conquista	 total	 do	 subcontinente.	 Os
britânicos	simplesmente	se	tornaram	parte	da	estrutura	de	poder	já	existente.
No	 entanto,	 em	 1780,	 a	 função	 comercial	 da	 companhia	 se	 tornara
praticamente	 política:	 na	 falta	 de	 qualquer	 outra	 autoridade,	 oficiais	 da
Companhia	das	Índias	Orientais	administravam	uma	parte	grande	e	próspera
da	 Índia	 oriental,	 incluindo	 a	 arrecadação	 de	 impostos.	 Em	 parte	 por	 terem
assumido	 a	 autoridade	 de	 forma	 gradual,	 os	 oficiais	 da	 companhia	 se	 viram
trabalhando	 num	 sistema	 indiano	 com	 interações	 entre	 indianos	 e	 britânicos
em	todos	os	níveis.	Não	se	tratava	de	um	plano	imperial	de	unificação,	mas	de
um	conjunto	de	arranjos	práticos.
Em	 seu	 papel	 comercial,	 a	Companhia	 das	 Índias	Orientais	 contentava-se
em	 conviver	 com	 a	 cultura	 e	 o	 povo	 indianos.	 Porém,	muitos	 indivíduos	 e
grupos	na	Grã-Bretanha	estavam	ávidos	para	 levar	os	 frutos	da	 civilização	a
um	 povo	 que,	 de	 acordo	 com	 Charles	 Grant,	 membro	 do	 conselho	 da
companhia	e	cristão	evangélico,	estava	“há	muito	afundado	na	escuridão,	no
vício	 e	 na	miséria”	 e	 necessitado	da	 “luz	 e	 influência	 benéfica	da	verdade	 [e
das]	bênçãos	de	uma	sociedade	devidamente	regulada”.1	Se	o	cristianismo	não
conseguiu	causar	grande	impacto	em	solo	indiano,	a	educação	de	um	número
significativo	de	membros	da	elite	indiana	viria	a	ser	um	importante	legado	do
domínio	britânico.	Os	britânicos	acabaram	lamentando	a	criação	de	um	grupo
de	indianos	altamente	instruído	e	capaz,	que	poderia	desafiar	a	autoridade	em
todos	 os	 níveis	 (ação	 que	 não	 se	 repetiu	 nas	 colônias	 africanas	 da	 Grã-
Bretanha).	 Indianos	 cultos	 começaram	 a	 pensar	 a	 respeito	 de	 uma	 nação
indiana	que	transcendesse	religião,	credo	e	castas.
Na	 primeira	 metade	 do	 século	 XIX,	 a	 Companhia	 das	 Índias	 Orientais
mudou	 de	 forma	 decisiva	 e	 se	 tornou	 um	 poder	 militar	 dominante	 e
conquistador.	As	vitórias	 sobre	o	 Império	Maratha	no	 sul	 e	 a	 coerção	 sobre
líderes	 locais	 no	 noroeste	 deram	 à	 companhia	 o	 controle	 total	 da	 Índia	 em
1850.	 Essa	 conquista	 não	 declarada	 foi	 formalizada	 pelo	Motim	 Indiano,	 de
1857,	que	alterou	completamente	a	relação	entre	Índia	e	Grã-Bretanha.	Nessa
época,	 a	 Companhia	 das	 Índias	 Orientais	 empregava	 cerca	 de	 200	 mil
soldados	indianos,	conhecidos	como	sepoys,	além	de	40	mil	soldados	britânicos,
para	 impor	 seu	 poder.	 Diferentes	 fatores	 inspiraram	 o	 motim,	 inclusive	 as
medidas	 para	 impor	 o	 serviço	 de	 sepoys	 fora	 da	 Índia	 e	 o	 desgaste	 dos
privilégios	usufruídos	pelos	sepoys	de	castas	superiores.	O	desencadeador	foi	a
introdução	de	um	novo	rifle	Enfield.	A	técnica	de	carregamento	consistia	em
abrir	 os	 cartuchos	 de	 papel	 com	 os	 dentes,	 e	 houve	 rumores	 de	 que	 os
invólucros	 eram	 enrijecidos	 em	 gordura	 de	 porco	 —	 o	 que	 era	 um	 anátema
para	os	 soldados	muçulmanos	—	ou	em	sebo	bovino	—	o	que	era	 inaceitável
para	os	hindus.	Embora	o	conflito	principal	estivesse	confinado	à	planície	do
Ganges,	 a	 autoridade	da	 companhia	 entrou	 em	colapso	 em	muitas	partes	da
Índia.	O	governo	britânico	assumiu	o	controle	direto	das	forças	britânicas.	A
repressão	à	rebelião	foi	brutal	e	não	deixou	nenhum	rival	ameaçador	ao	poder
britânico.
Após	o	motim,	a	Grã-Bretanha	consolidou	sua	posição	com	a	nomeação	de
um	vice-rei.	A	Companhia	das	Índias	Orientais	foi	abolida,	e	a	Índia	tornou-se
colônia	britânica.	O	subcontinente	estava	dividido	em	distritos,	cada	um	sob	a
autoridade	de	um	dirigente	distrital,	geralmente	oriundo	da	classe	média	alta
britânica.	 O	 desenvolvimento	 de	 ferrovias,	 estradas,	 do	 telégrafo	 e,
posteriormente,	 do	 telefone	 possibilitou	 o	 governo	 do	 subcontinente	 como
uma	única	entidade.	Ao	mesmo	tempo,	a	vida	vitoriana	da	classe	média	alta,
com	 suas	 hierarquias	 sociais	 e	 rígida	 submissão,	 foi	 exportada	 para	 a	 Índia.
Isso	 permitia	 pouco	 contato	 entre	 britânicos	 e	 indianos.	 Do	 mesmo	 modo
como	 lidavam	 com	 sua	 própria	 classe	 trabalhadora,	 os	 senhores	 coloniais
britânicos	 tratavam	 os	 indianos	 com	 condescendência,	 caridade	 e	 ocasional
brutalidade.	Aqueles	que	se	 importavam	com	o	povo	indiano	afirmavam	que
os	britânicos	governavam	o	país	em	benefício	dos	próprios	habitantes.
O	governo	britânico	da	Índia	durou	de	1857	a	1947.	Durante	esse	tempo,
os	indianos	estiveram	muito	conscientes	dos	acontecimentos	políticos	na	Grã-
Bretanha,	das	mudanças	na	 lei	eleitoral	e	das	pressões	democráticas	sobre	os
partidos	Liberal	e	Tory.	Em	1885,	o	Congresso	Nacional	indiano	era	formado
não	como	um	partido	político,	mas	como	uma	espécie	de	clube	ou	sociedade
para	 indianos	 cultos	 discutirem	 e	 influenciarem	 o	 futuro	 político	 do	 país.	 A
eleição	 de	 um	 governo	 britânico	 liberal	 e	 reformador	 em	 1906	 gerou
mudanças	notáveis	no	subcontinente.	Esse	também	foi	o	ano	da	fundação	da
Liga	Muçulmana.	As	Leis	dos	Conselhos	Indianos,	de	1909	(conhecidas	como
as	Reformas	de	Morley	Minto),	deram	aos	indianos	algumas	vagas	por	eleição
nas	 assembleias	 legislativas,	 que	 antes	 eram	 completamente	 ocupadas	 pelos
britânicos,	 e	 também	 reservaram	algumas	 vagas	 para	 a	minoria	muçulmana.
Embora	os	nomeados	britânicos	ainda	constituíssem	a	maioria,	essas	reformas
marcaram	 o	 início	 de	 uma	 estrutura	 parlamentar	 para	 a	 Índia	 nos	 níveis
distrital,	provincial	e	imperial.
Depois	de	1918,	quando	 todos	os	homens	britânicos	acima	dos	18	anos	e
algumas	 mulheres	 acima	 dos	 30	 tinham	 o	 direito	 de	 voto,	 cresceram	 as
reivindicações	 indianas	 por	 direitos	 políticos	 reais.	 Em	 1919,	 o	 governo
britânico	 concedeu	 aos	 indianos	 uma	 maior	 participação	 na	 administração
pública,	o	que	proporcionou	um	catalisador	para	discussões	mais	objetivas	por
parte	 dos	 nacionalistas	 indianos	 no	 Congresso	 e	 da	 Liga	 Muçulmana.	 Os
indianos	 não	 se	 viam	 como	 uma	 nação	 e	 agora	 tinham	 de	 definir	 o	 que	 o
conceito	 significaria	na	prática.	O	que	era	 Índia	e	o	que	deveria	 ser?	Alguns
hindus	 queriam	 uma	 nação	 baseada	 em	 sua	 cultura	 religiosa	 —	 mas	 onde
ficaria	 a	minoria	muçulmana?	Alguns	queriam	unidade	política,	 outros,	 uma
federação	flexível.	Essas	ideias	foram	intensamente	debatidas.
Em	meioa	esse	debate	aberto	e	 instável,	 surgiu	a	 figura	extraordinária	de
Mohandas	Gandhi.	Filho	de	um	político	provinciano,	Gandhi	estagiara	como
advogado	em	Londres	antes	de	trabalhar	na	África	do	Sul	de	1893	a	1914.	Lá,
vivenciou	 diretamente	 o	 racismo	 e,	 numa	 campanha	 para	 a	 obtenção	 de
direitos	políticos	para	a	comunidade	indiana,	desenvolveu	a	ideia	do	satyagraha
(literalmente,	 “força	 verdadeira”),	 uma	 combinação	 de	 adesão	 à	 verdade	 e
protesto	 não	 violento.	 De	 acordo	 com	 o	 satyagraha,	 as	 pessoas,	 em	 grupo,
desobedeceriam	a	leis	injustas	e	aceitariam	a	punição	como	uma	forma	radical
de	protesto.	Gandhi	 voltou	 à	 Índia	 em	1915	 e	 tornou-se	 líder	do	Congresso
Nacional	em	1921,	com	o	objetivo	declarado	de	conquistar	a	independência	da
Grã-Bretanha.	O	 estilo	 simples	 de	 vestimenta	 adotado	 por	 ele,	 o	 tradicional
dhoti,	feito	de	tecido	rústico,	era	a	representação	física	de	sua	crença	de	que	a
alma	da	Índia	estava	em	suas	aldeias	e	em	seu	povo.
O	movimento	 satyagraha	organizou	campanhas	de	não	cooperação	durante
toda	a	década	de	1920,	enquanto	a	habilidade	de	Gandhi	para	 se	comunicar
com	 o	 povo	 comum	 da	 Índia	 transformou	 o	Congresso,	 antes	 um	 pequeno
grupo	 de	 indianos	 cultos,	 numa	 organização	 nacional	 envolvendo	 todas	 as
classes	 e	 regiões.	 No	 início	 da	 década	 de	 1930,	 Gandhi	 instituiu	 uma
campanha	contra	o	 imposto	sobre	o	sal,	que	culminou	na	 famosa	marcha	de
400	 quilômetros	 de	 Ahmedabad	 até	 as	 salinas	 de	 Dandi.	 Mais	 de	 80	 mil
indianos	foram	presos	durante	a	campanha.	No	centro	do	trabalho	de	Gandhi
estava	 a	 percepção	 de	 que	 a	 Índia	 não	 poderia	 ser	 criada	 simplesmente
livrando-se	dos	britânicos:	a	nação	tinha	de	ser	construída	de	baixo	para	cima.
Os	 moldes	 para	 a	 nova	 nação	 foram	 apresentados	 em	 1935	 pela	 Lei	 do
Governo	 da	 Índia,	 que	 estabelecia	 uma	 federação	 de	 províncias
semiautônomas	 nas	 quais	 os	 indianos	 tinham	 mais	 poderes	 de	 voto.	 Na
prática,	no	entanto,	o	sistema	federal	não	funcionou:	os	ministros	provinciais
eram	controlados	pelo	comando	central	do	partido	do	Congresso,	que	passara
a	ser	a	força	dominante	da	política	indiana.	Jawaharlal	Nehru,	descendente	de
uma	 família	 rica	 da	 Caxemira	 e	 educado	 na	 Grã-Bretanha,	 era	 o	 principal
organizador	do	movimento	de	independência.	Foi	a	combinação	do	carisma	e
da	popularidade	de	Gandhi	com	as	habilidades	políticas	de	Nehru	que	formou
a	base	do	movimento.	Enquanto	 isso,	a	maioria	dos	cargos	alocados	para	os
muçulmanos	 era	 ocupada	 por	 membros	 da	 Liga	 Muçulmana,	 cujo	 líder,
Muhammad	Ali	Jinnah,	acabaria	defendendo	a	criação	de	um	Estado	separado
para	os	muçulmanos.	O	sistema	introduzido	pela	lei	de	1935	deu	aos	políticos
das	 províncias	 a	 chance	 de	 se	 envolverem	 no	 governo,	 e	 os	 dirigentes	 dos
conselhos	distritais	e	provinciais	aprenderam	habilidades	políticas	—	manipular,
fazer	concessões	e	organizar.	Além	disso,	em	1940,	o	Serviço	Público	indiano,
o	 grande	 aparelho	 administrativo	 do	 governo,	 havia	 se	 tornado	 ainda	 mais
“indianizado”.	 Havia	 então	 mais	 funcionários	 indianos	 que	 britânicos	 nos
cargos	mais	elevados.
Depois	 de	 1945,	 a	 independência	 passou	 a	 ser	 inevitável.	 Tropas	 britânicas
haviam	 sido	 levadas	 a	 outros	 lugares	 durante	 a	 guerra,	 e	 os	 custos	 para
reocupar	 a	 Índia	 eram	proibitivos.	De	 todo	modo,	 a	Grã-Bretanha	 e	 a	 Índia
percebiam	 que	 tinham	 pouca	 utilidade	 uma	 para	 a	 outra.	 Em	 termos
econômicos,	seguiam	caminhos	separados,	uma	vez	que	a	Índia	começava	a	se
comportar	mais	como	um	país	desenvolvido	—	aumentando	a	alfabetização	da
população,	 produzindo	 seus	 próprios	 produtos	manufaturados	 e	 importando
mercadorias	 de	 outros	 lugares.	 Além	 disso,	 os	 Estados	 Unidos,	 que
financiavam	a	reconstrução	da	Europa,	eram	hostis	ao	imperialismo	britânico,
e	o	povo	britânico	queria	uma	reconstrução	interna,	não	fora	do	país.
À	 medida	 que	 a	 independência	 se	 aproximava,	 aumentavam	 as	 tensões
entre	as	comunidades	hindu	e	muçulmana,	cada	uma	ameaçada	pela	potencial
dominação	 da	 outra	 em	 diferentes	 partes	 do	 país.	 A	 violência	 entre	 as
comunidades	 foi	 sangrenta,	 principalmente	 no	 Punjab,	 que	 era	 habitado	 por
sikhs,	 muçulmanos,	 hindus,	 cristãos,	 jainas	 e	 budistas.	 Nehru	 escreveu	 a
respeito	 da	 violência:	 “Tenho	 de	 confessar	 que	 acontecimentos	 recentes	 no
Punjab	 e	 em	 Délhi	 abalaram	 [...]	 minha	 fé	 em	 meu	 próprio	 povo.	 Eu	 não
poderia	imaginar	a	brutalidade	flagrante	e	a	crueldade	sádica	a	que	as	pessoas
se	 entregaram.”2	 Em	 1947,	 o	 primeiro-ministro	 britânico,	 Clement	 Attlee,
nomeou	 lorde	 Mountbatten	 vice-rei,	 ordenando	 que	 ele	 abrisse	 o	 caminho
para	a	 independência	 indiana.	Mountbatten	era	uma	figura	afável,	que	 levou
líderes	indianos	ao	seu	círculo	social	e	desenvolveu	uma	amizade	com	Nehru
em	particular.	Nehru,	por	sua	vez,	lutava	no	Congresso	por	uma	visão	secular
da	Índia,	opondo-se	ao	nacionalismo	hindu	e	oferecendo	proteção	aos	milhões
de	muçulmanos	da	Índia.	Tanto	Nehru	como	Mountbatten	estavam	frustrados
com	a	intransigência	de	Jinnah,	cuja	preocupação	com	os	direitos	políticos	para
a	 minoria	 muçulmana	 transformou-se	 numa	 reivindicação	 por	 um	 Estado
separado;	mas	Nehru	entendeu	que	a	realidade	da	violência	comunal,	em	que
dezenas	de	milhares	eram	mortos,	significava	que	o	sonho	de	uma	Índia	unida
e	 independente	 nunca	 poderia	 ser	 realizado.	 No	 fim,	 Nehru,	 Jinnah	 e
Mountbatten	concordaram	com	a	divisão	do	país	nos	Estados	da	 Índia	 e	do
Paquistão,	 e	 a	 independência	 foi	 declarada	 formalmente	 à	 meia-noite	 de	 14
para	15	de	agosto	de	1947.
Embora	a	divisão	tenha	sido	traumática,	os	novos	governos	da	Índia	e	do
Paquistão	 souberam	 lidar	 com	 a	 administração	 do	 resultado	 com	 rapidez	 e
êxito	 extraordinários.	 Refugiados	 estabeleceram-se,	 e	 as	 administrações
públicas,	 receitas,	 Forças	 Armadas	 e	 outros	 órgãos	 foram	 divididos	 com
eficiência.	Na	Índia,	a	Assembleia	Constituinte	recebeu	a	tarefa	de	redigir	uma
Constituição	 para	 o	 novo	 país.	 Como	 isso	 deveria	 ser	 realizado	 era	 uma
incógnita.	Gandhi	acreditava	que	o	Congresso	deveria	ser	desfeito	agora	que	o
trabalho	da	independência	estava	completo.	Porém,	o	partido	continuou,	mas
permaneceu	 um	 conjunto	 de	 opiniões	 e	 abordagens	 diferentes.	 Alguns	 de
dentro	do	Congresso	 acreditavam	que	 a	divisão	dera	o	 sinal	 verde	para	um
Estado	 declaradamente	 hindu,	 e	 havia	 a	 possibilidade	 de	 que	 a	 poderosa
burocracia	 indiana	 pudesse	 ser	 usada	 para	 servir	 a	 uma	 oligarquia	 da	 elite
instruída.	 A	 democracia,	 contudo,	 continuou	 sendo	 a	 opção	 preferencial	 no
Congresso,	e	a	principal	realização	de	Nehru	foi	insistir	no	sufrágio	universal	e
fazer	 da	 extensão	 dos	 direitos	 políticos	 um	 motor	 para	 o	 desenvolvimento
socioeconômico.
A	Constituição	 foi	 sancionada	 em	 janeiro	 de	 1950:	 a	 Índia	 passara	 a	 ser
uma	 república	democrática.	O	preâmbulo	 à	Constituição	 acompanhava	o	de
seus	 predecessores	 ocidentais	 ao	 colocar	 o	 povo	 como	 soberano	 e	 consagrar
certos	direitos,	entre	eles	a	igualdade	e	a	livre	expressão:
Nós,	o	povo	da	Índia,	decidimos	de	forma	solene	fazer	do	país	uma	república	democrática	soberana	e
assegurar	a	seus	cidadãos:	Justiça	social,	econômica	e	política;	Liberdade	de	pensamento,	expressão,
crença,	 fé	 e	 culto;	 Igualdade	 de	 status	 e	 oportunidade;	 e	 promover	 junto	 a	 eles	 a	 Fraternidade,
garantindo	a	dignidade	do	indivíduo,	e	a	unidade	e	a	integridade	da	Nação.3
A	Constituição	deu	ao	governo	nacional	mais	poder	do	que	alguns	gostariam,
mas	 que	 outros	 consideraram	 necessário	 para	 a	 criação	 de	 um	 Estado
moderno.	 O	 direito	 do	 presidente	 de	 dissolver	 o	 governo	 de	 Estados
individuais	(o	chamado	Governo	do	Presidente)	era	problemático,	mas	refletia
os	temores	de	uma	divisão	da	Índia	em	Estados	isolados.
O	 novo	 Estado	 deu	 início	 à	 criação	 de	 umasociedade	 livre,	 igualitária	 e
próspera.	Todavia,	a	 tarefa	do	governo	 indiano	de	manter	a	estabilidade,	ao
mesmo	tempo	que	dava	ao	povo	liberdade	de	escolha,	gerou	a	eterna	questão
de	como	equilibrar	liberdade	e	ordem.	Os	indianos	haviam	sido	coagidos	sob
o	domínio	britânico	e	agora	estavam	livres,	mas	a	sociedade	tinha	de	funcionar
de	 forma	 ordenada.	 Três	 fatores	 contribuíram	 para	 a	 estabilidade:	 a
neutralidade	 política	 do	 Exército,	 um	 serviço	 público	 extremamente
profissional	 que	 agia	 como	 uma	 proteção	 contra	 a	 desordem	 política	 e,	 nas
primeiras	décadas	da	independência,	a	força	do	Congresso.	O	Congresso	era
tão	dominante	que	a	Índia	foi,	durante	algum	tempo,	um	aparente	paradoxo	—
uma	democracia	de	um	só	partido.
Jawaharlal	Nehru	 foi	primeiro-ministro	e	ministro	das	Relações	Exteriores
de	1947	até	sua	morte,	em	1964.	Filho	de	um	rico	advogado	indiano,	Nehru
acompanhou	 de	 perto	 a	 democracia	 britânica	 com	 todos	 os	 seus	 méritos	 e
falhas	 quando	 estudava	 na	 Harrow	 School	 e	 em	 Cambridge.	 A	 longa
campanha	 pela	 independência,	 juntamente	 com	 a	 influência	 de	Gandhi,	 sem
dúvida	moldou	sua	visão	política	e,	em	1947,	ele	estava	ciente	das	dificuldades
e	 possibilidades	 enfrentadas	 pela	 Índia.	 Nehru	 viu	 claramente	 que	 a	 nova
nação	 tinha	muitas	 chances	 de	 ser	 governada	 por	 uma	 oligarquia	 das	 castas
mais	 altas	 e	 das	 famílias	 mais	 ricas	 visando	 ao	 seu	 próprio	 proveito.	 Uma
classe	dirigente	como	essa	seguiria	a	abordagem	paternalista	da	Grã-Bretanha
em	vez	de	aproximar	a	população	da	política,	das	questões	sociais	e	possibilitar
a	 reforma	na	 educação	 e	 na	 saúde.	Desde	 o	 princípio,	Nehru	 preocupava-se
com	a	conduta	dos	funcionários	públicos:	“Eles	tendem	a	retornar	aos	tempos
de	 domínio	 britânico,	 quando	 desprezavam	 o	 público	 como	 se	 fosse	 uma
espécie	de	inimigo	ou	adversário	que	tinha	de	ser	humilhado.	Trata-se	de	um
desenvolvimento	perigoso	por	minar	o	prestígio	do	governo	junto	ao	povo.”4
Nehru	fez	o	papel	de	representante	aristocrata	popular,	mas	também	assegurou
o	envolvimento	das	pessoas	comuns	na	democracia.
Assim	 como	 os	 Pais	 Fundadores	 dos	 Estados	 Unidos,	 Nehru	 ficou
desiludido	 e	 exaurido	 diante	 da	 dimensão	 da	 tarefa	 e	 da	mesquinharia	 e	 do
oportunismo	dos	políticos,	mas	teve	o	apoio	de	um	grupo	de	administradores	e
políticos	experientes	e	capazes.	Em	particular,	sua	relação	com	o	vice-primeiro-
ministro,	Vallabhbhai	Patel,	permitiu	que	as	divergências	dentro	do	Congresso
fossem	expressas	por	meio	do	processo	político	 e	não	a	portas	 fechadas.	No
entanto,	após	a	morte	de	Patel	em	1950,	Nehru	exerceu	um	controle	maior	do
Congresso,	e	seu	secularismo	venceu	o	nacionalismo	hindu	dos	defensores	de
seu	vice.
A	maior	contribuição	de	Nehru	para	a	democracia	indiana	pode	ter	sido	seu
amor	pelas	eleições	e	campanhas.	Ele	apreciava	a	oportunidade	de	estar	entre
os	 eleitores	 e	pregar	o	 ethos	 da	democracia.	 Subsequentemente,	 as	 eleições	 se
transformaram	num	rito	público	de	vasta	importância,	inculcado	na	identidade
da	nação.	Os	 indianos	descobriram	uma	paixão	pela	política	que	nunca	mais
perderam.	Ao	 contrário	 da	 Europa,	 na	 Índia	 é	 comum	discutir	 política	 com
estranhos.	Nehru	entendia	que	promover	a	democracia	de	forma	contínua	era
crucial	para	sua	sobrevivência.	Ele	também	tratava	a	Lok	Sabha	com	respeito	e
seriedade,	frequentando	o	Parlamento	com	regularidade,	fazendo	dele	o	fórum
para	 anúncios	 importantes	 e	 dando	 atenção	 à	 opinião	 dos	membros	mesmo
quando	 ameaçavam	 atrasar	 a	 legislação.	 Em	 contraste	 com	 líderes	 pós-
coloniais	 ao	 redor	 do	 mundo,	 Nehru	 posicionava-se	 contra	 as	 medidas
repressivas	 do	 governo,	 tal	 como	 a	 restrição	 da	 liberdade	 de	 imprensa,	 e	 as
usava	apenas	com	relutância.	Conforme	escreveu	um	historiador	indiano:	“O
compromisso	de	Nehru	com	a	democracia	e	com	as	liberdades	civis	era	total.
Para	 ele,	 tratava-se	 de	 valores	 absolutos,	 não	 de	meios	 para	 se	 alcançar	 um
fim.”	 Quando	 lhe	 perguntaram	 qual	 seria	 o	 seu	 legado,	 Nehru	 respondeu:
“Espero	 que	 sejam	 400	 milhões	 de	 indianos	 capazes	 de	 governar	 a	 si
mesmos.”5	Nehru	 seguiu	 uma	 agenda	 doméstica	 socialista	 com	 uma	 política
externa	 de	 neutralidade.	 Embora	 alguns	 tenham	 criticado	 o	 ritmo	 lento	 do
desenvolvimento	econômico	nas	primeiras	décadas	da	independência,	a	ênfase
no	fortalecimento	da	educação	e	na	manutenção	da	estabilidade	e	da	unidade
nacional	sustentou	o	recente	impulso	no	crescimento	econômico.
Antes	da	morte	de	Nehru	em	1964,	outros	partidos	políticos	 lutaram	para
progredir.	Os	 partidos	 socialista	 e	 comunista	 haviam	 começado	 como	partes
do	partido	do	Congresso	antes	de	romperem,	mas	a	disposição	do	Congresso
para	 incluir	 algumas	 de	 suas	 convicções	 dificultou	 as	 coisas	 para	 eles.	 O
Bharatiya	Jana	Sangh	(BJS)	foi	fundado	em	1951	como	um	partido	nacionalista
hindu,	mas	o	comunalismo	não	era	bem-visto	na	Índia	após	o	assassinato	de
Gandhi	 por	 um	 hindu.	 Também	 era	 ilegal	 recorrer	 a	 crenças	 religiosas	 nas
eleições,	e	o	BJS	teve	dificuldades	para	obter	apoio.	O	partido	Swatantra	foi	o
primeiro	 partido	 conservador	 secular	 da	 Índia,	 formado	 em	 1959	 para
representar	 a	 economia	 do	 laissez	 faire	 e	 do	 livre	 comércio	 em	 oposição	 ao
socialismo	de	Nehru,	mas	também	não	foi	capaz	de	atrair	suas	almas	gêmeas
ideológicas	 para	 fora	do	 abrigo	 confortável	 do	Congresso.	A	dominância	do
Congresso	perpetuava	a	si	mesma	—	qualquer	um	que	quisesse	entrar	para	a
política	naturalmente	o	via	como	um	veículo.
O	Congresso	 elegeu	Lal	 Bahadur	 Shastri	 sucessor	 de	Nehru.	 Shastri	 fora
escolhido	 por	 um	 grupo	 de	 membros	 eminentes	 do	 partido	 que	 ficou
conhecido	como	o	Sindicato,	e	quando	Shastri	morreu	de	ataque	cardíaco,	em
janeiro	 de	 1966,	 o	 Sindicato	 recorreu	 à	 filha	 de	 Nehru,	 Indira	 Gandhi,
esperando	 que	 uma	 jovem	 popular	 e	 sem	 a	 própria	 base	 de	 poder	 fosse
maleável.	A	nova	primeira-ministra	assumiu	o	cargo	numa	época	difícil,	com	a
Índia	 sofrendo	 escassez	 de	 alimentos	 e	 alta	 de	 preços.	 As	 eleições	 de	 1967
resultaram	 em	 perdas	 enormes	 para	 o	 Congresso;	 embora	 ele	 tivesse	 uma
maioria	 estreita	 no	 Lok	 Sabha,	 entregou	 o	 controle	 da	maioria	 dos	 estados.
Muitos	 dos	 membros	 do	 Sindicato	 perderam	 cargos	 de	 forma	 significativa,
deixando	Indira	Gandhi	numa	posição	mais	influente.	Em	novembro	de	1969,
a	 velha	 guarda,	 ressentida	 com	 o	 prestígio	 crescente	 da	 primeira-ministra,
expulsou-a	 de	 seu	 próprio	 partido.	 A	 sra.	 Gandhi	 montou	 de	 imediato	 sua
própria	organização	política,	 chamada	Congresso	 (R)	 (de	Requisitantes),	 que
depois	 se	 tornou	 o	 Congresso	 (I)	 (de	 Indira).	 Cerca	 de	 220	 membros	 do
Parlamento	 uniram-se	 a	 ela,	 enquanto	 68	 permaneceram	 no	 partido	 rival,	 o
Congresso	(O)	(de	Organização).	As	eleições	resultantes,	em	fevereiro	de	1971,
representaram	um	triunfo	pessoal	para	a	sra.	Gandhi:	o	Congresso	(R)	obteve
352	 das	 518	 cadeiras,	 concedendo	 um	 mandato	 poderoso	 ao	 novo	 partido
formado	em	torno	dela.	Sua	astúcia	no	tratamento	do	conflito	de	Bangladesh
em	1971	aumentou	ainda	mais	sua	autoridade	e	importância	no	país	e	em	todo
o	mundo.6
Entretanto,	foi	no	governo	de	Indira	Gandhi	que	a	Índia	mais	chegou	perto
de	perder	 a	democracia.	Em	 junho	de	1975,	 a	 Suprema	Corte	de	Allahabad
acusou	a	sra.	Gandhi	de	fraude	eleitoral	durante	as	eleições	de	1971	e	ordenou
sua	 remoção	 do	 cargo	 parlamentar	 e	 um	 afastamento	 de	 seis	 anos.	 Isso	 a
desqualificou	 da	 função	 de	 primeira-ministra.	 Numa	 atmosfera	 de	 extrema
tensão,	 com	multidões	 de	 defensores	 e	 detratores	 reunidas	 em	Délhi,	 a	 sra.
Gandhi	 recusou-se	 a	 acatar	 as	 ordens	 e	 solicitou	 que	 o	 presidente	 do	 país
declarasse	estado	de	emergência.	Fakhruddin	Ali	Ahmed,	membro	do	partido
do	Congresso	que	fora	escolhido	para	o	cargo	pela	sra.	Gandhi,	concordou,	e
o	 estadode	 emergência	 começou	 em	 junho	 de	 1975.	 Ao	 mesmo	 tempo,	 o
Governo	 do	 Presidente	 foi	 acionado	 para	 impor	 o	 controle	 central	 aos	 dois
estados	 governados	 por	 partidos	 de	 oposição	 —	 Gujarat	 e	 Tamil	 Nadu.
Milhares	de	ativistas	de	oposição	foram	presos	quando	os	direitos	civis	foram
suspensos	 e	 a	 censura,	 introduzida.	Um	programa	malfeito	de	 eliminação	de
áreas	 pobres,	 combinado	 com	 uma	 campanha	 de	 controle	 forçado	 da
natalidade	 dirigido	 pelo	 filho	 de	 Gandhi,	 Sanjay,	 somente	 agravou	 o
descontentamento	 crescente.	 Alguns	 afirmavam	 que	 Indira	 Gandhi	 estava
defendendo	o	país	de	um	golpe	de	Estado	efetivo	em	1975,	mas	a	duração	das
ações	de	emergência	depõe	contra	esse	argumento.	A	sra.	Gandhi	estendeu	o
estado	de	emergência	duas	vezes	antes	de	 convocar	as	 eleições	 em	1977.	Na
ocasião,	 o	 Congresso	 foi	 humilhado,	 perdendo	 poder,	 pela	 primeira	 vez	 na
história	da	Índia,	para	o	partido	Janata	—	uma	aliança	de	grupos	de	oposição.
A	 emergência	 revelara	 o	 alcance	 da	 alteração	 do	 Congresso	 realizada	 pela
família	Gandhi,	 com	 figuras	 independentes	 sendo	 substituídas	 por	 outras	 de
favorecimento	pessoal.	O	resultado	foi	uma	panela	restrita	com	pouca	conexão
com	 membros	 dos	 partidos.	 No	 dia	 23	 de	 março,	 aos	 81	 anos	 de	 idade,
Morarji	 Desai	 tornou-se	 o	 primeiro	 primeiro-ministro	 da	 Índia	 que	 não	 era
membro	do	Congresso.
Quando	 a	 fraca	 aliança	 do	 Janata	 foi	 desfeita,	 Indira	 Gandhi	 retomou	 o
poder	 em	1980,	mas	 à	 época	 de	 sua	morte,	 em	1984,	 o	Congresso	havia	 se
tornado	 apenas	 um	 dentre	 uma	 variedade	 de	 partidos	 competindo	 pelas
posições	 principais	 da	 política	 indiana,	 além	 de	 outros	 que	 representavam
interesses	 regionais.	Rajiv	Gandhi,	 filho	 e	 sucessor	da	 sra.	Gandhi,	 perdeu	a
eleição	 de	 1989	 para	 uma	 coligação	 entre	 a	 Frente	 Nacional	 e	 o	 BJP
(reencarnação	 do	 antigo	 BJS),	 que	 assumiu	 o	 poder	 com	 V.	 P.	 Singh.	 A
dominância	 do	 Congresso	 pode	 ter	 criado	 uma	 estabilidade	 nas	 primeiras
décadas	de	 independência,	mas	o	desenvolvimento	de	alternativas	 foi	 crucial
para	uma	democracia	estável.	Garantir	que	os	eleitores	 tivessem	a	chance	de
remover	seus	líderes	do	poder	era	essencial	—	o	que	fez	da	remoção	de	Indira
Gandhi,	em	1977,	um	evento	tão	relevante.
Outras	 vozes	 ganharam	 destaque	 na	 política	 indiana	 nas	 duas	 últimas
décadas,	notadamente	as	que	desafiavam	o	direito	da	elite	culta	de	representar
o	 país	 como	 um	 todo.	 Pessoas	 como	 Mayawati,	 uma	 dalit	 que	 foi	 eleita
ministra-chefe	de	Uttar	Pradesh	em	1995,	representam	de	modo	explícito	uma
parte	da	população.	Ainda	que	possibilite	 o	 risco	do	 sectarismo	 evitado	pela
Índia	 anteriormente,	 esse	 desencadeamento	 transformou	 as	 crenças	 de	 longa
data	 do	 povo	 indiano	 a	 respeito	 da	 autoridade	 e	 de	 quem	 tem	 o	 direito	 de
governar.
Foi	Mahatma	Gandhi	 quem	disse	 que	 não	 se	 pode	 criar	 nenhum	 sistema
político	que	não	dependa,	em	última	análise,	da	conduta	acertada	do	povo.	As
democracias	 precisam	 construir	 instituições	 prevenidas	 contra	 abusos	 e	 que
possibilitem	 o	 acesso	 ao	 poder	 e	 a	 capacidade	 de	 derrubar	 líderes.	 A
democracia	 indiana	 está	 longe	 da	 perfeição:	 o	 sistema	 foi	 manipulado,	 mal
utilizado,	deturpado	e	afetado	pelo	paternalismo.	No	entanto,	a	manutenção	da
unidade	da	nação,	paralela	à	possibilidade	de	expressão	do	povo,	foi	o	maior
desafio	e	a	grande	conquista	da	Índia.
Assim	como	os	Estados	Unidos,	a	Índia	tem	um	apetite	ilimitado	para	o	lado
festivo	da	política	e	uma	estrutura	social	que,	na	prática,	favorece	os	partidos
em	 detrimento	 das	 facções.	 As	 eleições	 são	 um	 feito	 logístico	 gigantesco,
combinado	 com	 uma	 atmosfera	 carnavalesca	 e	 a	 tensão	 dramática	 de	 uma
competição	 apaixonada.	Nenhum	partido	 nacional	 pode	 depender	 dos	 votos
de	 uma	 única	 casta,	 daí	 a	 seleção	 de	 candidatos	 que	 se	 adequem	 a	 um
eleitorado	 constituído	 de	 diferentes	 identidades	 econômicas,	 comunais	 e	 de
casta.	De	 fato,	há	 indícios	de	que	o	 sistema	democrático	 esteja	 rompendo	as
fronteiras	 das	 castas.	 A	 democracia	 indiana	 conta	 com	 partidos	 fortes,	 bem
administrados,	abertos	a	divergências,	inclusivos	e	seculares.	Quando	esse	não
é	o	caso	—	quando	os	partidos	seguem	interesses	sectários	—,	a	democracia	é
afetada.
Os	 partidos	 indianos	 têm	 sido	 capazes	 de	 conferir	 coerência	 e
direcionamento	 a	 um	 vasto	 número	 de	 interesses	 regionais	 circulando	 num
fórum	nacional.	Em	suas	primeiras	décadas	no	poder,	o	Congresso	era	muito
diferente	de	outros	partidos,	permitindo	debates	abertos	sobre	a	elaboração	de
políticas.	 Embora	 a	 remoção	 de	 governantes	 tenha	 se	 revelado	 uma	 tarefa
árdua,	 as	 instituições	 democráticas	 permitiam	 às	 pessoas	 registrarem	 um
parecer	 favorável	 ou	desfavorável	 quanto	 ao	 governo	 em	 todos	 os	 níveis.	A
Câmara	Alta,	ou	Rajya	Sabha,	é	formada	por	representantes	eleitos	por	órgãos
estaduais	e	dá	voz	potente	aos	estados	no	governo	nacional.	O	sistema	federal,
em	que	cada	estado	tem	um	grau	razoável	de	autonomia,	também	permite	que
as	divergências	em	questões	regionais	sejam	resolvidas	sem	ameaça	ao	centro.
Temas	com	potencial	para	controvérsias,	tais	como	línguas,	têm	sido	tratados
com	sensibilidade	—	a	criação	de	novos	estados	em	Gujarat	e	Maharastra	em
1960	 e	 Haryana	 em	 1966	 foi	 uma	 resposta	 a	 reivindicações	 de	 grupos
linguísticos	 por	 mais	 autonomia.	 Nas	 primeiras	 décadas,	 a	 imprensa	 livre
forçou	o	Estado	 a	 se	 concentrar	 em	 sua	prioridade	principal:	 alimentar	uma
vasta	 população.	 Com	 uma	 melhora	 gradual	 no	 padrão	 de	 vida	 de	 muitas
pessoas,	 os	 indianos	 puderam	 conferir	 os	 benefícios	 práticos	 de	 um	governo
que	presta	contas	à	população.
A	 política	 como	 centro	 da	 vida	 nacional	 incentivou	 pessoas	 capazes	 e
ambiciosas	a	verem	a	política	como	uma	carreira	viável,	relevante	e	prestigiosa
a	ser	seguida,	enquanto	os	militares	se	abstiveram	de	interferir	na	política.	O
serviço	 público	 também	 permaneceu	 imparcial,	 embora	 a	 administração
pública	esteja	 infestada	pela	corrupção	e	pela	burocracia	sufocante.	A	polícia,
nas	palavras	de	um	analista,	é	“mais	um	empecilho	à	democracia	do	que	um
auxílio”.
A	 Índia	 permanece	 uma	 contradição,	 em	 particular	 no	 contexto	 da
liberalização	 econômica	 dos	 últimos	 vinte	 anos.	 O	 país	 adquiriu	 os	 sinais
externos	de	uma	sociedade	comercial	moderna;	com	isso	e	com	a	democracia
vem	 um	 grande	 número	 de	 pressupostos	 que	 se	 enraizaram	 na	 cultura
ocidental	 —	 autonomia	 e	 direitos	 individuais,	 liberdade	 de	 escolha,	 livre-
arbítrio	 —	 que	 não	 são	 vistos	 como	 verdades	 imprescindíveis	 na	 cultura
indiana.	 As	 maneiras	 com	 que	 esses	 valores	 foram	 adotados	 são	 talvez	 as
maiores	 conquistas	 do	 Congresso	 Nacional.	 O	 partido	 incorporou	 essas
contradições	 —	 seus	 membros	 eram	 indianos	 com	 plena	 consciência	 de	 sua
história	cultural,	mas	também	familiarizados	com	os	princípios	do	liberalismo
ocidental.	Nos	 cinquenta	 anos	 após	 a	 fundação	 do	Congresso	 na	 década	 de
1880,	eles	debateram	a	aplicação	do	liberalismo	em	seu	próprio	país.	A	partir
da	 década	 de	 1930,	 aproveitaram	 a	 oportunidade	 de	 pôr	 essas	 ideias	 em
prática,	 e	 foi	pela	 liderança	de	Gandhi	que	 compartilharam	sua	visão	 com	o
povo	 da	 Índia.	 Porém,	 enquanto	 Gandhi	 queria	 um	 retorno	 à	 Índia
tradicional,	 expandindo	 a	 partir	 das	 virtudes	 da	 vida	nas	 aldeias,	Nehru	viu
que	 uma	 Índia	 independente	 tinha	 de	 atuar	 num	mundo	de	Estados-Nações
em	 que	 cada	 um	 lutava	 por	 influência	 e	 prosperidade	 e	 que,	 portanto,
necessitavam	de	um	centro	forte.
A	 democracia	 continua	 na	 Índia,	 enquanto	 malogrou	 em	 muitos	 outros
países	 da	 Ásia.	 Vimos	 algumas	 das	 razões	 para	 a	 sua	 persistência	 neste
capítulo,	 mas	 temos	 de	 reconhecer	 as	 limitações	 de	 qualquer	 explicação.	 Ahistória	da	democracia	na	Índia	é	emocionante	e	inspiradora.	Ela	mostra	que	a
democracia	 pode	 ter	 êxito	 em	 circunstâncias	 difíceis	 e	 que	 pode	 conferir
respeito	e	dignidade	a	milhões	de	pessoas,	a	partir	do	conhecimento	de	que	sua
voz	 é	 valorizada.	 As	 razões	 para	 o	 triunfo	 da	 democracia	 indiana	 não
garantiram	uma	existência	contínua,	mas	a	Índia	mostrou	ao	mundo	o	que	é
possível.
A
12
O	OCIDENTE	PÓS-GUERRA
O	Cidadão	Consumidor
Europa	em	maio	de	1945	era	um	continente	devastado.	Quase	seis	anos
de	 guerra	 mecanizada,	 incluindo	 o	 vasto	 bombardeio	 aéreo	 e	 de
saturação	 de	 cidades	 importantes,	 haviam	 reduzido	 o	 centro	 industrial	 a
escombros	de	metal	e	entulho.	Cidades	como	Varsóvia,	Hamburgo,	Coventry,
Dresden,	 Plymouth,	 Leningrado,	 Caen,	 Berlim	 e	 Londres	 haviam	 sofrido
enormes	danos	materiais	e	perdas	humanas	terríveis.	Algo	entre	11	milhões	e
20	milhões	de	pessoas	estavam	desalojados,	muitos	sem	ter	as	próprias	casas
para	 retornar.	 Somente	 quando	 os	 últimos	 meses	 da	 guerra	 revelaram	 os
horrores	dos	campos	de	extermínio	nazistas,	a	dimensão	 total	da	 tragédia	na
Europa	começou	a	ser	compreendida.
A	magnitude	 da	 devastação	 priorizou	 ações	 decisivas,	 enquanto	 a	 divisão
entre	 as	 potências	 vitoriosas	 tornou-se	 logo	 clara.	 Nas	 conferências	 de	 paz
realizadas	 em	 Ialta	 (fevereiro	 de	 1945)	 e	 Potsdam	 (julho	 de	 1945),	 a	União
Soviética,	 os	Estados	Unidos	 e	 a	Grã-Bretanha	dividiram	a	Europa	 em	duas
esferas	 de	 influência,	 com	 as	 democracias	 liberais	 diante	 de	 um	 bloco
comunista.
A	 Europa	 Ocidental	 encontrava-se	 num	 estado	 de	 incerteza	 política.	 A
experiência	 dos	 anos	 da	República	 de	Weimar	 e	 a	 década	 de	 1930	 estavam
marcadas	 na	memória	 coletiva.	 O	 oeste	 do	 continente	 apresentava	 todas	 as
possibilidades	 de	 vir	 a	 se	 tornar,	mais	 uma	 vez,	 um	 campo	 de	 batalha	 para
extremistas.	A	influência	decisiva	foi	a	atitude	do	governo	dos	Estados	Unidos.
Enquanto	 a	 conferência	 de	 Versalhes,	 em	 1919,	 definira	 as	 reparações	 em
grande	 escala	 por	 parte	das	nações	derrotadas,	 em	1947,	 os	Estados	Unidos
aprovaram	um	importante	programa	de	apoio	econômico	para	toda	a	Europa,
que	 ficou	 conhecido	 como	 Plano	 Marshall.	 A	 União	 Soviética	 recusou	 o
auxílio	 oferecido	 a	 ela	 em	 nome	 dos	 países	 de	 sua	 esfera	 de	 influência,
marcando	uma	separação	efetiva	de	poder	político.	Os	25	bilhões	de	dólares
de	assistência	concedidos	à	Europa	entre	1945	e	1951	representavam	cerca	de
10%	do	PIB	anual	dos	Estados	Unidos,	uma	quantia	colossal.
Os	 Estados	Unidos	 também	 buscaram	 estabilizar	 as	 nações	 derrotadas,	 a
Alemanha,	a	Áustria	e	a	Itália,	 incluindo-as	numa	nova	aliança	militar.	Em	4
de	 abril	 de	 1949,	 o	 Tratado	 do	 Atlântico	 Norte,	 com	 a	 promessa	 de	 apoio
mútuo	e	cooperação	militar,	foi	assinado,	e	nasceu	a	OTAN.	Estados	Unidos,
Canadá,	 Bélgica,	 Holanda,	 Luxemburgo,	 França,	 Grã-Bretanha,	 Itália,
Portugal,	Noruega,	Dinamarca	e	Islândia	foram	os	membros	fundadores,	com
a	 entrada	 da	Grécia	 e	 da	Turquia,	 em	 1952,	 e	 da	Alemanha	Ocidental,	 em
1955.	No	mesmo	ano	da	entrada	decisiva	da	Alemanha	Ocidental,	foi	assinado
o	 Pacto	 de	 Varsóvia	 entre	 União	 Soviética,	 Hungria,	 Tchecoslováquia,
Polônia,	 Bulgária,	 Romênia,	 Albânia	 e	 Alemanha	 Oriental,	 assinalando	 não
apenas	a	divisão	formal	da	Europa,	mas	a	morte	da	democracia	nos	países	que
estavam	sob	influência	soviética.
Enquanto	 isso,	 a	 Europa	 Ocidental	 começava	 a	 tarefa	 de	 reconstruir	 a
democracia,	 e	 isso	 implicava	 limitar	 a	 influência	do	 comunismo.	Os	partidos
comunistas	 da	 Europa	 Ocidental	 geralmente	 afirmavam	 defender	 a
democracia,	porém,	apesar	disso,	os	Estados	Unidos	e	a	Grã-Bretanha	viam	o
avanço	do	comunismo	como	uma	importante	ameaça.	A	Itália	tinha	o	partido
comunista	 mais	 forte,	 e	 sua	 potencial	 influência	 desestabilizadora	 era
intensificada	 pela	 fragilidade	 da	 Itália	 como	 nação:	 no	 início	 da	 década	 de
1950,	a	língua	italiana	era	falada	exclusivamente	por	apenas	20%	da	população
—	a	maioria	 falava	o	dialeto	 local	—	e	a	maioria	não	 tinha	acesso	à	educação
secundária.	 O	 sul	 da	 Itália	 era	 conhecido	 pelo	 atraso	 econômico,	 com	 os
calabreses,	por	exemplo,	recebendo	apenas	metade	do	salário	médio	nacional.
A	 guerra	 intensificara	 as	 divisões	 internas,	 e	 o	 norte	 da	 Itália	 demonstrava
sinais	 de	 querer	 formar	 um	 Estado	 separado.	 A	 ajuda	 maciça	 dos	 Estados
Unidos	criou	as	condições	econômicas	necessárias	para	a	unidade	em	torno	de
um	governo	estável,	com	um	fundo	especial	direcionado	para	auxiliar	o	sul.	As
eleições	de	junho	de	1946	aboliram	a	monarquia,	e	a	Constituição	da	república
italiana	foi	aprovada	no	ano	seguinte.
Dos	 três	principais	partidos	 italianos	—	Socialista,	Comunista	e	Democrata
Cristão	 —	 foi	 o	Democrata	 Cristão	 que	 dominou	 os	 anos	 do	 pós-guerra	 no
nível	nacional,	ao	passo	que	os	partidos	Socialista	e	Comunista	controlavam	as
cidades	 industriais	 do	 norte.	 As	 áreas	 da	 vida	 pública	 e	 civil	 eram
simplesmente	divididas	entre	esses	diferentes	interesses	políticos.	Esse	não	era
um	 resultado	 democrático	 ideal,	 uma	 vez	 que	 os	 eleitores	 não	 tinham	 uma
escolha	 realista	 entre	 partidos	 divergentes	 —	 o	 caminho	 seguia	 por	meio	 de
brigas	 dentro	 dos	 partidos,	 não	 por	 eleições	 abertas.	 Contudo,	 o	 elemento
central	 do	 sistema	 era	 o	 fato	 de	 que	 os	 democratas	 cristãos	 impediam	 os
comunistas	 de	 alcançarem	 poder	 nacional	 e,	 portanto,	 conquistaram	 a
confiança	dos	Estados	Unidos	e	de	outros	governos	ocidentais.	No	entanto,	o
partido	Comunista	continuou	a	receber	apoio	popular	—	cerca	de	34%,	ainda
em	1972	—	e	constituía	uma	força	efetiva	nos	governos	local	e	regional,	além
de,	como	muitos	acreditam,	propiciar	uma	alternativa	vibrante	para	a	cultura
política	da	Itália.
Como	 se	 saíram	 as	 outras	 nações	 derrotadas?	O	 destino	 da	Áustria	 e	 da
Alemanha	 nos	 mostra	 algo	 difícil	 de	 explicar	 e	 que	 teria	 sido	 impossível
prever:	cada	país	parecia	adotar	a	democracia	com	a	determinação	que,	quinze
anos	 antes,	 haviam	 escolhido	 dedicar	 ao	 nacionalismo	 extremo.	No	 caso	 da
Alemanha	Ocidental,	 alguns	 intelectuais	 lamentaram	 que	 o	 consumismo	 e	 a
busca	pela	prosperidade	tenham	impedido	qualquer	transformação	política	ou
cultural	 profunda,	mas,	 para	 os	 vizinhos	 da	Alemanha,	 a	 construção	 de	 um
país	 pacífico	 com	 alto	 apreço	 pelos	 valores	 democráticos	 era	 uma	 conquista
admirável.	 A	 eleição	 de	 1949	 foi	 uma	 disputa	 acirrada	 entre	 o	 partido
Democrata	Cristão	 (CDU),	 de	 centro-direita,	 e	 o	 SPD.	Ainda	que	 ambos	os
partidos	não	aceitassem	 formalmente	a	divisão	da	Alemanha,	o	CDU	estava
ávido	para	posicionar	a	Alemanha	no	bloco	ocidental	emergente,	enquanto	o
SPD	queria	fazer	do	país	uma	zona	neutra	de	proteção	entre	o	lado	oriental	e	o
ocidental.	 À	 medida	 que	 os	 alemães	 ocidentais	 começaram	 a	 sentir	 as
vantagens	materiais	da	aliança	ocidental,	o	apoio	ao	SPD	diminuiu	de	 forma
expressiva,	até	o	seu	renascimento	sob	uma	nova	 liderança	 jovem	na	década
de	1960.	Isso	fez	do	líder	do	CDU,	Konrad	Adenauer,	o	arquiteto	da	política
alemã	no	pós-guerra.	Sob	muitos	aspectos,	ele	foi	sua	personificação	também.
Nascido	em	1876,	Adenauer	havia	sido	uma	figura	proeminente	na	política
regional	alemã	entre	as	guerras.	Sua	remoção	do	cargo	de	prefeito	de	Colônia
em	1933	e	sua	prisão	pelos	nazistas	em	1945	deram-lhe	credibilidade	suficiente
para	obter	a	aprovação	das	potências	ocidentais.	Ao	acompanhar	a	história	dos
partidos	católicos	desde	a	unificação	alemã,	o	CDU,	ainda	que	culturalmente
conservador,	era	socialmente	progressista,	 tendo	desenvolvido	um	sistema	de
bem-estar	 social	 e	 adotado	 uma	 política	 industrial	 intervencionista.	 A
cooperação	 entre	 Estado,	 indústria	 e	 sindicatos	 criou	 uma	 forma	 de
capitalismo	democrático	que	diferia	de	forma	radical	da	abordagem	americanade	 livre	 mercado.	 O	 chamado	 modelo	 renano	 foi	 um	 desenvolvimento
significativo	no	qual	o	Estado	democrático	apoiava	indústrias-chave,	insistindo
no	 envolvimento	 dos	 representantes	 dos	 trabalhadores	 no	 processo
administrativo.	A	 estrutura	 federal	 da	 nação	mantinha	 a	 descentralização	 do
poder,	 com	estados	 individuais,	ou	Länder,	 capazes	de	promover	 seu	próprio
renascimento	 comercial	 e	 industrial,	 de	 forma	 muito	 contrastante	 com	 a
tradição	centralizada	da	Grã-Bretanha	e	da	França.	Para	evitar	a	instabilidade
dos	 anos	 da	 República	 de	 Weimar,	 a	 função	 de	 chanceler	 ganhou	 mais
segurança,	e	o	papel	do	presidente	foi	rebaixado.
A	Áustria	seguiu	um	caminho	semelhante	para	a	democracia,	embora	lá	o
período	pós-guerra	tenha	sido	mais	doloroso	do	que	na	Alemanha	Ocidental.
Os	 dois	 principais	 partidos	 políticos	 da	 Áustria	 tinham	 razões	 para	 querer
esquecer	 o	passado.	O	partido	do	Povo	Austríaco	opusera-se	 ao	Anschluss	 de
1938,	mas,	com	seu	nome	anterior,	executou	um	golpe	de	Estado	em	1934	que
acabou	 com	 a	 democracia	 austríaca.	 Os	 sociais-democratas,	 em	 contraste,
haviam	 apoiado	 o	 Anschluss,	 que	 se	 transformou	 em	 fonte	 de	 vergonha
considerável.	 A	 Áustria	 nunca	 chegou	 a	 passar	 por	 um	 período	 de
arrependimento	público	por	seus	crimes	enquanto	nação.	Em	vez	disso,	com
uma	 profunda	 consciência	 de	 três	 vizinhos	 comunistas	 às	 portas	 do	 país,	 os
dois	 partidos	 formaram	 uma	 série	 de	 governos	 de	 coalizão	 que	 geraram
estabilidade	e	prosperidade.
Quase	 todas	 as	 nações	 do	Ocidente	 haviam	 sido	 privadas	 de	 democracia
com	 a	 ocupação	 nazista.	 Os	 países	 do	 Benelux,	 Noruega	 e	 Dinamarca,
restabeleceram	 a	 democracia	 depois	 de	 1945,	 enquanto	 a	 Suécia,	 que	 se
mantivera	neutra	durante	a	guerra,	e	a	Finlândia	continuaram	sendo	Estados
democráticos.	A	Escandinávia	 iniciou	um	longo	período	de	social-democracia
de	 centro-esquerda	 e	 afluência	 estável.	 A	 emergência	 desses	 países	 como	 os
mais	 democráticos	 do	mundo,	 com	 base	 em	 todas	 as	 avaliações	 objetivas,	 é
digna	de	nota.1	Nos	dias	atuais,	observamos	a	Escandinávia	como	um	modelo
de	 liberalismo	bem-sucedido,	mas	 esses	 países	 eram	 relativamente	 pobres	 no
século	XIX,	 com	 quantidades	 imensas	 de	 camponeses	 suecos,	 por	 exemplo,
partindo	em	busca	de	uma	vida	melhor	na	América.	A	industrialização	chegou
relativamente	 tarde,	 e	 é	 apenas	 no	 período	 pós-guerra	 que	 a	 prosperidade
passou	a	ser	constante.	A	Escandinávia	vira	a	ampliação	e	o	fortalecimento	de
práticas	e	 instituições	democráticas,	assim	como	a	maior	parte	da	Europa,	na
década	de	1920.	Após	as	privações	do	período	pós-guerra	 imediato,	 a	 região
entrou	 num	 ciclo	 virtuoso	 no	 qual	 a	 democracia	 trouxe,	 ou	 pelo	 menos
coincidiu	 com,	 uma	 riqueza	 maior.	 Não	 se	 pode	 afirmar	 que	 essa	 seja	 a
explicação	 completa	 para	 o	 florescimento	 da	 democracia.	 Podemos	 citar	 a
longa	tradição	de	vida	comunitária,	as	redes	de	apoio	mútuo	(conforme	vistas
em	Amsterdã,	no	capítulo	4)	e	os	costumes	de	envolvimento	do	cidadão	como
elementos	da	 cultura	da	Escandinávia	 que	 reforçaram	a	democracia.2	Todos
eles	 existem	 em	 outros	 lugares	 em	 algum	 grau,	 mas	 talvez	 a	 coincidência
desses	 fatores	 culturais	 com	 a	 prosperidade	 tenha	 consolidado	 a	 democracia
com	tanta	firmeza.
A	Grã-Bretanha	passou	por	uma	importante	mudança	política	em	1945.	A
guerra	 expôs	 milhões	 de	 eleitores	 à	 injustiça	 da	 sociedade	 hierárquica	 que
sobrevivera	 até	 a	 década	 de	 1940,	 mostrando	 também	 que	 o	 sacrifício
compartilhado	 tinha	 suas	 recompensas.	O	 partido	Trabalhista	 ofereceu	 uma
alternativa	 baseada	 na	 propriedade	 pública	 de	 serviços	 e	 indústrias-chave	 e
introduziu	 um	 Serviço	 Nacional	 de	 Saúde	 e	 amplo	 Estado-Providência.	 A
derrota	 de	Winston	 Churchill	 para	 uma	 maioria	 esmagadora	 na	 eleição	 de
1945	foi	um	dos	momentos	mais	significativos	da	história	democrática	do	país:
um	homem	de	extraordinário	carisma	que	levara	a	nação	à	vitória	foi	retirado
do	 cargo	 pelo	 eleitorado.3	 O	 verdadeiro	 triunfo	 aqui	 foi	 a	 persistência	 da
democracia	 por	 meio	 do	 funcionamento	 do	 Parlamento.	 Foi	 um	 debate
parlamentar	 em	maio	 de	 1940	 que	 deixara	 clara	 a	 necessidade	 de	 um	 líder
nacional	da	estatura	de	Churchill,	enquanto	a	coalizão	nacional	do	governo	de
Churchill	 dissolvia-se,	 retornando	 aos	 partidos	 parlamentares	 separados	 em
maio	de	1945,	em	preparação	para	a	eleição	de	julho.	Durante	toda	a	guerra	e
depois,	a	democracia	britânica	foi	capaz	de	se	adaptar	às	necessidades	de	uma
crise	que	dificilmente	teria	sido	mais	grave.
Embora	o	sistema	parlamentar	britânico	tenha	permanecido	intacto	durante
todo	 o	 conflito,	 na	 França	 a	 Quarta	 República	 foi	 fundada	 a	 partir	 dos
destroços	da	guerra,	com	uma	nova	Constituição	entrando	em	vigor	em	13	de
outubro	 de	 1946.	 Os	 líderes	 da	 Terceira	 República	 foram	 amplamente
responsabilizados	 não	 apenas	 pela	 derrota	 catastrófica	 para	 a	 Alemanha	 em
1940	e	a	colaboração	generalizada	com	os	nazistas,	como	pela	incapacidade	de
lidar	 com	 a	 depressão	 da	 década	 de	 1930.	 No	 entanto,	 o	 fim	 da	 Terceira
República	não	resultou	na	rejeição	da	democracia	liberal.	A	Quarta	República
restabeleceu	uma	democracia	parlamentar	com	um	presidente	em	grande	parte
simbólico.	Nas	eleições	de	novembro	de	1946,	o	partido	Comunista	da	França
(PCF)	 conseguiu	 a	maioria	 dos	 assentos	 e	 entrou	 num	 governo	 de	 coalizão
com	o	partido	Socialista	 (PS)	 e	o	partido	dos	Trabalhadores	 (SFIO).	O	 líder
socialista	Léon	Blum	dirigiu	 a	 coalizão,	mas,	no	 final	de	1947,	o	 governo	 se
desfez	e	foi	substituído	por	um	novo	agrupamento	no	qual	alguns	partidos	de
centro-direita	ocuparam	os	lugares	dos	comunistas.	A	participação	do	PCF	nas
eleições	 parlamentares	 e	 a	 primeira	 coalizão	 amenizaram	 muitos	 temores	 a
respeito	da	democracia	 francesa.	A	partir	de	1947,	o	 centro	 tentou	manter	 a
maioria	na	Assembleia	Nacional:	ao	longo	dos	onze	anos	seguintes	haveria	21
primeiros-ministros	 de	 seis	 partidos	 diferentes.	 Charles	 de	 Gaulle,	 herói	 da
liberação	da	França	em	1944,	opôs-se	com	firmeza	à	Constituição	da	Quarta
República,	 defendendo	 um	 sistema	 presidencial	 em	 vez	 de	 um	 governo
parlamentar.	Entretanto,	a	Quarta	República	estabeleceu	de	fato	um	caminho
democrático	na	França	ao	oferecer	uma	alternativa	 confiável	 à	desacreditada
elite	governante,	reconstruindo	a	infraestrutura	industrial	e	econômica	e	dando
os	primeiros	passos	para	a	formação	de	uma	aliança	de	comércio	europeia,	que
viria	a	se	tornar	a	CEE	e	depois	a	UE.
A	 única	 área	 que	 apresentou	 falhas	 constantes	 foi	 a	 relação	 do	 país	 com
suas	 colônias.	 Primeiro	 na	 Indochina,	 depois	 na	 Argélia,	 a	 França	 tentou
manter	 o	 poder	 diante	 de	 forças	 nacionalistas	 altamente	 motivadas	 e
organizadas.	 Na	 Argélia,	 os	 colonizadores	 franceses	 travaram	 o	 que	 acabou
sendo,	na	prática,	uma	guerra	civil	contra	nacionalistas	argelinos	e,	ao	fazê-lo,
expuseram	 a	 fragilidade	 do	 governo	 francês	 e	 do	 sistema	 parlamentar
multipartidário.	 Em	 Algiers,	 em	 maio	 de	 1958,	 um	 grupo	 de	 ex-generais
franceses,	com	o	apoio	de	colonos	franceses	étnicos,	tentou	um	golpe	contra	o
poder	 colonial.	 A	 própria	 França	 corria	 o	 risco	 de	 ser	 devastada.	 Nesse
momento	de	crise	nacional,	uma	voz	confiante	e	inequívoca	era	necessária.	Em
junho	de	1958,	Charles	de	Gaulle	foi	persuadido	a	se	tornar	chefe	de	governo
e,	 de	 imediato,	 buscou	 meios	 de	 introduzir	 uma	 nova	 Constituição	 que
concedesse	poderes	executivos	plenos	ao	presidente.	A	Constituição	da	Quinta
República	foi	aprovada	em	outubro,	e	De	Gaulle	foi	eleito	presidente	por	um
colégio	 eleitoral	 em	 dezembro	 de	 1958,	 para	 um	mandato	 de	 sete	 anos.4	 A
democracia	 francesa	 demonstra-se	 pronta	 a	 mudar	 diante	 das	 novas
circunstâncias,	para	que	possa	sobreviver.
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