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Tradução Ludimila Hashimoto Rio de Janeiro | 2015 SUMÁRIO PRÓLOGO CAPÍTULO 1: Atenas e o Mundo Antigo O Cidadão Envolvido CAPÍTULO 2: Parlamentos e Afins O Cidadão Representado CAPÍTULO 3: Aldeias Medievais e Cidades Repúblicas O Cidadão Burguês CAPÍTULO 4: Democracia nos Alpes O Cidadão Comunal CAPÍTULO 5: A Revolução Inglesa O Cidadão Súdito CAPÍTULO 6: Democracia na América O Cidadão Eleitor CAPÍTULO 7: França, 1789-95 O Cidadão Ativista CAPÍTULO 8: Repúblicas da América Latina O Cidadão Subjugado CAPÍTULO 9: Europa no Século XIX O Cidadão Rejeitado CAPÍTULO 10: Aceitar e Recuar O Cidadão Idealizado CAPÍTULO 11: Índia O Cidadão Independente CAPÍTULO 12: O Ocidente Pós-Guerra O Cidadão Consumidor CAPÍTULO 13: Democracia e Descolonização O Cidadão Explorado CAPÍTULO 14: O Colapso do Comunismo na Europa O Cidadão Triunfante CAPÍTULO 15: Democracia desde 1989 O Cidadão Informado Notas Referências e Leituras Complementares Créditos das Imagens Índice V PRÓLOGO amos deixar claro de início: a democracia é a conquista mais admirável da humanidade. Pode ser idealizada, deturpada, maltratada, mal aplicada, parodiada e ridicularizada; sem dúvida, já foi cortejada por amantes infiéis, acolhida por falsos amigos e traída por aliados inescrupulosos, mas a democracia enquanto modo de vida e sistema de governo é a via pela qual os seres humanos modernos podem satisfazer sua necessidade de construir vidas dotadas de significado. Mais do que todos os quadros e esculturas do mundo, mais do que todos os poemas, peças e romances, e mais do que todas as invenções científicas e tecnológicas juntas, a democracia revela o que há de mais criativo e inovador na humanidade. A democracia é um empreendimento contínuo e coletivo que nos une, ao mesmo tempo que nos permite viver como indivíduos. Enquanto ela durar, existe esperança; sem a democracia, o mundo está em desamparo. Quando buscamos uma maneira de pensar sobre a democracia, a mudança é um bom ponto de partida. Em 2009, Barack Obama pautou sua campanha para a presidência dos Estados Unidos pelo seguinte slogan: “Mudar É Preciso.” Em 2010, David Cameron disse ao povo britânico: “Votem na Mudança”, enquanto futuros aliados do partido Liberal Democrata prometiam “Mudanças que Funcionam”. Ainda que nossos líderes possam não gostar, a melhor forma de mudar é votar para que deixem seus cargos. A sanção máxima contra qualquer governo é tirá-lo do poder, e a grande vantagem da democracia é permitir que isso ocorra de forma pacífica. Os momentos coreografados em frente ao Capitólio dos Estados Unidos, quando o novo presidente faz o juramento de posse diante do predecessor derrotado, e a ida do primeiro-ministro britânico à Downing Street para dizer ao mundo que ele (ainda, quase sempre, do sexo masculino) está deixando o cargo e espera passar mais tempo com a família são exemplos de rituais fundamentais da democracia — equivalem ao funeral público, em que se marca a morte para que a vida prossiga. Essas e outras cenas semelhantes em Paris, Berlim, Nova Délhi, Tóquio e Santiago são expressões formais do acordo feito por nossos governantes de atuarem apenas com o consentimento do povo — e, quando esse consentimento é retirado, eles têm de partir. Transições pacíficas de poder, governo mediante consentimento, eleições livres e justas, sufrágio universal — todos são elementos da democracia, porém, quando tentamos encontrar uma definição exata, nos vemos procurando agulha em palheiro. O problema é que, toda vez que nos aproximamos de uma definição ou compilamos uma lista de condições que qualquer democracia deve cumprir, encontramos exemplos de democracias em pleno funcionamento que não a satisfazem, ou de sociedades que não são consideradas democráticas, mas que atendem a alguns dos critérios. Além disso, qualquer democracia que já tenha existido foi diferente de todas as outras, e, quanto mais as conhecemos, mais percebemos que é impossível defini-las. Uma razão para essa dificuldade é que, embora seja uma invenção aparentemente ocidental, a democracia entra em conflito com uma das principais tradições intelectuais do Ocidente. Desde Platão, os pensadores ocidentais assumem a tarefa de examinar o mundo de forma conceitual. Dedicaram-se à construção de ideias, como justiça, verdade e virtude, na crença de que nelas está o caminho para a sabedoria, o conhecimento e a compreensão. Assim como outros termos descritivos, por exemplo “civilização”, a democracia tem o azar de receber o status de conceito,1 e, portanto, precisa ser definida, analisada e contestada para que possamos obter uma compreensão maior do mundo. Tal impulso é compreensível. Se pudéssemos determinar a natureza essencial da democracia, se pudéssemos redigir um manual, seria possível aplicar um “diagrama da democracia” a qualquer sociedade. No entanto, as raízes da democracia estão na tradição inversa à do Ocidente, que surgiu em paralelo ao universo dos conceitos abstratos e como uma crítica a ele, isto é, baseiam-se na experiência prática e na contínua interação humana. A democracia, apesar dos esforços de filósofos e cientistas políticos, despreza teorias, arregaça as mangas e enfrenta a tarefa diante de si. Ela não busca a perfeição, e, nos momentos em que seus seguidores o fazem — seja por meio de Constituições rígidas ou leis imutáveis —, é comum que precipitem seu fim. Em vez disso, ela permanece em contínua adaptação. A verdade de que não existe um diagrama da democracia pode causar consternação a alguns especialistas e consultores políticos, mas deveria nos encher de alegria. Nos jornais, nos programas de TV e rádio, nas conversas do dia a dia, assim como nos livros e nas revistas acadêmicas, o significado de democracia gera discussões sem fim. E acabamos percebendo que a natureza infinita do debate dá uma pista para sua própria conclusão. A democracia está sempre mudando, sempre se adaptando, e não pode ser explicada por fórmulas justamente porque sua função principal é sustentar sociedades em que a mudança e a adaptação possam ocorrer livremente. As democracias — tanto a instituição de governos como a prática de governar de forma democrática — existem numa relação simbiótica com a sociedade em que estão inseridas. Quando as sociedades resistem às mudanças, as políticas democráticas não podem agir. Quando as instituições e práticas democráticas são petrificadas, a sociedade se fossiliza. Tal natureza evasiva e adaptativa pode ser motivo de celebração, mas deixa em aberto a questão de como escrever uma história da democracia — e do que incluir e excluir. No entanto, também temos aqui uma resposta. Em vez de partirmos para a produção de uma história definitiva da democracia, devemos contribuir para a própria democracia, mostrando diferentes aspectos de seu passado, revelando a complexidade, a diversidade e a criatividade que fundamentam sua existência fugidia. O objetivo deste livro, portanto, não é amarrar as pontas soltas ou deixar o assunto guardado num lugar seguro, mas fornecer um contexto histórico estimulante que traga informações para pensarmos a democracia e o modo como nossas sociedades são governadas. Com isso em mente, este livro conduzirá o leitor por uma viagem com início nos mercados abarrotados de Atenas e Roma antigas, onde vemos não apenas a fundação da democracia ativa, mas a construção da multiplicidade de instituições necessárias para sua fundamentação. O mundo antigo também nos apresenta uma república em funcionamento: um Estado sem um monarca em que os cidadãos são soberanos.Do Mediterrâneo, partimos para os grandes agrupamentos tribais do povo escandinavo, que revelam uma compreensão sofisticada da participação no poder. De lá, passamos aos Parlamentos da Europa medieval, que introduziram a representação política, e às cidades prósperas dos Países Baixos e da Itália, onde a lealdade cívica e as necessidades práticas de governo levaram à fundação do Estado moderno. A próxima parada é o cantão de Grisões, nos Alpes suíços, o primeiro Estado verdadeiramente democrático dos tempos modernos, que sustenta a democracia como a maior expressão da vida pública. Em seguida, viajamos para o salão de uma igreja em Putney, onde soldados recém-chegados dos campos de batalha da Guerra Civil Inglesa, com Bíblias vernáculas em mãos, defenderam o direito de todo homem a ter voz ativa no governo. Do outro lado do Atlântico, vemos como a prática da democracia chegou ao continente americano, com origem nos encontros em igrejas, reuniões de eleitores e nas convicções dos imigrantes colonizadores. A França da década de 1790 apresenta as maiores contradições de nossa jornada — a Revolução Francesa combinou a crença apaixonada na igualdade e na democracia com a violência política. As novas democracias das Américas Central e do Sul no século XIX revelam como o governo está inserido na história cultural da sociedade e como é difícil superar interesses arraigados. Na Europa, o turbulento século XIX mostra que as reformas políticas foram introduzidas, a princípio, exatamente para proteger a democracia, mas o governo democrático logo foi forçado a enfrentar a realidade do poder do trabalho industrializado e da conveniência política. No início do século XX, veremos a democracia se espalhar pelo planeta, até o seu recuo mundial e catastrófico na década de 1930. O período pós-1945 apresenta destinos divergentes na história da Índia e de outras ex-colônias, ao passo que, na década de 1950, a democracia dos Estados Unidos enfrentou seu maior desafio interno. Em 1989, o comunismo europeu desmoronou, deixando um mundo em que a democracia se tornava o passaporte para a comunidade internacional. No fim de nossa viagem, examinamos as condições para a democracia na China, destinada a se tornar a maior potência econômica do mundo, para então observarmos, finalmente, as mudanças na democracia das sociedades ocidentais. Nem todas as sociedades que examinaremos cumprem todos os requisitos de uma democracia completa. Porém, em todos esses lugares e épocas, testemunhamos o desenvolvimento da prática democrática (tal como o voto) ou de instituições (como os Parlamentos) que vieram a ser adotados mais tarde como ingredientes fundamentais. As sociedades criam soluções para seus problemas específicos, algumas das quais ficam disponíveis para ativistas políticos e reformadores de outros lugares, ávidos para adaptá-las mais uma vez às suas próprias circunstâncias. Antes de embarcar nessa jornada histórica, há uma questão a ser lembrada. A narrativa cronológica parece insinuar um desenvolvimento, e isso pode nos levar a falsas conclusões. Primeiro, que as democracias aprenderam com o que já ocorreu. Na verdade, quase todas as democracias tiveram de criar instituições e práticas democráticas ao seu modo. Acreditamos, por exemplo, que Thomas Jefferson concebeu a Constituição americana com base em seu conhecimento sobre Atenas e Roma clássicas; mas, como veremos no capítulo 6, a democracia americana foi muito mais influenciada pela prática das eleições, que seus cidadãos haviam trazido da Grã-Bretanha, e pela administração das igrejas puritanas, do que pelo mundo antigo. A segunda suposição falsa seria a de que desenvolvimento indique melhora. Essa afirmação pode ser derrubada mais facilmente ainda. A Atenas antiga teve, sob muitos aspectos, a democracia mais bem desenvolvida que já existiu, ao passo que, em tempos recentes, ela passou por episódios contínuos de declínio, retrocesso e crescimento. Nossa história mostra que existem democracias em tempos diferentes, mas que a democracia não evolui necessariamente com o tempo. A democracia está sempre em estado de sítio, porém ela é a nossa defesa, não apenas contra um Estado opressor, mas contra o poder enraizado do privilégio e das riquezas individual e corporativa. Não se trata de um conceito intelectual árido, mas de um conjunto de convicções e pressupostos inserido em nossa cultura — algo pelo qual vale a pena lutar. Por mais imperfeita que seja, a democracia tenta solucionar o grande dilema da vida humana: como prosperar como indivíduo e, ao mesmo tempo, fazer parte de uma comunidade. Com tudo isso em mente, vamos embarcar na história imperfeita de um tema indefinível. E 3 ALDEIAS MEDIEVAIS E CIDADES REPÚBLICAS O Cidadão Burguês m 1520, o artista Albrecht Dürer deixou sua terra, Nuremberg, para passar um ano nos Países Baixos. Em seu diário, ele descreve uma procissão que passava pela cidade de Antuérpia na Festa da Assunção: [...] todos os habitantes da cidade, de todas as categorias e posições sociais, estavam reunidos, cada um vestido da melhor forma, de acordo com sua posição. E todas as posições e associações tinham um símbolo, pelo qual poderia ser conhecido [...] Havia os Ourives, os Pintores, os Construtores, os Fronteiriços, os Escultores, os Marceneiros, os Carpinteiros, os Marinheiros, os Pescadores, os Açougueiros, os Coureiros, os Tecelões, os Padeiros, os Alfaiates, os Sapateiros — de fato, trabalhadores de todos os tipos e muitos artesãos e comerciantes que trabalham para o próprio sustento. Também os donos de lojas, mercadores e seus assistentes estavam lá.1 A procissão era acompanhada de músicos e continha um grupo de clérigos, assim como uma série de carros alegóricos e imagens que retratavam cenas bíblicas, além de crianças vestidas com fantasias de muitas terras — e levou mais de duas horas para passar pela casa de Dürer. Lá estava uma cidade medieval enriquecida pelo comércio, num momento de diversão, prestando homenagem a suas tradições — sociais, religiosas e comerciais — e celebrando sua existência. A noção de orgulho cívico e identidade nas cidades medievais e modernas e a intensa vitalidade desses receptáculos fechados de humanidade formavam um elemento essencial de seu desejo pelo autogoverno. As cidades da maior parte da Europa pertenciam ao reino de um monarca que detinha poder absoluto, mas havia exceções que nos dão um vislumbre dos métodos de representação e da necessidade de maior participação no governo que começamos a ver no capítulo anterior. Duas áreas europeias são de particular interesse aqui: a região dos Países Baixos (que incluía Bélgica, Holanda e Luxemburgo) e o norte da Itália. Na virada do primeiro milênio, a terra pantanosa em torno do lago Ijssel, perto do mar do Norte, foi desprezada pela nobreza feudal. Com inundações frequentes e cheias de córregos perigosos e desnorteantes, essa era uma terra de pescadores e alguns criadores de gado, um lugar difícil para o cultivo e o assentamento. Porém, conforme o comércio europeu prosperava, essa área quase deserta tornou-se um cruzamento, uma ligação crucial do mar do Norte e do Báltico com o centro da Europa, por meio dos rios Ijssel, Reno, Vale e Mosa. No fim do século XI, o povo da região começou a construir diques para conter a água do mar, e sistemas complexos de comportas para regular o nível dos rios e as marés. Eram feitos prodigiosos de engenharia, que combinavam confiança, ambição e músculos. As represase comportas permitiam a drenagem dos pântanos para uso pastoril, propiciando também canais navegáveis para transporte de cargas. Conjuntos sofisticados de barragens permitiam o controle do nível de água, dando a agricultores e comerciantes o bem precioso da previsibilidade. Os diques construídos por esses aldeões medievais eram simplesmente gigantescos. Um único dique represava toda a margem sul do Ijsselmeer, a partir do Gooi, passando pela foz do Amistel, quase até Haarlem — uma distância de cerca de 40 quilômetros. Os trabalhos de engenharia exigiram planejamento e coordenação em larga escala, mas não foram realizados por mestres feudais. Foram organizados por agricultores, pescadores e comerciantes da região para protegerem suas terras e seus negócios. Para eles, a água era um recurso inesgotável e um problema eterno, e lidar com seus caprichos era uma questão de sobrevivência. Não podiam contar com uma autoridade superior para lhes prestar auxílio. Tinham, literalmente, de arregaçar as mangas e pôr mãos à obra. Uma vez construídos, o dique e o sistema de comportas exigiam administração e manutenção constante. No século XII, um sistema administrativo de supervisores de diques (dijkgraven) e donos de terras (ingelanden) foi estabelecido. Um historiador contemporâneo de Amsterdã, Geert Mak, argumenta que essa necessidade doméstica fez com que os holandeses “tendessem à descentralização e a uma forma rudimentar de democracia, [que] viria a formar a base da tradição administrativa que, no fim, determinaria a cultura política holandesa por séculos posteriores”.2 Amsterdã começa a aparecer em registros escritos em 1275 e aqui nos é apresentado um paradoxo fundamental na história da democracia. A união que objetiva solucionar problemas comunais, tal como nos Países Baixos medievais, está ausente na história documentada. Não havia necessidade alguma de acordos escritos ou estruturas políticas quando a questão a ser resolvida era tratada de forma harmoniosa. Podemos supor que, nessas situações, as pessoas agiam por consenso, participação e uma necessidade de dar voz a todos. Por outro lado, os registros escritos costumam chegar a essas comunidades com a vinda de uma autoridade formal externa, que, invariavelmente, é nociva ao compartilhamento amplo do poder. A presença de práticas democráticas informais ou não documentadas precisa então ser distinguida nas entrelinhas desses registros formais. Na declaração de 1275, o conde Floris da Holanda concedeu liberdade de impostos “às pessoas que residiam perto de Amstel dam” (a cidade tinha o nome da represa que atravessava o rio Amstel). Nessa época, o conde tinha autoridade nominal sobre o condado de Holanda, entidade pertencente ao Sacro Império Romano. Sua concessão aos moradores da região era significativa, uma vez que cobrava pedágios nas pontes e comportas sob seu controle. Ainda que possa ter sido um ato de generosidade desinteressada, é mais provável que tenha sido um reconhecimento da realidade política. Embora não se tratasse ainda de habitantes de uma cidade definida, o povo de Amstel dam (da represa de Amstel) formava um grupo reconhecível com o poder de negociar com seu soberano. Geert Mak descreve Amsterdã como “um país por si só, uma pequena nação dentro de outra maior” — uma afirmação que poderia se referir a muitas cidades medievais.3 Em 1296, quando a família Van Aemstel liderou uma rebelião contra o conde de Holanda, a cidade tinha muralhas e um castelo pouco expressivo. Eles foram demolidos quando a rebelião fracassou (e somente redescobertos no século XX), mas em 1305 os cidadãos de Amsterdã foram reconhecidos formalmente pelo bispo de Utrecht, com direitos além da autoridade da administração da igreja local, do conde da Holanda e dos Van Aemstels. Ninguém abre mão do poder sem um motivo. A decisão de deixar a cidade e seus habitantes fora da autoridade da Igreja, do imperador e da nobreza foi mais um reconhecimento da realidade política. Os instrumentos de autoridade que haviam crescido sob o sistema que entrelaçava o feudalismo e a Igreja Católica não davam conta do mundo novo do comércio urbano. Novas habilidades, novos níveis de experiência e competência conquistada com esforço eram necessários e simplesmente não podiam ser supridos. Na área rural, os cavaleiros feudais podiam governar suas terras com impunidade, e o sistema hierárquico produzia excedentes suficientes para manter o funcionamento do sistema; mas dirigir uma cidade exigia a cooperação dos cidadãos. Na economia social, política e mercantil, uma única autoridade absoluta serviria apenas para oprimir a atividade diversificada e espontânea que dava propósito à cidade. O reconhecimento desse fato não se deu facilmente, e durante séculos diferentes poderes tentaram intrometer-se em Amsterdã e em outras cidades de modo mais ou menos bem-sucedido. Porém, mesmo quando não estava no controle explícito, o poder compartilhado dos cidadãos foi um elemento importante no governo das cidades europeias dos tempos medievais em diante. Acontecimentos ao sul de Amsterdã impulsionaram ainda mais a política da região em direção ao autogoverno. No fim do século XII, as cidades de Flandres haviam enriquecido com o comércio de lã. Gante, Bruges, Coutrai, Hesdin e Béthune estavam entre as cidades mais ricas da Europa, contudo o comércio e o governo das cidades estavam nas mãos de algumas famílias patrícias que tinham o apoio do rei francês, Felipe IV. Os artesãos de Flandres tinham aliados solidários entre os condes locais, que contestavam a reivindicação francesa da jurisdição de Flandres. Em 1302, a situação se inflamou quando os trabalhadores têxteis de Gante entraram em greve por causa de impostos. Ao serem ameaçados com punições violentas pela nobreza governante, eles se agruparam sob os estandartes de seu ofício — há indícios de que os artesãos já estavam organizados em milícias —, embora fosse ilegal congregar sem permissão. Dez mil trabalhadores reuniram-se no Mercado das Sextas-Feiras e começaram a conduzir os nobres da cidade pelas ruas. A maioria escapou para a cidadela de Gravensteen, onde, após um breve cerco, renderam-se e foram forçados a jurar lealdade às pessoas comuns. O governador francês se preparou para enfrentar os trabalhadores em Bruges, e o Exército francês tomou a cidade no dia 17 de maio de 1302. Mas os rebeldes ficaram escondidos e, na manhã seguinte, usando o sino da prece matutina como sinal, cortaram a garganta de 120 franceses e de muitos outros de sua própria nobreza. Depois, no dia 11 de julho, os artesãos flamengos derrotaram a nobreza francesa na chamada Batalha das Esporas de Ouro. A vitória, na qual a vangloriosa cavalaria francesa atolou no terreno pantanoso, serviu como símbolo da independência flamenga e foi o trampolim para uma mudança na política dos Países Baixos. Em Flandres, as ricas cidades produtoras de lã e as corporações de ofício começaram a mostrar sua força, buscando não apenas proteção contra impostos, mas também uma voz no governo — em Liège, por exemplo, a partir de 1303, metade dos assentos no conselho da cidade era reservada para as corporações de ofício. As conquistas das corporações nunca foram estabelecidas de forma permanente, com a nobreza, a Igreja e os Exércitos estrangeiros, todos rivalizando pelo poder, mas se tornaram um elemento notável nas lutas políticas por poder nas cidades flamengas. Uma cartaconstitucional de 1305 decretou que Amsterdã fosse governada por conselheiros e um xerife. Os conselheiros, que eram eleitos dentre os cidadãos qualificados (conhecidos como burgueses), podiam aprovar e aplicar leis e conceder ou recusar cidadania. A carta teve eco em documentos similares redigidos nos séculos XII, XIII e XIV em cidades da Europa, de Bristol (1155) a Mogúncia (1244), Rouen (1150), Gdansk (1235) e Lübeck (1143). Se eram concedidas por monarcas, condes ou bispos, isso dependia do poder regional dominante na época, mas todas davam proteção aos direitos dos cidadãos e comerciantes.4 Uma carta proibia, por exemplo, que qualquer pessoa comercializasse por mais de quarenta dias em qualquer ano numa cidade, a menos que fosse cidadã, e dava aos burgueses o direito de eleger um prefeito e um conselho — e até de governarem a si mesmos, como aconteceu em Mogúncia e Rouen. No século XV, Amsterdã era um importante centro mercantil, governado por quatro burgomestres, um xerife, sete magistrados (posteriormente nove) e um conselho municipal. O conselho de 36, que representava todos os cidadãos, mas era, em grande parte, formado por mercadores ricos, elegia os burgomestres que dirigiam a cidade durante o seu ano no cargo. O conselho todo era consultado a respeito de decisões importantes, por exemplo, sobre apoiar explorações militares de outras cidades, tal como a expedição holandesa de 1398 contra os frisões. Em Amsterdã e em outras cidades da Europa, o fim do período medieval testemunhou o surgimento de um novo tipo de europeu. Nem nobre nem clérigo, artesão ou camponês, o comerciante urbano não contava com uma linhagem antiga para deixar sua marca no mundo. O dinheiro começou a dominar a sociedade, e os comerciantes de Amsterdã conheciam seu próprio valor. Alguns comercializavam o próprio dinheiro e se tornaram imensamente ricos e politicamente poderosos com isso. Esses homens e suas famílias eram os burgueses das novas cidades europeias, em cujas cartas de direitos, incluindo a de Amsterdã, o status de burguês era distinto. A qualificação exigia certo período de residência, uma quantidade de propriedades ou renda tributável e a aprovação de seus iguais. A aprovação dependia tanto da conveniência quanto de suas conexões, e o conselho de Amsterdã tinha o poder final de decidir quem poderia entrar nesse círculo especial. Os limites da associação, a linha que cercava o grupo privilegiado de cidadãos, eram cuidadosamente controlados. Conhecemos alguns detalhes do governo dessas cidades por meio dos textos de Ludovico Guicciardini, um florentino cuja Descrição da cidade de Antuérpia foi publicada pela primeira vez em 1567. De acordo com Guicciardini, o governo nominal da cidade era do duque de Brabante, enquanto margrave (ou representante local) do Sacro Império Romano. Ele observa que a cidade tem “grandes privilégios de tal caráter, obtidos e concedidos desde tempos imemoriais, de modo que agora governa e administra a si própria, como se fosse autônoma, quase como uma cidade livre ou república, sempre respeitando os direitos e a suserania do príncipe”.5 Essa frase resume a posição das cidades por toda a Europa — deixadas a cuidar de seus próprios assuntos, desde que respeitassem a autoridade de um poder externo. Dois outros elementos da sociedade urbana contribuíram para o desenvolvimento das práticas e instituições democráticas — a defesa e a religião. O controle exercido pela força militar era o poder político máximo, e Amsterdã estava na posição peculiar, mas de modo algum única, de ter de organizar sua própria defesa, mesmo sendo parte nominal de um império. Companhias armadas e grupos de milícia surgiram com o dever solene de defender a cidade. Essas unidades auto-organizadas eram comuns nas cidades europeias. (Veremos mais delas na Itália neste capítulo.) Começando com vizinhos que se agrupavam para se defender, tornaram-se sociedades ou irmandades formais de artesãos. As autoridades municipais que tentaram regulá-las, mas elas tinham o potencial, como já vimos em Gante, de tomar o poder para si.6 A defesa, porém, era principalmente um fator unificante entre os moradores das cidades na Europa, cuja noção de interesse comum era reforçada pelas muralhas que os cercavam. Nas cidades medievais, a autodefesa e a defesa da comunidade significavam quase a mesma coisa: todos estavam envolvidos no bem-estar de todos. Os portões de Amsterdã e de centenas de outras cidades eram fechados e trancados todas as noites, e as chaves, entregues em cerimônia ao prefeito ou burgomestre, que supervisionavam a reabertura ao nascer do sol. O fato de que a religião participava do desenvolvimento do governo das cidades não chega a ser surpreendente. A Europa medieval era uma sociedade cristã. Os habitantes viam todos os aspectos de sua vida através do prisma da fé. A partir da década de 1520, a Reforma dividiu a Europa em Estados católicos e protestantes, intensificou a crença religiosa e transformou a religião numa força política ativa. Essa divisão atravessou os Países Baixos, e no fim do século XVI precipitou os Estados menores numa guerra contra o governante católico da dinastia de Habsburgo, Felipe II, da Espanha. O sonho de Felipe era restabelecer a fé católica na Europa. Um importante obstáculo era a Inglaterra protestante, o outro eram as províncias calvinistas dos Países Baixos. Felipe viu que, se conseguisse dominar os calvinistas holandeses e trazê-los de volta à fé católica, a região seria um ponto de partida ideal para uma invasão à Inglaterra. A dimensão religiosa da Revolta Holandesa de 1568-1609 é central para a história da democracia. O protestantismo do norte da Europa abrangia uma série de práticas e interpretações da fé cristã. No entanto, todos os protestantes acreditavam na importância da fé e da consciência do fiel individual. Isso retirava o status da hierarquia da Igreja, uma vez que padres e bispos seriam um obstáculo desnecessário na relação entre o fiel e Deus. A Igreja se transformou em seus membros, e a organização e administração da Igreja, um processo de debate e acordo entre os fiéis. A visão de que a democracia moderna é o produto de uma cultura protestante deve ser fortemente determinada pelos acontecimentos na Itália católica (ver adiante). Porém, o papel dos calvinistas e de outros grupos não conformistas merece um exame mais aprofundado. Martinho Lutero, o teólogo original da Reforma, enfatizara a necessidade da devoção e de um retorno à simplicidade inicial da Igreja Cristã. Por outro lado, os ensinamentos de João Calvino tiveram muito mais repercussão entre os burgueses do século XVI e foram amplamente adotados pelos habitantes das cidades nos Países Baixos, assim como na Escócia e entre um número cada vez maior de ingleses. Uma breve análise das origens do trabalho de Calvino ajudará a demonstrar que sua influência foi muito diferente da de Lutero. Calvino era um pastor da França que rompeu com a Igreja Católica por volta de 1530 e fugiu para a Suíça. Em 1536, ele publicou As institutas da religião cristã e, em seguida, foi convidado a trabalhar para a Igreja Protestante de Genebra. A cidade obteve sua independência dos duques de Savoia em 1530, formando um tratado com as cidades próximas de Berna e Friburgo. Após um desentendimento que levou à sua expulsão, Calvino foi convidado a voltar para Genebra pelo conselho da cidade em 1541. Sua influência transformou Genebra numa teocracia protestante efetiva, com refugiados religiosos eestudiosos afluindo para a cidade, vindos dos países católicos vizinhos. Calvino e seus defensores fizeram da cidade o centro de um movimento continental, incentivando a tradução e a impressão de centenas de textos protestantes que eram proibidos em outras partes da Europa, assim como instruindo pastores para divulgarem as ideias da Reforma. Assim como Lutero, Calvino acreditava na predestinação: que o destino de cada um é traçado antes do nascimento e, além disso, que a distância entre Deus e o indivíduo é tão grande que nenhum conjunto de bons comportamentos terá qualquer influência sobre uma divindade onipotente. O trabalho árduo, o serviço à comunidade, a devoção e o prestígio não eram meios de obter a salvação, mas possíveis indicações de estar entre os escolhidos por Deus. Os calvinistas estavam num estado contínuo de desconhecimento do próprio destino e, portanto, eram rigorosos em sua dedicação aos deveres cristãos. Para os comerciantes autossuficientes, devotos e moderados do norte da Europa, o incentivo ao bom comportamento, à sobriedade e à boa vizinhança tinha um efeito profundo. Calvino também fornecia os instrumentos — a teologia, os livros de orações, a liturgia e os pastores — pelos quais suas visões seriam transmitidas. Junto com seus primos holandeses de Haarlem, Leiden e de outros lugares, os calvinistas amsterdaneses acreditavam que a palavra de Deus estava acima das ordens dos imperadores e reis. O historiador de Amsterdã, Hajo Brugmans, escreveu que “o calvinismo começou na cidade livre [de Genebra] e nunca traiu suas origens. Teve início entre cidadãos libertos da autoridade nobre e nunca negou seu nascimento”.7 O calvinismo, produto de uma cidade livre, foi bem recebido nas cidades livres dos Países Baixos. A cultura religiosa calvinista — na qual somente Deus tinha o direito de governar os homens — se manifestava na política de formas diversas. O século XVI presenciara o fortalecimento das monarquias nacionais na maior parte da Europa Ocidental, incluindo Espanha, França, Inglaterra, Escócia e Suécia. O Sacro Império Romano da dinastia dos Habsburgo era uma exceção, e quando as províncias holandesas derrubaram os Habsburgo do poder tinham de decidir como governar a si mesmas. Em 1588, as Províncias Unidas, como passaram a ser conhecidas, declararam-se uma república independente — a primeira, desde os tempos antigos, a abarcar uma nação em vez de uma Cidade-Estado. Era uma ação revolucionária e foi bem-recebida nas cortes dos monarcas europeus. A tolerância social e religiosa da república holandesa espalhou sua influência política muito além de suas terras. Inconformistas de todos os tipos viajavam às Províncias Unidas para escapar da perseguição em seus países. John Locke fugiu para lá em 1683, sob suspeita de envolvimento numa conspiração contra o rei inglês. René Descartes morou em diferentes cidades da república de 1628 a 1649, período em que escreveu a maior parte de seus trabalhos mais importantes. E foi uma congregação de exilados ingleses em Leiden que organizou a história da viagem do Mayflower, em 1621. O Mayflower representa uma conexão direta entre a república holandesa e o início da história dos Estados Unidos, cujo nome é um eco das Províncias Unidas. Em 1643, os colonizadores da América do Norte se denominaram Colônias Unidas da Nova Inglaterra e, como veremos no capítulo 6, sua consciência religiosa viria a ser um elemento central na vida política das colônias. A principal religião nas províncias também teve um impacto na política de outros lugares. O calvinismo foi um fator central durante a Revolução Inglesa, uma vez que os soldados do Exército Novo levavam Bíblias de Genebra com notas nas margens que aprovavam a remoção de tiranos. A ligação entre a república holandesa e a Grã-Bretanha foi firmemente estabelecida em 1688, quando o Parlamento inglês convidou Guilherme de Orange, estatuder de cinco das Províncias Unidas, para ser o rei da Inglaterra e da Irlanda. (Durante o seu reinado, também se tornou rei da Escócia, e os países foram unidos no reino da Grã-Bretanha.) Nas Províncias Unidas, Guilherme foi príncipe nomeado ao posto de estatuder pelos conselhos de diferentes províncias e recebeu o comando do Exército — na verdade, ganhou o cargo por sua destreza militar nas guerras contra franceses e ingleses. Estava, portanto, bastante acostumado às disposições constitucionais concebidas pelo Parlamento inglês (ver capítulo 4); o modo de funcionamento da república holandesa certamente permeou o sistema político britânico que surgiu depois de 1688. A República das Províncias Unidas nasceu numa cultura de autonomia e justiça, um domínio urbano de trabalho árduo e consciência religiosa que inseria o indivíduo numa comunidade de devotos. Essa foi a mensagem espalhada pelo mundo protestante. Fora dos Países Baixos, as cidades medievais que apresentaram os desenvolvimentos mais interessantes do autogoverno estavam no norte da Itália. As fascinantes inovações na pintura, arquitetura e escultura que marcam a Renascença italiana dominaram nossa visão da história das cidades italianas, mas as grandes conquistas artísticas e culturais do século XV não resultaram do patrocínio das famílias Médici, Sforza e Gonzaga, mas das mudanças políticas e sociais que ocorreram nos séculos anteriores. O que, então, tinham de especial cidades como Veneza, Florença, Pádua, Milão, Gênova, Urbino, Siena, Pisa e Verona? Primeiro, a ausência de uma autoridade controladora externa — imperador, rei ou papa — dava a essas cidades a necessidade e a oportunidade de dirigir seus próprios negócios. Segundo, a riqueza gerada pelo comércio e pela manufatura era maior nessa região do que em qualquer outra (embora Flandres tenha se igualado durante um período), e isso deu às cidades italianas tanto os recursos para se protegerem quanto para projetarem seu poder sobre a área à sua volta. Em qualquer lugar que os dois fatores, fraca autoridade externa e prosperidade, surgiam na Europa, o autogoverno da cidade florescia. De meados do século XI em diante, as cidades que se encontravam nas fronteiras de domínios poderosos — em Lorena, na Borgonha, no Baixo Reno, na Suábia, no Danúbio, em Toulouse e Languedoc, Marselha, Provença e no corredor do Ródano — todas desenvolveram formas vigorosas de autogoverno, mas foi no norte da Itália que o governo das cidades foi mais desenvolvido e onde teve a maior e mais duradoura influência. Durante o fim do período medieval, as cidades italianas desenvolveram um modelo político que substituiu o Estado feudal: baseado no comércio e não na vassalagem, ele estabeleceria as bases da política ocidental moderna. No século XII, o norte da Itália estava no extremo sul do arco dourado do comércio europeu, uma área de terras ricas para o cultivo, manufaturas, rotas de comércio e mercados prósperos, que ia da costa da Grã-Bretanha e do Báltico, passando pelos Países Baixos e pelo corredor do Reno, Champanhe, Franche-Comté e Ródano, atravessando os Alpes até a Lombardia e a Toscana, e em particular a Veneza e Gênova, com seu acesso ao Mediterrâneo e às riquezas do Oriente. Desde a desintegração do Império Romano, o norte da Itália havia sido campo de batalha entre poderes externos ou uma parte desprezada do império. Nas palavras de um historiador, a Itália no século XI e início do XII era um lugar de “ruínas políticas e autoridade confusa”.8 A Lombardia e a Toscana eram governadas oficialmente pelo rei alemão e pelo Sacro Imperador Romano, em cuja ausênciaos senhores feudais, condes e bispos tentavam agarrar-se a poderes concedidos por costumes e práticas. Mas esse mundo estava mudando rápido. Após séculos de estagnação, a população europeia local cresceu de cerca de 35 milhões no ano mil para 73 milhões em 1340, às vésperas da Peste Negra.9 Esse crescimento foi possível graças ao desmatamento e à drenagem de mais terras, que, consequentemente, tornaram-se bens ainda mais desejáveis. As disposições feudais começaram a se alterar quando a terra passou a ser trocada por dinheiro ou apoio político em vez de fidelidade e serviços. A chave aqui foi a crescente economia comercial com base no dinheiro. Que permitiu aos nobres mudarem-se para cidades em vez de permanecerem em suas próprias terras. Esse foi um tempo de uma revolução comercial amplamente anunciada e que foi liderada pela Itália. Banqueiros de Veneza, Florença, Milão e Gênova começaram a emitir letras de câmbio que podiam ser usadas como moeda corrente e compensadas numa rede cada vez maior de mercados europeus. Durante séculos, a riqueza e o poder tinham estado atrelados à posse e ao controle da terra. Agora, a riqueza começou a ser contada em dinheiro que podia ser usado para a compra de mercadorias por todo o continente. Somavam-se a essa nova realidade comercial as confusões do poder. Desde a época de Carlos Magno, a unidade de jurisdição feudal era o contado, ou condado, de um conde, enquanto a Igreja, uma força política e religiosa poderosa, era organizada em dioceses e paróquias. O contado e a diocese do bispo costumavam coincidir, mas nem sempre: em Siena, por exemplo, algumas paróquias do contado pertenciam a duas dioceses. Mesmo no domínio secular, a autoridade era confusa entre duas famílias que reivindicavam direitos sobre o mesmo território por meio de títulos de nobreza concedidos por diferentes príncipes. A Igreja, sendo dona de terras e propriedades, precisava se proteger contra agressões da nobreza local e o fazia, com frequência, apelando para a autoridade do imperador. Em documentos que datam desde 843, o bispo de Arezzo recebeu do imperador a autoridade temporária sobre sua diocese em detrimento do conde local. Em 1055, o imperador conferiu terras à igreja de Siena com as seguintes instruções: “Também desejamos e ordenamos que o bispo tenha o direito a serviços públicos que se encontrem nas mencionadas possessões de sua igreja, sem a interferência de nenhum arcebispo, bispo, duque, margrave, conde, visconde ou qualquer outra pessoa de nossos domínios.”10 Desse modo, era comum que o bispo fosse o senhor feudal e religioso das terras de sua diocese, o que o tornava um governante alternativo nos limites do contado. No entanto, o imperador podia conceder poderes ao bispo, mas outros eram favorecidos pelo Papa. O que importava, é claro, eram os poderes de fato, os quais estavam cada vez mais concentrados nas cidades em franco crescimento. A questão era: quem controlaria esses poderes? Os primeiros passos para o desenvolvimento de estruturas políticas formais fora dos interesses conflitantes da Igreja, de condes, príncipes e do imperador se deram na década de 1080. Nesse período, seis das principais cidades da Itália — Pisa, Luca, Milão, Parma, Roma e Pavia — organizaram-se em comunas. Homens de posses e prestígio, exasperados diante da falta de uma autoridade estável, formaram associações nas quais juravam lealdade uns aos outros e se declaravam a autoridade governante. Nos setenta e poucos anos seguintes, Placência, Asti, Arezzo, Gênova, Como, Verona, Bolonha, Siena e Florença também se tornaram comunas. O viajante judeu Benjamin de Tudela observou que “Elas não possuem rei nem príncipe para governá-las, apenas os juízes nomeados por si mesmos”.11 Essas eram oligarquias exclusivas nas quais os cargos, às vezes chamados consulados, numa imitação intencional de Roma, eram rotativos. Há alusões a assembleias populares na fase inicial das comunas: cônsules em Pisa, por exemplo, afirmavam que sua autoridade provinha de “todo o povo de Pisa em reunião pública, por meio de um grito de Fiat, fiat”, enquanto em Cremona, em 1120, cavaleiros que recebiam terras faziam um juramento diante das pessoas “e de todo o Parlamento”.12 No entanto, as assembleias públicas parecem ter sido rapidamente substituídas por conselhos que serviam à comuna de formas diferentes. Seu tamanho variava, mas há indicações de níveis notáveis de participação. O grande conselho de Verona, em 1254, teve 1.285 membros, e o conselho de Módena, em 1306, 1.600. Em Pisa, em 1162, havia 91 cargos oficiais na comuna, incluindo vigilantes e fiscais de ruas e esgotos, mas também peritos, avaliadores de moedas e inspetores de contas. Em 1254, Siena tinha 860 cargos oficiais. Métodos de eleição para o conselho eram tão variados quanto os apresentados no capítulo 2, incluindo sorteios, eleições indiretas com dois estágios e eleições por oficiais que estavam deixando o cargo — e às vezes combinações dos três. As cidades italianas e outras cidades europeias podem ter permanecido dentro dos domínios de reis e imperadores, mas eles eram figuras distantes que não demonstravam interesse algum nos problemas a serem resolvidos nos níveis básicos da vida urbana. Para os moradores das cidades, a igreja era um elemento importante em todos os aspectos da vida, e as estruturas delas eram, além de físicas, humanas também. Os boni homines, ou “homens de confiança”, eram eleitos por associações de paróquias para manterem a estrutura da igreja paroquial,13 e esse sistema se estendia para outras necessidades básicas da comuna, como o abastecimento de água e a higiene pública, e para cortes informais em que desentendimentos entre vizinhos eram resolvidos. Grande parte dessa atividade gerada por questões internas não está acessível a historiadores, mas começa a se tornar visível durante o século XI, quando os boni homines começam a assinar acordos com senhores de terras feudais, participar de cortes e realizar reuniões com paróquias vizinhas. Os ofícios dos chamados boni homines em Florença incluíam ferreiros, alfaiates e construtores de sinos, ressaltando membros da classe de artesãos. Um documento de 1124 faz referência a boni homines de Siena acompanhando seu bispo numa viagem a Roma para recorrerem ao Papa num litígio com a cidade vizinha de Arezzo. No ano seguinte, um corpo administrativo de cônsules e boni homines trabalhava de forma paralela em Siena. Começamos a ver o encontro entre o poder do alto com o poder de baixo. A posição das cidades italianas e suas comunas dominantes sofreu uma mudança drástica quando o imperador alemão Frederico Barba-Ruiva decidiu impor seu poder ao seu próprio reino itálico. Antes, os imperadores haviam concedido direitos eventuais às cidades — em 1081, Henrique IV concordou em não construir nenhum castelo a 9 quilômetros de Luca, retirar de Pisa sua jurisdição e não nomear nenhum marquês na Toscana sem o consentimento do povo de Pisa. Essas concessões haviam sido feitas em resposta a rebeliões ocasionais que Barba-Ruiva estava agora determinado a reprimir. A partir de 1155, ele liderou seis expedições à Itália, mas em 1176 as cidades da Lombardia, lideradas por Milão, derrotaram as forças dele em Legnano. O conflito se arrastou por mais sete anos, até que Frederico reconheceu sua incapacidade de impor sua vontade na Itália. O Tratado de Constança, assinado em 1183, no qual ele era forçado a confirmar o direito das cidades da Lombardia de eleger oficiais e conduzir suas próprias questões, foi considerado“um marco notável na história da democracia”.14 Na verdade, tratava-se do reconhecimento de uma realidade modificada: o imperador não tinha mais autoridade alguma, nem representava qualquer ameaça real às cidades da Lombardia. De 1183 até a invasão francesa de 1494, essas cidades tiveram independência efetiva. As cidades independentes do norte da Itália eram um conjunto, não um coletivo — tinham interesses comuns, mas também competiam. Os séculos seguintes testemunharam seus conflitos com a própria nobreza e com cidades vizinhas, cada qual tentando expandir a área sob seu controle direto. Os arquivos de Siena registram uma sucessão de vitórias da cidade sobre a nobreza circundante no século XII e início do XIII, ao passo que o principal conflito do século XIII se deu entre Siena e Florença por disputa de território. Esse controle firme sobre um contado, dando forma a uma Cidade-Estado autônoma, era peculiar à Itália. No entanto, as comunidades autônomas — definidas pelo direito romano como universitas, ou “todo” — fora da Itália também começaram a governar a si mesmas. Em 1182, Beaumont-em- Argonne, nas Ardenas, adotou uma lei que dava à cidade o direito de eleger um prefeito e oficiais para a administração da justiça e de outras questões, e foi usada como modelo por cerca de quinhentas cidades e aldeias da região. Em 1212, os mercadores e a nobreza de Marselha organizaram-se numa associação chamada Confraternidade do Espírito Santo. Em 1218, a cidade já cunhava suas próprias moedas e, em 1220, obteve dos condes de Provença o direito de administrar seus próprios assuntos. O governo de Marselha podia assinar tratados com outras cidades, um dos quais, com a cidade de Nice, continha a seguinte declaração: “Por intermédio de Deus [...] ganhamos a liberdade de nossa cidade, condecoramos nossa república, aumentamos os ganhos e os direitos de nossa cidade e, por meio Dele, preservamos a nossa paz.”15 Em 1200, uma classe governante surgira na Itália, composta pelos senhores feudais menores, que tinham terras perto de uma cidade e viviam entre seus muros como cidadãos, e pelos burgueses, que ganhavam com o comércio e a troca de dinheiro. A riqueza e a distinção social uniram-se quando os nobres se tornaram comerciantes, enquanto mercadores e banqueiros aplicavam seu dinheiro na terra. Mas como era viver numa cidade italiana na época? Para tomarmos apenas um exemplo, Siena tinha 30 mil habitantes vivendo numa cidade de apenas 1,2 quilômetros de diâmetro. A maioria das casas era feita de madeira e barro, muitas com fachadas de tijolos para a rua. Em 1200, a catedral, ou duomo, era uma obra em andamento (organizada pela corporação dos construtores da cidade), e uma universidade foi fundada em 1240. Havia nítida desigualdade social, demonstrada pelas grandiosas construções e torres de pedra das famílias ricas e espaços limitados dos pobres. As ruas que parecem tão pitorescas hoje eram estreitas e sinuosas, começando em trilhas entre prédios antes de se transformarem em estradas. A construção era o ramo mais importante nas cidades medievais, empregando inúmeros trabalhadores e artífices habilidosos, enquanto as atividades têxteis eram o motor do comércio europeu. Siena era conhecida pela qualidade de sua lã, com seus artesãos utilizando técnicas aprendidas no Oriente para produzirem suntuosos tecidos tingidos e bordados. O comércio de produtos têxteis envolvia uma série de artesãos habilidosos, de fiandeiros e tingidores a tecelões e pisoeiros, e suas oficinas eram cercadas de uma variedade de comércios urbanos — açougueiros e padeiros, prateiros e pedreiros, escrivães e banqueiros. Como toda cidade medieval da Europa, Siena também abrigava um grande número de clérigos — monges e freiras mendicantes de diferentes ordens, padres, curas e diáconos — e continha casas e hospitais religiosos, mosteiros e igrejas paroquiais. As comunas do século XI conferiram a cada cidade italiana uma forte identidade, mas o domínio inicial de algumas famílias ricas não se manteve. A participação no conselho era rigorosamente restrita, e ainda que os cidadãos fossem definidos por suas propriedades, contribuição tributária e serviço militar, isso não lhes dava direitos de representação. A comuna existia para dar uma autoridade estável à elite, mas, conforme as cidades cresciam, os artesãos, profissionais e mercadores iam se tornando mais poderosos e perdiam a paciência com o exclusivismo da política municipal. Uma crise política iminente pode ser identificada desde 1150, quando os cônsules italianos começaram a ser substituídos por cônsules, que eram chefiados por um oficial conhecido como podestà. Em 1200, eles estavam estabelecidos em Pádua, Milão, Florença, Pisa, Siena e Arezzo. Em Gênova, em 1190, registros mostravam que “Discordâncias civis, conspirações cheias de ódio e divisões haviam se originado na cidade [...] Então os sábios e conselheiros da cidade se reuniram e decidiram que [...] o consulado da comuna deveria acabar e [...] que deveriam ter um podestà”.16 Esse cargo curioso era o equivalente do diretor executivo moderno, que era trazido de fora (o primeiro de Siena vinha de Luca) para administrar as questões da cidade e agir como adjudicador em disputas legais e políticas. Os podestàs tornaram-se políticos profissionais, que traziam consigo uma comitiva de juristas, advogados e escriturários. Sabe-se que vinte podestàs exerceram a função em pelo menos seis cidades cada um. O milanês Guillermo de Pusterla foi escolhido o podestà em nada menos de nove cidades, completando dezesseis períodos de permanência no cargo, quatro em Bolonha. Os podestàs eram um sinal de que o consenso dentro das comunas entrara em colapso e agentes externos tinham de ser trazidos para que a paz fosse mantida, mas a partir de 1200 esse procedimento também entrava em crise, quando as famílias poderosas começavam a usar empregados armados como milícias particulares, assinalando partes da cidade como seu próprio território e construindo enormes torres de estilo militar dentro dos muros da cidade. À medida que as cidades se tornavam mais perigosas e instáveis, todos, de banqueiros a prateiros e açougueiros, viram a necessidade urgente de conquistar poder político para proteger seus próprios interesses. As corporações de ofício, que agiam como sindicatos, organizações assistenciais e fraternidades sociais, começaram a se tornar órgãos políticos. As corporações se ramificaram e multiplicaram. No início do século XIII, a maioria das cidades tinha de trinta a quarenta, enquanto Veneza atingiu um total de 142. Na década de 1380, Cremona tinha 8 mil membros de corporações e Bolonha, 9 mil. Ao mesmo tempo, os cidadãos formavam associações armadas de residentes de uma mesma área para se protegerem contra a ameaça de violência da nobreza que controlava a cidade. Esses grupos de vizinhanças levavam nomes de santos ou distritos ou nomeações simbólicas, como estrela, marinheiro, cavalo, leão e dragão. Um artesão, dono de mercearia ou comerciante tinha, portanto, duas organizações para cuidar de seus interesses: a associação do distrito e a corporação de ofício, o que refletia uma forma rudimentar de democracia impulsionada por necessidades práticas. À época da visita de Dürer à Antuérpia, em 1520, as corporações e associações haviam assumido funções cerimoniais, mas haviam nascido a partir de necessidades comunais. Inicialmente, as corporações e associações de distritos trabalhavam juntas de forma vaga, mas a agressão da nobreza nos regimes de comuna forçaram-nasa se transformarem num movimento mais formal. Esse movimento, que se deu em todas as principais cidades do norte da Itália no século XIII, ficou conhecido como Popolo e é de importância central para a história do governo representativo. Por volta de 1200 até 1500, em quase todas as cidades do norte da Itália, portanto, o poder era dividido, compartilhado, contestado e transferido entre diferentes autoridades — a nobreza, a Igreja, os conselhos, os podestàs e o Popolo. Esse retrato complexo e cambiante faz a história política do período parecer confusa e caótica, porém a paisagem subjacente é, na verdade, uma negociação contínua e consistente de poder, autoridade e influência entre a elite de famílias ricas e uma base mais ampla de artesãos, profissionais e comerciantes. O Popolo foi formado para proteger os interesses de seus membros, e o fazia com frequência, permanecendo separado da comuna ou do conselho formal da cidade, mantendo sua própria milícia, tributação, oficiais eleitos e tribunais. Em outros momentos, o Popolo tomou o poder, e houve conquistas hostis em Bolonha, em 1228, e em Florença, em 1244. Em Pádua, em 1293, as corporações de ofício concordaram em formar “um único órgão, sociedade, irmandade ou liga para manter e conservar a cidade de Pádua e seu distrito em estado pacífico, como uma comuna, livre da dominação de qualquer tirano”.17 Mesmo quando o Popolo não tinha o controle formal de uma cidade, o governo estava ciente da necessidade de obter o consentimento dele. Com frequência, isso era feito pela concessão de participações no conselho: em 1212, em Milão, e 1222, em Placência, metade de todos os cargos foi dada a membros do Popolo. Em Siena, o Popolo assumiu o controle da comuna de 1257 a 1262. A partir de então, seu poder formal cresceu e diminuiu, embora tenha permanecido um elemento político poderoso dentro da cidade. Os principais motivos para a aquisição de poder por parte do Popolo eram dois. Em primeiro lugar, ele buscava abolir os privilégios tributários da nobreza, junto com as altas taxas de juros recebidas por famílias que emprestavam dinheiro à comuna. Em Florença, em 1224, uma comissão de doze homens (que excluía o clero e a nobreza) cuidou de questões fiscais. Descobriram que praças e muros da cidade acabaram misteriosamente se tornando propriedades particulares, e impostos cobrados pela nobreza haviam desaparecido, indo parar em seus próprios bolsos. Em Siena, o Popolo nomeou oficiais conhecidos como populares para avaliar impostos, e lhes foi pedido num debate em conselho que “fizessem o máximo em busca da igualdade entre todos” e que “todos aqueles que têm os bolsos cheios fossem completamente avaliados”.18 A segunda importante motivação do Popolo era a reforma do sistema jurídico. Na maioria das cidades, havia autoridades jurídicas paralelas e conflitantes, com cortes que tinham jurisdições diferentes e, com frequência, parcialmente coincidentes, usando uma variedade de códigos legais — do direito canônico, imperial, consuetudinário e romano. As corporações haviam assumido a autoridade sobre questões legais que atingiam seus membros e seus negócios, então, quando o Popolo obteve o poder, elas insistiram no direito de se juntar à legislatura e tomar parte do Judiciário. As cidades tentaram lidar com essas confusões reescrevendo seus estatutos, como ocorreu em 1293, em Florença, onde se reconheceu que os diferentes códigos legais “são supérfluos, alguns obscuros, outros contradizem uns aos outros e outros são parecidos; ambiguidades e diferenças surgem todos os dias”. As leis promulgadas pelo podestà, o capitão do Popolo (cargo registrado pela primeira vez em Parma, em 1244, depois em Florença e Placência, em 1250), e por outros órgãos deveriam ser harmonizadas.19 Embora essas autoridades pudessem tomar decisões judiciais, o poder de aplicar leis era a chave, e aqui o Popolo era capaz de competir efetivamente com as milícias dos ricos. Em Siena, o regime do Popolo conseguiu aprovar leis que conferiam imunidade aos atos de vingança realizados por seus membros contra as ordens de seu próprio conselho — tornando-se um braço efetivo do Estado. Em 1262, um decreto estabelecia que “deveria haver companhias [armadas] dos subordinados ao Popolo e seus membros juramentados. Todos aqueles que pertencem [ao Popolo] deveriam ser obrigados a se juntar [às companhias]”.20 As tensões criadas por um Estado efetivo dentro de um Estado desencadeavam eventuais conflitos, como aconteceu em Placência, onde a nobreza foi expulsa em 1090, após brigas violentas nas ruas. Em outros lugares, o Popolo introduziu poderes formais contra a nobreza. Em Bolonha, em 1252, as associações de famílias foram abolidas, o porte de armas pessoais na cidade, proibido, e as torres de defesa, demolidas. Em Florença, em 1293, qualquer um “que não tenha trabalhado em ofício com suas próprias mãos” não poderia representar os artesãos no conselho geral. As famílias nobres de Bolonha, em 1282, foram forçadas a dar garantias financeiras de seu bom comportamento, e, entre 1293 e 1295, 73 das famílias influentes foram exiladas. Foram elaboradas leis que limitavam a altura de torres e proibiam a vassalagem entre famílias nobres, por exemplo, em Módena, onde “em qualquer acusação que envolva danos, não se deve acreditar no juramento de um homem poderoso, nem dos filhos que sejam proprietários de terras”.21 Durante muitas décadas, a intervenção política do Popolo foi considerada um episódio caótico do qual as cidades italianas foram salvas pelas grandes famílias da Renascença. O quadro que vemos agora é diferente. Hoje os historiadores argumentam que o Popolo foi o elemento crucial nas extraordinárias inovações culturais do período e que o “governo popular” foi mais difundido e duradouro do que antes. As cidades haviam obtido pela primeira vez o direito ao autogoverno ao se declararem comunas independentes; a conquista do movimento Popolo foi se basear nisso para ampliar de forma dramática a participação no governo.22 Uma cultura de participação significava mais do que uma simples competição por poder entre diferentes grupos sociais. As corporações de ofício que se encontravam no centro do Popolo eram dirigidas e organizadas por seus membros, todos com o mesmo status. Em Bérgamo, os membros do Popolo juraram “cuidar para que [...] todos os ofícios e honras da comuna [...] fossem escolhidos de acordo com o interesse da comunidade e não em benefício de qualquer grupo”.23 A comuna, os podestàs, o magnati (conselho de “grandes homens”) e o Popolo — cada um desses grupos representava classes sociais diferentes e, trabalhando de forma paralela, introduzira sistemas de representação e participação que foram testados, adaptados e aperfeiçoados. Embora tivessem conflitos políticos frequentes, as exigências do Popolo, que vinham de baixo para cima, complementavam o domínio das comunas, que vinha de cima para baixo, e os dois se juntavam e abraçavam um ideal republicano de governo — uma prática revolucionária num continente de reis e imperadores, e uma ligação com o passado romano. A ascensão do movimento Popolo na Itália foi o sintoma e a causa de um aumento extraordinário da autoconfiança dos cidadãos urbanos. As cidades prósperas davam às pessoas comuns trabalho, independência, status, o companheirismo de colegas, envolvimento na política e na preparação de grandes obras públicas por meio das corporações de ofício e um interesseno futuro. Os artesãos das cidades do final da época medieval foram transformados em artistas da Renascença, sinalizando uma mudança, como costuma afirmar-se, de um mundo de fé opressiva e feudalismo para um mundo em que a humanidade descobria a racionalidade e se tornava fascinada consigo mesma. A verdade é que a mudança havia ocorrido muito antes. O movimento Popolo ocasionou um novo interesse no cidadão comum, permitindo a Giotto a extraordinária inovação de colocar pessoas reais em seus quadros de cenas bíblicas em 1310. Isso estabeleceu o princípio de que as cidades não deveriam ser divididas entre os ricos, e que as ruas, praças, igrejas e câmaras municipais deveriam ser espaços públicos disponíveis a todos; e restaurou a convicção republicana de que todo cidadão que tinha interesse por sua cidade e era chamado a defendê-la deveria ter voz no governo. As interações sociais mudaram da deferência elaborada à informalidade entre iguais. O Popolo abriu escolas que ensinavam matérias seculares, expandiu a prática da formação por tempo de serviço e, ao criar novos conselhos e cargos, ampliou a comunidade política de modo que mais pessoas se responsabilizavam pelo destino da cidade. A era de governo observável do Popolo na Itália chegou ao fim no século XIV. Comerciantes ricos buscaram ampliar suas ambições fazendo alianças com as grandes famílias, e a influência política das corporações de ofício diminuiu. E porque o Popolo, baseado nas corporações excluíra as ordens inferiores, faltou uma base ampla. O Popolo de Pádua em 1277, por exemplo, excluiu das eleições “marinheiros, jardineiros, trabalhadores rurais, homens sem terras e pastores”.24 Durante todo o período de regimes republicanos, a noção de “povo” foi usada para melhorar a reputação de uma cidade, mas a verdade era que a população das cidades era altamente desigual em termos de riqueza e acesso ao poder. No entanto, o Popolo era baseado na participação de milhares de cidadãos que antes haviam sido excluídos da vida política. Ele hoje é considerado um movimento essencial e transformador, cuja influência durou depois de seu fim, introduzindo uma forma de governo nas cidades italianas que, nas palavras de um historiador, tinha “uma base ampla [e] na qual uma porção significante de cidadãos do sexo masculino de vários grupos sociais podia participar de conselhos do governo e poderia ser eleita para cargos políticos e administrativos”.25 No século XIV, as cidades maiores começavam a dominar o norte da Itália. Giovanni Villani morou em Florença na década de 1330 e descreveu a cidade de mais de 90 mil pessoas, incluindo 25 mil homens prontos para pegar em armas e 30 mil trabalhando na área têxtil, produzindo tecidos finos a partir de lã inglesa. Ele contou seiscentos cartórios e cem farmácias, além de 146 fornos de fundição. Villani também notou a presença de uma grande variedade de oficiais e magistrados: “Esses eram os podestàs, os capitães, os defensores do povo e das corporações de ofício, os executores das Ordenações de Justiça; [das quais] o capitão da guarda e defensor do povo [...] tinha mais autoridade do que os outros”. Parece que, mesmo após o fim do Popolo, a jurisdição ainda era contestada e que ser um “defensor do povo” era uma insígnia de autoridade.26 A maioria das cidades da Itália nos séculos XIV e XV, período da Alta Renascença, passou a ser governada por uma combinação de governo popular e oligarquia. Em Siena, já na década de 1440, havia algumas centenas de cidadãos qualificados para a participação e a votação na principal assembleia legislativa. Alguns forasteiros consideravam degradante o elemento popular no governo da cidade. Mestre Valésio, residente português, reclamou em 1451 que a cidade era governada por “quitandeiros, curtidores, sapateiros e camponeses” que eram um “reggimento di merda” — um governo de merda.27 Siena seguiu o padrão de outras cidades durante o século XV, quando um pequeno grupo de famílias lutava entre si, criando facções rivais e buscando apoio popular. O surgimento de uma única figura poderosa o suficiente, por meio de manobras políticas e militares, para controlar a cidade havia começado no século XIV e continuou até as invasões francesas de 1494. Essa figura se tornou o “príncipe da Renascença”, imortalizado por Maquiavel e personificado por Ludovico Gonzaga de Mântua, a família Bentovoglio de Bolonha, os Médici de Florença, Francesco e Ludovico Sforza de Milão e, de modo mais típico, César Bórgia. Na década de 1520, as cidades da Itália haviam perdido sua independência de fato e se tornaram os elementos de um luta pelo poder entre o imperador, a França, a Espanha e o papado que iria dividir o país pelos três séculos seguintes. A Europa se tornou um continente de monarquias nacionais poderosas. O poder das cidades em outros lugares decaiu e, com ele, o alcance do governo popular. De forma irônica, as cidades italianas ajudaram o nascimento do sistema político que acabou com o seu poder. O Estado nacional centralizado foi possibilitado por uma nova tecnologia militar que permitia aos monarcas controlarem grandes territórios, mas foi sustentado por uma burocracia de recolhimento de impostos que nasceu com a revolução comercial promovida nas casas bancárias e câmaras municipais da Itália. O Estado moderno transformou-se num sistema altamente centralizador, dando a possibilidade de poder total a um indivíduo ou grupo pequeno. A história da democracia tornou-se uma luta para a obtenção de controle do Estado. No entanto, a afirmação do governo do povo como forma de participar e se orgulhar da vida urbana é um marco notável na história da política. Por alguns séculos, as pequenas e grandes cidades da Europa consideraram o governo popular motivo de celebração e emulação. Pensadores do fim da Renascença italiana, como Leonardo Bruni, sustentaram que as cidades somente podem ser grandiosas uma vez que seu povo seja livre, e isso significa estar livre de monarcas, príncipes e tiranos. A participação de centenas, às vezes milhares, de cidadãos no governo e na administração da comunidade, sua disposição para combater o poder da riqueza herdada e acumulada e sua crença na res publica tornam as cidades italianas dignas de menção na história da democracia. O 5 A REVOLUÇÃO INGLESA O Cidadão Súdito início da Europa moderna viu o desenvolvimento de um novo tipo de Estado, em que os monarcas dominaram com muito mais firmeza os territórios que controlavam. Durante séculos, os reinos foram baseados na lealdade ao governante, mas, graças em grande parte ao aperfeiçoamento de armas e ao desenvolvimento da coleta de impostos, eles se tornaram áreas controladas — começaram a surgir mapas mostrando como a Europa era dividida entre esses domínios. A era dos impérios governados de forma imprecisa e de cidades autônomas deu lugar à era dos Estados centralizados e ao surgimento de nações.1 Nessa nova ordem mundial, que se desenvolveu aproximadamente entre 1500 e 1700, parecia não haver lugar para o tipo de governo participativo descrito no capítulo anterior. Em vez disso, o cidadão se tornou um súdito, com direitos concedidos apenas por meio da generosidade do monarca em cujo reino, concebido de forma divina, ele vivia. Novas dinastias, desde os Tudor e Stuart, da Inglaterra, os Habsburgo, da Espanha e Áustria, os Bourbon, da França, os Vasa, da Suécia e Polônia, aos Romanov, da Rússia, casaram de forma bem-sucedida a noção de realeza como status divino com o desenvolvimentode um Estado centralizado, com o monarca como chefe. A história da democracia moderna é a de uma luta longa e amarga para a mudança da natureza do Estado. O controle exercido pelos monarcas era um processo intermitente. A nobreza que detinha o poder sob o antigo sistema feudal lutava para reassegurar seus direitos, mas nessa luta pelo poder por toda a Europa qualquer noção de democracia ou governo participativo parecia desaparecer. No entanto, não sumiu por completo. No século XVII, os reinos das Ilhas Britânicas eram governados pelos Stuart, e a incapacidade de sucessivos monarcas de guiar e controlar o Estado trouxe outras forças políticas à dianteira. E foi na Inglaterra que a aplicação dos princípios democráticos num Estado nacional foi realizada primeiro. Não se tratava do desenvolvimento abstrato de teorias, mas de um plano prático de governo proposto, em meio a uma crise nacional, por um grupo de soldados que representavam o Exército inglês. A oportunidade veio no vácuo de poder que sucedeu as guerras civis na Inglaterra, Escócia e Irlanda. Como essas guerras se deram e como a população se tornou tão politizada que a democracia passou a ser uma possibilidade real são episódios essenciais em nossa história. Em 1603, Jaime VI, rei da Escócia, herdou o trono inglês, como Jaime I, de Elizabeth Tudor, que não tinha filhos. Também se tornou rei da Irlanda. Jaime era protestante, mas de família católica, e acreditava no direito divino dos reis: em 1597, escreveu o livro A verdadeira lei das monarquias livres, no qual afirma que os reis surgiram “antes de quaisquer bens ou classes de homens, antes da formação de qualquer Parlamento e da elaboração de qualquer lei, e por eles a Terra foi distribuída, a qual era toda deles no início. Portanto se segue inevitavelmente que os reis foram os autores e criadores das leis, não o contrário”.2 No entanto, as realidades práticas não propiciavam a autocracia, e Jaime foi sensato o bastante para administrar seu reino de forma adequada, porém sem muito destaque. Seu espaço de ação era limitado, uma vez que os dois elementos centrais do Estado moderno — o Exército e a cobrança de impostos — estavam fora de seu controle. Apesar do êxito de Elizabeth em aumentar o prestígio da Inglaterra, o país não tinha um Exército permanente, mas sim um conjunto de milícias de condados, cada uma fiel à nobreza local, enquanto todo imposto tinha de ser aprovado pelo Parlamento — e era sobre os membros do Parlamento que a tributação era mais pesada. O equilíbrio de poder entre monarca e Parlamento, o centro e as outras regiões, a Coroa e a nobreza, era, portanto, crucial. Elizabeth não deixou um Parlamento subserviente a Jaime, mas uma classe de nobres acostumados a serem lisonjeados, bajulados e recompensados. No início do século XVII, o Parlamento inglês era uma mistura de lacaios reais e homens de mentalidade independente cm uma relação complexa com o monarca. Já vimos por que o rei precisava do Parlamento, mas os parlamentares ingleses também precisavam do monarca e estavam preparados para tolerar um rei fraco e volúvel por dois motivos. Primeiro, um rei fraco não interferia em seus assuntos e ficaria dependente do apoio financeiro e militar deles. Segundo, a monarquia trazia estabilidade e unidade ao país. Isso era de valor incalculável para a nobreza, que se beneficiava de uma população fiel e acomodada. Na França, Rússia e Espanha, a monarquia começou a dominar a nobreza e avançou para se tornar um Estado poderoso e centralizado que coincidia com a pessoa do rei. Nas Ilhas Britânicas, isso não aconteceu e o que se alcançou foi um equilíbrio precário. As relações se romperam no início do reinado de Jaime, quando o Parlamento demonstrou relutância em aprovar impostos para o que considerava gastos desnecessários. Em consequência, a Coroa acumulou dívidas enormes que o Parlamento se recusou a pagar. Em 1610, Jaime dispensou o Parlamento, e quando ele foi convocado novamente, em 1614, durou apenas oito semanas. A partir de então, Jaime arcou com as despesas de sua corte, vendendo condados e adquirindo monopólios em vez de recorrer a impostos. As relações indiferentes entre o rei e o Parlamento deram o tom para o governo do filho de Jaime, Carlos I, o mais desastroso da história da Inglaterra. Se as finanças congelaram as relações entre o Parlamento e o rei, a religião as aqueceu a um nível incendiário. Jaime fora favorecido pela nobreza e pelo povo por seu repúdio ao catolicismo, mas Carlos, que subiu ao trono em 1625, não foi capaz de seguir seu exemplo. Maquiavel aconselhara que, para ser bem-sucedido, o príncipe deveria agir de modo construtivo; ele faz de si uma personificação do Estado para receber as recompensas que o Estado pode oferecer. Carlos não fez isso e pagou o preço. Assim como o pai, Carlos via o Parlamento como um mal necessário. Diferentemente do pai, no entanto, o novo rei tinha uma queda pela aventura militar. A lealdade à sua família estendida estimulou uma tentativa de exercer sua influência na Guerra dos Trinta Anos com uma declaração de guerra à Espanha, mas o Parlamento sancionou apenas 140 mil libras, uma quantia insuficiente para as ambições do rei. Uma campanha militar desastrosa e outros indícios do caráter esbanjador de Carlos levaram o Parlamento a aprovar uma Petição de Direitos em 1628, que impedia o rei de realizar certas ações sem o consentimento do Parlamento, incluindo o direito de cobrar impostos, prender qualquer pessoa sem julgamento, alojar tropas em casas de civis ou sujeitar seu povo à lei marcial. Em resposta, Carlos dispensou o Parlamento e declarou um período de reinado pessoal — na verdade, ele se tornou um ditador. Embora a hostilidade do Parlamento em relação à cobrança de impostos, como a famosa “Ship Money”, induzisse confrontos constantes, foi a religião que se tornou a principal divisão entre o rei e seus súditos. A Reforma do século XVI dividiu o continente em campos conflitantes, mas também fortaleceu a comunidade cristã. Os protestantes, em particular, tinham um envolvimento constante em debates sobre o significado de sua fé e sua relação com Deus. Dentro do protestantismo inglês um cisma começara a aparecer entre aqueles conhecidos desde então como Protestantes Reformados e os oficiais superiores da Igreja Anglicana (incluindo o rei), que adotavam uma forma de anglo-catolicismo. Uma Igreja hierárquica marcada por diferenças teológicas vitais acreditava na importância do ritual, da autoridade divina dos bispos e do status especial do monarca, em oposição a uma forte crença na primazia da consciência individual e na importância de uma vida cristã. Enquanto a Igreja Anglicana superara o desejo de Henrique VIII de se separar de Roma, o Protestantismo Reformado tinha raízes na teologia calvinista que se espalhara com efeito eletrizante pelo norte da Europa. Novos métodos e impressão produziram múltiplas cópias da Bíblia de Gênova em inglês na Inglaterra e na Escócia por volta de 1614. Aparecendo antes da Versão do Rei Jaime, a Bíblia de Gênova logo ganhou a preferência de devotos. Sua linguagem contundente, notas e guias de estudo davam ao leitor um domínio confiante das escrituras que eram a base de sua fé. As notas incluíam interpretações políticas de histórias bíblicas, mostrando, por exemplo, que as escrituras davam aos fiéis a autoridade de remover governantes injustos. A Bíblia confirmou aos Protestantes Reformados que sua interpretação da fé era fiel à palavra de Deus, e queo catolicismo era uma perversão do cristianismo. Sua preocupação, que se transformou em acusação furiosa, era de que os bispos e muitos padres da Igreja Anglicana fossem católicos apenas com uma denominação diferente. Quando, em 1633, Carlos nomeou William Laud arcebispo de Canterbury, aqueles que criticavam Laud por apresentar um comportamento aparentemente católico foram presos, ao mesmo tempo que todos os súditos foram obrigados a frequentar cerimônias anglicanas. A esposa francesa de Carlos, Henriqueta Maria, era abertamente católica, e tanto sua influência sobre os herdeiros reais como seu círculo de cortesãos católicos foram vistos com hostilidade e desconfiança. Ao mesmo tempo, soldados católicos e protestantes lutavam uns contra os outros (e milhões de civis) em vastas áreas da Europa Central na Guerra dos Trinta Anos. Na década de 1630, panfletos impressos chegaram à Inglaterra e Escócia dando conta de protestantes sendo massacrados na Boêmia e no Palatinado do Reno. Nada disso tornava inevitável o conflito interno, mas Carlos estava determinado a reprimir qualquer dissidência religiosa. Em 1637, o rei decidiu que a liturgia anglicana, com um novo livro de orações compilado por William Laud, deveria ser usada nos três reinos — Inglaterra, Escócia e Irlanda (os países eram entidades separadas, embora os três fossem governados por Carlos). Em resposta, o Pacto Nacional Escocês foi elaborado como um “protesto de lealdade”, afirmando que qualquer mudança deveria primeiro ser aceita por todos os três parlamentos e Assembleias Gerais da Igreja. Carlos reuniu um Exército para apaziguar os escoceses, mas sua expedição fracassou. Para afirmar sua autoridade sobre os adeptos do pacto, Carlos precisava arrecadar dinheiro. Um grande conselho da nobreza inglesa foi convocado em York, mas os lordes aconselharam o rei a buscar uma trégua e chamar o Parlamento de volta. Acabou o período de Reinado Pessoal. O novo Parlamento, que se reuniu no dia 3 de novembro de 1640, continha uma maioria de membros que queriam limitar os poderes do rei, embora ninguém previsse um conflito armado entre o Parlamento e o monarca. O Parlamento Longo, como ficou conhecido, prendeu o ministro do rei, o conde de Strafford, e o arcebispo Laud por traição, e aprovou uma lei que impedia a dissolução do Parlamento, a não ser por si mesmo. Carlos pôs em jogo sua reputação ao tentar salvar Strafford, que, no entanto, foi acusado e executado em maio de 1641. Laud foi condenado à morte e decapitado em janeiro de 1645. O rei ficou isolado, contando apenas com o prestígio oscilante de sua posição. Os acontecimentos que precipitaram o conflito militar se deram na Irlanda. Em 1641, os católicos irlandeses, temendo uma invasão dos escoceses adeptos do Pacto Nacional e das tropas do recentemente fortalecido Parlamento inglês, rebelaram-se contra as autoridades do Estado e reivindicaram a aprovação real de suas ações. Desconfiado das afinidades católicas de Carlos, o Parlamento recusou-se a lhe fornecer dinheiro ou tropas para reprimir a rebelião, enquanto panfletos com descrições das atrocidades cometidas por católicos contra protestantes irlandeses atiçaram uma atmosfera já exaltada. Rumores de que o Parlamento pretendia derrubar sua rainha católica levaram Carlos a agir. Em 4 de janeiro de 1642, ele chegou à Câmara dos Comuns com um mandado de prisão para cinco líderes do Parlamento, alegando alta traição. A entrada de um monarca na Câmara era um desafio inequívoco ao Parlamento; a prisão não ocorreu, e os membros do Parlamento tinham sido alertados — nas famosas palavras de Carlos, pronunciadas na cadeira do Orador: “Vejo que os pássaros já fugiram da gaiola.” Com esse ato, Carlos fez de si um inimigo do Parlamento, e Londres tornou-se um lugar perigoso para o rei. Após alguns meses, nos quais ambos os lados apelaram para o apoio do povo, em agosto de 1642, ele ergueu seu estandarte no Castelo de Nottingham e declarou guerra contra o Parlamento. Exércitos parlamentares ganharam rapidamente a vantagem sobre as forças monarquistas, mas não conseguiram terminar a guerra com a mesma rapidez. Ao final de 1644, o Parlamento controlava 70% do território inglês, mas, embora a vitória na Batalha de Marston Moor, perto de York, em julho de 1644, tivesse conquistado o comando do norte, o sul ainda impedia sua vitória. Começaram a crescer as suspeitas quanto à motivação dos comandantes nobres do Exército parlamentar, e isso levaria a uma divisão fundamental na causa parlamentar. O conde de Manchester, que liderava o Exército do Leste, do qual fazia parte Oliver Cromwell, membro do Parlamento por Cambridge, começou a questionar as razões para seguir lutando em vez de negociar. O conde de Essex havia sido forçado, em setembro de 1644, em virtude da sua própria incompetência, a se render às forças monarquistas na Cornualha. A segunda Batalha de Newbury, em outubro de 1644, quando as forças parlamentares foram lideradas por Manchester, foi, para frustração do Parlamento, inconclusiva. Parecia que alguns amigos do reino não estavam suficientemente dispostos a obter uma vitória esmagadora e, em vez disso, esperavam que o rei aceitasse um acordo. Essas frustrações dividiram a Câmara dos Comuns em uma facção presbiteriana, ávida para se aliar aos escoceses e negociar com o rei, e outra radical, conhecida como o Clã dos Guerreiros, que tinha como primeiro objetivo a vitória decisiva. Em abril de 1645, o grupo radical aprovou a Lei da Abnegação, na qual todos os membros do Parlamento tinham de decidir entre funções militares ou parlamentares, e todos os ingleses que fossem membros da Câmara dos Lordes tinham de abrir mão do comando militar. As tropas parlamentares do sul foram então unificadas em uma única força, chamada de Exército Novo, liderada por sir Thomas Fairfax, com Oliver Cromwell como segundo comandante. De imediato, o Exército Novo deu início a uma série de vitórias decisivas, culminando com a destruição do Exército Real em Naseby, em junho de 1645, que acabou com qualquer chance de recuperação monarquista. Finalmente, em 5 de maio de 1646, Carlos rendeu-se ao Exército escocês em Southwell, Nottinghamshire. Em fevereiro do ano seguinte, o Parlamento arrecadou o dinheiro para comprar o rei dos escoceses, preparando o terreno para um dos anos mais extraordinários da história política da Inglaterra. Para entendermos os eventos de 1647, precisamos de um exame mais detalhado do Exército Novo e da influência de um grupo político específico, os Niveladores. Ainda que, na aparência, fosse uma simples reorganização das forças do Parlamento, o Exército Novo significava um desvio profundo. Tratava-se de um Exército altamente profissional com oficiais promovidos por sua experiência em batalhas, não em conexões familiares, e com soldados totalmente motivados. Os soldados e oficiais eram predominantemente Protestantes Reformados, para os quais a fé religiosa era a base de sua existência. As Bíblias vernáculas que muitos soldados carregavam mostravam que a mensagem de Deus não era simplesmente a obediência à autoridade, e um número cada vez maior deles, influenciados por textos radicais, via o mundo como, nas palavras do Nivelador Gerard Winstanley, “um tesouro comum a todos”.3 A Reforma também revelara algo muito novo e surpreendente. As pessoas acreditaram durante muito tempo que apenas os grandes homens — reis, príncipes, papas, arcebispos e duques — podiam alterar o curso da história, mas a Reforma havia sido ocasionada por Martinho Lutero, um monge alemão, e consolidadapor João Calvino, um pastor francês. E embora a Igreja Anglicana tivesse sido instituída pelo rei da Inglaterra, na Escócia, John Knox, um simples sacerdote, liderou as reformas protestantes que depuseram a rainha Maria. Além disso, a crença anterior de que um aristocrata valia mais para um Exército do que sete homens comuns foi enterrada pelo Exército Novo na lama ensanguentada de Naseby. O movimento Nivelador recebeu esse nome descritivo em novembro de 1647, embora tivesse surgido no outono de 1645. Marchmont Needham comentou que a palavra era “o título mais apropriado para um grupo tão desprezível e desesperado [...] para que todo homem comum seja um cavaleiro e todo cavaleiro, um homem comum”.4 O movimento se desenvolveu à medida que a derrota do Exército monarquista começou a se tornar inevitável e terminou quando Cromwell e o Parlamento Remanescente assumiram o controle em 1649. Os Niveladores existiram, portanto, num vácuo de poder, quando nenhuma autoridade máxima tinha o monopólio do poder político ou da força militar. A filosofia dos Niveladores era baseada em suas crenças religiosas, apesar de secular: eles não sustentavam que os direitos políticos deveriam ser dados apenas aos devotos, mas tanto para os santos como para os pecadores, e eram a favor da separação entre a Igreja e o Estado, porque cada indivíduo deveria ter o direito de escolher a própria religião. Os Niveladores queriam a igualdade numa época de deferência aos bem-nascidos. Para eles, a opressão dos ingleses começara com a conquista normanda, mas não queriam simplesmente que o “jugo normando” fosse removido e os direitos dos ingleses anteriores à Conquista, restaurados. O Nivelador Richard Overton sustentou que “as leis desta nação não são dignas de uma nação livre e merecem ser, da primeira à última, analisadas e debatidas seriamente até que se chegue a um consenso com igualdade e razão correta, a qual deve ser a forma e a vida de todo governo”.5 Overton e seu colega, William Walwyn, queriam fortalecer as “regras universais de igualdade e justiça para todos”. Os Niveladores tinham um conjunto de princípios e até um manifesto, mas eles mesmos não se candidatavam a eleições; em vez disso, estipulavam regras pelas quais o processo político deveria ser conduzido. O desejo de igualdade política veio com a experiência da guerra, assim como por suas opiniões religiosas. O conflito aproximara homens de origens diversas. O Exército Novo, em particular, era formado por voluntários que podiam avançar com base na habilidade e vinham principalmente de centros urbanos, em especial de Londres, com sua população adaptável e autossuficiente. Ali, a igualdade era uma realidade prática, e muitas pessoas eram “homens sem mestre” numa sociedade comercial em expansão (a capital crescera de 200 mil habitantes para 350 mil desde 1600) que tinha pouco espaço para a deferência à autoridade. O que foi ainda mais importante: pela primeira vez na história ocidental, um movimento político teve acesso a esta máquina inestimável: a prensa tipográfica. O fato de que os Niveladores podiam usar a palavra impressa para divulgar suas crenças e argumentos os torna, de modo comprovável, os fundadores da democracia moderna, dirigindo-se não apenas a seu círculo imediato ou à elite instruída, mas às pessoas comuns (pelo menos às que sabiam ler ou conheciam alguém que soubesse). John Milton escreveu: “Pois os livros não são, de modo algum, coisas mortas, mas contêm uma força vital que os torna tão ativos quanto a alma que os gerou.” Foi a combinação do Exército Novo meritocrático com o ativismo dos Niveladores que levou a Inglaterra às margens da democracia. Na primavera de 1647, o país se encontrava numa situação nova e estranha. O Exército dos escoceses recuara de forma pacífica para o norte da fronteira, o rei estava em prisão domiciliar e os Exércitos parlamentares, sob controle inquestionável. O que deveria ou poderia ocorrer em seguida foi ditado por suas questões importantes. Em primeiro lugar, o rei, ainda que numa condição aparentemente irrecuperável, recusou-se a negociar com o Parlamento a respeito de qualquer assunto fundamental, insistindo em seu direito de ser levado a Londres e de retomar o trono. Quanto mais o rei demorava, menos popular o governo parlamentar se tornava — impostos, o impacto de seus Exércitos (alojado com frequência na casa de civis) e as restrições de seus comitês nos condados, tudo isso colocava o país contra o Parlamento. A segunda questão era o Exército Novo, agora uma força dominante na Inglaterra. Em 1647, o Parlamento devia 2,8 milhões de libras a seus soldados. A Câmara dos Lordes bloqueou o pagamento das tropas de forma explícita para forçar o licenciamento do Exército Novo. O Exército se recusou, exigindo não apenas o pagamento retroativo, mas uma indenização em caso de futuras acusações de traição, caso o rei recuperasse o trono. Em consequência, no início de 1647, havia Exércitos amotinados por toda a Inglaterra e o País de Gales. Soldados sequestraram seus superiores, coletores de impostos, membros de comitês de condados e outros oficiais do governo, geralmente exigindo pagamento de resgate. Com maior frequência, tropas recusavam-se a deixar os alojamentos, descumprindo ordens. Na primavera, esses soldados descontentes estavam acampados nos condados de Oxford, Warwick, Leicester, Buckingham, Hertford e Northampton, aguardando os desdobramentos em Londres. Nessas duas questões — o rei e o Exército — a Câmara dos Comuns permaneceu profundamente dividida entre presbiterianos, ávidos para chegarem a um acordo com o rei e dispensarem o Exército, e radicais agora conhecidos como Independentes. Esses incluíam oficiais de altas patentes do Exército Novo, como Oliver Cromwell e seu genro, Henry Ireton, que queria o ressarcimento total para o Exército e que o rei fosse forçado a aceitar um papel restrito no governo do país. O poder relativo de cada um dos lados aumentou e diminuiu ao longo desse ano crucial, com um depois do outro obtendo a vantagem no Parlamento. Cada um também fez alianças com defensores no país — os presbiterianos com os escoceses e as milícias londrinas, e os Independentes com grupos como os Niveladores, que tinham adeptos dentro e fora do Exército. A aliança decisiva, no entanto, se deu entre os Independentes e o Exército Novo, uma vez que, na prática, foi a força de 21 mil homens armados reunidos por Londres que controlou o reino. Para muitos soldados e oficiais, o presbiterianismo, religião aparentemente calvinista, havia agora se tornado o credo da ordem estabelecida — um sentimento intensificado pela tentativa de forçar todos os soldados a cumprirem um Pacto Presbiteriano. A maioria dos soldados era tolerante quanto a diferentes seitas e acreditava que o Estado não deveria interferir na fé pessoal. A atmosfera na capital durante o verão de 1647 era febril, com o Parlamento dividido, o rei preso, o Exército se recusando a agir e soldados descontentes de regimentos monarquistas e parlamentares dispensados vagando pelas ruas. Porém o espírito político começava a mudar. O rei se tornava uma figura favorável para muitos, enquanto relatos de soldados sectários interrompendo cerimônias presbiterianas de forma violenta começavam a se espalhar. Do outro lado, a recusa constante do Parlamento em fazer os pagamentos e a questão do ressarcimento politizavam o Exército — os soldados acreditavam que só poderiam ganhar a causa com a substituição doParlamento. Os soldados do Exército deram início a um processo que podemos descrever de forma legítima como a criação de uma instituição democrática. Os oito regimentos da cavalaria com base na Ânglia Oriental elegeram dois representantes e, em carta a Fairfax em 28 de abril, apresentaram razões para a recusa das tropas em ir à Irlanda, onde uma rebelião católica estava sendo preparada, descrevendo a ação como “um plano para arruinar e fazer esse Exército em pedaços”. Também alertaram que o apoio de seus oficiais era esperado, e que qualquer um que não o fizesse seria “um traidor de seu país e inimigo de seu Exército”.6 Além de demonstrarem mais uma vez o descontentamento quanto a pagamentos e indenizações, exigiram que os membros do Parlamento que criticaram o Exército fossem punidos. No início de maio, outros regimentos seguiram o exemplo da cavalaria da Ânglia Oriental e elegeram agitadores para representá-los. Esse sistema foi formalizado pela nomeação de números iguais de soldados representantes e oficiais ao Conselho Geral do Exército, que se reuniu pela primeira vez em julho de 1647. Cada regimento tinha seu conselho de agitadores, que então escolhia dois representantes dentre os seus membros para o conselho do Exército. Soldados rasos com voz legítima nos conselhos superiores do Exército eram algo inédito, mas que foi aceito de acordo com o Compromisso Solene do Exército no início de junho de 1647. Encontramos aqui dois dos elementos-chave da democracia: primeiro, o reconhecimento de que o soldado comum tinha o direito de ser ouvido; e segundo, que o processo de eleger representantes para falarem em nome de outros homens era um modo legítimo e efetivo de transmitir opiniões e preocupações. As implicações mais abrangentes também foram percebidas pelos soldados, que entendiam que seu Exército democrático se encontrava em notável contraste com um Parlamento composto pelos ricos, não eleitos, que haviam simplesmente decidido assumir o direito de representar seus compatriotas. Muitos dos representantes, agitadores e oficiais do Exército Novo, foram recompensados com promoções, ao passo que os oficiais presbiterianos eram repelidos. No entanto, enquanto o Exército mantinha o poder em campo, os presbiterianos conservadores eram a maioria no Parlamento. As mudanças foram abaladas de forma dramática com a captura do rei em 1º de junho de 1647 por uma cavalaria comandada por Cornet George Joyce, provavelmente agindo sob ordens secretas de Oliver Cromwell. Parece plausível que os Independentes tenham descoberto uma conspiração de presbiterianos no Parlamento para levar o rei à Escócia e retornar com ele no comando de um Exército escocês e tenham agido para evitar que isso fosse realizado. O próximo passo decisivo foi tomado no dia 14 de junho, quando o conselho de guerra do Exército, liderado por Fairfax, declarou que eles não eram um Exército mercenário contratado para fazer o que o Estado mandasse, mas eram “convocados e incitados por diversas declarações do Parlamento a defenderem os direitos justos e liberdades de nosso próprio povo”.7 Isso fez do Exército uma força abertamente política. A captura do rei colocou as tropas no controle total dos eventos. A maioria do Parlamento abandonou a liderança presbiteriana e buscou a reconciliação com o Exército Novo. Regimentos foram reunidos em Newmarket nos dias 4 e 5 de junho num evento que aumentou seu senso de unidade e a crença de que seu destino — e o do país — estava em suas próprias mãos. No conselho do Exército de 16 de julho, oficiais superiores apresentaram um documento para o governo do reino, conhecido como “Heads of the Proposals”. Redigido por Henry Ireton, o documento dava concessões notáveis ao rei, incluindo a retomada do controle do Exército por ele dez anos depois, permitindo que os bispos permanecessem e que o Livro de Oração Comum fosse usado, embora não de forma compulsória. O rei se recusou a aceitar as propostas; no entanto, em 2 de agosto, o documento foi publicado como o projeto do Exército para o futuro do reino. Enquanto isso, em 26 de julho, uma multidão de presbiterianos e monarquistas deu um último lance de dados: invadiu a Câmara do Parlamento, exigindo o retorno do rei e a renomeação do antigo conselho presbiteriano para supervisionar a milícia londrina. Os membros do Parlamento resistiram à pressão da multidão por cinco horas, até que um grupo de aprendizes invadiu o salão e forçou os membros do Parlamento a ordenarem a volta do rei para Londres. O incidente deu ao Exército um pretexto para ocupar a capital. Cinquenta e sete membros do Parlamento da ala dos Independentes fugiram para a segurança do quartel-general de Fairfax, enquanto os membros que permaneceram declararam que o comando dele não se estendia às milícias de Londres. No dia 28 de julho, Fairfax anunciou que o Exército marcharia pela cidade para escoltar os membros do Parlamento até seus lugares e para restabelecer a liberdade do Parlamento. Houve algumas tentativas de reação por parte do povo de Londres, mas quando, em 4 de agosto, 4 mil tropas do Exército Novo entraram em Southwark, a realidade da situação causou impacto. No dia seguinte, Londres estava segura, e Fairfax conseguiu escoltar o Orador e os Independentes de volta ao Parlamento. No dia 7 de agosto, houve um desfile de vinte regimentos no Hyde Park, seguido por uma marcha unificada, com tropas desarmadas passando por todas as ruas de Londres. Depois de demonstrarem ser os salvadores e não os inimigos do povo, as tropas deixaram a cidade e acamparam nos arredores. Oficiais de alta patente montaram um quartel- general em Putney, a oito quilômetros de Westminster. Apesar dessa vitória sobre os presbiterianos, o moral do Exército e sua popularidade começaram a diminuir. O povo queria se ver livre dos impostos e do fardo de alojar o Exército. O Exército queria compensação total, mas o pagamento das tropas não era mais suficiente para aliviar a crise crescente: o Exército politizado queria mudanças políticas. Ninguém era capaz de encontrar uma solução para os problemas do país que não envolvesse o rei, e Carlos estava muito ciente de ser indispensável. Era de seu interesse, pelo menos ele acreditava ser, prolongar todas as negociações, enquanto aguardava auxílio da França ou Escócia. Ao fim do verão e início do outono, o Parlamento e o Exército estavam desesperados por uma solução. No início de outubro, as negociações com o rei foram retomadas pelo Exército, com a oferta de mais cláusulas favoráveis e a autorização para que ele formasse um conselho de monarquistas em Hampton Court.8 No dia 9 de outubro, foi publicado um documento inspirado nos Niveladores, “The Case of the Armie Truly Stated” (A Versão Verdadeira da Posição do Exército), apresentado a Fairfax no Conselho Geral do Exército no dia 18 de outubro. Apesar de inicialmente ter recebido com hostilidade o que considerou um panfleto subversivo, o conselho decidiu que o documento deveria ser debatido na reunião do conselho geral, em 28 de outubro, convidando os proponentes e seus defensores civis a participarem. Esse, então, foi o contexto de um dos episódios mais celebrados da história da democracia — os Debates de Putney.9 O “Heads of the Proposals” continuou sendo o projeto oficial do Exército para o futuro do reino, enquanto um documento conhecido como “An Agreement of the People” (Um Acordo do Povo), que na verdade era a essência de “The Case of the Armie”, tornou-se o centro da discussão na Igreja da Virgem Maria, em Putney. Cromwellconduziu o debate de abertura em 28 de outubro na ausência de Fairfax, que estava doente. O orador principal do comando superior do Exército foi Henry Ireton, que redigira o “Heads of the Proposals”. O outro lado foi representado pelo coronel Edward Sexby, um Nivelador e agitador eleito, Robert Everard, conhecido como Agente Novo, também representando seu regimento, e o coronel Thomas Rainborough, antigo adversário de Cromwell.10 Os agitadores também levaram os civis John Wildman e Maximilian Petty. Edward Sexby apresentou os representantes que defendiam o “The Case of the Armie” e começou com um ataque impetuoso ao rei e a todos aqueles que buscavam um acordo com ele, incluindo o Parlamento e, pelo menos de forma implícita, Cromwell e Ireton: A causa de nosso pesar está baseada em duas coisas. Almejamos satisfazer a todos os homens, e não houve problemas; mas ao partirmos para a ação desagradamos a todos os homens. Nós nos esforçamos para agradar a um rei e, penso eu, a não ser que cortemos todas as nossas gargantas, não lhe agradaremos. E já apoiamos uma casa de pregos podres — refiro-me ao Parlamento, que consiste em um grupo de membros podres. O restante do primeiro dia foi tomado por questões práticas, e parece que Cromwell desejava arrastar os procedimentos o máximo possível, enquanto os agitadores estavam ávidos para chegar a um acordo. No segundo dia, 29 de outubro, Robert Everard leu o “Acordo do Povo”. Havia quatro propostas, e a primeira merece ser citada na íntegra: Que o povo da Inglaterra, estando neste dia distribuído de modo muito desigual por condados, cidades e distritos para a eleição de seus representantes no Parlamento, deve ser dividido com mais imparcialidade, de acordo com o número de habitantes: circunstâncias essas que, por quantidade, local e modo, devem ser estabelecidas antes do fim do presente Parlamento. O documento também propunha que o Parlamento deveria ser dissolvido no último dia de setembro de 1648 e que novos parlamentos fossem eleitos a cada dois anos, tendo o povo como autoridade soberana sobre o Parlamento, não o contrário. Havia também uma lista dos aspectos da vida política que o Parlamento não poderia alterar — em essência, uma carta de direitos que incluía liberdade religiosa, o direito de recusar o serviço militar, isenção de perseguição por atos cometidos durante a guerra civil, uma exigência de que todas as leis fossem aplicadas igualmente a todos os cidadãos e que nenhuma lei deveria apresentar “destruição evidente à segurança e ao bem-estar do povo”. Henry Ireton desferiu então um ataque contra a primeira cláusula, argumentando que a exigência de distribuição de posições parlamentares “de acordo com o número de habitantes” implicava a cidadania masculina universal. “Isso me faz pensar”, declarou, “que o significado é que todo homem que seja habitante deva ser considerado igualmente e deva ter igual influência nas eleições dos representantes [...] e, se esse for o significado, tenho algo a dizer contra isso.” Ireton declarou que essa medida ia contra “a Constituição civil de seu reino, que é original e fundamental”, e que os eleitores existentes, sujeitos a qualificações de acordo com seus bens, deveriam permanecer assim. Esse foi o momento em que a questão da democracia entrou em debate aberto. A resposta de Maximilian Petty foi curta e direta: “Julgamos que todos os habitantes que não perderam seu direito de nascença devem ter voz igual nas eleições.” Em seguida, Thomas Rainborough apresentou as razões pelas quais todos os homens deveriam ter permissão para participar: Pois eu penso de fato que o homem mais pobre que existe na Inglaterra tem uma vida a ser vivida, assim como o homem mais grandioso. E, portanto, realmente, senhor, penso estar claro que todo homem que viva sob um governo deve, primeiro, por seu próprio consentimento, colocar a si mesmo sob tal governo. E penso que o homem mais pobre da Inglaterra não está de forma alguma obrigado, em sentido estrito, a ter um governo em cuja eleição ele não pôde se expressar. Rainborough chegara à conclusão natural da crença numa consciência cristã individual e não encontrou nada na Bíblia que a contradissesse: “Não encontro nada na lei de Deus que diga que um lorde deva escolher vinte burgueses, um cavaleiro deva escolher apenas dois e um homem pobre, nenhum. Não encontro nada disso na lei da natureza ou na lei das nações.” Em resposta, Ireton argumentou que apenas um homem de posses tinha verdadeiro interesse no reino, uma vez que sua própria fortuna estava amarrada ao reino — ele tinha um “interesse fixo e permanente” —, e, ainda que houvesse um direito natural de viver na Inglaterra não havia nenhum direito natural ao voto. Além disso, se aqueles que não possuíam bens estivessem no poder, simplesmente votariam para que toda a riqueza fosse tirada dos que a possuíam: Todos concordamos que as pessoas devem ter um representante no governo, mas que esse representante seja tão igual quanto possível. A questão, porém, é: essa distribuição pode ser feita igualmente entre todas as pessoas ou entre os iguais que possuem em si o interesse da Inglaterra? Edward Sexby acusou Ireton de sugerir que os homens iriam contra os mandamentos de Deus, roubando terras que não fossem suas, e, quanto aos privilégios, Rainborough perguntou: “Eu gostaria de saber para que o soldado lutou todo esse tempo. Ele lutou para se escravizar, para dar poder a homens ricos.” John Wildman viu no medo da anarquia um desvio da questão real: “Em vez de analisarmos a primeira proposta e indagarmos o que é justo, entendo que estamos nos voltando para profecias e para as quais pode ser o resultado, julgando a justiça da coisa por meio de sua consequência. Desejo que possamos retornar à questão do que é ou não correto.” As propostas deveriam ser julgadas por sua justiça, não por uma estimativa de seus possíveis resultados. No entanto, eram as consequências o que mais importava para Cromwell e Ireton. Ainda que as palavras de Rainborough, Petty, Sexby, Wildman e outros agitadores parecessem excêntricas para a época, elas refletiam e inspiravam as crenças e esperanças que eram difundidas na Inglaterra. Em relação às inúmeras discussões públicas realizadas (e os panfletos e cartazes produzidos) durante as décadas revolucionárias do século XVII, o historiador Christopher Hill comentou: “A eloquência, a força dos simples artesãos que participaram dessas discussões é espantosa.”11 Ele citou com aprovação John Milton, que escreveu sobre “a nação nobre e potente, que desperta como um homem forte após o sono e balança os cabelos invencíveis [...] uma nação que não é lenta e embotada, mas de espírito rápido, engenhoso e penetrante, perspicaz para inventar, sutil e vigorosa para discursar, não ficando abaixo de qualquer ponto que a mais alta capacidade humana pode alcançar”. Os Debates de Putney duraram até 11 de novembro, embora tenham sido registrados por três dias no total. Como parecia haver poucas chances de consenso no fórum aberto, Cromwell formou um comitê para delinear um acordo a partir das discussões. Esse documento refletiu um número surpreendente das propostas do “Acordo do Povo” original, incluindo a de que o atual Parlamento deveria ser dissolvido antes de setembro de 1648, e as eleições, realizadas a cada dois anos a partir de então, com o Parlamento em sessão por seis meses. Ao propor que o governo fosse conduzido com um conselho de Estado, o documento pressupunha que a monarquia e a Câmara dos Lordes continuariam,mas com o poder residindo na Câmara dos Comuns. Além disso, dois assuntos cruciais foram abordados. Primeiro, foi decidido que as liberdades religiosas, o serviço militar obrigatório e a isenção de punição por atos de guerra permaneceriam fora do alcance do novo Parlamento, dando uma clara indicação de que essas questões tinham de ser resolvidas antes de setembro de 1648. Essa foi uma vitória notável das tropas e dos Niveladores. Segundo, o documento propunha que o próprio Parlamento deveria decidir sobre as qualificações para votar, mas que todos os que tinham dado alguma contribuição na guerra e todos os que entraram para o Exército antes da Batalha de Naseby tinham permissão para votar, ao passo que aqueles que haviam lutado contra o Parlamento deveriam perder privilégios até o terceiro Parlamento eleito. Os dízimos também deveriam ser substituídos por um sistema mais justo de imposto a ser determinado. Os agitadores e Niveladores em Putney foram o primeiro grupo da história a defender o governo representativo em um Estado nacional, uma Constituição por escrito para proteger os cidadãos contra o Estado e a definir certos direitos universais: o direito ao silêncio (em resistência ao uso frequente da tortura), o direito à representação legal, a liberdade de consciência e debate, a igualdade perante a lei, o direito de votar e o direito de remover tiranos. Nenhuma dessas exigências havia sido reconhecida anteriormente por um governo nacional. No entanto, as relações entre os agitadores e os oficiais de alta patente começaram a enfraquecer logo após os debates. Os Niveladores no conselho começaram a ficar impacientes com a atitude pouco branda dos oficiais com o rei e a Câmara dos Lordes. Ao mesmo tempo, Cromwell fazia manobras para negar o poder aos agitadores. Dois elementos se combinaram para a derrota do propósito dos Niveladores. O primeiro foi a percepção, por parte de Cromwell e Fairfax, de que as ideias dos Niveladores, os quais eles antes consideravam uma influência menor que poderia ser contornada sem dificuldades, infiltraram-se de forma abrangente nas bases e no comando do Exército — isso ficou claro durante os debates. Ainda que permitissem a elaboração de um acordo solidário, eles agiram rapidamente para tolher o poder crescente dos agitadores e de seus companheiros Niveladores. Os agitadores solicitaram uma reunião de todos os regimentos do Exército para a confirmação do novo acordo, mas os oficiais de alta patente viram o perigo que isso representava para a unidade do Exército. Na reunião seguinte do Conselho Geral, agora com a condução de Fairfax, Cromwell declarou que a cidadania masculina universal era uma receita para a anarquia e ordenou que os agitadores voltassem a seus regimentos. Com o objetivo de impulsionar seus defensores que ainda hesitavam, Fairfax revelou que exigira da Câmara dos Comuns um aumento nos fundos mensais do Exército de 60 mil para 100 mil libras e a reserva de terras de bispos e decanos para o pagamento de salários atrasados dos soldados. O outro elemento que acabou com qualquer esperança de uma Inglaterra democrática foi a retomada de guerra incitada pela fuga do rei. No dia 11 de novembro de 1647, Carlos escapou de Hampton Court com a intenção de chegar à França, mas na Ilha de Wight foi detido pelo governador e levado ao Castelo de Carisbrooke. O Parlamento enviou a ele outro conjunto de propostas (chamado “Four Bills”) com instruções para que o assinasse. O documento exigia que ele abrisse mão da autoridade sobre o Exército e a Marinha por vinte anos, buscasse a aprovação do Parlamento para qualquer ação militar, concedesse os direitos do Parlamento de se reunir sempre que desejasse e anulasse todas as honras concedidas por ele desde o início do conflito. Mas ele também recebeu delegações dos escoceses que temiam a tomada de poder na Inglaterra por um grupo radical. Carlos assinou um acordo de compromisso com os escoceses, em 26 de dezembro, e contou, pela última vez, com uma invasão à Inglaterra. Enquanto isso, ocorriam rebeliões no sul e oeste, em Kent e Essex. A maior parte delas era contra o Parlamento, mais do que a favor do rei, ainda que essa diferenciação começasse a se perder. No próprio Exército Novo, os Niveladores atiçavam o fogo da rebelião. Num encontro do Exército em Ware, Hertfordshire, em 15 de novembro, apenas quatro dias após a fuga do rei, o coronel Rainborough (não mais oficial do Exército e, portanto, não autorizado a estar presente) entregou a Fairfax uma solicitação para que o “Acordo do Povo” fosse posto em prática por completo. Fairfax ordenou que ele deixasse o campo, mas um desafio mais sério se deu com a chegada do regimento do coronel Thomas Harrison, sem oficiais e liderado pelo agitador Joseph Aleyn. Eles também não tinham o direito de participar do encontro e usavam cópias do acordo presas aos chapéus. Uma reprimenda por parte de Fairfax e a óbvia recusa de outros regimentos a se juntarem à rebelião restabeleceram a ordem. As tropas haviam expressado suas opiniões, mas faziam parte de um Exército e juraram obediência. Fairfax disse a cada regimento que os agentes e agitadores haviam combinado com elementos externos que dividiriam o Exército contra si mesmo. Em seguida, pediu que fosse lida a sua declaração das solicitações do Exército para si próprio e para o país. Estavam inclusos ajustes de pagamento e compensação, e parlamentos com duração fixa escolhidos por eleições livres. Fairfax estava ganhando o controle da situação quando o regimento de Robert Lilburne entrou em campo, depois de uma rebelião aberta contra seus oficiais nos últimos dezoito dias. Eles também usavam cópias do acordo presas aos chapéus e não foram intimidados com tanta facilidade; somente quando Cromwell e outros oficiais passaram montados entre os soldados com espadas em punho, os homens começaram a entrar em ordem. Fairfax conduziu um julgamento em corte marcial de diversos líderes de grupos rebeldes e condenou-os à morte. Em seguida, adiou a punição e selecionou apenas três para tirarem um sorteio; o perdedor foi executado diante do regimento pelos outros dois. Esse foi o fim simbólico e brutal de uma rebelião nascente e o fim de qualquer chance de dominação da política inglesa por parte dos Niveladores. Outros encontros em Watford e Kingston foram harmoniosos e, nos primeiros meses de 1648, o Exército Novo foi reduzido à metade, com a expulsão dos radicais e a diminuição de regimentos importunos. Insurreições armadas em partes da Inglaterra e do País de Gales e a intervenção do Exército escocês provocaram o que ficou conhecido como a Segunda Guerra Civil Inglesa. O Parlamento foi muito mais implacável com os envolvidos nessa guerra. Após a Batalha de Preston (agosto de 1648), em que Cromwell derrotou os escoceses, e os cercos em Pembroke (julho) e Colchester (agosto), líderes monarquistas foram enforcados. Em setembro, com todas as rebeliões dominadas, uma delegação foi enviada mais uma vez para negociar com o rei. Exasperado com a intransigência de Carlos, Henry Ireton convenceu Fairfax a abandonar o diálogo e impor as propostas do Exército. O rei foi transferido para o Castelo de Hurst e, em 6 de dezembro, Ireton excluiu todos os membros do Parlamento que ainda eram a favor de negociações com o rei. Os que restaram — o Parlamento Remanescente — aprovaram uma ordenação em 1º de janeiro de 1649 para o estabelecimento de uma Corte Suprema que julgasse o rei. Carlos recusou-se a responder às acusações contra ele,argumentando que não havia autoridade acima do rei e que a corte não tinha direito de julgá-lo. A acusação, por meio do juiz supremo John Bradshaw, declarou que a autoridade máxima no país era a do povo: “Senhor, assim como a lei é superior ao senhor, então, de fato, existe algo superior à lei e que realmente é o genitor ou autor da lei — e esse é o povo da Inglaterra.”12 O Parlamento Remanescente acreditava que, enquanto vivesse, Carlos seria um perigo para a estabilidade do país, e tinha de ser executado. No entanto, a corte parlamentar precisava mostrar os fundamentos de sua autoridade. Assim, a crise da década de 1640 viu o início da filosofia política moderna, que levou à publicação do Leviatã, de Thomas Hobbes. O livro propunha a ideia da sociedade funcionando por meio de um contrato social entre governantes e governados, que se tornou a resposta dos filósofos à questão da legitimidade e de como a sociedade deveria ser governada. O contrato social seria retomado de formas diferentes por John Locke e Jean-Jacques Rousseau, as quais influenciaram diretamente os ativistas políticos durante a Revolução Francesa. No dia 26 de janeiro de 1649, Carlos foi acusado de ser “um tirano, traidor e assassino” por um tribunal que recorreu à autoridade do “povo da Inglaterra”. Quatro dias depois, ele foi executado em frente à Mansion House. Houve outras rebeliões dos Niveladores em abril e maio, reprimidas por Fairfax, cada vez mais desiludido. Agora Cromwell e Ireton é que controlavam os acontecimentos. Cromwell liderou uma expedição militar à Irlanda para reprimir uma rebelião católica em 1649 e, como chefe do Exército, invadiu a Escócia em 1650 e 1651. Quando voltou a Londres, o Parlamento Remanescente estava em desacordo quanto a uma série de medidas cruciais sobre dissolução e eleições. Cromwell ficou exasperado com essa indecisão e, em 20 de abril de 1653, obrigou o Parlamento a se desfazer e tomou o controle efetivo do país. Seu Protetorado durou até 1658. Em 1657, o Parlamento ofereceu-lhe a Coroa, mas, após refletir intensamente, recusou: “Eu não tentaria restabelecer aquilo que a Providência destruiu e deixou para trás, e eu não construiria Jericó novamente.” Após a sua morte, em 1658, seu filho, Richard, foi seu sucessor, mas, com pouco apoio, foi forçado a renunciar em maio de 1659. Quando a monarquia foi restabelecida em 1660, o Parlamento foi capaz de exercer o controle que almejara nos reinados dos Stuart. Foi o Parlamento que convidou Carlos II a assumir o trono e, quando seu sucessor, Jaime II, recusou-se a aceitar seu controle, o Parlamento demonstrou que tinha o poder máximo no reino depondo o rei e convidando Guilherme de Orange para ocupar o trono. As condições impostas à monarquia pelo Parlamento, apresentadas na Carta de Direitos Inglesa de 1689, o Ato Trienal de 1694 e o Ato de Sucessão de 1701-02 foram contemporâneos da fundação de uma monarquia constitucional e da Constituição “equilibrada” de forma notória, em que comuns, lordes e monarca, todos faziam seu papel. A estabilidade política da Grã-Bretanha e seu êxito no cenário internacional nos séculos XVIII e XIX foram atribuídos a esse “Estado ideal”, mas seria difícil afirmar que esse era um passo em direção à democracia. A democracia, arrancada dos soldados no campo de Batalha em Ware, transformou-se num palavrão — todas as reformas subsequentes na Grã-Bretanha foram introduzidas devido ao fato de manterem a democracia a distância. Foi apenas na década de 1880 que a palavra voltou a ser usada com sentido favorável. A Revolução Gloriosa, de 1688-89, tornou-se o mito de fundação do constitucionalismo inglês, e nessa ideologia é o Parlamento, e não o povo, que é soberano. Na verdade, a soberania está na “Coroa no Parlamento”, um termo conveniente em sua grandiosidade e intencionalmente vago que permite ao monarca deter certos poderes, entregando o governo do país ao Parlamento. Os poderes da Coroa tornaram-se aos poucos mais cerimoniais, mas permanece até hoje a possibilidade de intervenção do monarca num momento de crise política ou constitucional para recuperar a estabilidade. Depois de 1700, muitos europeus começaram a perceber que os parlamentos tinham grande potencial enquanto instrumentos de governo, e isso se deu, em grande parte, devido ao exemplo da Grã-Bretanha. A expansão imperial do país, facilitada por uma Marinha extraordinariamente bem- organizada e bem-sucedida (o equivalente moderno do Exército romano), seguida pela Revolução Industrial, deu ao país enorme êxito econômico em casa e no exterior. Sua Constituição e a estabilidade política que ela proporcionou foram um ótimo exemplo tanto para aqueles que, como Voltaire, defendiam que a condição de uma nação não dependia de monarcas autocratas quanto para aqueles que buscavam a liberdade para o indivíduo. Se a Constituição britânica e o poder da nação tinham uma relação causal, é difícil determinar. O que está claro é que a Grã-Bretanha tornou-se uma sociedade mais aberta do que a maioria de suas vizinhas europeias. Porém, um exame mais detalhado da política eleitoral na Grã-Bretanha do século XVIII revela um grau alarmante de nepotismo, corrupção e ações em interesse próprio, com algumas limitações e inspeções formais. Um posto no Parlamento era concedido por conexões familiares ou pelo suborno do pequeno número de votantes de um círculo eleitoral. Uma vez eleitos, os membros do Parlamento, em sua maioria, tinham pouca participação, e o país era governado de fato por uma panelinha de pessoas eminentes, a maior parte da Câmara dos Lordes, e que, portanto, nem sequer correspondiam aos supostos representantes do povo. Dos 24 primeiros-ministros que atuaram entre 1721 e o Ato de Reforma de 1832, dezesseis eram membros da Câmara dos Lordes. O distrito de Scarborough, descrito com frequência pelo historiador Jack Binns, oferece uma história típica: “Entre 1715 e 1831, houve 36 eleições e eleições complementares no distrito de Scarborough, porém apenas sete delas foram disputadas [...] o governo central exercia controle sobre pelo menos uma e, muitas vezes, ambas as vagas do eleitorado.” Porém, mesmo quando as eleições eram disputadas, a política tinha pouca importância e “as rivalidades pessoais e familiares eram mais relevantes [...] um candidato independente de fato era algo muito excepcional.” Na década de 1760, lorde Granby, comandante supremo do Exército, venceu as eleições com sólido apoio do governo. Em 1768, ele indicou o filho ilegítimo, George Manners, que ganhou as eleições por 29 votos contra 24, e o cargo permaneceu na família pelos sessenta anos seguintes.13 Ainda que questões nacionais, como guerra e religião, tivessem efeito, muitas eleições era disputadas com base em questões locais, com candidatos prometendo recompensas financeiras para ganhar apoio. Apesar de tudo isso, as eleições envolviam mais do que apenas candidatos indignos e eleitores corruptos. As campanhas mobilizavam grande parte da população, e os candidatos se apresentavam diante do povo. Em muitos lugares, formava-se um festival completo, com estandartes, florões e brigadas de partidários. Os que não tinham direito ao voto participavam da diversão e tinham a chance de repreender ou aplaudir os candidatos. Os candidatos faziam uma entrada grandiosa no dia da eleição, e quando o resultado era divulgado, havia festas e fogueiras, danças e bebidas. Era a política como entretenimento. Na Europa do século XVIII, os políticos vinham de uma faixa social restrita — situaçãoque durou até meados do século XX. A Câmara dos Comuns era um exemplo típico: filhos de colegas e membros da gentry [pequena e média nobreza rural aburguesada] dominavam, e defender os interesses da família era tão importante quanto a política de partidos. Eram cavalheiros com interesse nos assuntos da nação, mas com um interesse maior nos seus próprios. Os eleitores eram da gentry também: na Grã-Bretanha, em 1800, havia 350 mil eleitores numa população total de 10 milhões. Os estudos inovadores de Lewis Namier a respeito do Parlamento no século XVIII revelaram que a política britânica era formada por uma pequena elite, com relações de parentesco entre todos os membros. No entanto, esse século também testemunhou o crescimento econômico que trouxe prosperidade, educação e consciência política. Em algumas partes da Europa, como Escócia, Províncias Unidas, Suécia, Bélgica e norte da França, quase 100% dos homens eram alfabetizados em 1800. Isso, juntamente com as mudanças nas leis de impostos, levou a um aumento súbito nas vendas de jornais, periódicos e livros. A Grã-Bretanha estava mais uma vez à frente, com 2,5 milhões de jornais vendidos em 1713 e 12,6 milhões em 1775. Em 1789, os estados alemães do Sacro Império Romano tinham duzentos jornais, que eram lidos por 3 milhões de pessoas. Os jornais holandeses eram lidos na França, onde os jornais foram proibidos. Após a deflagração da Revolução Francesa, em 1789, cem jornais surgiram imediatamente. A leitura de jornais era muito maior do que sugerem as tiragens, uma vez que as salas de leitura, cafés, hospedarias, sociedades literárias, academias e bares compravam exemplares. A política estendeu seu alcance a uma parte ainda maior da população. Os impulsos democráticos dos Niveladores, atuando por meio do Exército Novo, não alcançaram êxito. A herança deixada pelo conflito que se alastrou pelas Ilhas Britânicas na década de 1640 foi uma negação da democracia em favor de um Parlamento composto pelos ricos e bem-relacionados, controlados por uma pequena elite. A suposição de que o Parlamento falava pelo povo não era mais válida do que a dos antigos parlamentos medievais, e suas práticas eleitorais eram certamente questionáveis. Todavia, durante o século seguinte, a prática das eleições estabeleceu-se com firmeza na Grã-Bretanha e em outras partes da Europa, em que a política passou a fazer parte do discurso público. E, quando uma parte cada vez maior da população britânica adquiriu poder econômico por meio da organização de trabalhadores industriais no fim do século XIX, ela finalmente ganhou acesso ao poder político por meio das eleições ao Parlamento — o mesmo Parlamento que rejeitara as propostas democráticas de seus ancestrais. Ninguém tinha conhecimento das transcrições dos Debates de Putney até a sua descoberta num arquivo de Oxford em 1890. A geração que redescobriu os Niveladores seria a primeira a presenciar a chegada de uma democracia plena à Grã-Bretanha. A 6 DEMOCRACIA NA AMÉRICA O Cidadão Eleitor democracia teve uma vida instável nas cidades europeias no fim do período medieval, nos vales dos Alpes e nas bases do Exército Novo. Por mais importantes que esses fenômenos tenham sido na história da democracia, eles parecem pequenos diante da extraordinária história política que veio em seguida nos Estados Unidos da América. Enquanto os cidadãos europeus ficavam defasados em relação a Estados cada vez mais poderosos, os Estados Unidos estabeleciam uma democracia numa escala jamais vista até então. O novo sistema não apenas foi mantido por mais tempo do que em todos os outros Estados democráticos, como, em seus primeiros setenta anos, aproximadamente, os Estados Unidos inventaram e efetivaram uma série de práticas e princípios democráticos que fornece um modelo ao mundo. Na década de 1840, todo cidadão adulto, branco, do sexo masculino tinha o direito de votar em eleições estaduais e federais; quase todos os oficiais públicos importantes eram eleitos; uma série de instituições nacionais foi estabelecida para proteger o cidadão do poder do Estado e da potencial “tirania da maioria”; órgãos de nível nacional, regional e local controlavam e limitavam a autoridade do Estado federal; surgiram partidos políticos que não apenas arrecadavam fundos para campanhas eleitorais como estimulavam a participação e a cultura política de engajamento das massas; e foi estabelecido o difícil conceito de oposição leal. A história de como isso se deu é muitas vezes deixada de lado em favor da retórica grandiosa de Thomas Jefferson e John Adams, mas a prática veio muito antes da teoria. Neste capítulo, examinaremos primeiro as raízes da democracia nas colônias americanas: as igrejas puritanas e os antigos distritos ingleses. Nenhum dos dois fez da democracia algo inevitável, mas sem eles ela não existiria. O navio Mayflower zarpou de Plymouth em setembro de 1620, rumo à área do rio Hudson, mas foi desviado para o norte e atracou no cabo Cod, Massachusetts. Apesar de se depararem com o rigoroso inverno setentrional, os passageiros puritanos acreditavam que tinham vindo para criar uma comunidade na qual a vontade de Deus poderia ser praticada — para construírem, nas palavras posteriores de John Winthrop, “uma cidade sobre um monte”. Os puritanos haviam escapado da perseguição religiosa na Inglaterra e buscavam um lugar mais próximo de Deus. No entanto, apesar do status mítico do Mayflower, a costa leste já havia sido colonizada por europeus. A colônia inglesa de Jamestown, na Virgínia, fundada em 1607, foi uma iniciativa mercantil, com uma população de comerciantes, artesãos e servos por contrato que buscavam sua liberdade.1 Dois importantes padrões da vida americana foram estabelecidos desde o início — os individualistas aventureiros da Virgínia e as comunidades puritanas de Massachusetts. Embora houvesse colonizadores holandeses, espanhóis, suecos, dinamarqueses, finlandeses, alemães e franceses na América do Norte, o número de imigrantes da Grã-Bretanha seria predominante e decisivo. Após o começo incerto e de brutal adversidade — quase metade dos passageiros do Mayflower não sobreviveu ao primeiro inverno —, 18 mil puritanos cruzaram o Atlântico em 1642, e, em 1700, havia 100 mil vivendo na Nova Inglaterra. Imigrações posteriores incluíram outras seitas, como a numerosa colônia quacre na Pensilvânia, estendendo-se a oeste, do litoral até os Apalaches. Apesar da presença de diferentes grupos religiosos, as primeiras colônias eram dominadas por protestantes não conformistas. Em quase todos os casos, eles tinham uma crença fervorosa na comunidade da igreja e no valor individual de cada membro. O modo como essas igrejas eram administradas é vital porque, como escreveu um historiador do período, nas primeiras décadas das colônias da Nova Inglaterra, “os governos da Igreja e da cidade eram praticamente indistinguíveis”.2 É importante entender que as diferentes congregações puritanas provinham de Igrejas Católicas e Anglicanas das quais haviam se retirado. Para os puritanos americanos, não havia uma instituição separada chamada “a Igreja”, governada e oficiada por um poder remoto. A igreja era os seus membros, não o seu clero nem as suas edificações. Ela era, nas palavras de William Ames, fundador do congregacionalismo, “uma irmandade de adeptos fiéis”.3 A expressão “Casa de Encontro”, usada pelos quacres, revela que o propósito era funcional, não sagrado — em contraste com o status sagrado da Igreja Católica. Embora a base das igrejas não conformistas fosse a fé de seus membros, elas não estavam abertas para todos quechegassem. Os indivíduos que entravam para a igreja concordavam em se comportar de certas maneiras, e as regras de comportamento eram extremamente rigorosas: os puritanos acreditavam que o poder traz responsabilidade e que a comunidade não pode ser comandada por aqueles que levam uma vida irresponsável. Além disso, o dogma central da teologia calvinista era de que os eleitos se mostrassem à altura da graça de Deus levando uma vida de simples devoção. Cada membro de uma igreja puritana assinava um pacto, um rito solene de passagem que os separava do restante da comunidade. Além disso, as igrejas locais eram unidades distintas, e embora se reunissem num sínodo, onde questões de fé podiam ser debatidas e desentendimentos, resolvidos, o sínodo não tinha nenhum poder próprio. De fato, os puritanos estavam dispostos a limitar a autoridade da instituição à qual pertenciam. Em cidades de Massachusetts, como Salém, Lynn, Weymouth, Cambridge, Medfield e Marlborough, todas as igrejas locais realizavam uma corte geral anual incluindo todos os membros. Os cidadãos honrados, o que significava membros do sexo masculino, elegiam um número de assistentes que administrariam o governo da igreja (de fato, da cidade) e eles, por sua vez, elegiam um governador. Um grupo de presbíteros era criado e, dentre eles, elegiam-se assistentes e governadores, que permaneciam no cargo por períodos consideráveis. Nessas comunidades profundamente religiosas, supunha-se que eles falavam em nome de Deus. * O sistema puritano de participação nas igrejas serviu de modelo para a democracia americana antes da Guerra de Independência e durante algumas décadas seguintes. As igrejas não conformistas foram a base de muitas das cidades colonizadoras da costa leste, organizando tanto a sociedade secular como a religiosa. O governo das primeiras colônias era guiado pela necessidade prática de ter uma administração eficaz — alguém tinha de construir estradas, represar rios, punir os malfeitores e assim por diante. Sua estrutura era ditada pela falta de qualquer autoridade abrangente e pela crença profunda das igrejas não conformistas na igualdade dos fiéis. Entretanto, para se tornarem uma democracia plena, os Estados Unidos tinham de superar um elemento central do puritanismo. Sessenta anos após a Independência, o político francês Alexis de Tocqueville comentou que o puritanismo “estava em conformidade com as teorias republicanas e democráticas mais absolutas”.4 Porém os puritanos não acreditavam em direitos fundamentais para todos. Acreditavam, em vez disso, que o governo dava a oportunidade de redenção coletiva e individual. Entendiam que isso beneficiaria a todos e serviria de modelo para os que estavam fora da igreja. Contudo, o governo em si era algo sério demais para permitir que todos tomassem parte nele. Ecoando Aristóteles, adotaram a opinião de que o governo deveria ser deixado aos bons, isto é, aos membros da igreja. Dois outros aspectos do início da vida colonial, ambos herdados das práticas inglesas, são relevantes para o nosso tema. Primeiro, as formas de votação e o governo das cidades seguiam os padrões ingleses. Como argumentou um historiador, “ainda é de grande importância na história americana o fato de que o povo inglês [...] estava muito familiarizado com algum tipo de eleição”.5 Já em 1632, os colonizadores de Massachusetts decidiram que cada vila deveria eleger dois representantes (como na Inglaterra) para se reunirem com os assistentes e o governador, e que uma corte geral trimestral deveria ouvir as opiniões de todos os cidadãos honrados. Segundo, as restrições ao voto não eram baseadas apenas na crença puritana no valor dos fiéis: as colônias americanas seguiam a prática inglesa de restringir os direitos de voto aos que possuíam propriedades plenas. No decorrer do século XVIII, a população americana cresceu de forma extraordinária. De um total de cerca de 50 mil em 1650 e 250 mil em 1700, chegou a 5,3 milhões em 1800. Boston aumentou seu número de habitantes de 3 mil, em 1660, para 7 mil, em 1700, e depois para 24 mil, em 1800.6 Os novos imigrantes não eram mais somente protestantes não conformistas fugindo da perseguição. Muitos eram migrantes em busca de uma vida economicamente melhor. Conforme a população crescia, a dimensão religiosa da vida comunitária diminuía, e a reunião da cidade tomou da igreja o papel de centro das questões comunitárias. Houve também uma diluição do ideal puritano à medida que os ricos e poderosos começaram a dominar essas reuniões, usando-as para o avanço de seus próprios interesses. A participação numa reunião da cidade era limitada não por declarações da igreja, mas por variações na posse de bens, incluindo a lei dos 40 xelins, de 1430. Apesar disso, as reuniões, como escreveu o historiador Hugh Brogan, “propiciavam um treinamento essencial para o autogoverno” e cada cidade era, em essência, uma Cidade-Estado, uma democracia direta do tipo clássico mais puro.7 No século XVIII, existia uma qualificação para a posse de terras em muitas colônias. New Hampshire especificava um valor de 50 libras; Rhode Island, 40 libras ou uma renda anual de aluguel de 40 xelins; a Virgínia, 100 acres sem assentamentos ou 25 acres cultivados; a Carolina do Norte e Geórgia, 50 acres fixos. Enquanto, na Inglaterra, o número de proprietários de terras diminuiu entre 1750 e 1860, em consequência dos Atos de Cercamento de Terras, nas colônias, o cultivo crescente de terras representou um aumento contínuo do número de proprietários. Um homem chamado Robert Park fora da Irlanda à Pensilvânia como arrendatário de terras, mas acabou conseguindo comprar 500 bons acres por 350 libras. Em 1725, ele escreveu à família, dizendo que estava no “melhor país do mundo para a gente trabalhadora e os comerciantes”. Ao mesmo tempo que as cidades cresciam, os colonizadores ocupavam a planície fértil entre o litoral e os Apalaches. Eram agricultores independentes da Pensilvânia, estabelecendo propriedades rurais remotas, longe do alcance dos governos das cidades. Os vilarejos, como são conhecidos desde tempos imemoriais na Europa, não existiam ali. Em vez deles, fazendas de famílias eram a base da sociedade rural. Os descendentes desses primeiros fazendeiros, indivíduos ousados e desconfiados da autoridade. A colonização europeia na América do Norte não foi um processo benigno. A destruição da população nativa e o transporte forçado de milhões de africanos para o trabalho escravo demonstraram uma brutalidade que contrastava com os princípios morais religiosos dos colonizadores. A colonização do continente foi complicada de forma constante pela violenta rivalidade entre as nações europeias. Guerras entre a Grã-Bretanha e França foram deflagradas com regularidade desde 1689, culminando no conflito conhecido na Europa como a Guerra dos Sete Anos (1756-63) e nos Estados Unidos como a Guerra Franco- Indígena. Esse conflito mudou de forma fundamental a relação entre a Grã- Bretanha e suas treze colônias americanas. Até então, a pátria mãe se contentara em deixá-las cuidarem de seus próprios assuntos, ainda que com certas restrições — insistindo no uso de embarcações britânicas para todo comércio internacional, por exemplo —, mas, durante a guerra, milhares de tropas oficiais britânicas foram enviadas às colônias, deixando de lado qualquer questão relacionada aos americanos e se voltando para a necessidade estratégica de derrotar a França. A guerra e a vitória britânica tiveram umasérie de consequências inesperadas. Os britânicos acharam que seus colonos fossem incapazes de se defender e, então, mais tropas foram colocadas nas colônias. Os americanos, por outro lado, tinham visto as tropas britânicas lutando e perceberam que elas estavam longe de ser invencíveis, ao passo que suas próprias forças não oficiais tinham lutado com mérito. Além disso, a retirada da França para o oeste do Mississippi deixou livre uma área vasta a ser explorada por colonizadores, e, embora o governo britânico tentasse preservá-la para a população nativa, ela era amplamente ignorada. A consequência mais importante da guerra, no entanto, foi o ato de que o governo britânico, com seu erário profundamente endividado, foi forçado a recuperar os gastos com as tropas posicionadas na América do Norte impondo impostos às colônias. Primeiro veio o Imposto do Açúcar, de 1764, depois o Ato do Selo, de 1765, e, em 1767, os Atos de Townshend introduziram impostos sobre chá, papel, tinta, aço e vidro. Os colonos americanos, furiosos com as autoridades britânicas, começaram a organizar resistências. Tumultos contra o Ato do Selo em 1765 e 1767 foram seguidos, em 1770, pela morte de cinco colonos nas mãos de tropas britânicas. Benjamin Franklin foi um caso típico de colono indignado com essa nova agressão. Anteriormente um monarquista convicto, Franklin escreveu sobre colocar “um espelho diante de alguns ministros para que vissem suas caras feias, e a nação, sua injustiça”.8 Comitês de Correspondência e clubes, como o Filhos da Liberdade, trocavam informações, descontentamentos e estratégias, mostrando o desenvolvimento de uma identidade característica americana. Havia um clima de busca pela liberdade, e os colonos caminhavam para a rebelião social — agricultores de Nova York rebelaram-se contra proprietários de terras britânicos, e lavradores da Carolina do Norte confrontaram seus mestres legais. Em 1773, um grupo de militantes de Boston destruiu uma carga de chá pertencente à Companhia das Índias Orientais — a famosa Festa do Chá de Boston —, desencadeando a opressão britânica. Em setembro de 1774, um Congresso Continental de representantes das colônias reuniu-se na Filadélfia, onde decidiram fazer um boicote aos produtos britânicos. A revolta aberta parecia inevitável, mas os britânicos estavam malpreparados para lidar com ela: no início da década de 1770, os impostos de Townshend aumentavam apenas cerca de 300 libras por ano, uma proporção pequena das 170 mil libras que custava a manutenção das tropas britânicas nas colônias, enquanto o número de tropas era, de todo modo, completamente inadequado para dominar a população. Nos dias 18 e 19 de abril de 1775, o general Gage realizou a famosa marcha de Boston a Lexington e Concord para confiscar os armamentos dos colonos. A milícia local foi alertada por Paul Revere e William Dawes, e o líder deles, John Parker, disse a seus homens: “Não atirem, a menos que eles atirem primeiro, mas, se eles pretendem fazer guerra, que ela comece agora.” Assim começou a Guerra de Independência. Em junho, os colonos foram derrotados na Batalha de Bunker Hill, mas a essa altura o Congresso Continental era o governo de fato de uma nação emergente em rebelião. Na verdade, muitos colonos foram leais aos britânicos inicialmente. A tarefa das forças rebeldes era dar continuidade ao conflito por tempo suficiente para convencerem os outros colonos e forças externas — especialmente França e Espanha — de que a independência era uma possibilidade séria. Nos primeiros meses de 1776, o Exército americano, sob o comando de George Washington, tomou Boston do general Howe, mas Washington foi forçado a se retirar de Long Island, Nova York e Quebec. Quando o Congresso Continental se reuniu na Filadélfia naquele verão, a perspectiva militar era, na melhor das hipóteses, difícil e, na pior, desoladora. No entanto, o Congresso decidiu que deveria seguir em frente com a luta pela independência. O livreto de Thomas Paine, Bom Senso, que defendia o direito dos colonos de governarem a si mesmos, tivera um impacto enorme no início do ano, chegando a vender mais de 500 mil cópias. A Declaração de Independência, redigida durante a guerra, principalmente por Thomas Jefferson, foi aprovada pelo Congresso em 4 de julho de 1776. Declarava a posse dos direitos naturais por todas as pessoas e seu direito de remover qualquer governo que pretendesse destruir esses direitos: Consideramos verdades evidentes que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a Busca pela Felicidade. Que, a fim de assegurar esses direitos, os Homens instituem Governos, que legitimam seus poderes por meio do consentimento dos governados, que sempre que qualquer Forma de Governo se torne destruidora desses fins, é o Direito do Povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo Governo, fundamentando-o e organizando-o conforme os princípios e os meios que lhe pareçam mais adequados para a obtenção de suas Segurança e Felicidade. Apesar da confiança expressa na declaração, a guerra ia mal para os americanos. No final de dezembro de 1776, Washington conseguiu realizar um importante estratagema ao atravessar o rio Delaware para tomar Trenton e Princeton, em Nova Jersey, mas, em 1777, houve outras reviravoltas, com o general Howe tomando a Filadélfia, e o general Burgoyne levando 8 mil soldados britânicos do Canadá ao sul. Uma virada decisiva, porém, ocorreu em outubro de 1777, quando Burgoyne se viu bloqueado no interior do estado de Nova York e foi forçado a se render. Washington retirou o Exército continental para o vale Forge, na Pensilvânia, para aguardar o fim do inverno de 1777-78 e retornou numa posição muito mais forte. Os franceses encorajaram-se a entrar na guerra no início de 1778, fornecendo uma frota que desafiou com êxito o monopólio britânico da rota marítima da costa. Sua entrada na guerra foi seguida pela Espanha e república holandesa. Uma vez que Washington garantiu a segurança da parte central das colônias, a situação no sul, após uma derrota desastrosa em Camden, começou a melhorar para os americanos. As tropas conseguiram cercar o general Cornwallis na cidade de Yorktown, enquanto navios franceses impediram a chegada do apoio naval britânico ao Exército isolado. Em outubro de 1781, Cornwallis rendeu-se com 8 mil homens, e a guerra acabou de fato. O fim do conflito trouxe inúmeros problemas para o novo país. Numa repetição sinistra do que houve com a Inglaterra em 1647, os líderes americanos se viram no comando de um Exército ao qual não podiam pagar. Sem nenhum recurso financeiro ou legal para sustentá-lo, o papel-moeda introduzido para financiar a guerra não tinha valor algum. A crise foi evitada somente por meio do apelo direto do general George Washington às tropas não pagas. Enquanto isso, sem uma autoridade central, os estados individuais tinham de seguir adiante com o processo de governo, o que incluía construir relações com potências estrangeiras. O governo nacional formara-se de acordo com os Artigos de Confederação aprovados em 1777 e ratificados em 1781, mas confirmavam a primazia dos estados trabalhando juntos numa confederação imprecisa. Os interesses dos diferentes estados logo começaram a divergir. Alguns começaram a cunhar a própria moeda, e questões como a sobrecarga de impostos dos estados litorâneos sobre importações a caminho do interior ameaçaram desmantelar a confederação. Nessa atmosfera, os líderes políticos entenderam a necessidade de uma estrutura legal e políticaque explicitasse as relações entre os estados. Em maio de 1787, representantes de todos os estados, exceto Rhode Island, reuniram-se numa convenção constitucional na Filadélfia para chegarem a um acordo. Enquanto a Declaração de Independência era um texto de retórica grandiosa elaborado em grande parte pela pena culta de Thomas Jefferson, a Constituição foi um documento funcional montado durante quatro meses de discussões acirradas, trocas e concessões. Em setembro, a Convenção aprovara uma Constituição que representava uma vitória para aqueles que pretendiam construir um novo governo, e não um remendo do governo existente. Os chamados federalistas defenderam com êxito um forte governo central com alguma autoridade sobre os estados individuais, ao passo que os antifederalistas viam o governo nacional como um servo dos estados, destinado a coordenar suas solicitações e atividades. A Constituição federal proposta foi então enviada aos estados para debate e ratificação, e os mesmos argumentos foram repetidos. “O Federalista”, escrito por James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, e publicado no Independent Journal e no New York Packet em 1787 e 1788, foi uma tentativa de persuadir o Congresso do estado de Nova York a ratificar a Constituição.9 Os artigos defendiam com eloquência uma “república estendida” conduzida por um único chefe executivo ou presidente, mas não se pode afirmar que afetaram o resultado da votação — a estatura de federalistas, como Washington, Jefferson e Madison, provavelmente foi o fator decisivo. Depois que a Constituição circulou, ficou claro que um elemento importante estava ausente: não havia referência alguma aos direitos dos cidadãos. Isso foi corrigido em 1789, quando as dez emendas conhecidas como a Carta de Direitos foram acrescentadas. Aqui vemos conexões que atravessam séculos e o Atlântico, uma vez que os direitos apresentados são ampliações de propostas registradas por escrito pela primeira vez pelos Niveladores ingleses e posteriormente colocadas em prática pelo Parlamento inglês de 1689. Os estados passaram, um de cada vez, a ratificar a Constituição, com Rhode Island e Vermont (que haviam se separado do estado de Nova York) resistindo até 1790 e 1701, respectivamente. Benjamin Franklin escreveu: “Nossa Constituição está em efetiva execução, e todos parecem prometer que ela vai durar, mas neste mundo só existem duas coisas certas: a morte e os impostos.”10 Os Estados Unidos tinham uma Constituição que explicitava os poderes relativos de seu governo federal e estadual com suas estruturas, incluindo a separação do Legislativo, Executivo e Judiciário. Ela fornecia detalhes de como o Congresso e o presidente deveriam ser eleitos e quais deveriam ser seus poderes. Também pressupunha uma Corte Suprema como guardiã dessa Constituição. Tratava-se de uma estrutura política impressionante que deu legitimidade à nação enquanto república federal, com garantias para os direitos civis e políticos dos cidadãos. Mas até que ponto esse novo país era democrático? A participação política em larga escala corria nas veias dos cidadãos das colônias americanas. Ela sobreviveria à transição de semi-autonomia colonial para Estado independente, e, se sobrevivesse, que forma tomaria? Sabemos a resposta à primeira pergunta — a democracia sobreviveu. A resposta à segunda pergunta nos mostra o quanto essas questões são decididas, não por mentes admiráveis em salas de reunião, mas na confusão e no agito da vida cotidiana e nas suposições e determinações da população. Depois de aprovadas a Constituição e a Carta de Direitos, a grande tarefa dos Pais Fundadores era prover um governo federal que se baseasse no espírito da democracia local e a ele permanecesse fiel. A Declaração de Independência afirmara que “todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a busca pela Felicidade”. Essa frase sonora, elaborada em meio a uma guerra contra o rei, dava o motivo pelo qual os homens não deveriam ser governados por um tirano; mas só o fato de terem sido criados iguais não significa que permaneçam assim. A questão de quem tinha o direito de votar ainda era baseada na propriedade, e o novo governo federal deixou as questões de elegibilidade aos estados individuais (como havia sido antes com as colônias). Em seis estados, a atenção aos direitos de voto foi reduzida, enquanto outros mantiveram os arranjos existentes. Todos os estados estabeleceram um mínimo de bens para a qualificação. Isso não soa como o nascimento de uma democracia, mas nas cinco décadas seguintes houve uma mudança estável de privilégio do proprietário de bens para o cidadão do sexo masculino. Em Nova York, em 1787, o voto foi estendido a todos os proprietários de terras, sem importar o valor, e as votações foram realizadas para as eleições estaduais. Ao mesmo tempo, porém, o Congresso ordenou que os novos estados introduzidos à União tivessem uma propriedade de 50 acres como qualificação para o direito de voto — um requisito mais rigoroso que o vigente em todos os estados existentes, mostrando que muitos dos homens eminentes no nível federal estavam deixando para trás os costumes e impulsos locais. De fato, a ideia de uma democracia limitada nos padrões britânicos, com o Congresso eleito por um pequeno número e saído de uma parte da elite da sociedade, havia sido cogitada na Convenção Constitucional. Quando se discutiu a questão de permitir que os estados estabelecessem suas próprias qualificações para o voto, o representante da Virgínia, Edmund Randolph, declarou que “nosso principal perigo provém das partes democráticas das constituições [dos estados]”. Esse foi um claro alerta contra a ampliação excessiva dos direitos dos cidadãos, mas também havia um entendimento de que a legitimidade de qualquer governo — e uma guerra acabara de ser travada para depor um regime impopular — só poderia existir por meio da soberania do povo, e isso significava uma democracia baseada na ampla participação dos cidadãos. Em resposta a Randolph, Benjamin Franklin declarou que “o amor do país floresce quando as pessoas comuns votam e enfraquece, como na Inglaterra, quando elas não podem fazê-lo”.11 Por outro lado, James Madison defendeu uma “república ampla”, alertando quanto aos perigos de uma democracia federal: “Ao ampliarem demais o número de eleitores, os representantes ficam muito pouco familiarizados com todas as circunstâncias locais e interesses menores; já ao reduzi-lo demais, eles se tornam desnecessariamente apegados a essas questões e muito pouco aptos a compreender e realizar questões nacionais maiores.”12 Apesar dos argumentos de Madison e dos temores de Randolph, a tentativa de aprovar uma qualificação de propriedade de terras para todos os estados foi derrotada, e a Convenção Federal aprovou a ampliação fragmentada do direito de voto que já estava em vigor. Os americanos tinham conhecimento da estabilidade e prosperidade geradas pela Constituição britânica tripartida (Coroa, Lordes e Comuns), e muitos queriam o mesmo tipo de governo “equilibrado” na América. O presidente federal, o Senado e a Câmara dos Representantes refletiam a disposição tripartida. Originalmente, a ideia de um Senado partiu da crença ainda comum numa elite natural, mas que não foi sustentada por muito tempo nos Estados Unidos, e o Senado se tornou um elemento na estrutura do governo em vez de uma entidade representandoum grupo ou estado diferente na sociedade. As duas câmaras do Congresso resolveram outro problema para os federalistas: como garantir que todos os estados se sentissem igualmente valorizados, sem deixar de refletir a distribuição populacional. O Senado tinha dois representantes de cada estado, enquanto os eleitorados da Câmara eram baseados na população. Essa também foi uma repetição da prática britânica, que delineou uma distinção entre eleitorados de condado e de distrito. No entanto, ainda que as estruturas possam ter sido semelhantes, os pressupostos práticos e culturais eram totalmente diferentes. Na Grã-Bretanha, partia-se do princípio de que os proprietários de terras do partido Whig falavam por todos, e a votação era algo quase indiferente no processo político, uma vez que a sociedade tinha seus líderes “naturais”. Na América, a votação tornou-se central, já que era o processo do qual resultava a autoridade. Os americanos começaram a reconhecer isso ao chamarem seu novo país de democracia, referindo-se a um país em que os líderes eram escolhidos e podiam ser removidos pelo povo. Já em 1809, numa atmosfera obscurecida pela ameaça de mais uma guerra contra a Grã-Bretanha, o renomado jornalista e pregador Elias Smith escreveu: “O governo adotado aqui é uma DEMOCRACIA. É bom que compreendamos essa palavra, tão ridicularizada pelos inimigos internacionais de nosso país [...] Meus amigos, jamais nos envergonhemos da democracia.”13 Diferenças importantes persistiam entre os americanos. Vários Pais Fundadores, incluindo George Washington, Thomas Jefferson e James Madison, eram proprietários de terras na Virgínia que viam os Estados Unidos como um país de cavalheiros agricultores que cuidavam de uma nação em expansão gradual pelo continente. Eles acreditavam na América das pequenas cidades e estavam consternados com o crescimento delas. Desprezavam os ricos industriais e mercadores, temendo que o acúmulo de poder político por uma classe abastada arruinaria os princípios que serviam de base à nação. Jefferson expressou a sua preocupação da seguinte maneira: “Espero que exterminemos em seu início a aristocracia de nossas corporações baseadas no dinheiro que já ousam desafiar nosso governo a um teste de forças e oferecer resistência às leis de nosso país.”14 A principal figura a lutar contra o desprezo aristocrático pelo comércio foi Alexander Hamilton. Imigrante caribenho que não era fiel a nenhum estado em particular, ele via sua terra adotada como um país com um centro forte e estável, não um conjunto de estados reunidos por conveniência individual. Ele acreditava que um centro federal poderoso poderia unir os interesses políticos, agrícolas e comerciais do país de modo que beneficiasse a todos. A proposta- chave de Hamilton, encaminhada em 1790, era a de um banco nacional que trabalharia com o governo federal para administrar as questões financeiras da nação. O debate a respeito do banco dividiu a nação porque envolvia o que deveria ser a essência do país. Aqui temos uma divisão que oferece diferentes versões da América — um país de propriedades rurais e vilarejos com um governo pequeno, em contraste com uma potência capitalista canalizando os talentos da classe mercantil para o fortalecimento do governo federal. Durante o debate, surgiu uma questão crucial: esperava-se que os cidadãos colocassem de lado seus interesses pessoais e agissem (votassem) de acordo com os interesses do povo e da nação como um todo ou a democracia se apoiaria na noção de que, se todos agissem por seus próprios interesses, o interesse do todo também seria contemplado? Na assembleia da Pensilvânia, William Findley, um ex-tecelão, falou em nome de devedores e detentores de papel-moeda já existente contra a reestruturação do banco. Robert Morris, o comerciante mais rico da Filadélfia e aristocrata à antiga, alegou que Findley tinha interesse pessoal no caso e que, portanto, suas opiniões não deveriam ser consideradas. Findley respondeu que a neutralidade do adversário era uma impostura, uma vez que ele tinha interesse na reestruturação do banco. Também alegou que era legítimo os interessados apresentarem suas opiniões, desde que declarassem seus interesses e não impedissem que os outros, com interesses contrários, fizessem o mesmo. Aos nossos ouvidos, o argumento parece bastante racional, mas, na época, era absolutamente revolucionário. Desafiava a suposição habitual de que os políticos têm de ser imparciais e que deveriam buscar um “bem público” despersonificado. Em vez disso, deveriam reconhecer que eles, e a política em geral, faziam parte da confusão de trocas e interesses divergentes da sociedade. Esse debate reflete um desenvolvimento mais amplo, no qual a predominância da gentry proprietária de terras dava lugar a uma sociedade mais comercial na qual os cidadãos se orgulhavam de trabalhar para o próprio sustento. Na verdade, a pequena classe ociosa de ricos proprietários de terras era cada vez mais desprezada à medida que ficava difícil manter sua alegação de agir pelos interesses da nação. Benjamin Franklin escreveu em 1782 que um americano ficaria mais orgulhoso se “um genealogista pudesse lhe provar que dez gerações de ancestrais e parentes seus tivessem sido lavradores, ferreiros, torneiros, tecelões [...] e, consequentemente, [...] membros úteis da sociedade, do que se pudesse apenas provar que eram Cavalheiros, sem fazer nada de valor, apenas vivendo sem ocupação à custa do trabalho dos outros”.15 Essa crença de que o trabalho era mais nobre que a riqueza herdada ou não merecida ajudou a sustentar a democracia na América. Thomas Jefferson acreditava que o Estado federal deveria permanecer o menor possível, enquanto Alexander Hamilton pensava que uma união de estados bem-organizada com um centro enérgico e poderoso poderia levar à prosperidade nacional. Essa divisão introduziu a política partidária nos Estados Unidos. Jefferson concorreu com John Adams (do mesmo partido Federalista de Hamilton) à presidência em 1796 — a primeira eleição presidencial a ser disputada. Jefferson perdeu e foi nomeado vice-presidente, mas divergia completamente de Adams quanto às relações com os franceses, assim como quanto aos poderes do governo central, e decidiu retirar-se de Washington em vez de servir numa coalizão. Jefferson conseguiu assumir a presidência em 1800, derrotando Adams. A contribuição inestimável dessa primeira divisão, com homens de estatura nacional consagrada dos dois lados, à política da nação foi o conceito de oposição leal. Era vital para a estabilidade que os debates sobre questões importantes como a guerra, os poderes federais e os direitos dos cidadãos pudessem ocorrer sem que os participantes fossem acusados de deslealdade. A política democrática dos Estados Unidos, assim como na Atenas antiga, tinha de aprender a tomar posse dos conflitos da sociedade e contê-los em fóruns legítimos. A democracia exige que o Executivo preste contas e que um debate saudável seja conduzido sem medo de perseguições; que a oposição ao governo seja valorizada como uma parte leal do processo político da nação. Quando Jefferson candidatou-se contra Adams em 1800, ninguém podia acusar nenhum dos dois de deslealdade à nação. Desde a eleição anterior, políticos de diferentes níveis haviam começado a tomar posição junto aos Republicanos Democratas ou aos Federalistas de Adams ou Hamilton, de modo que os partidos estavam vencendo eleições em diferentes níveis e diferentes arenas. Era possível que um partido perdesseas eleições presidenciais, mas retivesse o poder no Senado, o que dava a possibilidade de ganhar a presidência ou o poder no Congresso na próxima vez. Ainda assim, a rivalidade política podia ser feroz: num dos incidentes mais chocantes da política americana, Alexander Hamilton foi assassinado num duelo, por seu adversário político, o vice-presidente Aaron Burr, em julho de 1804. Em 1800, um sistema de partidos políticos rivais começava a se consolidar. Numa nação em que a maioria da população era descendente de imigrantes recentes ou imigrantes, poderíamos esperar que a política partidária tivesse surgido com partidos representando os escoceses ou irlandeses, puritanos ou quacres, fazendeiros ou transportadores marítimos; mas parece que a própria multiplicidade social contribuiu para que não fosse assim — nenhum grupo era suficientemente numeroso para ganhar poder sozinho. Então, os partidos políticos eliminaram os limites étnicos, religiosos e sociais. O resultado foi que, no início do século XIX, os eleitores americanos foram totalmente cativados pela política partidária. A atmosfera festiva — discursos, banquetes, o espírito esportivo do “tudo ou nada”* — começou a se tornar uma obsessão nacional, uma característica decisiva do novo país. Jornalistas se deliciaram com as oportunidades de trapacear, espalhar boatos e fazer ataques pessoais. Políticos locais trabalhavam arduamente, e alguns viram uma boa forma de ganhar dinheiro. Num âmbito mais sério, o público e os jornalistas reagiram às habilidades dos políticos de tratarem de assuntos importantes em termos de retórica, persuadindo, seduzindo e entretendo multidões em encontros públicos. Novos imigrantes — a população havia aumentado para 8 milhões em 1814 — foram atraídos pela inovação e pelo entusiasmo das eleições e rivalidades partidárias. A primeira fase da política partidária iniciou o processo de familiarização das pessoas com a oposição leal. Foi o momento em que uma vasta gama de interesses da sociedade começou a se unir e se organizar pela presença de partidos com chances realistas de obtenção de poder. Os partidos começaram a se organizar, fortalecendo o processo político. Essa foi, no entanto, uma fase breve. Quando os Estados Unidos entraram em guerra contra a Grã-Bretanha (1812-15), tanto os Federalistas como os Republicanos apresentavam divisões internas. Os Federalistas foram desaparecendo à medida que mais pessoas se juntavam aos Republicanos, que, por sua vez, assemelhavam-se menos a um partido e mais a uma coalizão de governo. Apesar do interesse crescente pelo espetáculo da política, a aristocracia rural da Virgínia ainda sentia que seu papel era servir ao bem público, o que a afastou do próprio crescimento e da crítica de colegas. Jefferson escreveu: “Se eu só pudesse ir para o céu com um partido [político], escolheria não ir.” Ele e outros aristocratas não gostavam da disciplina e das concessões necessárias aos partidos políticos. Contudo, apesar da brevidade, o primeiro sistema de partidos políticos começara a descobrir na prática como estabelecer instituições e ajustes que transformariam o sonho utópico da Declaração de Independência num sistema político viável que pudesse, acima de tudo, sobreviver. Uma nova fase da política americana teve início com a eleição presidencial de 1824. Durante os doze anos anteriores, a política partidária havia estagnado, com o domínio do partido Republicano em todos os níveis. No entanto, em 1824, o partido não chegou a um consenso quanto ao candidato à presidência, o que levou à candidatura de quatro republicanos. John Quincy Adams, de Nova York, filho do segundo presidente, John Adams, era o único com o apoio total de seu partido estadual. Sendo secretário de Estado do então presidente James Monroe, ele também tinha fortes ligações com a elite governante da Virgínia. O principal adversário de Adams era um tipo totalmente novo de político. Andrew Jackson vinha do Tennessee, afastado do centro da política americana, e tornara-se uma figura nacional em razão do seu comando das forças vitoriosas na Batalha de Nova Orleans, em 1815. Jackson levou uma energia transformadora à democracia dos Estados Unidos, mas, apesar de obter a maioria dos votos dos colégios eleitorais, nenhum candidato ganhou uma maioria total. De acordo com as regras vigentes, a Câmara dos Representantes tinha o poder de decidir quem era o vencedor e escolheu Adams. O resultado enfureceu os defensores de Jackson, e, nos quatro anos seguintes, houve todo tipo de difamação entre os dois lados. Os defensores de Jackson retratavam Adams como corrupto e o acusaram de se fartar da tigela pública e de transformar a Casa Branca num antro de jogatina (Adams levara uma mesa de bilhar). Em resposta, Jackson foi acusado de ser assassino, bígamo e comerciante de escravos. Ainda que possa não ter sido algo sério, o episódio certamente acabou com o confortável domínio da política nacional na Virgínia. Os dois homens dividiram os Republicanos, e dois novos partidos nasceram: os Democratas, liderados por Jackson e seu parceiro de campanha, Martin van Buren, e os Whigs. A eleição presidencial de 1828 envolveu mais avanços na democracia americana, com os membros do colégio eleitoral agora designados por voto popular (eles antes agiam de forma independente), e os membros dos partidos passaram a ter mais influência nas políticas.16 Essa foi comprovadamente a primeira eleição presidencial democrática, com o impressionante comparecimento de 58% dos eleitores, o que se deveu em grande parte ao estilo populista de Andrew Jackson, a seu cortejo a uma parcela ampla de eleitores e à chegada de inúmeros jornais com interesse na política nacional.17 A eleição foi vencida por Jackson, e, quando tomou posse, apenas a Virgínia e a Carolina do Norte ainda tinham a posse de terras como requisito para o direito de voto — e a Virgínia deixou de ter em 1830. As eleições atraíam uma percentagem maior de eleitores de uma população em crescimento. Na eleição presidencial de 1840, o comparecimento foi de 78%. Os novos partidos políticos eram bastante diferentes de seus predecessores — mais tribais, populistas, organizados e dedicados a vencer. Os candidatos dos partidos eram antes escolhidos em reuniões no Congresso, mas a partir de 1828 as convenções introduziram uma grande quantidade de membros de partidos no processo, além de propiciarem fóruns para a discussão aberta das políticas. A chamada Regência de Albany, organização política dos Democratas criada na década de 1820, foi um protótipo para os futuros partidos políticos. Era uma máquina bem organizada que tinha a vitória eleitoral como principal objetivo. Enquanto os partidos eram essencialmente agrupamentos de pessoas com as mesmas opiniões, a Regência de Albany introduziu uma noção de ordem e disciplina de modo que os eleitores soubessem o que o partido, assim como seus candidatos individuais, defendia. Uma de suas principais inspirações, William E. Marcy, escreveu: “Quando eles [os políticos de Nova York] estão buscando vitória, admitem a intenção de desfrutar dos benefícios que ela trará. Se são derrotados, esperam retirar-se do cargo. Se vencem, exigem, por questão de direito, as vantagens do sucesso. Não veem nada de errado na regra de que ao Vitorioso pertencem os espólios do Inimigo.”18 O político nova-iorquino Martin van Buren reforçou a influência dos partidos introduzindo o benefício do clientelismo na Assembleia Legislativa do estado: quem ganhasse podia nomear cerca de 4 mil oficiais, que então trabalhariam para manter o emprego atravésda reeleição do partido governante. Van Buren levou essa prática à política nacional quando se tornou presidente em 1837. Essa segunda fase dos partidos políticos nos Estados Unidos (chamada formalmente pelos historiadores de Segundo Sistema de Partidos) foi marcada pela rivalidade entre Democratas e Whigs, com mais organização e agressividade que na época de Jefferson e Adams. O sistema durou até que, diante da impotência para manter a nação unida, Abraham Lincoln acabou com ele às vésperas da guerra civil. Partidos políticos haviam existido em outros lugares, com destaque para a Grã-Bretanha, por pelo menos um século antes da fundação dos Estados Unidos, enquanto em outros países, como a França, facções políticas representavam diferentes grupos da sociedade. Mas foram os Estados Unidos que deram origem ao partido moderno, com ideologia abrangente, habilidade de transformar interesses ou preconceitos em políticas e lealdade tribais. A audácia, a efervescência e o entusiasmo que os partidos americanos engendraram levaram uma energia extraordinária à política democrática. Os Estados Unidos não tinham um modelo para construir uma nação. Os cidadãos aprenderam aos poucos, a partir da experiência, a aceitar que a atividade política organizada em apoio ou oposição ao governo era legítima. Os partidos acabaram se tornando essenciais para a sobrevivência de uma sociedade politizada, articulando necessidades públicas e resolvendo disputas. Numa nação em que todos os eleitores tinham uma opinião, os partidos funcionavam para desenvolver políticas coerentes, baseadas em ideologias consistentes. Não foi a Constituição nem os Pais Fundadores que articularam as grandes questões da nação, foram os partidos políticos, seus membros e suas reuniões. O sistema de partidos levou as chamadas pessoas “comuns” ao governo, transformando a compreensão que elas tinham da sociedade de formas que estavam longe de ser contempladas na Europa. Logo ficou claro para muitos que, eleitos e nomeados para cargos que envolviam salários, a lealdade e o trabalho, os partidários podiam levar uma vida digna. Como já foi dito muitas vezes, se um homem honesto podia ter uma vida boa, o desonesto poderia ter uma ainda melhor. Contudo, quando os partidos estavam bem estabelecidos, o outro lado de seus poderes também ficou visível. Como vimos em Nova York, havia tantos oficiais públicos protegidos por oficiais eleitos que os chefes dos partidos detinham um poder imenso que os tornava efetivamente invulneráveis à opinião ou à escolha do eleitor. Além de desenvolverem os partidos políticos, os Estados Unidos passavam por uma revolução silenciosa no direito de voto. Um estado após o outro mudou o requisito para votação de adultos do sexo masculino com propriedades para os que pagavam impostos. Na década de 1840, essa mudança já estava completa, e em quase todos os estados o voto era direito de todos os adultos brancos do sexo masculino. Isso não se dava sempre pelos motivos mais puros: no sul, dar o voto a todos os homens brancos era uma forma de indicar sua superioridade aos escravos, e os requisitos de pagamento de impostos foram restabelecidos no sul após a guerra civil para excluir os negros da votação. No entanto, a cidadania masculina se tornou idêntica, em linhas gerais, ao direito de voto. Enquanto as eleições nacionais e presidenciais eram os eventos mais importantes do calendário político, a democracia americana estava bem-servida pelas camadas de instituições que se colocavam entre o indivíduo e o Estado. Alexis de Tocqueville fez um relato de suas viagens de 1831 pelos Estados Unidos em seu livro Democracia na América. Ele observou o poder e a eficiência do governo local, as diversas entidades de igrejas e sociedades locais que cuidavam dos interesses de seus membros de maneira diferente do Estado potencialmente todo-poderoso: “Os americanos criam associações para doar livros [...] desse modo, fundam hospitais, prisões e escolas [...] Sempre que existe um chefe em algum empreendimento novo, vemos o governo na França e um homem de posição elevada na Inglaterra; já nos Estados Unidos, com certeza encontraremos uma associação.”19 O eminente filósofo político britânico e membro do Parlamento, John Stuart Mill, considerava comissões locais e distritos, com suas preocupações paroquiais limitadas, impedimentos ao bom governo; mas, depois de ler Tocqueville, entendeu que sua presença era essencial e que seus eventuais antagonismos e regras inconvenientes eram salvaguardas necessárias para o indivíduo contra o poder do Estado. A história dos Estados Unidos mostra que as disposições políticas refletem a cultura da sociedade, mas também que são limitadas pelas forças operantes dentro da mesma cultura. Restavam problemas profundos que a combinação de Constituição, votos para todos os homens brancos e partidos entusiasmados não conseguiu resolver. A questão mais importante era a escravidão. Embora muitos fossem contra ela, nenhum partido estava preparado para defender uma plataforma de abolição nacional. Em 1854, em resposta ao Ato de Kansas —Nebraska, que revogava um limite estabelecido para a escravidão, Abraham Lincoln foi forçado a formar um novo partido Republicano com a intenção explícita de manter a União coesa em face da secessão dos estados do sul. Foi a escravidão legal dos negros que fez com que Abraham Lincoln, em meio à guerra, reavaliasse o significado da democracia americana. No dia 19 de novembro de 1863, ele compareceu à inauguração do cemitério para os mortos da Batalha de Gettysburg na Pensilvânia. O discurso de Gettysburg é notável por sua brevidade — Lincoln falou por apenas três minutos — e pelo poder de sua eloquência. É muito significativo que Lincoln tenha evocado a Declaração de Independência em seu discurso, e não a Constituição, lembrando aos ouvintes que os Estados Unidos haviam falhado na tarefa de pôr em prática os princípios nos quais foram fundados: “Oitenta e sete anos atrás, nossos pais criaram neste continente uma nova nação, concebida em liberdade e dedicada à proposição de que todos os homens são criados iguais.” Para Lincoln, os mortos de guerra deram suas vidas para que uma nação baseada no princípio de igualdade pelo nascimento sobrevivesse. Ainda que não use a palavra, o floreio final é um chamado à luta em defesa da democracia, que ele entendia estar nas mãos do povo, não dos líderes: “Nós aqui determinamos com muito respeito que esses homens não terão morrido em vão, que esta nação de Deus terá um novo nascimento da liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da Terra.” A habilidade dos Estados Unidos de permanecer uma democracia ainda era questionada por alguns na Europa na década de 1830 — e, se ela sobreviveu, isso não chega a provar que a democracia era uma forma estável de governo. Em 1832, um comentador britânico escreveu: Nosso argumento contra o exemplo específico dos Estados Unidos é toda a história da democracia, a turbulência e a destruição dos Estados gregos; a queda das liberdades na república romana; a confusão do Parlamento Longo, seguido pela mão de ferro de Cromwell; os horrores da Revolução Francesa; a debilidade das repúblicas da América do Sul; lemos uma história convincente, o despotismo de muitos gerando o tormento de todos e terminando com o poder absoluto de alguns. Isso é repetido de Atenas a Bogotá.20 No entanto, os americanos não temiam muito que a democracia enfraquecesse seu país — pelo contrário, tinham orgulho do sistema que haviamcriado. E pessoas do mundo todo, na Europa e na América do Sul em particular, inspiraram-se nos Estados Unidos — uma nação independente, que sobreviveu e prosperou, tornando-se ainda mais democrática. Nota: * Referência ao sistema eleitoral winner-takes-all, em que todos os votos de um colégio eleitoral vão para um candidato, desprezando o número de votos diretos minoritários. (N. T.) O 7 FRANÇA, 1789-95 O Cidadão Ativista s acontecimentos da Revolução Francesa já foram infinitamente descritos e debatidos. Um novo mundo político parecia surgir em 1789 para desmoronar em meio ao viciante derramamento de sangue do Terror apenas cinco anos depois. Uma combinação estonteante de inspiração e alerta, a Revolução Francesa foi um acontecimento político que afetou o mundo todo. Na maior e mais poderosa nação da Europa — um continente prestes a dominar o mundo —, os poderes estabelecidos havia muito tempo foram derrubados e acabaram sendo substituídos pelo protótipo de um Estado nacional moderno. Onde e como a Revolução e suas consequências se encaixam numa história da democracia? A aplicação de um modo particular de entendimento da política revolucionária indicava que havia apenas uma forma possível de governo verdadeiro — qualquer outro caminho era visto como traição, uma traição à Revolução e ao povo da França. No fim, a destruição física dos adversários tornou-se a forma com que a pessoas demonstravam poder; esse foi o legado sombrio da Revolução. A crença num único caminho, o uso do terror contra adversários políticos, a ilegitimidade de qualquer forma de oposição, o pressuposto de agir “em nome do povo”: todas essas ideias seriam adotadas pelos autodenominados regimes revolucionários do mundo nos dois séculos seguintes. A criação do Estado centralizado moderno controlado por um pequeno grupo ou por um único ditador também deixou sua marca na história subsequente. Na história da democracia, esse certamente é o vilão, o dragão que tem de ser destruído para que a democracia possa funcionar. Por outro lado, a França deu a seu povo direitos políticos e liberdades que estavam além até mesmo dos que tinham os cidadãos dos recém-fundados Estados Unidos. Na década de 1790, vinte turnos de eleições foram acompanhados por panfletos, cartazes, reuniões e discursos que inflamaram a nação. Os governos franceses introduziram uma série de reformas agrárias, tributação progressiva, regimes de pensão, combate à fome e financiamento estatal para escolas. Padronizaram pesos e medidas e estabeleceram um sistema jurídico justo e estruturas eficazes para a administração de seu vasto país. Inspiraram o povo a aspirar à democracia e estimularam a crença de que todo indivíduo tem certos direitos fundamentais a serem preservados. A história permite a coexistência dessas contradições e que pessoas com as melhores intenções causem grandes danos. Na década de 1780, a França era o gigante irregular da Europa. Por mais de cem anos, sua posição estratégica, recursos naturais abundantes e imensa população, combinados com as habilidades políticas e diplomáticas de uma série de ministros competentes, fizeram da França a grande potência militar, econômica e cultural do continente. A partir da década de 1750, essa posição foi ameaçada pelo poder marítimo crescente da Grã-Bretanha e pelo militarismo agressivo da Prússia em terra. No entanto, a França continuou sendo a força política e cultural dominante na Europa: sua língua era falada em todas as cortes, sua moda era seguida em toda parte, seus escritores e artistas lidos e admirados com entusiasmo. Porém, no decorrer do século XVIII, a sociedade francesa ficou dividida. O rei de Versalhes estava cercado de cortesãos que prosperavam e decaíam de acordo com sua proximidade com o regime autocrático. O governo sobreviveu enquanto a França, terra de enorme capacidade agrícola, podia alimentar seu povo, arrecadar impostos suficientes e se defender contra os inimigos. No entanto, o desenvolvimento da impressão, o aumento da alfabetização e a ampliação do governo levaram ao surgimento de um novo tipo de cidadão. Advogados, oficiais públicos, médicos e comerciantes — além de figuras como Voltaire e Diderot — tornaram-se leitores ávidos, ligados por meio de clubes, sociedades e locais de encontro às informações e ideias de fora de suas localidades. Esses homens instruídos sabiam das liberdades políticas na Grã- Bretanha, Países Baixos, Estados Unidos e Estados germânicos, e tinham consciência do contraste com a sua própria situação.1 Embora escritores franceses como o filósofo político Montesquieu tivessem destaque na análise de diferentes métodos de governo, nenhum deles pôde ser colocado em prática em seu próprio país. Havia também milhões de pobres, tanto nas cidades menosprezadas como no interior, onde viviam 80% da população francesa. A pobreza desoladora dos camponeses e pobres urbanos, tratados mais como animais de carga que como seres humanos, ajuda-nos a entender a explosão de violência que estava prestes a ocorrer. Quando a Bastilha foi tomada, em 14 de julho de 1789, o governador, De Launay, foi capturado, decapitado, e sua cabeça, carregada na ponta de uma lança. Oito dias depois, o intendente real de Paris, De Sauvigny, junto com seu sogro, Foulon — que afirmara que, se estivessem com fome, os pobres poderiam comer feno —, foram presos e decapitados. A cabeça de Foulon foi exibida em desfile de forma semelhante, só que com a boca cheia de feno. Tudo isso ainda estava por vir quando, na primavera de 1789, Luís XVI, sob a pressão de seus conselheiros, convocou a assembleia dos Estados Gerais em Versalhes. Ao fim da década de 1780, o governo francês estava falido. O país havia se saído mal em guerras na Europa e nas Américas, e uma série de colheitas ruins deixou muitos à beira da inanição. No século anterior, uma sucessão de reis Bourbon, de vida longa, governou de cima para baixo, escolhidos por Deus para reinar sobre o povo, mas a França do Ancien Régime não era a autocracia centralizada que é retratada às vezes. O foco compreensível em Paris deixa de lado a extraordinária multiplicidade do reino — um imenso território unido por apenas dois elementos: a lealdade ao rei e a religião católica, praticada por 97% do povo francês. Ao longo dos séculos, os reis franceses haviam governado com êxito, realizando acordos para absorver diferentes províncias, principados, ducados e bispados, ainda que cada uma dessas regiões mantivesse um conjunto diferente de poderes e jurisdições nos quais as cidades tinham o direito de cobrar impostos e pedágios, línguas diferentes eram faladas e diferentes pesos e medidas usados. A vida da maioria dos franceses era centrada no vilarejo comercial mais próximo, enquanto o comércio da nação era quase impossibilitado por regulamentações e péssima infraestrutura — era mais fácil para as províncias do leste da França fazer comércio com a distante Prússia que com Paris. Uma história recente dá o exemplo da região do Languedoc, em Corbières, cujas 129 paróquias, todas formadas por falantes de provençal, eram administradas separadamente de Carcassonne, Narbona, Limoux e Perpinhã, enquanto as fronteiras internas para questões judiciais, por sua vez, eram diferentes para impostos e questões da Igreja. Nessa única região, havia cinquenta unidades diferentes para medir a terra, com os mesmos termos variando muito em diferentes áreas — um sétérée, por exemplo, variava de 0,16 a 0,51 hectare. O imposto sobre o sal, o maior imposto indireto da França, variavade 1,10 a 60 livres, dependendo de onde a pessoa morava.2 Apesar de sua magnificência, o regime de Versalhes tinha pouco alcance nessas províncias distantes. Somente seis pequenos ministérios cuidavam de um país de 28 milhões de pessoas; era compreensível que contasse com agentes e administrações locais. Uma série de quinze parlements, criados por monarcas desde 1300, tinha alguma jurisdição sobre questões legais e, em alguns casos, tributação, mas sua autoridade e alcance variavam muito — o parlement de Paris controlava quase metade do território da França, enquanto os outros estabeleciam-se em torno de um pequeno distrito. A cultura e a identidade locais eram o centro da vida pública na França pré- revolucionária. Entre 600 mil e 700 mil pessoas viviam em Paris, e Lyon, Marselha e Bordéus tinham todas mais de 100 mil habitantes — em comparação, Bristol, a segunda maior cidade da Inglaterra, tinha cerca de 60 mil habitantes —, com Nantes, Lille, Rouen e Toulouse não muito atrás. Em vilarejos medievais abarrotados, artesãos trabalhavam em ofícios especializados e pequenas manufaturas — milhares de tecelões, vidreiros, tipógrafos, ferreiros, xilógrafos e pedreiros conviviam com açougueiros, padeiros e donos de mercearias. Ainda que considerados pessoas comuns, os mestres e artífices de cada ofício tinham muito orgulho de seu conhecimento e habilidade. Havia também grandes fábricas — uma fábrica de papel em Paris empregava 350 trabalhadores —, mas a maior parte do trabalho artesanal era de pequena escala, com trabalhadores reunidos em associações ilegais conhecidas como compagnonnages. Os trabalhadores não qualificados faziam serviços domésticos e em construções, intercalados com trabalhos sazonais no interior. Para o trabalhador urbano, a vida era continuamente árdua — expedientes de dezesseis horas, com famílias inteiras morando e trabalhando em dois cômodos. As classes médias francesas tendiam a seguir carreiras na administração pública e no direito. Empregar dinheiro na terra para obter direitos senhoriais também era considerado um investimento prudente e uma forma de entrar para os patamares inferiores da nobreza. Não se tratava apenas de vaidade social — ser membro da nobreza abria oportunidades que estavam fechadas para os outros: oficiais do Exército francês, por exemplo, tinham de comprovar quatro gerações de nobreza. (As alcunhas adotadas pelos revolucionários Maximilien de Robespierre e Georges d’Anton, por exemplo, denunciam as aspirações nobres de suas famílias.) As classes médias eram reconhecidas pela educação e, embora o regime tivesse banido qualquer livro considerado subversivo, textos radicais circulavam livremente e eram discutidos em clubes onde a burguesia urbana se reunia. Junto com obras políticas sérias, surgiram sátiras de diversos graus de crueldade — o rei era retratado como impotente com frequência, apesar de sua rainha ter tido três filhos. Para a maioria dos súditos da área rural francesa, o trabalho árduo e implacável era o centro da existência, com a contínua escassez de alimentos que tornava a vida precária, na melhor das hipóteses. A expectativa de vida no país era inferior a cinquenta anos. Uma série de boas colheitas a partir da década de 1750 propiciou um aumento de cerca de 3 milhões de habitantes. A população numerosa e a estrutura complexa da sociedade tinham todas que ser sustentadas, no fim, pelos trabalhadores do campo. Pequenos fazendeiros e camponeses cultivavam cerca de 40% da terra, embora essa porção geralmente fosse enfeudada, de modo que pagamentos referentes tinham de ser feitos aos senhores feudais. Quando as colheitas começaram a fracassar, na década de 1780, revoltas por alimentos começaram a irromper nas cidades, enquanto, no interior, o ressentimento contra o dízimo e os impostos feudais fervia sob a superfície. Artesãos, camponeses e burgueses formavam 99% da população que compunha o chamado Terceiro Estado. A nobreza, ou Segundo Estado, era composta por 125 mil pessoas, ou 0,4% da população. Sua principal fonte de renda era a terra, da qual possuía cerca de um terço, com direitos senhoriais sobre a maior parte do restante. Embora o senhor enobrecido em sua propriedade do interior tivesse pouco em comum com alguém do círculo interno fabulosamente rico do rei, a nobreza dava acesso a privilégios e renda. Os nobres costumavam ter moinhos em vilarejos e prensas de azeitonas, e tinham o poder de proibir qualquer concorrência. Arrecadavam impostos sobre vendas de terras e casamentos, e tinham o direito de não pagar os camponeses em suas terras na época da colheita. Profissões importantes também eram reservadas à nobreza — o genovês Jacques Necker, por exemplo, era o único plebeu no ministério do rei — e, quaisquer que fossem as diferenças entre si, os nobres tinham um interesse coletivo em manter o status quo. A Igreja era o Primeiro Estado do reino, com cerca de 170 mil clérigos — 0,6% da população total — servindo aos fiéis. Enquanto os padres das paróquias recebiam pagamentos irrisórios, os bispados eram reservados para as famílias nobres e eram fartamente remunerados. A renda da Igreja vinha do dízimo pago sobre as colheitas e de suas próprias terras vastas — cerca de 10% da França — e propriedades urbanas. Em Angers, por exemplo, a Igreja possuía 75% das terras da cidade. Ela empregava padres, administradores de propriedades, servos, escrivães, construtores, advogados e oficiais de justiça. Em muitas paróquias rurais, o padre era praticamente o único habitante alfabetizado. Embora a maioria dos parisienses fosse alfabetizada, registros de casamentos de Luc-Vendée sugerem que apenas 0,5% dos noivos conseguia assinar o nome de forma legível. O Ancien Régime começou a decair na década de 1780, quando a arrecadação de impostos não fornecia mais a renda necessária para o governo, e a agricultura francesa não produzia o suficiente para alimentar a população. Ao mesmo tempo, membros de clubes de leitura, lojas maçônicas e salões começaram a se livrar das restrições da censura e a falar abertamente de conceitos, como o cidadão e o Estado, moralidade na vida pública e os benefícios da meritocracia. Um acordo comercial com a Grã-Bretanha em 1786 afetou a indústria têxtil de forma negativa, enquanto as colheitas ruins de 1785 e 1788 quase levaram os camponeses à inanição e reduziram a renda feudal da nobreza. Ela reagiu com agressividade, impondo e aumentando impostos; o conceito feudal de noblesse oblige, em que o privilégio é passado de mão em mão com a responsabilidade de proteção, foi exposto como uma impostura, com a nobreza cuidando de seus próprios interesses. Porém a aristocracia também estava sob pressão do alto — de um rei que precisava manter o país solvente. Em 1788, Luís XVI buscou auxílio financeiro de sua Assembleia de Notáveis, depois do parlement de Paris. Os membros do parlement, no entanto, a par das tendências de insatisfação e divergência que corriam pelo país, aconselharam-no a convocar uma reunião dos Estados Gerais, uma antiga entidade que havia se reunido pela última vez em 1614. As eleições para a escolha de representantes dos três estados foram marcadas para março de 1789. O clero e a nobreza (ainda que juntos representassem apenas 1% da população) teriam trezentos representantes cada, e o Terceiro Estado, seiscentos. Todos os distritos que existiam em 1614 (conhecidos como baillages e sénéchausées) foram usados como eleitorado para a eleição de 1789,com a adição de outros para acomodar as mudanças na população. A eleição foi um processo de dois estágios: em cada distrito, uma reunião aberta foi realizada para a escolha dos representantes. Os escolhidos participariam de uma assembleia formal do eleitorado que selecionaria os representantes a serem enviados a Versalhes. Os eleitores do Terceiro Estado qualificados para a eleição incluíam todos os homens acima de 25 anos que pagassem impostos diretos — o que significava, na prática, que quase todos os homens eram qualificados. Somente em Paris a qualificação era superior, com a exigência de impostos de seis livres, o que desqualificava metade da população masculina adulta. As eleições do Terceiro Estado foram complicadas por regras diferentes nas paróquias rurais e nas cidades em que membros das corporações de ofício de mercadores e comerciantes formavam colégios eleitorais, cada uma escolhendo um representante para cada cem membros. Esses procedimentos eleitorais são algo surpreendente, uma vez que a França era um país autocrático sem nenhuma suposta tradição democrática, e os Estados Gerais não eram convocados há mais de 160 anos. Nessas eleições não havia partidos políticos, nem sequer tendências organizadas, e o governo não tentou influenciar a escolha de candidatos. Em vez disso, acredita-se que cada eleitorado tenha escolhido o homem mais proeminente em sua comunidade. Os candidatos estavam unidos em sua crença de que o povo da França deveria ter poder de decisão no governo. A identidade política da maioria dos representantes só seria exteriorizada após as eleições. É fácil entender por que as eleições de 1789 revigoraram o país: elas foram o fórum perfeito para uma efusão de descontentamentos e uma fonte de esperança por um futuro melhor. O inglês Arthur Young estava no porto atlântico de Nantes nas semanas seguintes ao anúncio da convocação dos Estados Gerais. “Nantes está tão inflamada pela causa da liberdade como qualquer cidade da França pode estar”, relatou. “As conversas que testemunhei aqui provam como é grande a mudança provocada na mente dos franceses, e não creio que será possível que o governo atual dure mais meio século.”3 As eleições tiveram um efeito eletrizante na população: as reuniões foram amplamente divulgadas, as virtudes dos candidatos, debatidas, e a perspectiva de envolvimento do povo no destino da França, celebrada. A política virou de repente o centro da discussão livre e aberta numa sociedade em que as ideias subversivas haviam sido reprimidas. Foi essa energia e esse entusiasmo que deram aos representantes do Terceiro Estado a confiança para agirem como fizeram em seguida. Nessa eleição, gigantes da história revolucionária, como Mirabeau, Robespierre e os Abbé Sieyès, começaram sua carreira política. Durante a campanha, o governo suspendeu a censura rigorosa das publicações políticas, e mais de 4 mil folhetos foram publicados nos doze meses após maio de 1788. Além disso, as assembleias dos eleitorados mantiveram listas de descontentamentos — cahiers de doléances — para serem usadas como memorandos pelos representantes de todos os três estados em Versalhes. Esses documentos históricos inestimáveis mostram a concordância entre os estados quanto à necessidade de criar um sistema de impostos mais justo e de aplicar leis de forma consistente pela França. Porém, enquanto os camponeses falavam em remover o serviço feudal, e os burgueses urbanos defendiam uma nova sociedade, em que as oportunidades estavam abertas a todos, a liberdade era um direito e o privilégio era inaceitável, a nobreza queria o reforço do privilégio e da hierarquia, um papel menor para o rei e poder maior para si mesma. Em maio de 1789, os representantes dos Estados Gerais reuniram-se em Versalhes. Ali, os dois mundos colidiram: de um lado, a opulência extraordinária da corte real, seu palácio do tamanho de um vilarejo, seu monarca como um semideus; do outro, os advogados, comerciantes e médicos de Amiens, Besançon e Marselha. Se o rei pensava que os plebeus do Terceiro Estado ficariam deslumbrados e intimidados diante de Versalhes, estava muito enganado. Os seiscentos representantes sabiam que estavam levando as expectativas e esperanças da população e que o rei, pelo contrário, estava isolado. Quando foi exigido que os representantes do Terceiro Estado usassem trajes e capas pretos, que os marcavam como os mais inferiores nesse local profundamente hierarquizado, isso simplesmente lhes deu um sentimento persistente de solidariedade. Durante as tensas negociações, os representantes se recusaram a aprovar impostos sem reforma política e, em junho de 1789, anunciaram que o Terceiro Estado era a única entidade representativa do povo. Depois de convidarem membros de outros Estados para juntarem-se a eles, no dia 17 de junho os representantes do Terceiro Estado declararam-se a Assembleia Nacional da França. No dia 20 de junho, Luís XVI impediu que os representantes entrassem em seu salão de reuniões. Em resposta, eles se reuniram num salão próximo, onde fizeram o famoso Juramento da Quadra de Tênis, no qual comprometiam-se a permanecer em sessão até conceberem e aprovarem uma nova Constituição para a França. Diante das tentativas de Luís XVI de lhes negar um local de reunião, declararam ser a Assembleia Nacional onde quer que os representantes escolhessem congregar-se. Tratava- se agora, por meio de suas próprias declarações, de uma conferência legislativa e constitucional. O poder dos representantes era validado pelas pessoas que os elegeram, e eles estavam preparados para fazer valer esse poder contra a autoridade costumeira do rei e da nobreza. Embora Luís XVI ainda controlasse o Exército — de fato, 20 mil mercenários estrangeiros estavam posicionados em Paris —, os acontecimentos em Versalhes estavam sendo observados atentamente da capital, onde revoltas já haviam forçado a retirada parcial das tropas. A maioria dos plebeus parisienses não tinha direito de voto nas eleições dos Estados Gerais, mas eram eles que viriam a salvar a nova Assembleia Nacional. No dia 12 de julho, Thomas Jefferson, “ministro da França” nos Estados Unidos, testemunhou um confronto entre tropas alemãs e suíças, a serviço do rei, e uma multidão de parisienses: “Os cavalos avançaram, mas a posição vantajosa do povo e a chuva de pedras forçaram-nos a recuar... Esse era o sinal da insurreição universal, e essa cavalaria, para não ser massacrada, retirou-se na direção de Versalhes.” Dois dias depois, uma multidão de 8 mil pessoas tomou a prisão da Bastilha em Paris, libertou os prisioneiros e decapitou o intendente. Multidões já haviam atacado postos alfandegários, que acreditavam estar impedindo a chegada de cereais à cidade, e saqueado 52 vagões de trigo vindos do seminário católico de Saint-Lazare. O rei ficou impotente com a incapacidade do Exército de reagir contra os cidadãos de Paris; Jefferson ficou estupefato ao ver multidões pegarem em armas no Palácio dos Inválidos enquanto “um corpo de 5 mil soldados estrangeiros, acampados num espaço de 400 metros, não reagia”.4 O controle da cidade pela nova ordem tornou-se permanente por meio da formação da Guarda Nacional, leal à assembleia e comandada pelo general Lafayette. No vácuo de poder que ela ajudara a criar, a Assembleia Nacional recebeu a oportunidade de moldar o futuro da nação. A legitimidade conferida a seus representantes por meio das eleições causara a destruição da autoridade real de um modo que ninguém poderia ter previsto. Os ministros do rei insistiramque ele cedesse à assembleia e, na manhã de 15 de julho, Luís XVI dirigiu-se aos representantes e pediu a sua ajuda para restaurar a ordem. Tratava-se de uma renúncia abjeta. No dia seguinte, numa cerimônia extraordinária, Luís XVI foi levado de seu palácio reluzente em Versalhes às ruas ameaçadoras da capital. Cerca de 60 mil parisienses cercaram as ruas com mosquetes roubados da Bastilha e do Palácio dos Inválidos, além de lanças, espadas, foices e outras armas improvisadas. A carruagem do rei estava cercada por membros da assembleia, a pé, em sua passagem pela multidão. Alguns gritavam “Vive la nation”. Ninguém gritou “Vive le roi”. No Hôtel de Ville, a Câmara Municipal, o presidente do Terceiro Estado e novo prefeito de Paris, Jean-Sylvain Bailly, pediu ao rei que aceitasse um presente, uma fita decorativa tricolor. Após essa humilhação pública, o rei foi escoltado de volta a Versalhes por uma tropa da Guarda Nacional. O colapso repentino da autoridade do regime real foi saudado em cidades da França por ações imediatas: nobres foram forçados a deixar seus cargos e conselhos alternativos e milícias, estabelecidos no lugar do aparato do Estado Bourbon. Por toda a França, os soldados ficaram do lado do povo numa atitude decisiva, recusando-se a pagar taxas, impostos e dízimos. No interior, desespero e esperança combinavam-se à medida que os aldeões voltaram-se contra seus senhores, fazendo fogueiras com os registros feudais que os mantinham em servidão. No início de agosto, a Assembleia Nacional aboliu formalmente o sistema feudal: a busca por privilégios, a servidão e o trabalho não remunerado foram considerados ilegais nos chamados decretos de agosto. Se as eleições dos representantes do Terceiro Estado começaram a politizar a nação, a tomada do poder pela Assembleia Nacional liberou uma nova torrente de energia política. A avalanche de folhetos transformou-se na fonte de esperança do povo e no foco de sua ira. Para muitos historiadores, esse é o verdadeiro legado da Revolução Francesa. Partimos do pressuposto de que a política é espaço em que o destino da nação é decidido e que os políticos existem para representar nossos interesses e resolver nossos problemas; mas foi essa revolução e as eleições concomitantes que, pela primeira vez na Europa moderna, fizeram da política o centro da vida das pessoas e de suas preocupações com o país. O marco seguinte na situação que mudava rapidamente ocorreu no dia 26 de agosto, quando a assembleia lançou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ela continha dezessete princípios, começando com a sonora declaração de que: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais quanto a seus direitos.” O documento prossegue afirmando que “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação. Nenhum órgão ou indivíduo pode exercer qualquer autoridade que não se origine diretamente da nação”. Durante séculos, a França havia sido governada por uma dinastia autocrática. A soberania era concedida aos reis por Deus e Seu reino pertencia a eles. A declaração jogou tudo isso fora. O tom sagrado do documento é uma repetição proposital dos pronunciamentos reais, destinados a conferir seriedade a uma afirmação universal. O objetivo era não apenas que fosse o anúncio de uma nova era de ouro para a França, mas também para o mundo. A declaração deve muito aos filósofos e escritores da época, que haviam estudado uma vasta quantidade de textos contemporâneos e antigos, e chegado a conclusões racionais e refletidas sobre como as sociedades deveriam ser governadas. Entretanto, a distância entre a teoria resultante e a prática real do governo levou-os a imaginar uma sociedade ideal em que a humanidade se aperfeiçoava de alguma forma. Jean-Jacques Rousseau é o modelo dessa tendência, e sua influência é clara na cláusula 6 da Declaração: “A lei é a expressão da vontade geral. Todo cidadão tem o direito de participar pessoalmente ou por meio de seu representante, de sua fundação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger ou punir.” A Vontade Geral era o conceito central de uma boa sociedade para Rousseau. Sua obra de 1762 O contrato social, abre com a famosa frase: “O homem nasce livre, mas em toda parte está acorrentado.” Com isso, ele queria dizer que são as estruturas da sociedade, em particular a sociedade europeia moderna, que aprisionam a humanidade, e que, se elas fossem eliminadas, os homens poderiam de fato viver em liberdade. Mas como uma sociedade assim, desimpedida, seria administrada? Rousseau acreditava que deve haver um propósito comum na sociedade, a Vontade Geral, que é oriunda das necessidades e desejos individuais do povo e que, no entanto, transcende a individualidade. Essa entidade abstrata une as pessoas, formando uma sociedade coerente: “Cada um de nós coloca sua pessoa e todo o seu poder em comum sob a direção suprema da vontade geral; e, no grupo, recebemos cada membro como uma parte indivisível do todo.”5 Essa é uma reminiscência da visão de Platão de uma sociedade que é priorizada em relação às vidas de seu povo, mas Rousseau defendia que somos nós, não a nossa posse de propriedades ou títulos, que nos tornamos dignos de votar e dirigir as questões políticas da nação.6 Porém, como observou o historiador político Jonathan Israel, a história da Revolução muitas vezes é vista pelo prisma das ideias de Rousseau, enquanto a miríade de vozes radicais que influenciaram o impulso inicial para a liberdade e a igualdade é ignorada. Os últimos estágios da Revolução mostraram o triunfo do idealismo de Rousseau, mas as primeiras fases foram inspiradas pelas vozes pragmáticas do chamado “Iluminismo Radical”, incluindo Pierre Bayle, Montesquieu, Voltaire, Denis Diderot e Baron d’Holbach, além de escritores estrangeiros, como John Locke, Thomas Paine e Mary Wollstonecraft. As opiniões desses pensadores diferiam, mas estimularam debates que questionavam os princípios da monarquia, da hierarquia social, da discriminação religiosa e da autoridade da Igreja. Além disso, conforme escreveu Tocqueville sobre a Revolução: “É verdade que ela pegou o mundo de surpresa e, no entanto, foi o resultado de um trabalho muito mais longo, o término súbito e violento de um trabalho realizado por dez gerações de homens.”7 O rei se recusou a aceitar a Declaração dos Direitos do Homem e os decretos de agosto, e havia sinais de que oficiais do Exército real estavam se preparando para agir contra a Assembleia Nacional. Mais uma vez, o povo de Paris interveio. No dia 2 de outubro, um grupo de cerca de 7 mil mulheres marchou de Paris a Versalhes, acompanhadas de um destacamento da Guarda Nacional. Elas invadiram a assembleia e enviaram uma comitiva ao rei, que o forçou de maneira efetiva a aceitar os decretos da assembleia. Não contentes com essa vitória, as mulheres insistiram para que a família real e a Assembleia Nacional voltassem a Paris com elas, o que fizeram, sem reagir, no dia 6 de outubro. Esse foi um acontecimento de extrema importância para fortalecer a Revolução. A assembleia fora salva pela intervenção das pessoas comuns de Paris — pessoas a quem havia sido negado o direito de votar em seus representantes. Para os parisienses, essa foi a sua revolução. Uma vez estabelecidos em Paris, os membros da assembleia iniciaram a reconstrução do país com intensa energia. O Ancien Régime valia-se das distinções entre grupos, ao passo que, depois de 1789, a França era uma nação de cidadãos livres unidos por um propósito comum — liberté, egalité, fraternité. Protestantes e judeus receberam os mesmos direitos dos católicos.Todos os níveis do governo, assim como o Judiciário, o Exército, a polícia e a Igreja, foram abertos por meio da proibição de privilégios especiais e da introdução da prestação de contas e das eleições. A assembleia criou 31 comitês, que realizavam seu trabalho com vigor. Oitenta e três departamentos substituíram a antiga miscelânea das administrações provinciais, cada um planejado de modo que a capital regional estivesse a fácil alcance de todas as comunas. O status especial das cidades e vilarejos antigos foi reduzido de forma intencional, com a decisão de que os nomes dos departamentos seriam inspirados em características geográficas — o departamento que incluía Bordéus, por exemplo, foi chamado de Gironda, nome de seu rio principal. Leis e decretos foram traduzidos para os dialetos locais, e o sistema judiciário foi unificado a partir de um único conjunto de leis; os crimes capitais diminuíram drasticamente, e formas brutais de execução foram substituídas pela guilhotina. Juízes de paz foram eleitos, e o acesso às cortes, facilitado, inclusive com a redução de custos. Prefeitos e vereadores foram sujeitos a eleições (ainda que com um pré- requisito de propriedades para os candidatos), enquanto os conselhos de vilarejos ficaram livres do domínio de senhores feudais, recebendo a responsabilidade de supervisionar a administração e as obras públicas. Necessitando desesperadamente de fundos, a assembleia estatizou todas as terras da Igreja e começou a leiloá-las. Embora tenha havido objeções a algumas dessas medidas, em geral elas tiveram imensa aceitação popular. No entanto, a Assembleia Nacional também apresentou a proposta que, mais do que qualquer outra, dividiria a França. A Constituição Civil do Clero deu ao governo autoridade sobre a Igreja Católica. Os párocos deveriam ser eleitos e, segundo uma medida aprovada em novembro de 1790, tinham de jurar lealdade ao governo. Apenas cerca de metade fez o juramento, e amplas variações regionais revelaram uma França dividida, com especial resistência do oeste e sudoeste. Ali, a Igreja era o centro da vida comunitária, o pároco geralmente um homem do local, e as reuniões informais que aconteciam depois da missa eram usadas para resolver questões da comunidade. Para o governo, um assunto importante estava em jogo, pois não seria permitido que posições privilegiadas existissem numa sociedade igualitária. Não poderia permitir, por exemplo, que um sínodo da igreja tomasse decisões que afetassem as políticas públicas. Com o mesmo espírito, o governo aboliu as corporações de ofício — por acreditar que a participação iria conferir vantagens que não estavam abertas aos outros — e, em junho de 1791, todas as associações de empregadores e empregados foram proibidas. Ao mesmo tempo, clubes políticos brotaram por toda a França — sociedades jacobinas, o Clube Cordelier, em Paris, Amigos da Constituição e sociedades fraternas —, todos em vigorosa correspondência mútua sobre as questões urgentes do momento. Dois anos depois, a Revolução transformara a sociedade de acordo com a visão da assembleia e os desejos do povo da França, mas o clima no país ficou sombrio em junho de 1791, quando o rei e a rainha, temendo medidas ainda mais radicais e profundamente perturbados pela tomada da Igreja, tentaram fugir do país disfarçados. Foram reconhecidos e detidos em Varennes, antes da humilhação de serem levados de volta a Paris. Embora o status do rei estivesse aparentemente intacto, esse episódio foi um divisor de águas: Luís era um prisioneiro de fato em seu próprio país, com a real perspectiva de ser socorrido por potências monarquistas. Em setembro de 1791, uma nova Constituição foi aprovada pela assembleia e pelo rei. É notável, à luz do que estava para acontecer, o caráter conservador do documento. Embora a assembleia permanecesse um órgão legislativo, o Executivo seria formado pelo rei e seus ministros, com o poder de veto do rei sobre a legislação. O Judiciário tornou-se independente tanto do Executivo como do Legislativo, e o direito de voto ficou restrito aos cidadãos ativos. Embora todos concordassem que, a princípio, todas as pessoas — isto é, todos os homens: as mulheres eram excluídas de quase todos os direitos conferidos aos cidadãos — devessem ter o direito de voto, a assembleia restringiu o direito àqueles que ela julgava serem capazes de votar com responsabilidade. “Cidadãos ativos” eram os homens com mais de 25 anos que pagavam o correspondente a três dias de salário em impostos anuais, não estivessem falidos e não fossem criados, vivessem no mesmo colégio eleitoral há um ano e estivessem alistados na Guarda Nacional. Eles deviam escolher representantes que, por sua vez, elegeriam os membros da nova Assembleia Legislativa, que substituiria a Assembleia Nacional. A Constituição de 1791 exigia que os representantes fossem donos ou arrendatários de terras que rendessem o equivalente a pelo menos cem dias de salário. A Constituição era, portanto, muito mais restritiva nos requisitos para representantes do que as regras para a eleição do Terceiro Estado em março de 1789. De um total estimado de 7 milhões de adultos do sexo masculino, cerca de 4,3 milhões eram classificados como cidadãos ativos, e apenas 50 mil como potenciais representantes. Isso de uma população total (incluindo menores de idade) de cerca de 28 milhões. O jornalista e político parisiense Camille Desmoulins protestou contra o uso da expressão “cidadão ativo”, argumentando que alguém que arriscava a vida para abrir os portões da Bastilha é mais ativo que um homem que possui uma grande propriedade e não faz nada. A pobreza generalizada significava que, dependendo do distrito, apenas de 10 a 20% da população masculina estavam qualificados para votar. A Constituição de 1791 decretava que as eleições seriam realizadas a cada dois anos. Nenhum representante poderia ser eleito por mais de dois mandatos consecutivos, embora fosse permitido candidatar-se mais uma vez após um afastamento. Num ato extraordinário, a Assembleia Nacional aprovou uma resolução proposta por Maximilien Robespierre, representante de Arras, proibindo seus representantes de se candidatarem para a primeira Assembleia Legislativa. Essa foi uma decisão fatal, que privou a nova assembleia da experiência obtida com muito esforço pelos representantes da assembleia Nacional, ao mesmo tempo que transformava os políticos ambiciosos dentre eles num foco alternativo de poder. As eleições foram realizadas em setembro de 1791. Os 745 representantes que foram eleitos eram todos homens ricos, a maioria, de propriedades, não do comércio, muitos deles advogados. Desde o verão de 1789, muitos nobres haviam deixado a França, e, em novembro de 1791, a Assembleia Legislativa aprovou uma lei solicitando que os chamados émigrés retornassem ou seriam condenados à morte. O rei, de modo previsível, vetou a medida, aumentando a distância entre monarca e assembleia. Em fevereiro de 1792, a Áustria, liderada pelo cunhado de Luís, o imperador Leopoldo II, formou uma aliança com a Prússia, com a intenção de invadir a França e libertar o rei. Em abril, a França estava em guerra contra a Áustria, e, ao fim de julho, o Exército prussiano invadiu Paris, e seu comandante prometeu massacrar os habitantes a menos que o rei e a rainha fossem liberados ilesos. O resultado viria a radicalizar ainda mais a população de Paris. A essa altura, alguns membros da Assembleia Nacional dissolvida pareciam lamentar sua decisãode entregar o poder a seus sucessores e buscaram outras vias para exercerem sua influência. Nessa fase crucial da Revolução, a Comuna de Paris começou a ganhar autoridade. Ela havia sido estabelecida em 1789 como o conselho da cidade, com Jean-Sylvain Bailly como seu primeiro prefeito eleito. Bailly fora presidente do Terceiro Estado e liderara os representantes no Juramento da Quadra de Tênis, mas, quando, em julho de 1791, ele ordenou que a Guarda Nacional usasse a força para dispersar as multidões no Campo de Marte, tanto o prefeito como a Comuna perderam apoio popular. Em 9 de agosto de 1792, um grupo de radicais do clube jacobino, incluindo Robespierre, tomou o controle efetivo do Hôtel de Ville, e declarou-se a Comuna Revolucionária. No dia seguinte, uma multidão invadiu o Palácio das Tulherias e matou os guardas suíços do rei, forçando a família real a buscar a proteção da Assembleia Legislativa. A Comuna, incitada pelo êxito e agora no controle efetivo de Paris, recusou-se a reconhecer a autoridade da assembleia em sua cidade, cerrou os portões e começou a publicar listas de “inimigos da Revolução”. Em reconhecimento ao fato de que o rei havia sido deposto, a Assembleia Legislativa concordou que uma nova entidade, a Convenção Nacional, deveria ser eleita para elaborar uma Constituição. Enquanto os acontecimentos seguiam rapidamente em Paris, o restante do país, pelo menos em grande parte, dava apoio total à Revolução. O escritor inglês Richard Twiss descreveu o que viu quando viajava pelo norte da França em 1792: Em todas as cidades entre Calais e Paris, uma árvore adulta (geralmente um álamo) foi plantada na praça do mercado [...] no alto da árvore ou de um poste há uma touca vermelha de lã ou algodão, chamada de Barrete da Liberdade, com flâmulas em torno do poste, ou fitas vermelhas, azuis e brancas [...]. Todos os brasões que antes decoravam os portões dos Hôtels são retirados [...]. Nenhum uniforme é usado pelos criados; esse distintivo da escravidão também é abolido.8 O povo de Paris salvara a Revolução em 1789; agora haviam se transformado no fator de controle de sua política. Os jacobinos da Comuna obtiveram poder ao se aliarem aos desejos do povo parisiense — um impulso aparentemente democrático, mas de efeito tóxico. A Assembleia Legislativa com seus membros inexperientes estava, em agosto de 1792, à beira do colapso. Os padres que haviam se recusado a prestar juramento de lealdade foram suspensos e estavam presos por traição. Entre 2 e 6 de setembro, com Paris em pânico devido à aproximação do Exército prussiano, 240 padres e cerca de mil outros prisioneiros foram executados, enquanto muitos membros da Assembleia Legislativa, acreditando correr perigo, fugiram da cidade. O romancista Restif de la Bretonne testemunhou uma execução: Vi uma mulher surgir, pálida como suas roupas de baixo [...]. Eles a fizeram subir um amontoado de cadáveres. Mandaram-na gritar “Vida longa à nação”. Ela se recusou com desdém. Então um assassino agarrou-a, arrancou seu vestido e abriu sua barriga. Ela caiu, e os outros acabaram com ela. Nunca um horror assim havia se apresentado à minha imaginação. Tentei fugir; minhas pernas fraquejaram.9 Finalmente, no dia 19 de setembro de 1792, a Assembleia Legislativa dissolveu-se e deu lugar à recém-eleita Convenção Nacional. É possível defender que, até meados de 1792, a Revolução presenciara uma transição relativamente tranquila de um regime autocrático a um governo constitucional baseado em princípios liberais. Essa visão é sustentada pela medida aprovada pela Assembleia Legislativa em agosto de 1792, que concedeu, pela primeira vez, direito de voto a todos os homens acima de 21 anos, excluindo apenas criados. Parecia que uma democracia fora criada no espaço extraordinariamente curto de três anos. Porém, uma base de poder alternativa passara a existir na forma da Comuna Revolucionária, enquanto os próprios revolucionários dividiam-se cada vez mais em facções. A principal divisão se deu entre girondinos e jacobinos. No início, foi uma separação pessoal e tribal tanto quanto por ideologia política, em que cada facção era leal a certos líderes — Brissot e Robespierre em particular. De fato, os girondinos começaram como membros do clube jacobino, mas, à medida que a Revolução prosseguia, os jacobinos distinguiram-se por uma postura mais radical, querendo destruir tudo que havia para manter a pureza da nova ordem. Para a história da democracia, o ano de 1792 foi um divisor de águas. Até então, a Revolução fora controlada pelos advogados e comerciantes burgueses que participavam da assembleia, ainda que com apoio entusiástico das classes baixas. Depois, conforme mostram os eventos de 1792, os trabalhadores de Paris — que se tornaram conhecidos como os sans-culottes — ficaram impacientes com o governo representativo e com o tempo levado para que as medidas entrassem em vigor. Eles passaram a exigir uma democracia direta, em que cada pessoa expressasse sua opinião nos fóruns do poder, o que ia de encontro à democracia representativa dos burgueses. Rousseau havia sido um crítico do modelo parlamentar britânico: “Se os ingleses pensam que são livres, enganam-se; são livres durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que eles são eleitos, as pessoas são escravas: não contam mais para nada.”10 Os sans-culottes podem não ter sido estudantes de Rousseau, mas os líderes jacobinos que buscavam canalizar o poder do povo parisiense sem dúvida eram. As eleições para a Convenção Nacional foram as primeiras realizadas no país por sufrágio universal masculino desde a Atenas antiga. Não foi surpreendente, dada a ameaça à Revolução e à reeleição de muitos representantes da primeira Assembleia Nacional, que a Convenção fosse uma entidade mais radical que sua predecessora. O povo francês foi encorajado a acreditar que seus representantes eram emissários, eleitos para obedecer a ordens. Cartas a membros da Convenção muitas vezes terminavam com a frase “ton egal en droit” — “seu igual sob a lei”. Foram aprovadas medidas que permitiam aos eleitores cassar o mandato de qualquer representante que deixasse de seguir a instrução recebida — um claro elemento de democracia direta introduzido na tentativa de superar as desvantagens identificadas na democracia representativa. Entre os clubes políticos de Paris, os jacobinos ganharam o apoio das multidões da capital e tomaram o controle efetivo da Convenção Nacional. Em 21 de setembro de 1792, a Convenção declarou que a França era uma república. Mas não havia um histórico de movimento republicano na França. Em 1789, quase todos os políticos queriam uma monarquia constitucional, e, até a proclamação da república, a França era um reino com um monarca deposto. Agora o poder do monarca estava nas mãos da Convenção Nacional, que se tornou a governante absoluta sem nenhuma outra instituição capaz de desafiar ou limitar sua autoridade ou suas ações. A Convenção, que permaneceu em sessão durante todos os anos cataclísmicos da Revolução, continuou sendo tanto legislativa como executiva. A anulação de qualquer separação de poder (conceito delineado por Montesquieu) estava completa em abril de 1793, quando a Convenção nomeou o Comitê de Segurança Pública e o Tribunal Revolucionário, que se tornaram, respectivamente, o gabinete de fato e a Suprema Corte da terra. E, dentro da própria Convenção, a oposição ao grupo governante foi suprimida: em parte por ideologia — a crença de que havia uma forma única e inquestionável de conduzir a Revolução— e em parte por causa das constantes lutas pelo poder, o conceito de oposição leal não chegou a se desenvolver. Em setembro de 1792, o Exército prussiano, invasor, foi cercado na Batalha de Valmy, em grande parte por uma força de voluntários inexperientes. Em dezembro, com a nação ainda sob a ameaça de inimigos externos e internos, o rei foi levado diante da Convenção para responder à acusação de alta traição e crimes contra o Estado. O líder dos jacobinos, Saint-Just, declarou: “A meu ver, não há meio-termo: esse homem tem de reinar ou morrer! Ele oprimiu uma nação livre; declarou-se seu inimigo; abusou das leis: ele tem de morrer para garantir a tranquilidade do povo, uma vez que tinha em mente destruir o povo para assegurar a sua.”11 O rei foi considerado culpado por todos os 693 representantes. A maioria votou pela pena de morte e, em 21 de janeiro de 1793, a nação mais poderosa da Europa executou seu monarca. Entretanto, em alguns meses, a nova república teve de lidar com uma guerra civil e com a constante ameaça de invasão. Uma rebelião em massa na região de Vendée, no oeste da França, combinou-se com rebeliões em vilarejos e cidades, incluindo Lyon, a segunda maior cidade do país. Algumas rebeliões eram monarquistas, outras eram contra a supressão do cristianismo, outras ainda eram lideradas pelos girondinos, que se opunham à tomada do poder pelos jacobinos. A resposta jacobina em Paris foi prender deputados girondinos na Convenção Nacional (21 seriam executados em outubro) e tomar o Comitê de Segurança Pública. Os jacobinos estavam no poder quando a França enfrentava sua crise mais grave. Apesar da vitória em Valmy, a ameaça de invasão ainda era grande. No verão de 1793, o regime instituiu o famoso levée en masse, recrutando para o Exército todos os cidadãos qualificados. O resultado foi a transformação da França numa nação militarizada, voltada para a guerra total. Com a sobrevivência da nova nação em jogo, a guerra contra a Prússia, a Áustria e os contrarrevolucionários seria diferente de tudo o que acontecera antes. Regimes europeus anteriores haviam sido cautelosos quanto a Exércitos em massa, vendo a possibilidade de seus súditos pegarem em armas como uma ameaça potencial. Os Exércitos geralmente eram pequenos, comandados por aristocratas e reforçados por mercenários. Os líderes revolucionários da França tinham a visão oposta e contaram com os cidadãos como interventores da nação soberana. O povo francês respondeu à causa com enorme vigor e comprometimento, e os resultados foram espantosos e abrangentes. O Exército francês já era uma organização altamente profissional e meritocrática. O levée colocou à sua disposição os recursos de uma imensa nação, junto com uma população extremamente motivada, e o número de homens armados aumentou rápido de 200 mil para 900 mil. O povo da França não estava lutando para conquistar território nem por influência política internacional. Lutava, em primeiro lugar, para salvar seu país e, depois, para livrar da tirania o povo de outras nações. Assim, sua guerra era, em princípio, uma batalha ideológica. Durante os dezenove anos seguintes, o Exército francês permaneceu praticamente invencível. Enquanto os Exércitos anteriores tendiam a ser táticos em batalha, preservando suas tropas e tentando esquivar-se do inimigo, as forças francesas dirigiam-se direto ao centro das forças adversárias, usando o peso do número e um fogo de artilharia devastador para arrasá-las no campo de batalha. Os eventos mostraram que o sonho de muitos pensadores iluministas, o de que as nações governadas com o consentimento do povo poderiam viver em paz e tranquilidade, era uma ilusão ingênua. Elas também entrariam em guerra, não apenas para sobreviver, mas também para levar a liberdade a seus vizinhos. No dia 24 de junho de 1793, os membros da Convenção Nacional aprovaram a Constituição que haviam sido eleitos para promulgar. Todos os homens, incluindo residentes estrangeiros, teriam direito de voto, desde que morassem no colégio eleitoral por pelo menos seis meses. Os colégios eleitorais tinham um número próximo de habitantes, e um único deputado era eleito de forma direta. A nova Assembleia Legislativa seria eleita todo ano. Essa Constituição, embora ratificada pela Convenção, foi surpreendida por certos eventos e não chegou a entrar em vigor (ainda que suas regras eleitorais tenham sido usadas na França durante a maior parte do período entre 1852 e 1940). Enquanto isso, em Paris, a política da Revolução entrava numa fase sombria. Um grupo paranoico de homens no poder com um profundo senso moral, a aplicação rigorosa da razão ao mundo confuso da política e a avidez dos revolucionários pela destruição de qualquer inimigo que fosse percebido contribuíram para o conflito fatal, em que uma sequência interminável de pessoas foi levada a um tribunal improvisado para depois serem decapitadas na Place de la Révolution. O Terror, que durou de setembro de 1793 a julho de 1794, ofuscou as conquistas da Revolução — as reformas agrárias, o imposto progressivo, o sistema de pensões, o combate à fome, os fundos para a educação e, é claro, o direito de voto masculino universal. Os jacobinos podem ter acreditado que um período de ditadura era necessário numa emergência nacional, mas suas ações claramente contradizem o documento fundamental da revolução, a Declaração dos Direitos do Homem. Como muitos que viriam a seguir seus passos nos duzentos anos seguintes, eles acreditavam conhecer o caminho verdadeiro e que as injustiças cometidas contra indivíduos eram um preço racional a ser pago pelo bem da humanidade. Na primavera de 1794, a Revolução já perdia qualquer sentido que não fosse a própria preservação. Líderes revolucionários notáveis, como Georges Danton, Olympe de Gouge (importante defensor do direito das mulheres) e Camille Desmoulins, foram guilhotinados. Intelectuais e artistas, incluindo Antoine Lavoisier e André Chenier, foram executados no verão. A Revolução era como uma porca comendo a própria ninhada. Em junho, o tribunal revolucionário passou a prescindir de testemunhas, e todos os dias os prisioneiros faziam uma aparição superficial diante de um grupo de jurados antes de serem levados à Place de la Révolution. Não se tratava de uma batalha de esquerda contra direita (termos inventados durante a Revolução): à medida que o povo de Paris fazia pressão por medidas ainda mais radicais, os jacobinos voltavam-se contra seus antigos defensores, prendendo tanto “extremistas” como “indulgentes”. Sociedades e clubes políticos fecharam; acabara a fase da democracia popular, em que os sans-culottes ditavam condições a seus líderes.12 Ninguém parecia saber mais o propósito da Revolução. Maximilien Robespierre, que surgiu como seu líder efetivo em 1793, refletiu intensamente sobre a questão durante os meses do Terror. Em fevereiro de 1794, ele foi à Convenção para declarar suas ideias: Qual é o fim que nos esforçamos para alcançar? O usufruto tranquilo da liberdade e da igualdade; o reino da justiça eterna, cujas leis estão gravadas, não em mármore ou pedra, mas nos corações de todos os homens... Que tipo de governo pode realizar esses prodígios? Somente o governo republicano ou democrático: as duas palavras são sinônimas. Mas essa democracia não deveria envolver a participação do povo; para Robespierre, em vez disso, ela era um processo semimístico: Qual é, então, o princípio fundamental do governo democrático ou popular, em outras palavras, a base essencial que o sustentae o faz funcionar? É a virtude [...] que não é nada senão o amor pela terra de nascimento e suas leis [...] esse sentimento sublime pressupõe uma preferência pelo interesse público acima de todos os interesses particulares [...] No sistema da Revolução Francesa, o que é imoral é insensato, e o que corrompe é contrarrevolucionário.13 Essa combinação fatal de política e moralidade foi o que ocasionou o Terror. Tornou-se impossível discordar de adversários políticos sem, para todos os propósitos, acusá-los de serem traidores. Robespierre e seus colegas dispensaram de forma implícita a análise mal-afamada, porém muito mais prudente (baseada em anos de experiência no governo), de Maquiavel de que o propósito moral e a política deveriam permanecer bem separados. Eles preferiram Rousseau a Maquiavel, Platão a Demócrito. O Terror acabou quando o Exército da coalizão estrangeira foi derrotado em junho de 1794: a nação não mais corria perigo mortal. Um golpe em 27 de julho levou à prisão de Robespierre. Ele tentou suicidar-se, mas, juntamente com dezesseis colegas jacobinos, foi executado no dia seguinte. Durante o restante do ano, os jacobinos foram perseguidos e levados à guilhotina. Historiadores observaram que a perda de vidas nos meses do Terror — estimativas variam de 16 mil a 30 mil — foi muito menor do que na supressão brutal da contrarrevolução em Vendée, em que morreram de 120 mil a 450 mil pessoas. No entanto, o Terror permanece um símbolo poderoso da Revolução, em razão de sua violência aparentemente viciante e ao terrível alerta de que as melhores intenções — os maravilhosos conceitos abstratos de liberté, egalité e fraternité — podem gerar as piores consequências. A Convenção Nacional afastou-se de suas tendências democráticas. Uma nova Constituição introduzida em 1795 apresentava duas câmaras: o Conselho dos Antigos, com 250 postos, e o Conselho dos Quinhentos (um eco da Atenas antiga). A idade mínima para os representantes era de 40 e 30 anos, respectivamente, com um pré-requisito de residência de quinze e dez anos, além de qualificações por propriedades. As eleições diretas acabaram, e o eleitorado reduziu-se de 7 milhões para cerca de 100 mil. Ainda assim, as eleições trouxeram deputados que eram contra o Diretório governante de cinco homens, o que anulou os resultados em muitos dos colégios eleitorais tanto em 1798 como em 1799. Em novembro de 1799, outro golpe acabou com esse sistema, e Napoleão Bonaparte, o general mais conhecido da França, assumiu o poder. Napoleão apresentou novas Constituições em 1799 e 1802; as duas introduziam estruturas complexas de votação que resultaram numa lista da qual ele poderia escolher membros adequados para um Senado, um corpo tribunal e legislativo. Como seu modelo, Augusto César, Bonaparte manteve a estrutura de uma Constituição representativa e simplesmente controlava todos os cargos significativos. Em novembro de 1804, após grandes êxitos em campanhas militares estrangeiras, Napoleão declarou-se imperador. O movimento em direção ao direito de voto pleno para o sexo masculino e à democracia foi, portanto, interrompido, mas a Constituição revolucionária de 1793 deu aos futuros regimes franceses um caminho a seguir. Apesar dos resultados caóticos, a Revolução efetivara uma transição de uma monarquia absoluta para um sistema político que poderia corresponder à vontade popular. A educação pública passou a ser vista como um direito básico do cidadão, assim como um elemento importante de uma democracia em funcionamento. As novas estruturas administrativas da Revolução formaram um modelo que seria seguido pelo mundo. O Estado moderno, baseado na unidade étnica, numa cultura coerente e na combinação entre um centro forte e autonomia local, foi estruturado pela primeira vez na França. Qual foi, no entanto, o êxito da Revolução num dos elementos-chave da democracia — fazer com que o povo vote? Os registros de votos nas eleições no período revolucionário são incompletos, mas os que sobreviveram são reveladores. Na eleição de 1791, Paris tinha aproximadamente 80 mil eleitores qualificados, dos quais 17 mil votaram. Elegeram 946 representantes para escolherem seus deputados — apesar de terem se candidatado, somente 200 dos 946 votaram. Nas eleições para a Convenção Nacional, em 1792, de um eleitorado total de 7 milhões, apenas 700 mil votaram. Qual a razão disso? Um historiador das eleições francesas comentou que “a corrupção, as fraudes e a violência eram praticadas por candidatos de todas as facções e por seus defensores; mesmo quando a lei previa o voto secreto, os eleitores muitas vezes eram forçados a votar publicamente diante de uma multidão”.14 Nos colégios eleitorais de Paris para as eleições da Convenção em agosto de 1792, por exemplo, os eleitores tinham de declarar seu voto em voz alta “perante o povo”. Porém isso só explica em parte os números extremamente baixos de comparecimento num país que estava estimulado pela política da Revolução. A discrepância entre o direito de voto e a sua prática permanece um dos grandes paradoxos da França revolucionária. O país levou o movimento pela liberdade a grande parte da Europa, por meio de suas conquistas e de seu exemplo. O Estado nacional, governado com o consentimento e o envolvimento do povo, e definido por seus cidadãos e não por sua monarquia, era um futuro animador a ser alcançado. A França avançou muito nessa direção antes de ser subjugada pela violência. Ainda assim, o impacto e o legado da Revolução foram enormes. Além de mostrar que a liberdade podia ser conquistada (e potencialmente perdida) pelo simples ato de eliminar a ordem estabelecida, ela aplicou um novo tipo de nacionalismo em que o povo, a língua e a cultura definiam a nação. Esses dois conceitos de liberalismo e nacionalismo, originados a partir da Revolução, viriam a dominar a política da Europa e, por extensão, de grande parte do mundo durante os 150 anos seguintes. A democracia foi um elemento importante nessa luta. O efeito inicial da Revolução Francesa e do Terror foi afastar as pessoas da democracia — parecia que dar poder às classes mais baixas resultaria em caos e derramamento de sangue —, mas os princípios de que a soberania encontrava-se no povo e de que todas as pessoas tinham direitos iguais persistiram, embora fossem ressurgir apenas meio século depois como forças políticas na Europa. E 8 REPÚBLICAS DA AMÉRICA LATINA O Cidadão Subjugado nquanto a democracia passava por um renascimento, reincidindo na França, o continente da América do Sul estava, com uma distância de algumas décadas, recebendo a mensagem libertadora da Revolução. Como na França, um regime aparentemente sólido que estivera no poder havia séculos foi eliminado em apenas alguns anos e substituído por uma série de Estados nacionais. E, em comum com seus colegas rebeldes da América do Norte, os potenciais líderes dessas novas nações precisavam criar uma autoridade legítima que lhes daria o direito de governar. Enquanto o Brasil recorria à monarquia, outras nações buscavam legitimidade na democracia republicana — a soberania da Coroa espanhola foi substituída pela soberania do povo. A democracia chegou à América Latina na década de 1820, bem antes de chegar à maior parte da Europa Ocidental, mas desde o início essa democracia foi refreada, obstruída e minada pelo legado histórico da região. Foi Pascual de Andagoya quem primeiro ouviu rumores de uma terra em que tudo era feito de ouro — o El Dorado, lugar deriquezas fabulosas em algum ponto ao sul, num local em que os habitantes chamavam de Birú ou Pirú. Isso foi por volta de 1520, e Andagoya era um jovem explorador espanhol que viajou do Panamá à Colômbia. Ele tentou, sem sucesso, seguir mais ao sul, e, em sua volta ao Panamá, a notícia se espalhou através da comunidade de aventureiros espanhóis. A conquista recente do Império Asteca do México por Hernán Cortés mostrara que tais rumores às vezes tinham fundamento. Francisco Pizarro organizou expedições a partir do Panamá em 1524, 1526 e 1530, atraído cada vez mais ao sul por histórias a respeito de um rei que governava um vasto império. Em 1534, ele havia descoberto a capital inca, destruído o centro do seu império e executado o imperador. Os conquistadores reivindicaram o território para a Coroa espanhola e estabeleceram uma capital provisória em Jauja. Então, Pizarro deu um passo significativo, fundando uma nova cidade na costa de Lima — o centro do império espanhol na América viria a ser um porto para o transporte de mercadorias, não um centro administrativo no interior. Os espanhóis foram às Américas do Sul e Central não como uma nação com o objetivo de conquistar terras, mas como aventureiros em busca de ouro. Assim como muitas outras colônias europeias, a América Espanhola deu início a uma série de postos de comércio, extraindo riquezas do território com o uso de trabalho forçado da população nativa e enviando-as para a Espanha. Lima tinha o monopólio desse comércio. Quando os espanhóis se aventuraram mais ao sul do Peru, atravessaram os Andes e chegaram ao que hoje é a Argentina, estabelecendo um povoado em Santiago del Estero em 1553. Antes disso, exploradores espanhóis também haviam descido pela costa leste, estabelecendo-se em Buenos Aires em 1536.1 Cidades semelhantes apareceram, como Assunção e Montevidéu. Mercadores portugueses começaram a cultivar cana-de-açúcar na costa do Brasil, levando escravos de Cabo Verde e, depois, do interior do continente africano. A cidade do Rio de Janeiro e uma série de outras vilas litorâneas foram formadas para dar conta desse tráfico. São Paulo, Belém e Paramaribo e outros postos de comércio foram estabelecidos por mercadores holandeses, portugueses e espanhóis. Depois que os conquistadores ocuparam o território e subjugaram a população nativa, a Coroa espanhola assumiu o controle formal de suas colônias por meio de uma sequência de vice-reis. Em contraste com a América do Norte, a terra foi repartida entre cortesãos poderosos e aventureiros — os que tomaram posse primeiro e aqueles a quem o vice-rei e o rei deviam favores. Essa estrutura de posse deu forma a uma economia baseada na exploração da terra, primeiro em busca de minerais, depois para pastagens e agricultura. Tratava-se de uma economia rural com os principais centros urbanos funcionando como canais para o comércio, mas não para o tipo de manufatura pré-industrial que caracterizava as cidades europeias. As habilidades dos nativos em cerâmica, trabalhos em metal e tecidos foram desprezadas e todas as mercadorias de alta qualidade eram importadas da pátria mãe. A economia colonial não tinha impulso ou incentivo para inovar, diversificar ou se desenvolver. Na América Espanhola, a rígida estrutura de classes do início da Europa moderna foi mantida, com a nova riqueza injetada como agente social. Assim como na própria Espanha, uma sociedade católica hierárquica conservava suas tradições, com cada colônia sendo administrada por uma pequena elite de nobres que dirigia uma classe do que poderíamos chamar de mercadores aventureiros. Junto com eles, vinham administradores profissionais, advogados e funcionários públicos que atuavam por conta do governo. Esses súditos europeus da Coroa espanhola, conhecidos coletivamente como criollos, viviam entre uma população mista de povos nativos e escravos importados cujo status era determinado pela raça — índios mestiços (mestizos) tinham o status mais alto entre os não europeus; e os escravos negros, o mais baixo. A longevidade das colônias significava que essa hierarquia rígida, mantida por meio de repressão brutal, foi profundamente incorporada. Noventa por cento das exportações da América Latina para a Espanha eram de prata e ouro. Como o viajante britânico Basil Hall descreveu na década de 1830: O único propósito atribuído à existência das Américas era o de recolher os metais preciosos para os espanhóis; e se os cavalos selvagens e o gado que infestavam o país pudessem ter sido treinados para esse trabalho os habitantes poderiam ter sido todos dispensados, e o sistema colonial teria sido perfeito.2 O continente estava dividido em cinco vice-reinos: Nova Espanha (aproximadamente, México, Guatemala e Cuba); Nova Granada (Equador, Colômbia e Venezuela); Brasil (leal à Coroa portuguesa, que foi unificada à Espanha entre 1580 e 1640); La Plata (Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai) e Peru (incluindo o Chile). O Peru controlava todo o comércio com a Espanha: somente os portos peruanos tinham permissão para receber mercadorias espanholas, que então eram carregadas para o outro lado dos Andes, para o restante do continente, atravessando, por exemplo, uma trilha de 3 mil quilômetros até Buenos Aires.3 Do outro lado do Atlântico, só Cádiz e Sevilha tinham permissão para comercializar com as Américas. Duas vezes por ano, um comboio imenso de navios, fortemente protegido, partia da Espanha a Lima, carregado de produtos manufaturados (tecidos, porcelanas, móveis, armas, máquinas), e retornava com barras de ouro e prata. O resultado dessas restrições foi uma rápida expansão do comércio de mercadorias contrabandeadas, com navios britânicos, franceses e holandeses próximos de Buenos Aires, Santiago, Veracruz e Caracas atendendo às necessidades de ávidos compradores. A infraestrutura dos vice-reinados revelava seus propósitos — cidades portuárias dominadas, construídas para controlar a exploração do interior, e centros administrativos desenvolvidos apenas onde eram necessários para proteger o comércio de mercadorias e apaziguar populações nativas. Vastas extensões de terras ficaram na posse de um pequeno número de famílias. A intenção original dos donos era buscar ouro e prata, mas depois essas propriedades imensas, ou haciendas, tornaram-se terras agrícolas, e seus donos, os estancieros, os homens mais poderosos da América do Sul. Alguns historiadores defendem que a estrutura patriarcal e os costumes rígidos das haciendas tornaram-se um modelo, com os estancieros criando sociedades sul- americanas à sua imagem. Se os estancieros monopolizavam a terra, os mercadores tinham um controle semelhante do comércio. Na América do Norte, uma classe média rural e de pequenas cidades formara um mercado movimentado para os produtos manufaturados, propiciando a base para inovações e desenvolvimento de recursos e habilidades. No final do século XVII, esses colonos construíam navios, produziam tecidos, vidro, papel e materiais de construção. A pequena base manufatureira na América Latina, por outro lado, fazia uso da mão de obra forçada de nativos. Somente em meados do século XIX estabeleceu-se uma pequena classe média rural. Simón Bolívar, o homem que conduziria muitas das colônias espanholas à independência, revelou como esse sistema alimentava o ressentimento de rebeldes contra a Coroa espanhola na década de 1820: Os americanos, no sistema espanhol agora estabelecido, não têm outro lugar na sociedade senãoo de meros consumidores; mesmo nessa condição, são oprimidos por restrições espantosas, tais como o cultivo de frutas europeias [...] uma proibição de fábricas [...] e restrições aduaneiras entre províncias americanas para que não comercializem, dialoguem ou sequer realizem acordos umas com as outras. No fim, sabem qual é nosso destino? Campos em que cultivamos milho, cereais, café, cana, cacau e algodão [...] [e] as profundezas da terra para escavar ouro que nunca satisfaz essa nação gananciosa.4 Porém, em seus próprios termos, o império espanhol foi um sucesso. Durante três séculos, manteve a população pacífica, enquanto explorava os recursos naturais do continente com grande êxito — algo que nenhum outro império moderno foi capaz de obter por um período tão longo. Levando isso em consideração, é notável a rapidez com que o império desmoronou. As rebeliões contra a Coroa espanhola nas primeiras décadas do século XIX surgiram de indignações articuladas por Bolívar e estimuladas pelos eventos na América do Norte e Europa. A aliança entre Espanha e França e a subsequente humilhação nas mãos de Napoleão deixaram muitos criollos frustrados e desgostosos com os governantes de sua pátria. Um grupo de líderes inspiradores, que incluía Francisco de Miranda, Simón Bolívar, José de San Martín e Bernardo O’Higgins, surgiu para transformar os sentimentos de revolta em campanhas práticas. O momento de menor sorte para a Espanha foi em 1803, quando Napoleão forçou o rei Fernando VII a renunciar e colocou no trono seu irmão, José Bonaparte, que introduziu uma nova Constituição liberal. Os espanhóis se rebelaram contra a ocupação francesa, e um comitê governativo, ou junta, estabeleceu-se em Sevilha para governar em nome de Fernando. Em 1809, a junta declarou que o império da América do Sul era parte da Espanha e convidou colonos a elegerem representantes para a Junta Central em Sevilha. Mais de cem cidades da América Espanhola participaram das eleições com grandes porções da população, mesmo aqueles sem direito de voto, envolvendo-se no processo. Na prática, os colonos tinham apenas um pequeno número de representantes na Assembleia Legislativa, as Cortes, mas, ainda assim, um sistema de consulta foi estabelecido por toda a América Espanhola, que persistiria durante toda a turbulência política que se seguiu. Fernando VII retomou o trono espanhol em 1813, após a derrota de Napoleão na Guerra Peninsular, mas, àquela altura, a maioria das colônias americanas da Espanha estava num estado de guerra civil entre republicanos, buscando autonomia, e monarquistas, leais à pátria mãe. Os republicanos foram vitoriosos. Em 1822, Simón Bolívar era presidente da Grã-Colômbia, um novo Estado, que abrangia aproximadamente o antigo vice-reino de Nova Granada. No sul, o argentino José de San Martín, em aliança com Bernardo O’Higgins, do Chile, havia se tornado uma força dominante. San Martín queria criar uma nova monarquia na América do Sul com um príncipe de sangue espanhol, ao passo que Bolívar imaginava uma nova república. Em julho de 1822, os Exércitos de San Martín e Bolívar aproximaram-se, cada um por sua conta, do valioso vice-reino do Peru. Com o objetivo de evitar um conflito entre os colonos, os líderes concordaram em se encontrar na importante cidade portuária de Guayaquil. Bolívar ofereceu um banquete a San Martín em 26 de julho, no qual fez um brinde aos “Dois homens mais grandiosos da América do Sul, o general San Martín e eu”. San Martín, soldado profissional, sabia que o Peru não poderia ser tomado dos espanhóis, a menos que os dois Exércitos trabalhassem em conjunto, e Bolívar aparentemente deixou claro que ele comandaria as forças e governaria a república resultante. San Martín não viu opção senão conceder a Bolívar o comando dos dois Exércitos. Desistiu de qualquer reivindicação de posse do Peru, voltou para a Argentina e depois para a França. Com San Martín, a visão de uma monarquia para a América Espanhola desapareceu. A colônia portuguesa do Brasil também havia sido profundamente afetada pela invasão de Napoleão à península Ibérica em 1807, seguida da fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro. Em 1820, o novo governo em Lisboa pediu ao rei para voltar, mas Pedro, o príncipe herdeiro, permaneceu no Brasil e recusou-se a desfazer a estrutura de governo independente ali construída durante os anos de exílio. Em 1822, ele declarou a independência, que foi confirmada em 1823 pela vitória sobre as forças enviadas pelas Cortes de Lisboa. Pedro foi coroado “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”. Uma vez livres do controle da metrópole, como as ex-colônias deveriam ser governadas? O que dava legitimidade a líderes como Simón Bolívar, que ganhara o poder através de batalhas militares? A questão territorial acrescentava complicadores: o continente deveria ser dividido em nações, e, se fosse o caso, como? Bolívar sonhava em unificar a América do Sul numa grande república, mas logo ficou claro que essa ambição jamais seria realizada. À parte os obstáculos geográficos, forças de liberalismo e conservadorismo lutavam por supremacia em cada colônia. Diferentemente dos Estados Unidos, não havia uma aceitação geral de uma filosofia política ou sistema de governo específicos. Um problema central foi que Bolívar, figura dominante no norte do continente, ainda que fosse um republicano convicto, não era democrata. Para ele, as eleições eram “o maior flagelo das repúblicas e geram apenas anarquia”.5 Em 1815, ele escrevera que acontecimentos na América do Sul “provaram que as instituições inteiramente representativas não se adequam ao nosso caráter, costume e conhecimento presente” e, em 1819, ele declarou: “A liberdade completa e a democracia absoluta são os recifes onde todas as esperanças republicanas afundaram.” Embora isso faça Bolívar parecer um antidemocrata mordaz, ele era um pensador político sofisticado, com um conhecimento abrangente de história política. Em 1819, ele também escreveu que a Venezuela deveria ser uma república e que “seus princípios deveriam ser a soberania do povo, a divisão de poderes, a liberdade civil, a proibição da escravidão e a abolição da monarquia e de privilégios”. Isso, contudo, não significava democracia: “Atenas nos oferece o exemplo mais brilhante de uma democracia absoluta, mas, ao mesmo tempo, Atenas é o exemplo mais melancólico da extrema fraqueza desse tipo de governo.” Bolívar via na “democracia absoluta” da antiga Atenas a razão do declínio da cidade — uma visão comum no século XIX. Assim, ele argumentou em 1826 que “um presidente vitalício com o poder de escolher seu sucessor é a inspiração mais sublime entre os regimes republicanos”.6 É difícil encontrar a correspondência entre isso, a “soberania do povo” e a “abolição de privilégios”, mas Bolívar acreditava que eles poderiam ser alcançados da melhor forma por intermédio de um presidente que entendesse as necessidades de seu povo. Isso era mais semelhante ao Império Romano que à república romana, e, no entanto, foi consagrado na Constituição que Bolívar elaborou para a Bolívia, país cujo nome foi inspirado no seu. Embora ele gozasse de grande lealdade pessoal, isso não chegava a constituir um meio de garantir a legitimidade para governar uma nação. A necessidade de legitimidade ajudara a fazer dos Estados Unidos uma democracia. O fato de que o mesmo requisito não foi atendido na América do Sul levou a constantes disputas sangrentas, durante os 170 anos seguintes, pela definiçãode quem iria governar. O Estado Pan- Andino imaginado por Bolívar não chegou a existir, e a Grã-Colômbia desintegrou-se sob pressões internas, levando Bolívar à sua observação mais conhecida: “A América é ingovernável. Aqueles que serviram à revolução araram o mar.”7 Em cada uma das novas nações, as revoluções políticas de 1810-25 haviam ocorrido sem mudanças na estrutura da sociedade ou em seus fundamentos econômicos. Em vez de sofrerem uma revolução que eliminasse as hierarquias, as elites se mantiveram no poder e se adaptaram às novas realidades políticas. As restrições das quais Bolívar reclamara permaneceram — a única diferença era que não eram mais impostas pela Espanha. Na verdade, as antigas divergências e rivalidades nos vice-reinados entre liberais e conservadores, e entre centralistas e aqueles à favor da autonomia local, tornaram-se mais agudas. Os movimentos de independência foram inspirados pela doutrina do liberalismo, que impulsionou as revoluções americana e francesa, mas como ela seria implementada em sociedades que eram senhoriais, hierárquicas e divididas racialmente? Esse se tornou um problema persistente na cultura latino-americana: líderes políticos ávidos para implementar estruturas e políticas liberais tiveram de enfrentar grupos que se beneficiavam dos privilégios arraigados da era espanhola. Se esses grupos tivessem simplesmente resistido a todas as tentativas de mudança política ou social, a história da América do Sul teria sido mais simples, mas os estancieros com frequência permitiam que as mudanças ocorressem na superfície, enquanto agiam para minar seus efeitos na sociedade. A instabilidade política persistiu porque nenhum grupo — liberais, conservadores, estancieros, a Igreja — reconhecia o direito legítimo de outro para governar. Cada um queria maximizar o próprio poder, mesmo que isso se desse às custas da nação. Essa falta de coesão nacional e lealdade não era, em geral, algo surpreendente no início do século XIX: ninguém, na década de 1810, pensava em si mesmo como argentino, venezuelano ou colombiano. Porém, entendiam ser diferentes do norte: “Eles [os norte-americanos] eram um povo novo”, escreveu o liberal mexicano Servando Teresa de Mier, em 1823, “homogêneo, laborioso, esforçado, esclarecido, com todas as virtudes sociais e educados por uma nação livre. Nós somos um povo antigo, heterogêneo, sem diligência, inimigo do trabalho, querendo viver do emprego público como os espanhóis, tão ignorantes em grupo quanto nossos antepassados e enfraquecidos pelos vícios de três séculos de escravidão”.8 Em tempos recentes, passamos a evitar atribuir características a um povo desse modo — na história da democracia, mais importantes que qualquer hábito cultural eram as estruturas predominantes que permitiam aos ricos e poderosos continuarem no controle das alavancas do poder. As primeiras lutas internas de nações como a Argentina ecoavam as dos Estados Unidos, com uma facção exigindo uma federação flexível de províncias, e outra, uma nação com um centro forte. Em contraste com o norte, no entanto, essas disputas foram travadas em combate armado. Nas décadas após a independência, a política era prejudicada pela cultura herdada de clãs, facções, patronagem, clientelismo e famílias influentes. A ideologia política era menos importante que as conexões, o parentesco e o acesso a pessoas poderosas. No entanto, uma forma de democracia começou a surgir. Assim como os revolucionários franceses, os líderes da América Espanhola queriam abolir as divisões da sociedade em corporações e reconheciam a igualdade essencial entre os homens (as mulheres estavam ausentes dessa consideração de forma generalizada). As jovens nações declararam a chegada desse novo mundo político de modo constitucional; em 1811, a Venezuela deu o direito de voto a todos os cidadãos do sexo masculino e homens de cor livres acima dos 21 anos; no Chile, todos os habitantes livres receberam direitos políticos iguais, e a própria Constituição de 1812 foi ratificada pelo povo por meio de seus representantes. Em outros lugares, a redação da Constituição deixava espaço para as manobras que viriam a caracterizar o futuro político do continente. No Peru, a Constituição de 1823 declarava que “a soberania reside na nação e é exercida pelos oficiais aos quais a nação delegou seus poderes” — porém deixou o método de seleção dos representantes e oficiais aberto à interpretação. Nesse caso, os cidadãos eram homens acima de 25 anos que tivessem propriedades ou uma profissão e não tivessem registros de comportamento “anticidadão”. Na Argentina, diferentes províncias criaram suas próprias leis: em 1819, Santa Fé deu cidadania e direito de voto a todos os homens adultos, excluindo apenas devedores públicos; em 1821, Buenos Aires concedeu o direito de voto a todos os homens livres nascidos no país acima dos 20 anos — incluindo servos e operários (esses não estavam inclusos na expressão “adulto do sexo masculino” em outros lugares); as províncias de Salta e Mendoza fizeram o mesmo em 1823 e 1827, respectivamente. Apesar dessas declarações de intenção democrática, a história subsequente da América Latina mostra como as elites existentes usaram as estruturas do governo representativo para reforçar sua própria manutenção no poder. Juntamente com liberais e conservadores, federalistas e unionistas, reformadores e tradicionalistas, a Igreja Católica também tinha um importante papel social e político. Com sua enorme riqueza derivada de terras, dízimos, doações e propriedades, a Igreja era vista por liberais como um obstáculo à liberdade política e à economia do livre comércio, na qual todo cidadão era igual perante a lei, independentemente de credo ou status. Os conservadores, por outro lado, acreditavam que a fé católica era a força unificadora em novas nações de diferentes raças, propiciando a coesão social. Essa visão foi expressa por um defensor do general Santa Anna, que o encorajava a se tornar um ditador no México em 1853: Acima de tudo está a necessidade de preservar a religião católica, porque acreditamos nela e porque, mesmo que não a considerássemos divina, consideramo-la o único laço comum entre todos os mexicanos quando todos os outros foram rompidos; é a única coisa capaz de manter a raça hispano- americana e de livrá-la dos grandes perigos aos quais está exposta.9 Esses sentimentos revelam a divisão existente na América Latina. Os liberais acreditavam no Estado-Nação, na livre iniciativa e no livre comércio entre países; os conservadores ainda mantinham a ideia da América Latina como entidade continental, com o catolicismo como elemento unificador. O que era ainda mais significativo, os conservadores se opunham a qualquer ordem constitucional que excluísse a Igreja, e o conflito quanto ao papel da Igreja contribuía de forma acentuada para a contínua instabilidade política. Durante o século XIX, os republicanos liberais esforçaram-se para diminuir os privilégios legais da Igreja, sua influência na educação e riqueza desproporcional. Porém, a maioria das pessoas permaneceu profundamente leal à Igreja; em particular, o catolicismo conservou raízes profundas no interior, entre camponeses e índios. Além desses conflitos internos, as novas nações logo sofreram pressões de potências externas que teriam um efeito decisivo em seu destino político. A primeira grande influência externa era asuperpotência que controlava quase todos os aspectos do comércio mundial e das finanças internacionais — o Império Britânico.10 Os antigos sonhos do El Dorado encontraram eco nas ações das companhias mineradoras sul-americanas que surgiram subitamente nas bolsas de valores do mundo na década de 1830, e os governos de Colômbia, México, Peru, Chile e Buenos Aires fizeram enormes empréstimos que se esforçavam para pagar. A Grã-Bretanha viu nos países recém-liberados da América do Sul uma oportunidade de expandir seu comércio e sua influência, e, enquanto a Marinha oferecia proteção contra incursões espanholas e francesas, o capital e as mercadorias britânicos, produzidos com muito mais eficiência que nas economias locais, invadiam o continente. Os bancos nacionais de Buenos Aires, Chile e México faliram, e foram substituídos por bancos controlados pela Grã-Bretanha, tais como o London, Buenos Ayres e River Plate Bank Ltd e o London Bank of Mexico and South America. Ao explorar totalmente suas vantagens econômicas e financeiras, a Grã-Bretanha foi capaz de extrair acordos comerciais que aumentaram ainda mais seu controle comercial da América do Sul. Os Estados Unidos, enquanto isso, haviam reconhecido as novas nações. A Doutrina Monroe, de 1823, declarava que, embora os Estados Unidos não fossem interferir nos negócios europeus, resistiriam aos esforços de estender as monarquias europeias a “este hemisfério” e se oporiam a qualquer tentativa por parte das potências europeias de recuperar territórios perdidos. No entanto, a Grã-Bretanha era muito mais importante para a América Latina do que os Estados Unidos, e era o reconhecimento britânico que a América Espanhola desejava. O ministro de Negócios Estrangeiros, George Canning, estava consciente das complexidades envolvidas no reconhecimento de um grupo de repúblicas por parte de uma monarquia constitucional, mas acabou seguindo em frente em 1825. Um viajante britânico escreveu sobre esse ano: “Todas as pessoas em Bogotá estão quase enlouquecidas de alegria porque o vice-presidente acabou de receber a informação providencial [...] de que o governo britânico reconheceu a independência do México, da Colômbia e de Buenos Ayres [...] os colombianos correndo para todos os lados feito loucos, exclamando ‘Agora somos uma nação independente!’”11 Os bancos e empresas britânicos controlavam seções-chave da economia latino-americana, incluindo ferrovias, telégrafos e docas. Tinham pouco interesse em desenvolver a economia do continente além do fornecimento de mercadorias baratas — carnes e cereais, nitratos e minérios — para o seu próprio mercado em rápida expansão. Se o domínio britânico dificultou o desenvolvimento no século XIX, um obstáculo igualmente severo à prosperidade econômica e à estabilidade política foi a longa série de guerras — tais como entre Argentina e Brasil, e México contra França e Estados Unidos —, as quais duraram até 1867. Dado o grande distúrbio causado por esses conflitos, é compreensível o ritmo lento do desenvolvimento econômico. Como essas dificuldades econômicas e estruturas sociais herdadas afetam o desenvolvimento da democracia? A maioria dos Estados-Nação emergentes esforçou-se para aprovar uma Constituição que unisse o povo, as províncias e o centro; poderosos grupos de interesses não estavam preparados para fazer sacrifícios pelo bem de uma nação que parecia existir apenas no nome. No vácuo que foi criado, surgiu a figura do caudillo, uma eminência parda que usava redes de clientes e fregueses e defensores, assim como sua habilidade militar (geralmente no comando de seu próprio grupo de milícia) para adquirir influência. Ele tratava a política como um jogo de poder em que o ganhador levava espólios que incluíam qualquer riqueza disponível. Os caudillos existiam em todos os níveis da sociedade, e as grandes famílias aristocráticas tinham de aprender a lidar com homens ambiciosos das classes mais baixas, em geral trocando proteção e estabilidade por poder político e suas recompensas econômicas. Quando a burocracia real foi desabonada, depois de 1820, os caudillos cresceram e alguns se tornaram líderes nacionais. Simón Bolívar foi talvez o primeiro exemplo, mas logo apareceram outros nos níveis regional e nacional. José Gaspar Rodriguez de Francia (1766-1840) formou a nação do Paraguai, enquanto José Cecilio del Valle (1776-1834) tentou criar as Províncias Unidas da América Central. A Argentina, contudo, foi o local de destaque do caudillismo. O primeiro caudillo a obter poder nacional foi Juan Manuel de Rosas (1793-1877). Nascido numa família rica, teve uma vida de fazendeiro e gaúcho, fazendo sua própria fortuna no setor de frigorífico. Como outros estancieros, administrava sua fazenda como um Estado em miniatura, usando seus próprios homens armados para deter os ladrões de gado. Rosas foi eleito governador da província de Buenos Aires pela primeira vez em 1829. Durante um período de afastamento do cargo de 1832 a 1835, ele travou uma guerra selvagem contra os povos nativos dos pampas, o que fez com que ele ganhasse o apoio dos fazendeiros — aos quais deu terras — e uma reputação de brutalidade. Em sua volta ao poder, usou o controle da capital para dominar o país, mas não conseguiu fazer com que a Argentina se consolidasse como nação. Rosas tornou-se o epítome do caudillo arrogante, usando uma combinação de força e carisma para manipular o sistema eleitoral de modo a obter poder político legítimo. Mas, em 1852, os outros estancieros, antes seus defensores tácitos, optaram pela estabilidade em vez do governo pessoal caótico de Rosas e o derrotaram em batalha. A Argentina acostumou- se ao conflito armado interno e a forças militares que se consideravam as criadoras da nação. Somente em 1880 um país verdadeiramente unificado emergiu — sete décadas turbulentas após a independência. Esse padrão foi repetido no continente à medida que uma série de líderes carismáticos assumia o controle, aliando-se a grupos poderosos, usando os sistemas eleitorais quando necessário e, quando não, ignorando-os. Um resultado disso foi uma pletora de Constituições sempre que os governos buscavam manter-se no poder mudando as regras eleitorais, ou quando líderes militares organizavam golpes e depois devolviam o controle aos civis. O Peru, por exemplo, se declarou independente em 1821. Sua Constituição de 1823 aboliu a monarquia, e três outras Constituições vieram em seguida, em 1828, 1834 e 1839. A presidência mudou de mãos nada menos que doze vezes entre 1826 e 1845. As Constituições eram cada vez mais liberais, estabelecendo eleições populares diretas para presidente e assembleias, mas não proporcionavam estabilidade num país em que diferentes grupos de interesse não reconheciam o direito dos outros de governar. Em 1845, o marechal Ramón Castilla subiu ao poder e governou como ditador efetivo até 1862. Uma Constituição mais liberal, em 1856, foi logo seguida pelo retrocesso de mais uma Constituição que conferia poderes excessivos ao presidente; com breves interregnos, esta permaneceu em vigor até 1920. Vizinha do Peru, a Bolívia seguiu um padrão semelhante, quando Andrés de Santa Cruz assumiu a presidência em 1829 e governou como ditador durante a década seguinte. Depois de 1840, o país passou por uma série de golpes e Constituições efêmeras que ofereciam direitos democráticos, mas não podiam, na prática, proporcioná-los. Pode-se dizer que a situação na terra natal de Bolívar, a Venezuela, era ainda mais instável. A Constituição de 1830declarava uma democracia, mas, na prática, o país foi governado durante todo o século XIX por uma série de oligarquias conflitantes. De 1830 a 1900, Caracas passou por pelo menos trinta insurreições armadas lideradas por caudillos locais, com o objetivo de depor o presidente. No México, a liberalização política foi firmada na Constituição, mas a abolição legal das divisões de classes teve pouco efeito real. Um historiador descreve a situação do México com palavras que poderiam ser aplicadas a qualquer uma das nações das Américas Central e do Sul: “Os cidadãos estavam divididos de forma rígida pelas barreiras de classe, geografia e etnia, muitas das quais permaneceram firmes até o século XX [...] As eleições eram inexpressivas, e a maioria da população permaneceu às margens da política nacional.”12 A Constituição federal de 1824 deu autonomia a vinte estados e quatro territórios. O México abrangia então grande parte dos atuais estados do Texas, Novo México e Califórnia, e essa Constituição liberal com autonomia regional atraiu colonizadores “anglos” do leste dos Estados Unidos. Em 1835, no entanto, uma nova Constituição retirou a autonomia dos estados e centralizou o poder na Cidade do México. A partir de então, o país ficou dividido entre conservadores protegidos por líderes militares como Santa Anna e liberais dominados pela figura de Benito Juarez. O poder mudou de mãos, em geral de forma violenta, com as eleições tendo pouca influência na definição de quem estava no poder (Juarez chegou a ser eleito quatro vezes à presidência). A Constituição de 1857 prometia liberdade de expressão, reunião e imprensa e reafirmava a abolição da escravatura, mas a implementação dependia de quem estava no poder. O caudillo mexicano arquetípico, Porfirio Díaz, tomou o poder em 1876 e governou por 35 anos. A Constituição permaneceu, mas as eleições eram manipuladas e o poder se manteve nas mãos de poucos. As tentativas políticas de formar nações enquanto entidades liberais continuaram em face de realidades de poder desoladoras. Na Argentina, em 1853, a Constituição previa igualdade perante a lei ao confirmar a abolição da escravatura e de títulos de nobreza e ao conferir os mesmos direitos a todos os habitantes, não apenas aos cidadãos. Isso incluía liberdade de expressão, de ir e vir, de propriedade e associação. Todos os homens adultos tinham o direito de votar em deputados da Câmara e do Senado. O documento é, para os argentinos, central em sua história política, que, ainda assim, permaneceu dominada por poderes antidemocráticos. Por volta de 1870, a América do Sul começou a gozar de maior estabilidade e prosperidade. Menos conflitos e uma demanda crescente por mercadorias significavam que países como Argentina, Chile, Uruguai e Venezuela podiam conquistar seu lugar no mundo. Uma perspectiva mais internacional levou ao aumento de medidas liberais, o que levou a uma modernização sustentável e ao estabelecimento de bancos nacionais, Forças Armadas, escolas e Judiciário. Além disso, o desenvolvimento de ferrovias e telégrafos ajudou a unificar esses países geograficamente. Na Argentina, isso permitiu uma expansão ainda maior para os pampas, para onde a maior parte dos índios remanescentes foi repelida e onde os pardos eram usados para a criação de gado. De 1880 a 1914, a Argentina cresceu a uma taxa anual de 5% e se tornou um dos países mais ricos do mundo. Oportunidades em expansão levaram a uma enorme imigração, principalmente da Espanha e da Itália: a população aumentou de 2 milhões, em 1870, para 5,5 milhões, em 1920. Bancos e empresas britânicos, em particular, colheram os benefícios, ampliando seu envolvimento e consolidando seu papel de força econômica dominante no continente. As empresas britânicas eram proprietárias de ferrovias, bancos, estabelecimentos comerciais e fábricas, e a Grã-Bretanha era o principal mercado para carne e trigo, enviando, em troca, produtos manufaturados à Argentina. Surgiu uma elite anglo-argentina, que uniu os estancieros para a criação de uma classe dominante que controlava a economia e a política do país. Num mercado de produtos manufaturados e culturas de rendimento, pequenos agricultores e fazendeiros eram excluídos. As terras que já não estavam nas mãos de grandes proprietários foram adquiridas por investidores de grande escala que empregavam trabalhadores de baixa remuneração. A falta de uma classe média rural — um grupo de produtores inovadores e possível mercado para os produtos manufaturados — continuou, portanto, desestimulando o desenvolvimento de um sistema industrial com base no próprio país. A virada do século XX foi um período de crescimento acentuado na maior parte da América Latina, mas, embora estejamos vendo suas fraquezas estruturais com o auxílio da retrospectiva, a precariedade da situação era compreendida de forma ampla na época. O político e historiador argentino Vicente Fidel López escreveu, na década de 1870: “Somos o curral dos estrangeiros, uma parte do território estrangeiro, porque não temos independência alguma.”13 Nem mesmo o influxo de imigrantes em massa no fim do século XIX não alterou os fatos fundamentais da sociedade argentina. Sem mercado interno para os produtos, o acesso aos mercados internacionais permaneceu sendo o eixo da economia. Os conflitos internos da Argentina e de outros países latino-americanos permitiram o desenvolvimento de uma sociedade dual. Por um lado, as Constituições liberais e eleições periódicas davam a aparência de uma democracia liberal, mas, como o poder econômico estava concentrado nas mãos de poucos (incluindo empresas britânicas), isso fez do aspecto público da política uma farsa. Na realidade, todos os poderes significativos eram estabelecidos e negociados por meios obscuros. A América Latina continuou sendo um conjunto de nações independentes, com estruturas sociais desiguais arraigadas, com bolsões de prosperidade em meio à pobreza predominante. A democracia foi legislada em suas Constituições, mas pouco praticada nos corredores do poder. Embora tenha tido um início notável, a democracia na América Latina era, ao final do século XIX, não muito diferente da europeia, em que líderes políticos apresentavam uma retórica de liberalismo e princípios democráticos, mas o poder permanecia nas mãos de uma faixa estreita da sociedade. “A 9 EUROPA NO SÉCULO XIX O Cidadão Rejeitado batalha é minha. E, se os prussianos chegarem logo, a guerra terá um fim.” A declaração do duque de Wellington foi proferida pouco após as quatro horas de 18 de junho de 1815. A Batalha de Waterloo deu um fim às Guerras Napoleônicas e anunciou o começo de uma nova fase da política europeia. A era revolucionária e napoleônica da França havia alterado profundamente a geopolítica, mas também a linguagem e os pressupostos políticos de todo o continente. Os cinquenta anos seguintes testemunharam a luta de líderes e cidadãos europeus para encontrar um modo de acomodar a nova política ao contexto das vastas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas geradas pela industrialização. A Revolução Francesa introduziu a prática da democracia nacional na Europa, e as conquistas do Exército francês de partes da Alemanha, Países Baixos, Itália e Espanha — com a maioria dos outros países forçada a fazer aliança com a França — difundiram os ideais da política liberal. Em novembro de 1814, quando Napoleão estava exilado em Elba, a principais potências se uniram em Viena sob a orientação de Klemens von Metternich, ministro do Exterior da Áustria, para estabeleceremas fronteiras dos Estados europeus que haviam sido fortemente fragmentados por duas décadas de conquistas francesas. Na Europa Central em particular, as mudanças haviam sido profundas. Um grande número de reinos, principados, cidades e bispados independentes formando a instável associação do Sacro Império Romano havia sido dominado anteriormente pelo reino da Prússia, ao norte, e pelo Império Austríaco, ao sul. Esse “centro frágil” da Europa foi organizado em unidades administráveis por Napoleão e depois amalgamado na Confederação do Reno. Após sua derrota, essas terras retomaram a independência e, embora o Sacro Império Romano não tivesse sido ressuscitado, a Prússia e a Áustria continuaram sua luta por influência no centro de língua germânica na Europa. Quando os franceses foram forçados a deixar a Itália, a Áustria voltou a impor seu governo na maior parte do norte, incluindo as províncias mais prósperas. Na sequência da derrota francesa, o objetivo em Viena era criar uma série de Estados fortes com governos que reconhecessem as fronteiras uns dos outros como um caminho para a paz e a segurança. O Congresso teve êxito nessa finalidade. Durante o século seguinte, as guerras entre as principais potências europeias ficaram restritas à Guerra da Crimeia, de 1854-55, às guerras pela independência italiana (1859 e 1866), à Guerra Prusso- Dinamarquesa, de 1864, à Guerra Austro-Prussiana, de 1866 (Guerra das Sete Semanas), e à Guerra Franco-Prussiana, de 1870-71 — um recorde notável numa era tão militarista. O outro objetivo do Congresso de Viena era determinar que esses Estados devessem ser capazes de resistir às pressões revolucionárias que derrubaram o Ancien Régime na França. Os Exércitos franceses não apenas haviam conquistado a maior parte da Europa Continental, mas criaram Estados que refletiam a filosofia da Revolução, estabelecendo governos constitucionais (ainda que, na prática, dominados por homens nomeados pela França), igualdade perante a lei e um código prático de governo e jurisdição legal. Os governos de toda a Europa, apesar de sentirem-se forçados a aprovar leis que garantiam a igualdade perante a lei e a tolerância religiosa, aprovaram medidas que restringiam o liberalismo. Entre os Estados germânicos, Metternich persuadiu uma Dieta relutante a promulgar uma série de leis com a finalidade de restringir a liberdade de imprensa. Os governos queriam ter mais controle da população: um registro dos habitantes de Berlim começou a ser feito em 1799, e um censo nacional regular foi introduzido na França em 1836, na Dinamarca em 1840 e na Grã-Bretanha em 1841. Ainda mais alarmante foi a manifestação de 60 mil pessoas em favor da reforma política em 1819, no parque de St. Peter, em Manchester; quinze pessoas foram mortas num ataque da mesma cavalaria que lutou em Waterloo, e a palavra Peterloo tornou-se um símbolo do radicalismo britânico reprimido pela autoridade. O Ato de Reforma britânico de 1832 foi realizado com a função explícita de sufocar a possibilidade de revolução, ao passo que a Lei dos Pobres, de 1834, alterava uma série de obrigações locais para que as paróquias atendessem aos necessitados por meio de um sistema nacional que garantia que qualquer um que se beneficiasse de auxílios (através de asilos) deveria estar em piores condições que qualquer pessoa com trabalho. Por mais de trinta anos, o espírito de Viena reinou na Europa, com regimes que restringiam o acesso ao poder e o direito de voto, tendo como pano de fundo uma batalha entre as ideias liberais e os poderes conservadores. Na Grã- Bretanha, por exemplo, as Leis de Associações, que proibiam associações trabalhistas, foram revogadas em 1824, mas, dez anos depois, os Mártires de Tolpuddle foram condenados por meio de uma lei obscura relativa à prestação de juramentos — o impulso liberal por trás da medida anterior foi anulado por um Judiciário conservador. Em 1830, a assembleia francesa arquitetou a remoção do idoso Carlos X do trono, em favor do supostamente liberal Luís Felipe. No entanto, uma vez no poder, o chamado Rei Cidadão revelou-se tão conservador quanto seu antecessor. O rei Frederico Guilherme III da Prússia abandonou as promessas feitas em 1813 de uma Constituição liberal e, após a derrota de Napoleão, governou como monarca ditatorial. Em todos esses casos, os poderes governantes apresentaram discursos em defesa dos princípios liberais antes de retroceder. Embora a maioria dos cidadãos não desejasse uma revolução plena, na mesma escala dos eventos de 1789, suas necessidades não eram atendidas pelo status quo. A Restauração, como ficaram conhecidas as décadas após o Congresso de Viena, perpetuou o erro histórico do Ancien Régime ao deixar de reconhecer as mudanças fundamentais na sociedade e de lidar com elas. Em primeiro lugar, a Europa estava em transição de economia predominantemente agrícola e artesanal para uma sociedade de maioria urbana e industrial. Em 1855, a Grã-Bretanha foi a primeira nação europeia a ter mais habitantes nas cidades que no interior. Para a Europa como um todo, esse ponto foi atingido no final do século XIX, mas o processo estava avançado na década de 1840, junto a um crescimento geral da população. Em segundo lugar, as classes médias urbanas — oficiais do governo, advogados, comerciantes, donos de lojas, médicos, contadores — estavam cada vez mais expostas às ideias e debates políticos por meio de jornais, revistas e folhetos. A transformação nas comunicações foi completa, com o crescimento das ferrovias, do telégrafo e de outras tecnologias novas — em 1814, o The Times de Londres adquiriu uma prensa tipográfica capaz de produzir mais de mil páginas por minuto. Em 1855, os jornais britânicos ficaram finalmente isentos do imposto do selo, o Telegraph surgiu como o primeiro jornal nacional popular, e o Liverpool Post e o Manchester Guardian tornaram-se jornais diários. Na maioria das cidades europeias, os jornais cobriam debates políticos e eram compartilhados em cafés e sociedades de leitura. Na metade do século, as classes médias em crescimento transformavam-se numa voz bem-informada e influente da sociedade europeia. Eis o terceiro aspecto: essas pessoas sabiam muito bem que eram cada vez mais responsáveis pela criação e administração da nova sociedade. Ganharam uma identidade definitiva e uma confiança em seu próprio valor e virtude, e desenvolveram opiniões tanto a respeito da aristocracia fundiária, que reivindicava o direito de governá-las, como dos trabalhadores que empregavam. Se a Revolução Francesa deixou um medo aterrorizante de uma rebelião das bases da população, as classes médias também começaram a perder a paciência com seus superiores na escala social (mas inferiores moralmente), que governavam as nações da Europa de acordo com seus próprios interesses. Elas não queriam simplesmente ter uma voz mais forte na sociedade, queriam um tipo diferente de sociedade. O modelo que a França revolucionária forneceu para os simpatizantes com as ideias liberais era o de uma nação baseada na soberania do povo. Os contornos da nação francesa não seriam mais delineados de acordo com as preferências e negociações de monarcas e cortesãos, mas de acordo com os desejos do povo: o povo francês era a nação francesa. Haviam sido tomadas medidas para dar ao povo uma identidade comum e um senso de unidade e propósito, em troca dos quais lhe eram concedidos direitos iguais. As pessoas haviam se unido nessa nova nação e lutado — primeiro por sua sobrevivência, depois para punir seus inimigos e, finalmente, para construir um império. Os Exércitos franceses,preenchidos por grandes quantidades de citoyens entusiasmados, haviam tido um êxito extraordinário: em apenas duas décadas, de 1792 a 1812, a França havia conquistado a quase totalidade da Europa Continental. Essa foi a outra grande lição dos anos revolucionários — uma nação baseada numa cultura, linguagem e identidade comuns podia alcançar harmonia interna e grandeza externa. Essas duas tendências — liberalismo e nacionalismo — iriam dominar a política da Europa no século XIX, com a democracia seguindo os exemplos dessas forças poderosas. A tentativa de preservar o status quo na Europa finalmente falhou, de forma dramática, durante o ano de 1848, o ano das revoluções. Ainda que, em termos de emprego, a Europa ainda fosse, em grande parte, agrícola, do início para meados do século XIX, a indústria impulsionava as mudanças sociais. As tensões entre os sistemas de produção que chegavam e as enormes quantidades de artesãos e Handwerker em centros como Lille, Lyon, Aachen e Leipzig geraram greves e tumultos. Não apenas as fábricas estavam excluindo os artesãos de seu mercado tradicional, como a vida dos operários não era nada invejável. Trazido do interior, analfabeto, mal pago e maltratado, a expectativa de vida do trabalhador de uma fábrica de Lilly na década de 1840, por exemplo, era de cerca de 30 anos, e o salário real dos trabalhadores franceses diminuiu a cada ano, de 1817 a 1848. Os trabalhadores alemães viram seus salários caírem para um quarto durante a década de 1840, e suas condições de trabalho também eram pavorosas. Se essas condições foram motivo de descontentamento entre os trabalhadores, houve paralelos em outros setores da sociedade. Tanto as grandes famílias de comerciantes e banqueiros, cujo poder estava crescendo, como as classes médias em desenvolvimento estavam desiludidas com a incapacidade de seus governantes de administrarem a transição para a industrialização. O manejo desastroso dos investimentos governamentais em ferrovias e a superprodução catastrófica de aço, influenciada pelo governo, na década de 1840, exasperaram os industriais e a burguesia. Na Alemanha, os chefes da indústria também estavam frustrados com a fragmentação do mercado doméstico, exigindo mais integração política para aumentar as possibilidades comerciais. A tributação causou ainda mais descontentamento, especialmente nas regiões em que o poder político encontrava-se em outros locais — os impostos pagos pelas províncias italianas da Venécia e da Lombardia, por exemplo, sustentavam o Império Austríaco. É interessante que as pressões ao governo vindas de cima e debaixo foram consideravelmente moderadas nos dois países industrializados mais desenvolvidos da Europa — Grã-Bretanha e Bélgica. A Grã-Bretanha enfrentou desafios políticos em 1848, mas nenhuma revolução, porque sucessivos governos já haviam tomado medidas para tranquilizar tanto os industriais como as classes médias. Os sistemas político, comercial e bancário, incluindo o uso de ações e os esquemas de subscrição pública para infraestrutura, atendiam bem às necessidades dos industriais; a Lei dos Pobres, de 1834, deu o sinal verde para a exploração da mão de obra barata, ao passo que o Ato das Corporações Municipais, de 1835, permitiu que as classes médias administrassem cidades grandes e pequenas. Na Bélgica, a Constituição de 1831 foi vista como um modelo de liberalismo para o restante do continente. O requisito de propriedade para votar nas câmaras inferiores do Parlamento era extremamente baixo, o Senado de líderes respeitados era uma influência estabilizadora e exigia-se que o monarca fizesse um juramento de obediência à Constituição ao assumir o trono. Aqui, o governo trouxera de forma efetiva os comerciantes e as classes médias para a esfera política. Porém as Constituições e as leis de representação política nunca contam a história toda. Em outras partes da Europa, as Constituições davam direitos políticos sem permitir os meios para exercê-los. Na França, cerca de 240 mil homens estavam qualificados para votar e se candidatar nas eleições para a Câmara dos Deputados, mas mais de dois terços dos deputados em 1840 eram do grupo mais rico, os 18 mil que pagavam mais de mil francos em impostos. Ainda que os industriais poderosos pudessem entrar para esse grupo, as classes profissionais e a pequena burguesia estavam excluídas. As barreiras políticas eram apenas uma parte da história. Na Áustria, França e Prússia, sistemas arcanos determinavam que estudantes qualificados, como advogados, funcionários públicos ou médicos, geralmente teriam de trabalhar por longos períodos como aprendizes e esperar muitos anos até que houvesse vagas para os cargos. Havia um número excessivo de pessoas qualificadas para poucos cargos disponíveis, e o governo não era capaz de oferecer soluções. Tudo isso criou uma atmosfera de impotência e frustração entre as classes médias, que se sentiam marginalizadas à medida que a influência política e o avanço social ficavam além do seu alcance. Enquanto os efeitos da industrialização foram sentidos de modo mais agudo nos centros urbanos em crescimento, a situação no interior tornava-se desesperadora. De 1800 a 1840, a população da Europa cresceu de 190 milhões para 270 milhões, incluindo um aumento intenso em algumas populações rurais — 75% no leste da Prússia, por exemplo. Embora tivesse havido melhoras significativas na produtividade e mais terras cultivadas, as dificuldades no abastecimento alimentar eram imensas. A migração do campo para as pequenas e grandes cidades também causou tensões sociais. Nos pontos em que a agricultura capitalista conflitava com os direitos consuetudinários, como no sul e no centro da França, houve resistência violenta. O espectro de 1789 continuou a assombrar os senhores de terras semifeudais da Europa, perturbando a tranquilidade de seus castelos e solares. Na década de 1840, muitos moradores das áreas rurais eram extremamente pobres, gastando 70% de sua renda com alimentação e terrivelmente vulneráveis aos aumentos de preço de produtos básicos, como a batata e os cereais. As colheitas do início da década de 1840 foram ruins na Europa, e a destruição da safra de batatas em 1845-47 causou uma escassez generalizada, especialmente na Irlanda. Lá e em outros lugares, a infraestrutura fraca para o transporte, o crescimento da população e um sistema social instável contribuíram para a catástrofe. Na Irlanda, a situação foi exacerbada pela indecisão e a falta de ação lastimáveis das autoridades britânicas — outro sinal da incapacidade de os governos lidarem com as realidades das novas economias. As condições de vida dos pobres rurais e urbanos por toda a Europa pioraram de forma dramática com o aumento vertiginoso do preço dos alimentos básicos: o preço do trigo e do centeio na Alemanha aumentou 60% em apenas dois anos desde 1845; em outros lugares, houve registros de aumentos de 200%. Um comentarista escreveu: “Os habitantes da província que é chamada de pérola da Coroa prussiana, a Silésia, vivem em condições piores que as dos presidiários.” Os desastres naturais somaram-se às colheitas ruins. Inundações devastadoras causadas pelo rio Vístula arrasaram plantações por todo o Império Austríaco, levando milhares de camponeses necessitados a Viena — no entanto, as autoridades austríacas ainda exportavam trigo. Em muitos lugares, as pessoas decidiram resolver os problemas por conta própria, ocupando depósitos de cereais e engenhos, interceptandocomboios de trigo em rios e canais. Esses distúrbios no campo e o colapso da autoridade levaram trabalhadores itinerantes às cidades — a maioria homens jovens com pouco a perder. Os problemas sociais no interior exacerbaram os problemas já existentes nas cidades. O comércio foi desfavorecido pela queda dos preços das ações e pela ameaça às finanças nacionais, com o desaparecimento do crédito para negócios. Em Viena, com o governo imperial endividado além de seus recursos, os principais bancos faliram. Nenhuma dessas condições é precursora certa de revoluções — muitas delas ocorrem em outras situações —, mas os levantes de 1848 não foram eventos isolados; em vez disso, foram indicadores de mudança. O ano de 1848 foi um ponto de transição, um marcador no século em que a democracia passou de ameaça à sociedade civilizada a um de seus principais componentes. Precisamos fazer uma breve análise dos acontecimentos nos três principais países europeus afetados — Áustria, Prússia e, primeiro, França. Após a derrota de Napoleão, a dinastia dos Bourbon retomou o poder na pessoa de Luís XVIII (Luís XVII morrera em 1795, sem assumir o trono). Para se salvaguardar contra mais uma revolução, o Congresso de Viena insistiu que o rei adotasse uma nova Constituição, o que resultou na Carta de 1814. Ela restringia o poder do monarca e estipulava a existência de uma Câmara de Pares e uma Câmara de Deputados, esta eleita por meio de uma qualificação de propriedade restrita que conferia o direito de voto a 90 mil cidadãos. O reino ainda tinha o controle do Exército e o direito de declarar guerra; também criava leis com seus ministros e as enviava para a aprovação da Câmara. Seus súditos tinham igualdade perante a lei, e as liberdades de culto religioso, expressão e imprensa estavam garantidas. Essa Constituição colocou a França em pé de igualdade, de modo geral, com as outras nações da Europa: um Estado constitucional com garantias liberais, mas com o acesso ao poder extremamente limitado e autoridade arbitrária ainda mantida pelos governantes. Com a sua morte em 1824, Luís foi sucedido pelo irmão mais novo, Carlos, que foi arruinado pelo legado da Revolução de 1789. Carlos propôs uma lei que permitia aos nobres fugidos do país na década de 1790 exigirem compensação financeira. A Câmara dos Deputados recusou-se a aprovar a lei, e a consequente crítica do rei tornou-se tão intensa que ele propôs a reintrodução da censura. A câmara vetou mais essa solicitação e, em março de 1830, aprovou uma moção de ausência de confiança no rei e em seus ministros. Carlos desfez as duas câmaras, mas as eleições resultaram numa casa ainda mais liberal. O rei reagiu emitindo as abomináveis Ordenanças de Julho, que suspendiam a imprensa, dissolviam a Câmara dos Deputados e removiam seu direito de fazer emendas na legislação. O resultado foram três dias de revolução, nos quais o povo de Paris tentou tomar o controle da cidade. O rei abdicou ao trono e fugiu para a Grã-Bretanha, sendo substituído pelo duque de Orleans, que passou a se chamar Luís Felipe. Apesar de ser um membro da família real, o novo Rei Cidadão era conhecido por sua afinidade com as ideias liberais — lutara do lado revolucionário em Valmy e Jemappes. Ele introduziu a Carta Constitucional de 1830, que reduzia os requisitos para o voto, permitindo que cerca de 200 mil pessoas participassem das eleições. A liberdade de imprensa foi restabelecida, e o poder do rei para introduzir leis foi removido, enquanto as três cores revolucionárias substituíam o branco e dourado do brasão dos Bourbon na bandeira da França. Porém, apesar desse início liberal, Luís Felipe tornou-se cada vez mais intransigente, e seus ministros, em particular o primeiro-ministro François Guizot, não corresponderam às mudanças na sociedade francesa. Em 1848, as forças que, como vimos, desestabilizavam a Europa atingiram um ponto crítico na França. As manifestações públicas foram proibidas, não restando vias de expressão para as discordâncias políticas. Para driblarem as restrições, grupos de oposição deram início a uma série de reuniões, chamadas champagne de banquets, nas quais as pessoas se encontravam socialmente com o objetivo de discutir questões políticas. Elas também foram proibidas, o que deu fim à última via de protesto. Em resposta, em 22 de fevereiro, multidões ocuparam as ruas de Paris, seguindo para o Palácio das Tulherias e para a Câmara dos Deputados. “Uma multidão poderosa, armada com paus e barras de ferro, lutou para arrebentar o portão e infligir uma vingança sumária a Guizot”, escreveu um visitante americano, Percy St. John. “As janelas foram quebradas com pedras. Altos gritos de ‘Vive la Reforme!’ foram seguidos por A bas Guizot!’” 1 Em seu romance A educação sentimental, Gustave Flaubert descreveu a mesma noite: Discursos inflamados eram declamados nas esquinas; o repique de sinos ressoava furiosamente [...] fundiam-se balas de chumbo, laminavam-se cartuchos. As árvores nos bulevares, os mictórios públicos, bancos, trilhos e lâmpadas a gás haviam sido destruídos [...] pela manhã, Paris estava coberta de barricadas. A resistência durou pouco; a Guarda Nacional juntava-se aos rebeldes por toda parte, e às oito horas o povo de Paris estava no controle. As manifestações e tumultos de fevereiro de 1848 tiveram êxito na derrubada do governo porque a Guarda Nacional uniu-se à rebelião, mas também porque o rei e a elite governante haviam perdido a confiança em sua própria capacidade de governar. Como Flaubert comentou: “Suavemente, de forma espontânea, a monarquia estava desaparecendo.”2 Em 23 de fevereiro, Guizot renunciou e, na sequência da morte de 52 manifestantes, o rei renunciou logo em seguida. Um governo provisório foi formado rapidamente e, em 26 de fevereiro, a Segunda República foi declarada enquanto o espírito de 1789 tomava conta da nação. As eleições para uma Assembleia Constituinte foram realizadas no domingo de Páscoa com sufrágio universal masculino, gerando 9 milhões de novos eleitores, embora o requisito de três anos de residência excluísse um grande número de trabalhadores itinerantes. No entanto, as esperanças republicanas de um recomeço logo foram arruinadas, quando a Igreja, em particular, fez valer toda a sua influência sobre os paroquianos. A França ficou dividida entre um interior conservador e as cidades radicais. A maioria das pessoas ainda era residente da área rural, e mais da metade dos deputados eleitos era de partidos conservadores. Um tumulto em Rouen contra os resultados da eleição levou à morte de 59 pessoas — a contrarrevolução começara dois meses após o início da revolução. A Comissão Executiva que formou o novo governo excluiu o líder republicano radical Luís Blanc, e uma invasão mal-executada da assembleia por parte de protestantes, em 15 de maio, deu ao governo um pretexto para prender vários outros radicais. Uma revolta de trabalhadores em Paris, conhecida como Dias de Junho, foi reprimida de modo brutal por tropas que mataram cerca de 1.500 manifestantes, com uma estimativa de 15 mil deportados para a Argélia. As classes médias parisienses, apesar de quererem reformas liberais e acesso ao poder, ficaram satisfeitas em ver uma repressão de militantes da classe trabalhadora. Essa foi uma divisão crucial que pressagiou o desenvolvimento político da Europa durante o restante do século XIX. Em novembro de 1848, uma nova Constituição foi aprovada na França, com sufrágio universal masculino. Uma única assembleia, de 750deputados, eleita a cada três anos, escolheria, por sua vez, um Conselho de Estado para propor uma legislação. Um presidente com poderes executivos, eleito por voto direto, teria um mandato de quatro anos. Nesse momento, a França parecia estar avançando para se tornar uma democracia, ainda que permitindo apenas que homens votassem. Em seguida, Luís Napoleão, sobrinho do imperador e herdeiro da dinastia dos Bonaparte, candidatou-se nas eleições presidenciais de dezembro de 1848. Seu nome lhe rendeu a imensa maioria dos votos. No início, Luís Napoleão governou em conjunto com a assembleia, mas, em dezembro de 1851, depois de recusada sua emenda constitucional, que lhe permitiria concorrer a um segundo mandato, ele organizou um golpe de Estado. Uma insurreição contra o golpe foi liderada, entre outros, pelo escritor Victor Hugo, que descreveu os acontecimentos nas ruas de Paris em 4 de dezembro: “De repente, diante de um sinal, um tiro de mosquete, não importando de onde nem de quem, a rajada de balas caía sobre a multidão [...] Num piscar de olhos, houve um massacre num trecho de um quarto de légua do bulevar.”3 Um ano depois, Luís Napoleão desfez a Segunda República e declarou o Segundo Império Francês, em que ele era o imperador Napoleão III. Embora as eleições continuassem sendo realizadas, a democracia durara apenas três anos. Em 1848, o Império Austríaco estendia-se sobre a maior parte das atuais Hungria, República Tcheca e Eslováquia, e do norte dos Bálcãs, além do norte da Itália e partes da Polônia e da Ucrânia. O imperador da Áustria, Fernando I, também era rei da Hungria, Boêmia e Lombardia-Venécia. A Constituição lhe dava autoridade para escolher os ministros; a Dieta eleita era simplesmente um corpo consultivo, e o ministro austríaco do Exterior, Metternich, o homem mais poderoso do império. Depois de guiar o país durante as Guerras Napoleônicas, primeiro negociando uma aliança com a França e depois se unindo aos aliados vitoriosos, o líder dirigente do Congresso de Viena ainda ocupava o cargo 34 anos depois. No entanto, o império dos Habsburgo enfrentava as mesmas pressões que a França. As classes profissionais e comerciais em crescimento consideravam o governo imperial incompetente na economia, exigiam uma reforma na Constituição e mais participação no governo. Ao mesmo tempo, o interior da Europa Central passava pela sua própria revolução. Os sistemas feudais de propriedade e trabalho entravam em colapso sob a pressão do comércio, o que deu mais liberdade aos camponeses e permitiu aos donos de terras produzirem alimentos de forma mais eficiente. Porém, o livre comércio minou a segurança do trabalho rural e do fornecimento alimentar. Além disso, a Áustria foi assolada por revoltas nacionalistas de poloneses, magiares e italianos, que logo viriam a se unir a eslovacos, tchecos, romenos, croatas e eslovenos. No mundo nacionalista inspirado pela França, um império poliglota parecia constituir um anacronismo, uma vez que os diferentes grupos viam seu futuro em Estados étnicos ou pelo menos em entidades que protegeriam as identidades de grupo. As pressões financeiras e sociais acabaram por levar o governo austríaco à crise. A revolução em Paris revelara a vulnerabilidade de qualquer administração que não atuasse com agilidade. Em março de 1848, o conservador Metternich foi forçado a deixar o cargo, e, no mês seguinte, uma Constituição mais liberal foi introduzida para as áreas alemãs no centro do império, ainda que a procrastinação do governo tenha atrasado sua implementação. As reformas introduzidas nos Estados Pontifícios estimularam os italianos e a Venécia e a Lombardia sob domínio austríaco a exigirem o mesmo, enquanto a Dieta húngara adotava sua própria Constituição liberal, que equivalia a uma declaração de independência. A reação entre os setores eslavos do império foi imediata, com um congresso pan-eslavo reunido em Praga em junho, com a intenção de obter maiores direitos políticos. No verão de 1848, os radicais de Viena, frustrados com os atrasos do governo, exigiram mais mudanças sob a bandeira do “partido do progresso”. Em maio, a atmosfera na capital era tão hostil que a corte imperial fugiu para Innsbruck, embora tivessem persuadido o imperador a retornar em agosto. O problema dos radicais por todo o império foi que, uma vez introduzidas e realizadas as eleições, os eleitores trouxeram de volta grande parte dos deputados conservadores, por serem estes os homens mais proeminentes em seus distritos. Isso gerou mais frustração e, em outubro de 1848, estudantes vienenses começaram um tumulto que culminou com o linchamento do conde Latour, membro do gabinete. A maior parte da burguesia da cidade, cerca de 100 mil pessoas, junto com o imperador e sua corte, deixou Viena, que foi bombardeada pelo Exército austríaco, matando de 3 mil a 5 mil pessoas. Em dezembro, a crise política chegou ao fim quando convenceram o imperador a renunciar em favor de seu sobrinho, Francisco José, que iniciou um reinado de 68 anos com a declaração de lei marcial e a reversão imediata da maioria das reformas liberais. A política liberal do império dos Habsburgo terminou e permaneceu abafada até a catástrofe de 1914. Napoleão e o Congresso de Viena haviam reduzido os Estados germânicos a 35 monarquias e quatro cidades livres. Eles foram agrupados na Federação Germânica, ainda que se tratasse apenas de uma aliança diplomática — até mesmo George IV da Grã-Bretanha participava como rei de Hanover. O objetivo do Congresso de Viena era estabilizar essa área com potencial para se tornar problemática por meio de boas relações entre as duas forças dominantes — Prússia e Áustria. Desde que os líderes conservadores desses países fossem mantidos no poder, a situação parecia estar controlada. O rei Frederico Guilherme III prometeu, em 1813, instituir uma Constituição para a Prússia, embora ela ainda não estivesse redigida quando ele morreu, em 1840. Sua principal realização foi diminuir a influência austríaca ao formar uma união aduaneira, ou Zollverein, com os outros Estados germânicos, excluindo a Áustria de forma intencional. Quando Frederico Guilherme IV sucedeu ao pai, atenuou as restrições à imprensa e também prometeu uma Constituição para a Prússia, mas recusou uma assembleia eleita pelo povo. A assembleia nacional, reunida em 1847, foi uma Dieta de representantes das províncias do reino prussiano com poderes limitados para o aumento de impostos e sujeita às convocações do rei. A Prússia teve destaque na Federação Germânica, mas o aspecto predominante dessa era foi a ascensão do liberalismo, que trazia consigo o desejo de uma única nação germânica. Camponeses, artesãos, profissionais da classe média, donos de lojas, comerciantes e industriais tinham todos razões para estarem insatisfeitos com o status quo. A Alemanha ainda era uma sociedade agrícola tradicional, mas caminhava para a industrialização. Assim como em outros lugares da Europa, os industriais e a burguesia acreditavam que o governo era incompetente para lidar com a modernização. Uma estrutura bancária com regras flexíveis para o crédito, por exemplo, não havia sido desenvolvida em lugar algum, exceto na Grã-Bretanha e na Bélgica, enquanto a infraestrutura e o sistema educacional eram inadequados para as crescentes demandas industriais e comerciais. A economia em transformação ocasionou novos fenômenos, como o ciclo econômico no qual a demanda diminui e o desemprego aumenta de forma periódica. Os primeiros sinaisde desemprego cíclico foram sentidos em Colônia, Viena e Paris.4 Camponeses do sul da Alemanha invadiram os castelos grandiosos de seus senhores, e Ludwig, rei da Bavária, já envolvido num escândalo, abdicou do trono em março de 1848, depois que a notícia da morte de Luís Felipe levou as multidões às ruas de Munique. O fim do feudalismo levou camponeses libertados às cidades em crescimento em busca de trabalho nas indústrias. Isso colocou trabalhadores industriais e artesãos uns contra os outros, enquanto as classes médias exigiam reformas liberais, mas também uma medida enérgica contra as violentas rebeliões de camponeses e trabalhadores. O que tornou única a situação em terras alemãs foi o desejo de unificação nacional. Uma Alemanha unificada interessava aos liberais como uma forma de passar da confusão de reinos autocráticos para um Estado constitucional com garantias de liberdade e direitos políticos. Comerciantes e industriais também viam vantagens na transformação do Zollverein num único mercado alemão para seus produtos. O obstáculo — o que é notável, em vista dos acontecimentos futuros — era a classe governante prussiana, que via uma nação alemã como uma ameaça ao seu poder. Em 1847, Frederico Guilherme IV convocou a Dieta prussiana com o intuito de aumentar a receita para a construção de ferrovias, e, de modo já tradicional, a dieta exigiu reformas em troca de impostos. O rei percebeu que um apoio liberal seria útil em sua luta contra a gentry que dominava a Dieta; então, quando as revoltas irromperam em Berlim, em março de 1848, diante da notícia da demissão de Metternich, o rei pareceu abraçar a causa do nacionalismo alemão e anunciou sua intenção de conceder as reformas. A essa altura, um Estado nacional alemão se tornara o objetivo central de todos aqueles que exigiam a reforma política. Um grupo de políticos liberais de toda a Confederação Germânica reuniu-se num “pré-parlamento” em Frankfurt, de 31 de março a 4 de abril de 1848, para preparar o terreno para uma Assembleia Constituinte que redigiria uma Constituição nacional alemã. Essa se tornou a Assembleia de Frankfurt, que foi eleita sob condições restritivas, que excluíam a maior parte dos trabalhadores — os requisitos para votar variavam de um Estado para outro — e durou de maio de 1848 a maio de 1849. A assembleia queria formar um Estado nacional, mas não conseguia definir se ele deveria ser monárquico, republicano, federal, democrático, secular, católico ou luterano. Ou se deveria incluir apenas os membros da Confederação ou todas as terras alemãs, incluindo a Áustria. As contradições internas da assembleia ficaram claras à medida que ela buscava estabelecer medidas liberais, tal como a igualdade perante a lei, ao mesmo tempo que convidava Frederico Guilherme para ser o monarca, a quem ela serviria. Em março de 1848, houve uma rixa entre a Dinamarca e a Federação Germânica a respeito dos ducados de Schleswig e Holstein.5 O conflito fez da unidade alemã uma questão de toda a Europa e, o que foi ainda mais relevante, gerou uma divisão entre nacionalismo e liberalismo. Tanto os nacionalistas alemães como os liberais prussianos haviam incentivado Frederico Guilherme a invadir Schleswig-Holstein, mas, quando a Prússia sofreu pressão internacional para se retirar em 1852, o reino perdeu credibilidade como o potencial líder de uma Alemanha liberal. O rei, frustrado com esse fracasso, demitiu seus ministros liberais, e o reacionário Junkerparlament, dominado pelos grandes proprietários de terras, retomou sua posição no poder. A partir de 1852, a esperança dos liberais de que a Prússia viesse a fazer parte de uma nação alemã baseada numa Constituição liberal desapareceu. A Constituição elaborada pela Assembleia de Frankfurt foi uma letra morta. Era o início de uma reversão que teria consequências profundas. A crença numa Alemanha unificada como veículo para estimular a política liberal foi substituída por uma visão de unidade nacional como meio de transformar a Alemanha numa grande potência que pudesse dominar o centro da Europa. Os legados gêmeos da Revolução Francesa — liberalismo e nacionalismo — foram separados de modo fatal. Enquanto protestos e repressões violentos cresciam e diminuíam pelo continente europeu, na Grã-Bretanha os eventos tomaram um rumo diferente. Em 1846, após um debate acirrado, o primeiro-ministro Robert Peel promoveu com êxito a aprovação da Revogação das Leis do Milho pelo Parlamento. Permitir a importação de milho barato foi um golpe contra as classes proprietárias de terras e favoreceu tanto os industriais como seus operários. Um argumento central era o de que, se as pessoas tinham de gastar uma porção menor de sua renda com pão, poderiam gastar mais com produtos manufaturados, o que permitiria que a indústria prosperasse. O início de uma mudança no poder da agricultura para a manufatura era palpável. Em contraste com a França, Áustria e Prússia, na Grã-Bretanha um governo conservador estava preparado para ir contra seus aliados tradicionais em face das realidades comerciais em transformação. Em termos de modernização parlamentar, o Ato de Reforma de 1832 resolvera alguns dos absurdos no sistema existente, possibilitando uma distribuição de votos mais justa — mas o Parlamento e o rei foram convencidos a aceitar o ato com a promessa de que ele refrearia, em vez de fazer avançar, a democracia. O conde Grey, responsável pelo projeto de lei, foi claro quanto à questão: “O princípio de minha reforma é evitar a necessidade de uma revolução [...] [não há ninguém] mais contrário a parlamentos anuais, sufrágio universal e eleições do que eu.”6 Medida liberal clássica do século XIX, o Ato de Reforma concedeu direitos políticos às classes médias, introduzindo um requisito de propriedade para eleitores, que substituía as regras arcanas, e excluindo os trabalhadores. Em resposta, uma organização informal de reformadores com ideias afins redigiu a Carta do Povo, em 1838, que exigia direito de voto universal masculino, igualdade entre eleitorados, eleições anuais, voto secreto, abolição de requisitos de propriedade e pagamento para os membros do Parlamento. O cartismo, como ficou conhecido, é considerado, de modo geral, o primeiro movimento em massa da classe trabalhadora. Os cartistas, que levaram a possibilidade de democracia ao país mais poderoso do mundo, não apenas lutaram pela reforma política, mas também convenceram os trabalhadores de que o direito de voto era importante para a sua vida. Esse impulso dos benefícios da democracia para os trabalhadores ia contra a corrente dos tempos e foi incentivado e apoiado pelos jornais do norte industrial da Inglaterra. Em 1839, os cartistas enviaram uma petição ao Parlamento, que a Câmara dos Comuns recusou-se a ouvir — um gesto de desprezo que convenceu alguns radicais de que a força era a única via para a mudança política. Nesse mesmo ano, vinte defensores dos cartistas foram mortos ao tentar libertar companheiros da prisão em Newport, Gales do Sul, mas outras revoltas não se concretizaram. Em vez disso, em maio de 1842, os cartistas apresentaram outra petição ao Parlamento, dessa vez assinada por 3 milhões de pessoas. Mais uma vez, Westminster rejeitou-a. Alguns cartistas se candidataram às eleições — Fergus O’Connor, editor do Northern Star e principal cartista, tornou-se o membro do Parlamento por Nottingham em 1847 —, outros discursaram nos hustings,* mas depois se retiraram em protesto contra a falta de democracia do sistema. Com as forças doParlamento e do Estado voltadas contra eles, os cartistas tiveram de contar com o apoio do povo a seus objetivos. Com as rebeliões ameaçando derrubar governos pela Europa, o Estado britânico ficou extremamente alerta para os perigos. Em 10 de abril de 1848, cerca de 150 mil defensores dos cartistas reuniram- se no parque de Kennington, em Londres. Mais de 100 mil policiais especiais foram recrutados, e o Exército recebeu ordens para impedir que os manifestantes atravessassem o Tâmisa. Porém, o cartismo era um movimento predominantemente pacífico, e o encontro, que havia sido convocado para demonstrar apoio à apresentação que O’Connor faria de uma nova petição para o Parlamento, transcorreu sem violência. No entanto, o governo apavorou-se a ponto de aprovar uma legislação proibindo assembleias públicas e sancionou uma nova Lei sobre Atos de Traição. O cartismo continuou após 1848, mas a intervenção do governo acabou de forma efetiva com o impulso do movimento. Qual foi então o destino da democracia na Europa após 1848? Em retrospectiva, podemos identificar um padrão repetido de forma aproximada na maior parte da Europa Central e Ocidental. Regimes conservadores que haviam permanecido fiéis ao espírito repressor do Congresso de Viena foram derrubados ou forçados a se liberalizar. As pressões para a mudança vieram por meio de uma aliança entre liberalismo e nacionalismo inspirada pela Revolução Francesa e foram impulsionadas pelos problemas sociais. Essa mudança, no entanto, foi efêmera, e as forças conservadoras logo recuperaram a supremacia no continente. Após 1848, porém, o conservadorismo era muito diferente do que havia antes. Ele começou a abraçar a causa popular da unidade e identidade nacionais. Para os revolucionários franceses, o liberalismo e o nacionalismo eram inseparáveis, mas as decepções de 1848, em especial a falha na tentativa de aliar o sentimento crescente de identidade nacional ao desejo de um acesso mais amplo ao poder, geraram uma transformação notável. As classes médias, antes progressistas, ainda queriam ter acesso ao poder, mas adotaram o nacionalismo em detrimento da democracia. Esse foi o nascimento do que veio a ser conhecido como liberalismo clássico. A liberdade diante das restrições religiosas, da monarquia, das tarifas do comércio e das regras do governo era considerada suficiente para proporcionar uma prosperidade duradoura e uma sociedade digna — pelo menos para as classes médias. Na Alemanha em particular, mas também na França e na Áustria, as forças de reação aliaram-se ao nacionalismo — a opinião conservadora defendia a ideia de um Estado baseado em seu povo e em suas tradições. Esse foi um desenvolvimento crucial na história europeia. As forças conservadoras se estabeleceram com base no nacionalismo que dominara a França nos anos revolucionários e o dissociaram do liberalismo que inspirou os revolucionários. Entretanto, os conservadores que governaram após 1848 entenderam que precisavam levar em conta as forças liberais da sociedade. Liberais em todos os países queriam fortalecer seu Parlamento diante dos caprichos do monarca e de aristocratas ampliando o direito de voto para incluir as classes médias. Para eles, contudo, a preocupação principal era um governo constitucional e competente, e não expressão da vontade do povo por meio do sufrágio universal. De fato, o conceito era ridicularizado até mesmo por candidatos, como o nacionalista italiano, o conde Cavour, que declarou: “Ninguém deveria ser eleitor, a menos que sua renda e inteligência indiquem... um interesse incontestável na ordem social.”7 Depois de 1848, as forças conservadoras retomaram seu domínio, mas, do meado ao fim da década de 1860, as pressões liberais e nacionalistas, geralmente em conflito, começaram a ter impacto sobre todos os Estados europeus. A complexa série de guerras que levou à unificação italiana começou em 1859, quando um Exército piemontês, comandado por Cavour e apoiado pela França, tomou a Lombardia da Áustria. A essa altura, Cavour estava empenhado em obter o controle do norte e não em unificar a Itália inteira, mas, no ano seguinte, convenceu Giuseppe Garibaldi, comandante de uma tropa irregular, a liderar uma expedição à Sicília. Garibaldi tomou a Sicília, depois Nápoles (ambos reinos independentes anteriormente) e declarou suas intenções de anunciar um reino da Itália em sua capital histórica, Roma. Em junho de 1861, apesar de Roma e Venécia ainda estarem fora do controle italiano, Cavour afirmou em seu leito de morte: “A Itália está formada.” O papel de Garibaldi de soldado comum transformado em líder rebelde transmitiu a mensagem inspiradora de que os governantes aristocráticos podiam ser derrubados em nome do nacionalismo e da reforma. No entanto, aqui também, as medidas liberais tiveram seus limites. A Constituição italiana de 1861 (que durou até 1946) dava ao rei o poder Executivo exclusivo, o comando das Forças Armadas, o direito de declarar guerra, de nomear todos os ministros, de fazer tratados e alianças e de nomear os membros do Senado. Consequentemente, o movimento republicano liderado por Garibaldi não conseguiu assegurar o poder, e o próprio Garibaldi foi preso em 1862. A Câmara inferior era eleita, ao passo que o Parlamento bicameral só estava autorizado a aprovar a legislação, com direito de veto sobre tributação e alterações nas fronteiras do reino. O preço da unificação foi esmagar as divergências e a diversidade. Em 1861, Cavour escreveu ao rei Vítor Emanuel a respeito das dificuldades com Nápoles: “Temos de impor a unificação nacional à parte mais fraca e mais corrupta da Itália. Quanto aos meios, resta pouca dúvida: força moral e, caso seja insuficiente, força física.”8 Enquanto, na Itália, o nacionalismo prevalecia sobre o liberalismo, em outras partes da Europa a pressão pelas reformas liberais foi sentida e considerada na década de 1860. Na Grã-Bretanha, o Ato de Reforma começara a tornar o sistema parlamentar mais consistente (embora o direito de voto ainda permanecesse severamente restrito). Apesar do declínio do movimento cartista, organizações como a Liga da Reforma e a União da Reforma aproximaram os liberais da classe média dos sindicatos de trabalhadores especializados na exigência do sufrágio universal masculino. Outros, tal como John Stuart Mill — autor de O governo representativo —, defendiam reformas que concedessem direitos civis à chamada respeitável classe dos trabalhadores, mantendo as massas fora do processo. Essa era uma estratégia clássica do século XIX, e, em 1866, o primeiro-ministro do partido Liberal, William Gladstone, esboçou um projeto de lei que estendia o direito de voto a trabalhadores especializados. Porém, elementos do partido Liberal rebelaram-se, deixando para o novo membro do partido Tory, Benjamin Disraeli, a tarefa de aprovar uma emenda estendendo o direito de voto a todos os chefes de família e aos homens que pagassem pelo menos 10 libras de aluguel. Essa medida parcial permitiu que os conservadores falassem em defender o país contra a democracia, ao mesmo tempo em que satisfaziam o crescente sentimento liberal. Ainda assim, nas décadas seguintes, começou a se falar em democracia em alguns círculos como uma meta desejável — o espírito de Putney estava prestes a ressurgir. Na França, Luís Napoleão, que se declarara imperador em 1852, manteve o sufrágio universal masculino estabelecido pelo governo provisório de 1848. O problema para os liberais aquiera a impotência do Parlamento em comparação com o poder do Executivo, dominado pelo imperador. Luís Napoleão reconheceu a necessidade de reforma, ainda que apenas para deter um movimento republicano, e, em novembro de 1860, medidas modestas permitiram que a assembleia revisasse alguns projetos de lei e solicitasse a participação de alguns ministros no Parlamento. Restrições à liberdade de imprensa foram suspensas em 1868, dando um impulso a mais à política liberal, e as eleições de 1869 deram aos liberais poder suficiente para exigirem um Executivo que se originasse exclusivamente do Parlamento. Em 1870, nomearam Émile Ollivier primeiro-ministro e pediram que redigisse uma nova Constituição, a qual, repleta de contradições — colocando o imperador como chefe do Estado e presidente do Conselho de Ministros, e chamando a nação de império “parlamentar” —, foi aprovada por maioria esmagadora num plebiscito de maio de 1870. Algumas semanas depois, no entanto, o império foi derrubado por Exércitos invasores prussianos. Como escreveu um historiador: “O Segundo Império quase resolveu o problema da conciliação entre monarquia e democracia — mas não de fato nem a tempo.”9 A invasão prussiana também causou outra revolta política na capital francesa. A Comuna de Paris foi resultado da rendição francesa à Prússia e da formação do novo governo de Adolphe Thiers. O povo de Paris não confiava em Thiers, por acreditar que ele estava trabalhando para restaurar a monarquia após a destituição de Luís Napoleão em julho de 1870. Também estavam ofendidos pela insistência prussiana em realizar uma marcha da vitória pela cidade. Quando o desfile acabou, e os prussianos voltaram para casa, Thiers ordenou que o Exército regular desarmasse a Guarda Nacional parisiense e confiscasse seus quatrocentos canhões. Duas unidades do Exército se rebelaram, executaram seus generais e juntaram-se à Guarda Nacional. Outras tropas seguiram o exemplo, e Thiers ordenou uma evacuação de policiais e de todos os oficiais do governo. De março a maio de 1871, o povo de Paris estava no controle da cidade. A comuna declarou-se a favor de uma democracia republicana, e as votações para um conselho da comuna foram realizadas em 28 de março de 1871, com a eleição de uma mistura de trabalhadores especializados e profissionais. Suas políticas eram seculares (separavam a Igreja do Estado) e progressistas (aboliam o trabalho noturno, por exemplo), e, embora tenham se reunido por apenas sessenta dias, os membros do conselho planejaram educação gratuita e outras medidas sociais, tais como a abolição da prostituição. As mulheres também tiveram intensa participação na estrutura das políticas comunais. Em 21 de maio, tropas francesas leais ao governo de Thiers entraram na cidade e, durante as duas semanas seguintes, tomaram o controle de Paris. As represálias foram brutais — estimativas do número de defensores da comuna mortos em batalha ou executados variam de 10 mil a 50 mil, com outros 7 mil deportados para Nova Caledônia. Mais uma revolução francesa terminara de forma violenta, e a democracia plena foi mais uma vez adiada. Na Prússia, a situação política tornou-se confusa em meio às políticas expansionistas de Otto von Bismarck, que não apenas dominava a política europeia, mas também personificava a nova aliança entre conservadorismo e nacionalismo, manipulando com eficácia uma Constituição democrática para restringir o acesso ao poder. Bismarck começou sua carreira em 1851 como representante da Prússia no Parlamento da Confederação Germânica. Seus oito anos em Frankfurt o transformaram de cético a defensor convicto da unificação alemã. Após períodos como embaixador na Rússia, França e Grã- Bretanha, Bismarck voltou a Berlim em 1862 para servir ao novo rei, Guilherme I, como primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores. Depois de provocar guerras contra a Dinamarca (1864), Áustria (1866) e França (1870-71), Bismarck alcançou seu objetivo de unificar o Império Alemão e, na sequência da Guerra Franco-Prussiana, testemunhou a coroação de Guilherme I como imperador da Alemanha no Palácio de Versalhes em 18 de janeiro de 1871. A Confederação do norte da Alemanha, formada em 1866, forneceu a Constituição para o novo império com o imperador, ou kaiser — cargo reservado para o rei da Prússia —, auxiliado por um chanceler que era nomeado por ele e a ele prestava contas. O Reichstag da Alemanha unificada, eleito pela primeira vez em 1871, era escolhido por sufrágio universal masculino, enquanto a Câmara Superior, ou Bundesrat, continha representantes de todos os estados alemães. Bismarck precisava do apoio da maioria no Reichstag, e a administração de seus membros, junto com sua proximidade do kaiser, foi a chave de seu poder. De início, o chanceler foi capaz de trabalhar com a maioria liberal, uma vez que compartilhavam a causa da opressão da vasta população católica. Quando os liberais deixaram de ser a maioria, Bismarck foi sagaz o bastante para aprovar medidas conservadoras, que lhe conferiram popularidade mediante a nova atmosfera do Reichstag e de seus eleitores. Todos os adultos do sexo masculino podiam votar nas eleições para o Reichstag — mas a pouca importância disso ficou clara quando, em 1878, Bismarck baniu o principal partido socialista, o SDAP (depois SPD). Como era um político astuto, juntou a proibição do partido à introdução de um sistema de previdência social que fornecia seguro de saúde e contra acidentes, além de pensões. Sua mensagem ao povo da Alemanha estava clara — vocês não precisam do socialismo para ter benefícios sociais. Apesar dessas medidas populares, a posição sólida do chanceler fez da Alemanha um arremedo de democracia — os eleitores não tinham nenhum poder para retirá-lo do cargo, e ele continuava aprovando leis que diminuíam a autoridade dos órgãos formados por votação. Nas monarquias irmãs, Áustria e Hungria, a democracia também começava a passar por severas restrições. Eleitores da Hungria tinham de ter propriedade de um valor que desqualificava a maioria. Na Áustria, o Reichstag era eleito de forma indireta, a partir de quatro grupos — donos de terras, câmaras de comércio e contribuintes urbanos e rurais —, excluindo a maior parte da população. Na Hungria, os eleitorados eram manipulados de modo a impedir que os eleitores eslavos elegessem seus próprios representantes, com os magiares dominando os resultados. Enquanto isso, a Rússia fortalecia-se em razão da dissolução do Império Otomano. Durante o reinado comparativamente liberal de Alexandre II, houve a emancipação dos servos em 1861 e medidas para a reforma dos sistemas judiciário e penal, além da introdução dos governos representativos locais. As pressões para a mudança na Rússia tinham as mesmas origens de outros lugares: uma classe média cada vez mais letrada, combinada com industriais que defendiam um regime competente no processo de modernização. No entanto, a Rússia ainda era uma autocracia e, frustrados diante da ausência de mudanças políticas, grupos revolucionários, como o Narodnaya Volya [Vontade do Povo], lançaram mão da violência. Ironicamente, o czar foi assassinado em março de 1881, apenas dias depois de o ministro do Interior, general Loris-Melikov, apresentar-lhe a proposta de um plano para um Parlamento, ou Duma. Até mesmo esses passos hesitantes foram eliminados pelo assassinato, e todas as reformas políticas foram canceladas. As doutrinas do liberalismo clássicosurgiram no período de 1840 a 1880. Para os liberais do século XIX, a libertação dos poderes da monarquia, da aristocracia e da Igreja trouxera uma era de livre comércio e empreendimento, progresso e prosperidade. Foi apenas no fim do século XIX que essa situação começou a perder força. O livre comércio funcionava para as economias dominantes, mas não para as outras, e a falta de regulamentação funcionava para os poderosos, mas não para o restante. Tudo isso ficou claro somente quando a classe dos trabalhadores industriais começou a perceber seu próprio poder — e uma das aplicações desse poder foi exigir democracia. Nota: * Plataformas em que candidatos ao Parlamento se dirigiam aos eleitores. (N. T.) Fóruns da Democracia I Anfiteatro grego, Epidauro Fóruns da Democracia I Piazza del Campo e Palazzo Publico, Siena A Batalha Pela Democracia O Juramento da Quadra de Tênis, 20 de junho de 1789 A Batalha Pela Democracia O grande encontro cartista no parque de Kennington, 10 de abril de 1848 A Batalha Pela Democracia Luta diante de uma barricada em Berlim, 1848 A Batalha Pela Democracia Simón Bolívar Votando Mulher votando durante a primeira eleição do Japão após a guerra, 1946 Votando Mulheres votando na eleição geral britânica, 1964 Votando Mulheres votando na eleição geral britânica, 1964 Votando Eleitores na Caxemira, 2011 Votando Eleitores sul-africanos, 2007 Desafiar e Sobreviver O presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, na cabine de votação, em 1950 Desafiar e Sobreviver John F. Kennedy e Richard Nixon num estúdio de TV para o primeiro debate televisionado entre candidatos à presidência dos Estados Unidos, 1960 Desafiar e Sobreviver O chanceler alemão, Franz von Papen (no centro), diante da urna, 1932 Nova e Velha Democracia O presidente dos EUA, Barack Obama, cumprimenta visitantes no Lincoln Memorial, em Washington, 2011 Nova e Velha Democracia O presidente soviético, Mikhail Gorbachev, e o presidente russo, Boris Yeltsin, no Parlamento russo após o fracasso do golpe, agosto de 1991 Fóruns da Democracia II Votação no Parlamento Europeu, 2011 Fóruns da Democracia II Governo e oposição encaram-se na Câmara dos Comuns britânica, século XVIII S 11 ÍNDIA O Cidadão Independente e procurássemos um país para o estabelecimento da mais nova democracia do mundo, a Índia de 1947 não estaria no topo da lista: colônia britânica que nunca fora uma nação, sociedade baseada em castas, dividida pela religião, com uma profusão de idiomas e a maior parte da população na pobreza, sob constante ameaça de inanição. Acima de tudo, a Índia, diferentemente de todas as outras democracias modernas, não era europeia. (As democracias das Américas do Sul e do Norte haviam sido estabelecidas e administradas por imigrantes europeus e seus descendentes.) No entanto, um sistema político democrático criou raízes na Índia e persiste até hoje. As eleições de 2009 para a Câmara Inferior, ou Lok Sabha, do 15º. Parlamento, tiveram um eleitorado de 714 milhões, dos quais 420 milhões votaram — mais do que os eleitorados dos Estados Unidos e de todos os países da União Europeia juntos. A política se tornou a força vital da Índia, onde milhões de vozes podem ser ouvidas e milhares de reivindicações divergentes são ventiladas, negociadas e resolvidas em público. As explicações para essa história notável são tão diversas quanto o próprio país e giram em torno de se os elementos-chave que permitiram que a democracia florescesse após a independência eram profundamente intrínsecos à cultura indiana ou se a democracia era um conceito original ao qual a nação conseguiu se adaptar. É hoje de conhecimento geral que a independência foi uma preparação, não uma ruptura na história da democracia na Índia — a democracia estava inserida no subcontinente muito antes da saída formal da Grã-Bretanha. Existe também a visão de que o domínio britânico deveria ser visto a partir do processo contínuo da história indiana. Nessa perspectiva, a administração colonial deixou um legado influente, mas muito da cultura indiana permanecera inalterado durante o período colonial. A independência simplesmente permitiu que a cultura predominante continuasse como antes, mas com o povo indiano no controle do centro político. No entanto, precisamos equilibrar essa leitura da história com o reconhecimento de que a Índia contemporânea é uma criação moderna que combina inovação e adaptabilidade com uma continuidade extraordinária. Para compreendermos esses argumentos abstratos, precisamos examinar a história da Índia antes e depois da chegada dos britânicos. Desde os séculos IV e III a.C., quando o território da Índia era governado pelo Império Mauria, o subcontinente tem acomodado um conjunto de culturas diversas e unificadas simultaneamente — pessoas em diferentes áreas compartilhavam práticas culturais com costumes variados. Tanto o hinduísmo como o budismo espalharam-se pela região, unindo o povo do sul da Ásia não apenas pela crença religiosa, mas por atitudes sociais e culturais. O hinduísmo transformou-se numa estrutura social durante a chamada Era Clássica, do século IX ao XVII. Nesse período, partes do noroeste da Índia foram invadidas e colonizadas por muçulmanos da Pérsia, os mogóis, enquanto o Império Hindu de Vijayanagara se tornou uma força dominante no sul do século XIV ao XVII. O Império Mogol estabeleceu-se por completo no reino de Akbar, o Grande (1542-1605), chegando a se estender de Cabul, no norte, até Calicute, no sul, e ao delta do Ganges, no leste. Os mogóis não interferiram na fé hindu de seus súditos, e Akbar usou uma combinação de líderes muçulmanos e nativos, conhecida como jagirdar, para governar o império. Esses dirigentes locais arrecadavam impostos e organizavam a defesa de suas regiões por meio de uma equipe de administradores (zamindars). O império fazia uso de autoridades estabelecidas em algumas áreas, ao passo que, em outras, introduziu seus administradores e oficiais para criar uma burocracia imperial efetiva. A corte mogol era peripatética, e os 2 mil jagirdars tinham de comparecer com regularidade, independentemente do local escolhido pelo imperador. A característica-chave do império era a autonomia concedida às regiões: desde que os líderes locais apresentassem os impostos e não desafiassem a autoridade do centro, eram quase sempre deixados em paz. Porém essa mesma autonomia contribuiu para o fim do império. No século XVIII, os mogóis tornaram-se vítimas de seu próprio êxito. Nessa época, as diferentes regiões haviam crescido em prosperidade e autoconfiança. Os líderes das províncias tornaram-se menos rigorosos no envio de impostos ao centro, o qual, por sua vez, enfraqueceu de forma progressiva. As rebeliões nas regiões, por exemplo as guerras do Decã, que começaram em 1670, desafiaram a autoridade central com sucesso. Após a morte de Aurangzeb, o último grande imperador mogol, em 1707, muitos dos jagirdars cortaram seus laços com a corte imperial, criando Estados semi-independentes em Hyderabad, Bengala e Oudh. O fim veio quando Délhi foi saqueada por um Exército persa em 1739, e o Trono do Pavão mogol, levado como espólio de guerra. O império não desapareceu, mas o Grande Mogol tornou-se apenas um dentre muitos líderes regionais, cada um com a sua própria base de poder. A subsequente conquista do subcontinente indiano pelos britânicos foi tão gradual que pode ser vista como uma continuação do sistema de governo mogol com outro nome. O envolvimento da Companhia das Índias Orientais teve início em 1615, quando sir Thomas Roe liderou uma missão até o imperador mogolNuruddin Salim Jahangir. Durante os cem anos seguintes, empregados da companhia comercializaram com partes do império, alguns deles estabelecendo postos de comércio no subcontinente. Durante todo esse tempo, a companhia era independente do governo britânico, embora tivesse privilégios especiais; primeiro, concedidos pela rainha Elizabeth em 1600 e, em seguida, por Oliver Cromwell, pelo rei Carlos II e pelo Parlamento britânico, em 1708. Em retorno por esses privilégios, a companhia pagou quantias consideráveis ao governo britânico. Suas principais mercadorias eram o algodão, a seda e outros produtos têxteis, como tintura índigo, mas havia um comércio secundário lucrativo de ópio e tabaco. À medida que suas operações se expandiam, a companhia passou a montar fábricas e construir pequenas fortalezas para proteger suas propriedades. Em 1717, ela recebeu permissão do imperador mogol para comercializar em Bengala sem pagar direitos aduaneiros. Um comércio intenso ali e em outras partes da Índia e do leste da Ásia permitiu que a companhia prosperasse, mas sem qualquer plano de conquista: parecia não haver motivos para se desejar um domínio político, desde que o comércio estivesse lucrativo e estável. A Guerra dos Sete Anos (1756-63) mudou a situação. Em 1757, Robert Clive comandou forças da Companhia das Índias Orientais, com o apoio do Grande Mogol, contra os nawab de Bengala e os franceses na Batalha de Plassey. A vitória de Clive fez da companhia a governante de fato de Bengala, a joia da coroa da Índia, mas ainda não havia indicações de que a proteção dos direitos britânicos levaria a uma conquista total do subcontinente. Os britânicos simplesmente se tornaram parte da estrutura de poder já existente. No entanto, em 1780, a função comercial da companhia se tornara praticamente política: na falta de qualquer outra autoridade, oficiais da Companhia das Índias Orientais administravam uma parte grande e próspera da Índia oriental, incluindo a arrecadação de impostos. Em parte por terem assumido a autoridade de forma gradual, os oficiais da companhia se viram trabalhando num sistema indiano com interações entre indianos e britânicos em todos os níveis. Não se tratava de um plano imperial de unificação, mas de um conjunto de arranjos práticos. Em seu papel comercial, a Companhia das Índias Orientais contentava-se em conviver com a cultura e o povo indianos. Porém, muitos indivíduos e grupos na Grã-Bretanha estavam ávidos para levar os frutos da civilização a um povo que, de acordo com Charles Grant, membro do conselho da companhia e cristão evangélico, estava “há muito afundado na escuridão, no vício e na miséria” e necessitado da “luz e influência benéfica da verdade [e das] bênçãos de uma sociedade devidamente regulada”.1 Se o cristianismo não conseguiu causar grande impacto em solo indiano, a educação de um número significativo de membros da elite indiana viria a ser um importante legado do domínio britânico. Os britânicos acabaram lamentando a criação de um grupo de indianos altamente instruído e capaz, que poderia desafiar a autoridade em todos os níveis (ação que não se repetiu nas colônias africanas da Grã- Bretanha). Indianos cultos começaram a pensar a respeito de uma nação indiana que transcendesse religião, credo e castas. Na primeira metade do século XIX, a Companhia das Índias Orientais mudou de forma decisiva e se tornou um poder militar dominante e conquistador. As vitórias sobre o Império Maratha no sul e a coerção sobre líderes locais no noroeste deram à companhia o controle total da Índia em 1850. Essa conquista não declarada foi formalizada pelo Motim Indiano, de 1857, que alterou completamente a relação entre Índia e Grã-Bretanha. Nessa época, a Companhia das Índias Orientais empregava cerca de 200 mil soldados indianos, conhecidos como sepoys, além de 40 mil soldados britânicos, para impor seu poder. Diferentes fatores inspiraram o motim, inclusive as medidas para impor o serviço de sepoys fora da Índia e o desgaste dos privilégios usufruídos pelos sepoys de castas superiores. O desencadeador foi a introdução de um novo rifle Enfield. A técnica de carregamento consistia em abrir os cartuchos de papel com os dentes, e houve rumores de que os invólucros eram enrijecidos em gordura de porco — o que era um anátema para os soldados muçulmanos — ou em sebo bovino — o que era inaceitável para os hindus. Embora o conflito principal estivesse confinado à planície do Ganges, a autoridade da companhia entrou em colapso em muitas partes da Índia. O governo britânico assumiu o controle direto das forças britânicas. A repressão à rebelião foi brutal e não deixou nenhum rival ameaçador ao poder britânico. Após o motim, a Grã-Bretanha consolidou sua posição com a nomeação de um vice-rei. A Companhia das Índias Orientais foi abolida, e a Índia tornou-se colônia britânica. O subcontinente estava dividido em distritos, cada um sob a autoridade de um dirigente distrital, geralmente oriundo da classe média alta britânica. O desenvolvimento de ferrovias, estradas, do telégrafo e, posteriormente, do telefone possibilitou o governo do subcontinente como uma única entidade. Ao mesmo tempo, a vida vitoriana da classe média alta, com suas hierarquias sociais e rígida submissão, foi exportada para a Índia. Isso permitia pouco contato entre britânicos e indianos. Do mesmo modo como lidavam com sua própria classe trabalhadora, os senhores coloniais britânicos tratavam os indianos com condescendência, caridade e ocasional brutalidade. Aqueles que se importavam com o povo indiano afirmavam que os britânicos governavam o país em benefício dos próprios habitantes. O governo britânico da Índia durou de 1857 a 1947. Durante esse tempo, os indianos estiveram muito conscientes dos acontecimentos políticos na Grã- Bretanha, das mudanças na lei eleitoral e das pressões democráticas sobre os partidos Liberal e Tory. Em 1885, o Congresso Nacional indiano era formado não como um partido político, mas como uma espécie de clube ou sociedade para indianos cultos discutirem e influenciarem o futuro político do país. A eleição de um governo britânico liberal e reformador em 1906 gerou mudanças notáveis no subcontinente. Esse também foi o ano da fundação da Liga Muçulmana. As Leis dos Conselhos Indianos, de 1909 (conhecidas como as Reformas de Morley Minto), deram aos indianos algumas vagas por eleição nas assembleias legislativas, que antes eram completamente ocupadas pelos britânicos, e também reservaram algumas vagas para a minoria muçulmana. Embora os nomeados britânicos ainda constituíssem a maioria, essas reformas marcaram o início de uma estrutura parlamentar para a Índia nos níveis distrital, provincial e imperial. Depois de 1918, quando todos os homens britânicos acima dos 18 anos e algumas mulheres acima dos 30 tinham o direito de voto, cresceram as reivindicações indianas por direitos políticos reais. Em 1919, o governo britânico concedeu aos indianos uma maior participação na administração pública, o que proporcionou um catalisador para discussões mais objetivas por parte dos nacionalistas indianos no Congresso e da Liga Muçulmana. Os indianos não se viam como uma nação e agora tinham de definir o que o conceito significaria na prática. O que era Índia e o que deveria ser? Alguns hindus queriam uma nação baseada em sua cultura religiosa — mas onde ficaria a minoria muçulmana? Alguns queriam unidade política, outros, uma federação flexível. Essas ideias foram intensamente debatidas. Em meioa esse debate aberto e instável, surgiu a figura extraordinária de Mohandas Gandhi. Filho de um político provinciano, Gandhi estagiara como advogado em Londres antes de trabalhar na África do Sul de 1893 a 1914. Lá, vivenciou diretamente o racismo e, numa campanha para a obtenção de direitos políticos para a comunidade indiana, desenvolveu a ideia do satyagraha (literalmente, “força verdadeira”), uma combinação de adesão à verdade e protesto não violento. De acordo com o satyagraha, as pessoas, em grupo, desobedeceriam a leis injustas e aceitariam a punição como uma forma radical de protesto. Gandhi voltou à Índia em 1915 e tornou-se líder do Congresso Nacional em 1921, com o objetivo declarado de conquistar a independência da Grã-Bretanha. O estilo simples de vestimenta adotado por ele, o tradicional dhoti, feito de tecido rústico, era a representação física de sua crença de que a alma da Índia estava em suas aldeias e em seu povo. O movimento satyagraha organizou campanhas de não cooperação durante toda a década de 1920, enquanto a habilidade de Gandhi para se comunicar com o povo comum da Índia transformou o Congresso, antes um pequeno grupo de indianos cultos, numa organização nacional envolvendo todas as classes e regiões. No início da década de 1930, Gandhi instituiu uma campanha contra o imposto sobre o sal, que culminou na famosa marcha de 400 quilômetros de Ahmedabad até as salinas de Dandi. Mais de 80 mil indianos foram presos durante a campanha. No centro do trabalho de Gandhi estava a percepção de que a Índia não poderia ser criada simplesmente livrando-se dos britânicos: a nação tinha de ser construída de baixo para cima. Os moldes para a nova nação foram apresentados em 1935 pela Lei do Governo da Índia, que estabelecia uma federação de províncias semiautônomas nas quais os indianos tinham mais poderes de voto. Na prática, no entanto, o sistema federal não funcionou: os ministros provinciais eram controlados pelo comando central do partido do Congresso, que passara a ser a força dominante da política indiana. Jawaharlal Nehru, descendente de uma família rica da Caxemira e educado na Grã-Bretanha, era o principal organizador do movimento de independência. Foi a combinação do carisma e da popularidade de Gandhi com as habilidades políticas de Nehru que formou a base do movimento. Enquanto isso, a maioria dos cargos alocados para os muçulmanos era ocupada por membros da Liga Muçulmana, cujo líder, Muhammad Ali Jinnah, acabaria defendendo a criação de um Estado separado para os muçulmanos. O sistema introduzido pela lei de 1935 deu aos políticos das províncias a chance de se envolverem no governo, e os dirigentes dos conselhos distritais e provinciais aprenderam habilidades políticas — manipular, fazer concessões e organizar. Além disso, em 1940, o Serviço Público indiano, o grande aparelho administrativo do governo, havia se tornado ainda mais “indianizado”. Havia então mais funcionários indianos que britânicos nos cargos mais elevados. Depois de 1945, a independência passou a ser inevitável. Tropas britânicas haviam sido levadas a outros lugares durante a guerra, e os custos para reocupar a Índia eram proibitivos. De todo modo, a Grã-Bretanha e a Índia percebiam que tinham pouca utilidade uma para a outra. Em termos econômicos, seguiam caminhos separados, uma vez que a Índia começava a se comportar mais como um país desenvolvido — aumentando a alfabetização da população, produzindo seus próprios produtos manufaturados e importando mercadorias de outros lugares. Além disso, os Estados Unidos, que financiavam a reconstrução da Europa, eram hostis ao imperialismo britânico, e o povo britânico queria uma reconstrução interna, não fora do país. À medida que a independência se aproximava, aumentavam as tensões entre as comunidades hindu e muçulmana, cada uma ameaçada pela potencial dominação da outra em diferentes partes do país. A violência entre as comunidades foi sangrenta, principalmente no Punjab, que era habitado por sikhs, muçulmanos, hindus, cristãos, jainas e budistas. Nehru escreveu a respeito da violência: “Tenho de confessar que acontecimentos recentes no Punjab e em Délhi abalaram [...] minha fé em meu próprio povo. Eu não poderia imaginar a brutalidade flagrante e a crueldade sádica a que as pessoas se entregaram.”2 Em 1947, o primeiro-ministro britânico, Clement Attlee, nomeou lorde Mountbatten vice-rei, ordenando que ele abrisse o caminho para a independência indiana. Mountbatten era uma figura afável, que levou líderes indianos ao seu círculo social e desenvolveu uma amizade com Nehru em particular. Nehru, por sua vez, lutava no Congresso por uma visão secular da Índia, opondo-se ao nacionalismo hindu e oferecendo proteção aos milhões de muçulmanos da Índia. Tanto Nehru como Mountbatten estavam frustrados com a intransigência de Jinnah, cuja preocupação com os direitos políticos para a minoria muçulmana transformou-se numa reivindicação por um Estado separado; mas Nehru entendeu que a realidade da violência comunal, em que dezenas de milhares eram mortos, significava que o sonho de uma Índia unida e independente nunca poderia ser realizado. No fim, Nehru, Jinnah e Mountbatten concordaram com a divisão do país nos Estados da Índia e do Paquistão, e a independência foi declarada formalmente à meia-noite de 14 para 15 de agosto de 1947. Embora a divisão tenha sido traumática, os novos governos da Índia e do Paquistão souberam lidar com a administração do resultado com rapidez e êxito extraordinários. Refugiados estabeleceram-se, e as administrações públicas, receitas, Forças Armadas e outros órgãos foram divididos com eficiência. Na Índia, a Assembleia Constituinte recebeu a tarefa de redigir uma Constituição para o novo país. Como isso deveria ser realizado era uma incógnita. Gandhi acreditava que o Congresso deveria ser desfeito agora que o trabalho da independência estava completo. Porém, o partido continuou, mas permaneceu um conjunto de opiniões e abordagens diferentes. Alguns de dentro do Congresso acreditavam que a divisão dera o sinal verde para um Estado declaradamente hindu, e havia a possibilidade de que a poderosa burocracia indiana pudesse ser usada para servir a uma oligarquia da elite instruída. A democracia, contudo, continuou sendo a opção preferencial no Congresso, e a principal realização de Nehru foi insistir no sufrágio universal e fazer da extensão dos direitos políticos um motor para o desenvolvimento socioeconômico. A Constituição foi sancionada em janeiro de 1950: a Índia passara a ser uma república democrática. O preâmbulo à Constituição acompanhava o de seus predecessores ocidentais ao colocar o povo como soberano e consagrar certos direitos, entre eles a igualdade e a livre expressão: Nós, o povo da Índia, decidimos de forma solene fazer do país uma república democrática soberana e assegurar a seus cidadãos: Justiça social, econômica e política; Liberdade de pensamento, expressão, crença, fé e culto; Igualdade de status e oportunidade; e promover junto a eles a Fraternidade, garantindo a dignidade do indivíduo, e a unidade e a integridade da Nação.3 A Constituição deu ao governo nacional mais poder do que alguns gostariam, mas que outros consideraram necessário para a criação de um Estado moderno. O direito do presidente de dissolver o governo de Estados individuais (o chamado Governo do Presidente) era problemático, mas refletia os temores de uma divisão da Índia em Estados isolados. O novo Estado deu início à criação de umasociedade livre, igualitária e próspera. Todavia, a tarefa do governo indiano de manter a estabilidade, ao mesmo tempo que dava ao povo liberdade de escolha, gerou a eterna questão de como equilibrar liberdade e ordem. Os indianos haviam sido coagidos sob o domínio britânico e agora estavam livres, mas a sociedade tinha de funcionar de forma ordenada. Três fatores contribuíram para a estabilidade: a neutralidade política do Exército, um serviço público extremamente profissional que agia como uma proteção contra a desordem política e, nas primeiras décadas da independência, a força do Congresso. O Congresso era tão dominante que a Índia foi, durante algum tempo, um aparente paradoxo — uma democracia de um só partido. Jawaharlal Nehru foi primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores de 1947 até sua morte, em 1964. Filho de um rico advogado indiano, Nehru acompanhou de perto a democracia britânica com todos os seus méritos e falhas quando estudava na Harrow School e em Cambridge. A longa campanha pela independência, juntamente com a influência de Gandhi, sem dúvida moldou sua visão política e, em 1947, ele estava ciente das dificuldades e possibilidades enfrentadas pela Índia. Nehru viu claramente que a nova nação tinha muitas chances de ser governada por uma oligarquia das castas mais altas e das famílias mais ricas visando ao seu próprio proveito. Uma classe dirigente como essa seguiria a abordagem paternalista da Grã-Bretanha em vez de aproximar a população da política, das questões sociais e possibilitar a reforma na educação e na saúde. Desde o princípio, Nehru preocupava-se com a conduta dos funcionários públicos: “Eles tendem a retornar aos tempos de domínio britânico, quando desprezavam o público como se fosse uma espécie de inimigo ou adversário que tinha de ser humilhado. Trata-se de um desenvolvimento perigoso por minar o prestígio do governo junto ao povo.”4 Nehru fez o papel de representante aristocrata popular, mas também assegurou o envolvimento das pessoas comuns na democracia. Assim como os Pais Fundadores dos Estados Unidos, Nehru ficou desiludido e exaurido diante da dimensão da tarefa e da mesquinharia e do oportunismo dos políticos, mas teve o apoio de um grupo de administradores e políticos experientes e capazes. Em particular, sua relação com o vice-primeiro- ministro, Vallabhbhai Patel, permitiu que as divergências dentro do Congresso fossem expressas por meio do processo político e não a portas fechadas. No entanto, após a morte de Patel em 1950, Nehru exerceu um controle maior do Congresso, e seu secularismo venceu o nacionalismo hindu dos defensores de seu vice. A maior contribuição de Nehru para a democracia indiana pode ter sido seu amor pelas eleições e campanhas. Ele apreciava a oportunidade de estar entre os eleitores e pregar o ethos da democracia. Subsequentemente, as eleições se transformaram num rito público de vasta importância, inculcado na identidade da nação. Os indianos descobriram uma paixão pela política que nunca mais perderam. Ao contrário da Europa, na Índia é comum discutir política com estranhos. Nehru entendia que promover a democracia de forma contínua era crucial para sua sobrevivência. Ele também tratava a Lok Sabha com respeito e seriedade, frequentando o Parlamento com regularidade, fazendo dele o fórum para anúncios importantes e dando atenção à opinião dos membros mesmo quando ameaçavam atrasar a legislação. Em contraste com líderes pós- coloniais ao redor do mundo, Nehru posicionava-se contra as medidas repressivas do governo, tal como a restrição da liberdade de imprensa, e as usava apenas com relutância. Conforme escreveu um historiador indiano: “O compromisso de Nehru com a democracia e com as liberdades civis era total. Para ele, tratava-se de valores absolutos, não de meios para se alcançar um fim.” Quando lhe perguntaram qual seria o seu legado, Nehru respondeu: “Espero que sejam 400 milhões de indianos capazes de governar a si mesmos.”5 Nehru seguiu uma agenda doméstica socialista com uma política externa de neutralidade. Embora alguns tenham criticado o ritmo lento do desenvolvimento econômico nas primeiras décadas da independência, a ênfase no fortalecimento da educação e na manutenção da estabilidade e da unidade nacional sustentou o recente impulso no crescimento econômico. Antes da morte de Nehru em 1964, outros partidos políticos lutaram para progredir. Os partidos socialista e comunista haviam começado como partes do partido do Congresso antes de romperem, mas a disposição do Congresso para incluir algumas de suas convicções dificultou as coisas para eles. O Bharatiya Jana Sangh (BJS) foi fundado em 1951 como um partido nacionalista hindu, mas o comunalismo não era bem-visto na Índia após o assassinato de Gandhi por um hindu. Também era ilegal recorrer a crenças religiosas nas eleições, e o BJS teve dificuldades para obter apoio. O partido Swatantra foi o primeiro partido conservador secular da Índia, formado em 1959 para representar a economia do laissez faire e do livre comércio em oposição ao socialismo de Nehru, mas também não foi capaz de atrair suas almas gêmeas ideológicas para fora do abrigo confortável do Congresso. A dominância do Congresso perpetuava a si mesma — qualquer um que quisesse entrar para a política naturalmente o via como um veículo. O Congresso elegeu Lal Bahadur Shastri sucessor de Nehru. Shastri fora escolhido por um grupo de membros eminentes do partido que ficou conhecido como o Sindicato, e quando Shastri morreu de ataque cardíaco, em janeiro de 1966, o Sindicato recorreu à filha de Nehru, Indira Gandhi, esperando que uma jovem popular e sem a própria base de poder fosse maleável. A nova primeira-ministra assumiu o cargo numa época difícil, com a Índia sofrendo escassez de alimentos e alta de preços. As eleições de 1967 resultaram em perdas enormes para o Congresso; embora ele tivesse uma maioria estreita no Lok Sabha, entregou o controle da maioria dos estados. Muitos dos membros do Sindicato perderam cargos de forma significativa, deixando Indira Gandhi numa posição mais influente. Em novembro de 1969, a velha guarda, ressentida com o prestígio crescente da primeira-ministra, expulsou-a de seu próprio partido. A sra. Gandhi montou de imediato sua própria organização política, chamada Congresso (R) (de Requisitantes), que depois se tornou o Congresso (I) (de Indira). Cerca de 220 membros do Parlamento uniram-se a ela, enquanto 68 permaneceram no partido rival, o Congresso (O) (de Organização). As eleições resultantes, em fevereiro de 1971, representaram um triunfo pessoal para a sra. Gandhi: o Congresso (R) obteve 352 das 518 cadeiras, concedendo um mandato poderoso ao novo partido formado em torno dela. Sua astúcia no tratamento do conflito de Bangladesh em 1971 aumentou ainda mais sua autoridade e importância no país e em todo o mundo.6 Entretanto, foi no governo de Indira Gandhi que a Índia mais chegou perto de perder a democracia. Em junho de 1975, a Suprema Corte de Allahabad acusou a sra. Gandhi de fraude eleitoral durante as eleições de 1971 e ordenou sua remoção do cargo parlamentar e um afastamento de seis anos. Isso a desqualificou da função de primeira-ministra. Numa atmosfera de extrema tensão, com multidões de defensores e detratores reunidas em Délhi, a sra. Gandhi recusou-se a acatar as ordens e solicitou que o presidente do país declarasse estado de emergência. Fakhruddin Ali Ahmed, membro do partido do Congresso que fora escolhido para o cargo pela sra. Gandhi, concordou, e o estadode emergência começou em junho de 1975. Ao mesmo tempo, o Governo do Presidente foi acionado para impor o controle central aos dois estados governados por partidos de oposição — Gujarat e Tamil Nadu. Milhares de ativistas de oposição foram presos quando os direitos civis foram suspensos e a censura, introduzida. Um programa malfeito de eliminação de áreas pobres, combinado com uma campanha de controle forçado da natalidade dirigido pelo filho de Gandhi, Sanjay, somente agravou o descontentamento crescente. Alguns afirmavam que Indira Gandhi estava defendendo o país de um golpe de Estado efetivo em 1975, mas a duração das ações de emergência depõe contra esse argumento. A sra. Gandhi estendeu o estado de emergência duas vezes antes de convocar as eleições em 1977. Na ocasião, o Congresso foi humilhado, perdendo poder, pela primeira vez na história da Índia, para o partido Janata — uma aliança de grupos de oposição. A emergência revelara o alcance da alteração do Congresso realizada pela família Gandhi, com figuras independentes sendo substituídas por outras de favorecimento pessoal. O resultado foi uma panela restrita com pouca conexão com membros dos partidos. No dia 23 de março, aos 81 anos de idade, Morarji Desai tornou-se o primeiro primeiro-ministro da Índia que não era membro do Congresso. Quando a fraca aliança do Janata foi desfeita, Indira Gandhi retomou o poder em 1980, mas à época de sua morte, em 1984, o Congresso havia se tornado apenas um dentre uma variedade de partidos competindo pelas posições principais da política indiana, além de outros que representavam interesses regionais. Rajiv Gandhi, filho e sucessor da sra. Gandhi, perdeu a eleição de 1989 para uma coligação entre a Frente Nacional e o BJP (reencarnação do antigo BJS), que assumiu o poder com V. P. Singh. A dominância do Congresso pode ter criado uma estabilidade nas primeiras décadas de independência, mas o desenvolvimento de alternativas foi crucial para uma democracia estável. Garantir que os eleitores tivessem a chance de remover seus líderes do poder era essencial — o que fez da remoção de Indira Gandhi, em 1977, um evento tão relevante. Outras vozes ganharam destaque na política indiana nas duas últimas décadas, notadamente as que desafiavam o direito da elite culta de representar o país como um todo. Pessoas como Mayawati, uma dalit que foi eleita ministra-chefe de Uttar Pradesh em 1995, representam de modo explícito uma parte da população. Ainda que possibilite o risco do sectarismo evitado pela Índia anteriormente, esse desencadeamento transformou as crenças de longa data do povo indiano a respeito da autoridade e de quem tem o direito de governar. Foi Mahatma Gandhi quem disse que não se pode criar nenhum sistema político que não dependa, em última análise, da conduta acertada do povo. As democracias precisam construir instituições prevenidas contra abusos e que possibilitem o acesso ao poder e a capacidade de derrubar líderes. A democracia indiana está longe da perfeição: o sistema foi manipulado, mal utilizado, deturpado e afetado pelo paternalismo. No entanto, a manutenção da unidade da nação, paralela à possibilidade de expressão do povo, foi o maior desafio e a grande conquista da Índia. Assim como os Estados Unidos, a Índia tem um apetite ilimitado para o lado festivo da política e uma estrutura social que, na prática, favorece os partidos em detrimento das facções. As eleições são um feito logístico gigantesco, combinado com uma atmosfera carnavalesca e a tensão dramática de uma competição apaixonada. Nenhum partido nacional pode depender dos votos de uma única casta, daí a seleção de candidatos que se adequem a um eleitorado constituído de diferentes identidades econômicas, comunais e de casta. De fato, há indícios de que o sistema democrático esteja rompendo as fronteiras das castas. A democracia indiana conta com partidos fortes, bem administrados, abertos a divergências, inclusivos e seculares. Quando esse não é o caso — quando os partidos seguem interesses sectários —, a democracia é afetada. Os partidos indianos têm sido capazes de conferir coerência e direcionamento a um vasto número de interesses regionais circulando num fórum nacional. Em suas primeiras décadas no poder, o Congresso era muito diferente de outros partidos, permitindo debates abertos sobre a elaboração de políticas. Embora a remoção de governantes tenha se revelado uma tarefa árdua, as instituições democráticas permitiam às pessoas registrarem um parecer favorável ou desfavorável quanto ao governo em todos os níveis. A Câmara Alta, ou Rajya Sabha, é formada por representantes eleitos por órgãos estaduais e dá voz potente aos estados no governo nacional. O sistema federal, em que cada estado tem um grau razoável de autonomia, também permite que as divergências em questões regionais sejam resolvidas sem ameaça ao centro. Temas com potencial para controvérsias, tais como línguas, têm sido tratados com sensibilidade — a criação de novos estados em Gujarat e Maharastra em 1960 e Haryana em 1966 foi uma resposta a reivindicações de grupos linguísticos por mais autonomia. Nas primeiras décadas, a imprensa livre forçou o Estado a se concentrar em sua prioridade principal: alimentar uma vasta população. Com uma melhora gradual no padrão de vida de muitas pessoas, os indianos puderam conferir os benefícios práticos de um governo que presta contas à população. A política como centro da vida nacional incentivou pessoas capazes e ambiciosas a verem a política como uma carreira viável, relevante e prestigiosa a ser seguida, enquanto os militares se abstiveram de interferir na política. O serviço público também permaneceu imparcial, embora a administração pública esteja infestada pela corrupção e pela burocracia sufocante. A polícia, nas palavras de um analista, é “mais um empecilho à democracia do que um auxílio”. A Índia permanece uma contradição, em particular no contexto da liberalização econômica dos últimos vinte anos. O país adquiriu os sinais externos de uma sociedade comercial moderna; com isso e com a democracia vem um grande número de pressupostos que se enraizaram na cultura ocidental — autonomia e direitos individuais, liberdade de escolha, livre- arbítrio — que não são vistos como verdades imprescindíveis na cultura indiana. As maneiras com que esses valores foram adotados são talvez as maiores conquistas do Congresso Nacional. O partido incorporou essas contradições — seus membros eram indianos com plena consciência de sua história cultural, mas também familiarizados com os princípios do liberalismo ocidental. Nos cinquenta anos após a fundação do Congresso na década de 1880, eles debateram a aplicação do liberalismo em seu próprio país. A partir da década de 1930, aproveitaram a oportunidade de pôr essas ideias em prática, e foi pela liderança de Gandhi que compartilharam sua visão com o povo da Índia. Porém, enquanto Gandhi queria um retorno à Índia tradicional, expandindo a partir das virtudes da vida nas aldeias, Nehru viu que uma Índia independente tinha de atuar num mundo de Estados-Nações em que cada um lutava por influência e prosperidade e que, portanto, necessitavam de um centro forte. A democracia continua na Índia, enquanto malogrou em muitos outros países da Ásia. Vimos algumas das razões para a sua persistência neste capítulo, mas temos de reconhecer as limitações de qualquer explicação. Ahistória da democracia na Índia é emocionante e inspiradora. Ela mostra que a democracia pode ter êxito em circunstâncias difíceis e que pode conferir respeito e dignidade a milhões de pessoas, a partir do conhecimento de que sua voz é valorizada. As razões para o triunfo da democracia indiana não garantiram uma existência contínua, mas a Índia mostrou ao mundo o que é possível. A 12 O OCIDENTE PÓS-GUERRA O Cidadão Consumidor Europa em maio de 1945 era um continente devastado. Quase seis anos de guerra mecanizada, incluindo o vasto bombardeio aéreo e de saturação de cidades importantes, haviam reduzido o centro industrial a escombros de metal e entulho. Cidades como Varsóvia, Hamburgo, Coventry, Dresden, Plymouth, Leningrado, Caen, Berlim e Londres haviam sofrido enormes danos materiais e perdas humanas terríveis. Algo entre 11 milhões e 20 milhões de pessoas estavam desalojados, muitos sem ter as próprias casas para retornar. Somente quando os últimos meses da guerra revelaram os horrores dos campos de extermínio nazistas, a dimensão total da tragédia na Europa começou a ser compreendida. A magnitude da devastação priorizou ações decisivas, enquanto a divisão entre as potências vitoriosas tornou-se logo clara. Nas conferências de paz realizadas em Ialta (fevereiro de 1945) e Potsdam (julho de 1945), a União Soviética, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha dividiram a Europa em duas esferas de influência, com as democracias liberais diante de um bloco comunista. A Europa Ocidental encontrava-se num estado de incerteza política. A experiência dos anos da República de Weimar e a década de 1930 estavam marcadas na memória coletiva. O oeste do continente apresentava todas as possibilidades de vir a se tornar, mais uma vez, um campo de batalha para extremistas. A influência decisiva foi a atitude do governo dos Estados Unidos. Enquanto a conferência de Versalhes, em 1919, definira as reparações em grande escala por parte das nações derrotadas, em 1947, os Estados Unidos aprovaram um importante programa de apoio econômico para toda a Europa, que ficou conhecido como Plano Marshall. A União Soviética recusou o auxílio oferecido a ela em nome dos países de sua esfera de influência, marcando uma separação efetiva de poder político. Os 25 bilhões de dólares de assistência concedidos à Europa entre 1945 e 1951 representavam cerca de 10% do PIB anual dos Estados Unidos, uma quantia colossal. Os Estados Unidos também buscaram estabilizar as nações derrotadas, a Alemanha, a Áustria e a Itália, incluindo-as numa nova aliança militar. Em 4 de abril de 1949, o Tratado do Atlântico Norte, com a promessa de apoio mútuo e cooperação militar, foi assinado, e nasceu a OTAN. Estados Unidos, Canadá, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França, Grã-Bretanha, Itália, Portugal, Noruega, Dinamarca e Islândia foram os membros fundadores, com a entrada da Grécia e da Turquia, em 1952, e da Alemanha Ocidental, em 1955. No mesmo ano da entrada decisiva da Alemanha Ocidental, foi assinado o Pacto de Varsóvia entre União Soviética, Hungria, Tchecoslováquia, Polônia, Bulgária, Romênia, Albânia e Alemanha Oriental, assinalando não apenas a divisão formal da Europa, mas a morte da democracia nos países que estavam sob influência soviética. Enquanto isso, a Europa Ocidental começava a tarefa de reconstruir a democracia, e isso implicava limitar a influência do comunismo. Os partidos comunistas da Europa Ocidental geralmente afirmavam defender a democracia, porém, apesar disso, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha viam o avanço do comunismo como uma importante ameaça. A Itália tinha o partido comunista mais forte, e sua potencial influência desestabilizadora era intensificada pela fragilidade da Itália como nação: no início da década de 1950, a língua italiana era falada exclusivamente por apenas 20% da população — a maioria falava o dialeto local — e a maioria não tinha acesso à educação secundária. O sul da Itália era conhecido pelo atraso econômico, com os calabreses, por exemplo, recebendo apenas metade do salário médio nacional. A guerra intensificara as divisões internas, e o norte da Itália demonstrava sinais de querer formar um Estado separado. A ajuda maciça dos Estados Unidos criou as condições econômicas necessárias para a unidade em torno de um governo estável, com um fundo especial direcionado para auxiliar o sul. As eleições de junho de 1946 aboliram a monarquia, e a Constituição da república italiana foi aprovada no ano seguinte. Dos três principais partidos italianos — Socialista, Comunista e Democrata Cristão — foi o Democrata Cristão que dominou os anos do pós-guerra no nível nacional, ao passo que os partidos Socialista e Comunista controlavam as cidades industriais do norte. As áreas da vida pública e civil eram simplesmente divididas entre esses diferentes interesses políticos. Esse não era um resultado democrático ideal, uma vez que os eleitores não tinham uma escolha realista entre partidos divergentes — o caminho seguia por meio de brigas dentro dos partidos, não por eleições abertas. Contudo, o elemento central do sistema era o fato de que os democratas cristãos impediam os comunistas de alcançarem poder nacional e, portanto, conquistaram a confiança dos Estados Unidos e de outros governos ocidentais. No entanto, o partido Comunista continuou a receber apoio popular — cerca de 34%, ainda em 1972 — e constituía uma força efetiva nos governos local e regional, além de, como muitos acreditam, propiciar uma alternativa vibrante para a cultura política da Itália. Como se saíram as outras nações derrotadas? O destino da Áustria e da Alemanha nos mostra algo difícil de explicar e que teria sido impossível prever: cada país parecia adotar a democracia com a determinação que, quinze anos antes, haviam escolhido dedicar ao nacionalismo extremo. No caso da Alemanha Ocidental, alguns intelectuais lamentaram que o consumismo e a busca pela prosperidade tenham impedido qualquer transformação política ou cultural profunda, mas, para os vizinhos da Alemanha, a construção de um país pacífico com alto apreço pelos valores democráticos era uma conquista admirável. A eleição de 1949 foi uma disputa acirrada entre o partido Democrata Cristão (CDU), de centro-direita, e o SPD. Ainda que ambos os partidos não aceitassem formalmente a divisão da Alemanha, o CDU estava ávido para posicionar a Alemanha no bloco ocidental emergente, enquanto o SPD queria fazer do país uma zona neutra de proteção entre o lado oriental e o ocidental. À medida que os alemães ocidentais começaram a sentir as vantagens materiais da aliança ocidental, o apoio ao SPD diminuiu de forma expressiva, até o seu renascimento sob uma nova liderança jovem na década de 1960. Isso fez do líder do CDU, Konrad Adenauer, o arquiteto da política alemã no pós-guerra. Sob muitos aspectos, ele foi sua personificação também. Nascido em 1876, Adenauer havia sido uma figura proeminente na política regional alemã entre as guerras. Sua remoção do cargo de prefeito de Colônia em 1933 e sua prisão pelos nazistas em 1945 deram-lhe credibilidade suficiente para obter a aprovação das potências ocidentais. Ao acompanhar a história dos partidos católicos desde a unificação alemã, o CDU, ainda que culturalmente conservador, era socialmente progressista, tendo desenvolvido um sistema de bem-estar social e adotado uma política industrial intervencionista. A cooperação entre Estado, indústria e sindicatos criou uma forma de capitalismo democrático que diferia de forma radical da abordagem americanade livre mercado. O chamado modelo renano foi um desenvolvimento significativo no qual o Estado democrático apoiava indústrias-chave, insistindo no envolvimento dos representantes dos trabalhadores no processo administrativo. A estrutura federal da nação mantinha a descentralização do poder, com estados individuais, ou Länder, capazes de promover seu próprio renascimento comercial e industrial, de forma muito contrastante com a tradição centralizada da Grã-Bretanha e da França. Para evitar a instabilidade dos anos da República de Weimar, a função de chanceler ganhou mais segurança, e o papel do presidente foi rebaixado. A Áustria seguiu um caminho semelhante para a democracia, embora lá o período pós-guerra tenha sido mais doloroso do que na Alemanha Ocidental. Os dois principais partidos políticos da Áustria tinham razões para querer esquecer o passado. O partido do Povo Austríaco opusera-se ao Anschluss de 1938, mas, com seu nome anterior, executou um golpe de Estado em 1934 que acabou com a democracia austríaca. Os sociais-democratas, em contraste, haviam apoiado o Anschluss, que se transformou em fonte de vergonha considerável. A Áustria nunca chegou a passar por um período de arrependimento público por seus crimes enquanto nação. Em vez disso, com uma profunda consciência de três vizinhos comunistas às portas do país, os dois partidos formaram uma série de governos de coalizão que geraram estabilidade e prosperidade. Quase todas as nações do Ocidente haviam sido privadas de democracia com a ocupação nazista. Os países do Benelux, Noruega e Dinamarca, restabeleceram a democracia depois de 1945, enquanto a Suécia, que se mantivera neutra durante a guerra, e a Finlândia continuaram sendo Estados democráticos. A Escandinávia iniciou um longo período de social-democracia de centro-esquerda e afluência estável. A emergência desses países como os mais democráticos do mundo, com base em todas as avaliações objetivas, é digna de nota.1 Nos dias atuais, observamos a Escandinávia como um modelo de liberalismo bem-sucedido, mas esses países eram relativamente pobres no século XIX, com quantidades imensas de camponeses suecos, por exemplo, partindo em busca de uma vida melhor na América. A industrialização chegou relativamente tarde, e é apenas no período pós-guerra que a prosperidade passou a ser constante. A Escandinávia vira a ampliação e o fortalecimento de práticas e instituições democráticas, assim como a maior parte da Europa, na década de 1920. Após as privações do período pós-guerra imediato, a região entrou num ciclo virtuoso no qual a democracia trouxe, ou pelo menos coincidiu com, uma riqueza maior. Não se pode afirmar que essa seja a explicação completa para o florescimento da democracia. Podemos citar a longa tradição de vida comunitária, as redes de apoio mútuo (conforme vistas em Amsterdã, no capítulo 4) e os costumes de envolvimento do cidadão como elementos da cultura da Escandinávia que reforçaram a democracia.2 Todos eles existem em outros lugares em algum grau, mas talvez a coincidência desses fatores culturais com a prosperidade tenha consolidado a democracia com tanta firmeza. A Grã-Bretanha passou por uma importante mudança política em 1945. A guerra expôs milhões de eleitores à injustiça da sociedade hierárquica que sobrevivera até a década de 1940, mostrando também que o sacrifício compartilhado tinha suas recompensas. O partido Trabalhista ofereceu uma alternativa baseada na propriedade pública de serviços e indústrias-chave e introduziu um Serviço Nacional de Saúde e amplo Estado-Providência. A derrota de Winston Churchill para uma maioria esmagadora na eleição de 1945 foi um dos momentos mais significativos da história democrática do país: um homem de extraordinário carisma que levara a nação à vitória foi retirado do cargo pelo eleitorado.3 O verdadeiro triunfo aqui foi a persistência da democracia por meio do funcionamento do Parlamento. Foi um debate parlamentar em maio de 1940 que deixara clara a necessidade de um líder nacional da estatura de Churchill, enquanto a coalizão nacional do governo de Churchill dissolvia-se, retornando aos partidos parlamentares separados em maio de 1945, em preparação para a eleição de julho. Durante toda a guerra e depois, a democracia britânica foi capaz de se adaptar às necessidades de uma crise que dificilmente teria sido mais grave. Embora o sistema parlamentar britânico tenha permanecido intacto durante todo o conflito, na França a Quarta República foi fundada a partir dos destroços da guerra, com uma nova Constituição entrando em vigor em 13 de outubro de 1946. Os líderes da Terceira República foram amplamente responsabilizados não apenas pela derrota catastrófica para a Alemanha em 1940 e a colaboração generalizada com os nazistas, como pela incapacidade de lidar com a depressão da década de 1930. No entanto, o fim da Terceira República não resultou na rejeição da democracia liberal. A Quarta República restabeleceu uma democracia parlamentar com um presidente em grande parte simbólico. Nas eleições de novembro de 1946, o partido Comunista da França (PCF) conseguiu a maioria dos assentos e entrou num governo de coalizão com o partido Socialista (PS) e o partido dos Trabalhadores (SFIO). O líder socialista Léon Blum dirigiu a coalizão, mas, no final de 1947, o governo se desfez e foi substituído por um novo agrupamento no qual alguns partidos de centro-direita ocuparam os lugares dos comunistas. A participação do PCF nas eleições parlamentares e a primeira coalizão amenizaram muitos temores a respeito da democracia francesa. A partir de 1947, o centro tentou manter a maioria na Assembleia Nacional: ao longo dos onze anos seguintes haveria 21 primeiros-ministros de seis partidos diferentes. Charles de Gaulle, herói da liberação da França em 1944, opôs-se com firmeza à Constituição da Quarta República, defendendo um sistema presidencial em vez de um governo parlamentar. Entretanto, a Quarta República estabeleceu de fato um caminho democrático na França ao oferecer uma alternativa confiável à desacreditada elite governante, reconstruindo a infraestrutura industrial e econômica e dando os primeiros passos para a formação de uma aliança de comércio europeia, que viria a se tornar a CEE e depois a UE. A única área que apresentou falhas constantes foi a relação do país com suas colônias. Primeiro na Indochina, depois na Argélia, a França tentou manter o poder diante de forças nacionalistas altamente motivadas e organizadas. Na Argélia, os colonizadores franceses travaram o que acabou sendo, na prática, uma guerra civil contra nacionalistas argelinos e, ao fazê-lo, expuseram a fragilidade do governo francês e do sistema parlamentar multipartidário. Em Algiers, em maio de 1958, um grupo de ex-generais franceses, com o apoio de colonos franceses étnicos, tentou um golpe contra o poder colonial. A própria França corria o risco de ser devastada. Nesse momento de crise nacional, uma voz confiante e inequívoca era necessária. Em junho de 1958, Charles de Gaulle foi persuadido a se tornar chefe de governo e, de imediato, buscou meios de introduzir uma nova Constituição que concedesse poderes executivos plenos ao presidente. A Constituição da Quinta República foi aprovada em outubro, e De Gaulle foi eleito presidente por um colégio eleitoral em dezembro de 1958, para um mandato de sete anos.4 A democracia francesa demonstra-se pronta a mudar diante das novas circunstâncias, para que possa sobreviver. Em março de