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Visitantes apreciam obras em exposição do acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), em 2017. Em certas concepções filosóficas, o juízo estético é universal, e existe uma ideia de belo que é compartilhada por todas as pessoas, independentemente de sua idade, gênero, origem social ou identidades étnica e cultural. R U B E N S C H A V E S /P U LS A R IM A G E N S Criar um diálogo • Crie um diálogo entre duas pessoas. Uma que defen- da a ideia de que “Gosto não se discute, pois cada um tem o seu”, e outra que defenda a universa- lidade subjetiva do juízo de gosto. As vanguardas artísticas e a produção de utopias Entre o fim do século XIX e a década de 1970, eclodiram as vanguardas artísticas europeias, que caracterizaram a arte moderna, influenciando a pintura, literatura, teatro, escultura, música, cinema, arquitetura, entre outras manifestações artísticas. A compreen- são dessas vanguardas é um pressuposto para entendermos a arte contemporânea. O início do ciclo moderno na arte está assentado na Revolução Industrial, no conse- quente aparecimento da tecnologia industrial e no desenvolvimento de determinada forma de capitalismo que trouxeram consigo um conjunto de mudanças na estrutura do fazer artístico e na finalidade da arte. “Os rápidos desenvolvimentos do sistema industrial, tanto no plano tecnológico como no econômico-social, explicam a mudança contínua e quase ansiosa das tendências artísticas que não querem ficar para trás, das poéticas ou correntes que disputam o sucesso e são permeadas por uma ânsia de reformismo e modernismo”. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 17. A frase “A rosa é uma flor”, por exemplo, é uma afirmação universal com a qual é fácil concordar, porque, por definição, o conceito “rosa” está vinculado (implícito) ao conceito “flor”. Por esse motivo, sabe-se que toda rosa é uma flor e que é possível verificar empiri- camente essa afirmação. Mas, quando se afirma que “a rosa é bela”, o que ocorre é outro tipo de afirmação ou juízo, de base subjetiva, que tem a pretensão de universalidade. Um juízo estético, então, apesar de ser essencialmente subjetivo, pois advém do pra- zer sensível de cada um, pressupõe universalidade subjetiva. Embora sua universalidade não possa ser provada – como acontece com os juízos científicos –, o belo provocaria adesão, admiração ou fruição universal. Além disso, há outro aspecto importante na concepção estética kantiana: a contempla- ção da beleza ou do belo provocaria uma satisfação desinteressada. Isso significa que não haveria na fruição artística nenhum interesse a não ser a própria contemplação da beleza, ou seja, não haveria nenhuma finalidade exterior objetiva, apenas o gozo em si da vivên- cia. Nesse sentido, a contemplação do belo é um prazer desinteressado, livre e autônomo. Com efeito, para Kant, a arte não é imitação pura e simples da natureza, embora ele entenda que o belo natural seja superior ao belo artístico; tampouco é uma in- terpretação imperfeita de uma realidade metafísica. A arte expressaria, de alguma maneira, o universal no particular. 81 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . O iluminismo, que ofereceu o suporte teórico para as grandes revoluções políticas dos séculos XVIII e XIX, como a Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789) e os movimentos de independência das colônias na América (século XIX), também esteve na base das transformações operadas nas artes, que inauguraram a arte moderna. Em oposição ao barroco-rococó, estilo associado à nobreza e caracterizado pelos excessos ornamentais e pela afetação, o neoclassicismo exaltou a racionalidade e a objetividade no campo artístico. Resgatando os padrões greco-romanos, a arte neoclássica afirmou a supremacia da técnica sobre o gênio criativo e o planejamento sobre a inspiração. Contemporâneo ao neoclassicismo, o romantismo se desenvolveu como uma libertação das amarras do rigor técnico imposto pelo classicismo e da racionalização da obra de arte. Valorizando a emoção e o sentimento, os artistas românticos produziram obras com forte apelo dramático, nas quais a subjetividade foi colocada em primeiro plano. Pode-se considerar, no entanto, que as vanguardas artísticas modernas propriamente ditas tiveram início com o impressionismo, no fim do século XIX, seguido de inúmeros outros “ismos”, como o futurismo, o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, entre outros. O que caracterizava os artistas vanguardistas? Eles acreditavam, sobretudo, na autonomia e no poder transformador da arte. A arte não precisava seguir os valores metafísicos, ideais ou morais do passado. Ao contrário, a arte de vanguarda estava voltada ao novo e ao futuro, voltada a desenhar uma utopia de emancipação humana. A defesa da autonomia da arte, então, não significava o afastamento da vida. Ao contrário, o artista vanguardista buscava misturar ou conjugar a arte com a vida. Seu desejo e sua utopia eram estetizar a vida, transformando o mundo por meio da arte. É D O U A R D M A N E T - TH E C O U R TA U LD IN S TI TU TE O F A R T, L O N D R E S Um bar no Folies-Bergère (1882), obra impressionista de Édouard Manet, representa uma cena do café-concerto Folies Bergère, de Paris. O estado de desânimo ou tristeza da garçonete contrasta com o ambiente despojado e festivo retratado. Trata- -se de uma cena urbana. Os impressionistas, assim como os outros vanguardistas, buscavam misturar a arte e a vida. As utopias positivas e negativas As vanguardas artísticas, cada uma a seu modo, estavam impregnadas pela noção de utopia, de mudança, de transformação da realidade. “São diferentes desenhos de utopia que revelam, contudo, a mesma confiança dos artistas de vanguarda do início do século no poder da arte de transformar a realidade, de contribuir para a mudança da consciência e impulso dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo.” FABBRINI, Ricardo N. O fim das vanguardas. In: Seminário Vanguarda e Modernidade nas artes brasileiras, 2005, Campinas. Disponível em <https://www.iar.unicamp.br/>. Acesso em 26 jun. 2020. R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 82 https://www.iar.unicamp.br/ G . C IG O LI N I/ D E A /A G B P H O TO L IB R A R Y / K E Y S TO N E B R A S IL - M U S E O D E L N O V E C E N TO , M IL Ã O Formas únicas de continuidade no espaço (1913), escultura do futurista italiano Umberto Boccioni, feita em gesso, com versões em bronze posteriores à sua morte. A forma do corpo e o movimento insinuados pelo artista parecem remeter a um hibridismo entre máquina e homem que caminha determinado para a frente, em direção ao futuro. Como afirma o filósofo brasileiro Ricardo Fabbrini, é possível entrever a formação de duas linhagens dessas vanguardas guiadas pela utopia ao longo do século XX: as vanguardas afirmativas, compromissadas com o capitalismo industrial, como o futu- rismo e a escola de Bauhaus, que exaltavam a vida moderna, a tecnologia ou o culto à máquina e às novas invenções; e as vanguardas negativas, líricas ou pulsionais, que se opuseram à racionalidade técnica e à arte acadêmica, como o dadaísmo. Quer dizer, para uns, a emancipação do ser humano viria por meio do desenvolvimento do sistema e do aprofundamento das inserções técnica e científica; para outros, ela seria resultado da superação da lógica maquinista e racionalista. No entanto, para alguns pensadores, como o filósofo espanhol Eduardo Subirats, a identificação predominante com os valores da racionalização técnico-científica e do progresso econômico pelas vanguardas históricas a partir do cubismo fez sucumbirem os valores emancipatóriosda arte de vanguarda, colaborando para seu definhamento. “[...] a utopia social e cultural das vanguardas, de signo revolucionário e emancipa- dor, carregava implícitos os momentos de sua integração a um processo regressivo de colonização tecnológica da vida, e racionalização coercitiva da sociedade e da cultura.” SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1991. p. 2. Teriam sido, então, as postulações internas das próprias vanguardas e o desenvol- vimento da sociedade industrial-tecnológica as principais causas do fim das artes de vanguarda. Doc. 1 Esse tipo de formulação pode ser mais bem elucidado com o auxílio de pensadores da Escola de Frankfurt, que denunciaram a subordinação da arte à lógica capitalista. A indústria cultural e a massificação da arte Indústria cultural é a expressão que os filósofos alemães Theodor Adorno (1903- -1969) e Max Horkheimer (1895-1973), entre outros, utilizavam para designar a cultura de massa desenvolvida pelo sistema capitalista e que tinha como propósito reforçar social e ideologicamente esse sistema. Quais são os instrumentos da indústria cultural? São principalmente as mídias – tele- visão, rádio, cinema, revistas e jornais e, hoje, a internet, que veicula um fluxo gigantesco de informação que é acessado por meio de inúmeros produtos eletrônicos, como o celular e o tablet. Uma das características da indústria cultural é a massificação da arte. A arte se transformou em produto de consumo rápido para milhões de pessoas, ou seja, tornou-se mercadoria. Perda da transcendência, perda da utopia Para Adorno e Horkheimer, as obras de arte anteriores à sociedade de consumo tinham como virtudes a singularidade, a originalidade e, sobretudo, a transcendência. A arte remetia sempre a algo que estava além do fisicamente dado, a uma utopia, a um sentido místico ou religioso. Doc. 2 Assim, a arte tinha como algo imanente a criativi- dade, a imaginação, o pensamento e a crítica. Com a arte transformada em mercadoria, isso tudo se perdeu. Para se erigir em pro- duto de consumo de massa, a obra e o sentido de arte tiveram de ser alterados. A obra de arte passou a ser orientada pela racionalidade técnica da sociedade industrial, ou seja, passou a ser padronizada e produzida em série, como qualquer outra mercadoria. Mas essa mudança não teria retirado apenas a criatividade e a originalidade da obra de arte. Seu principal efeito teria sido esvaziá-la de seu papel crítico e transformador. Assim, a arte na sociedade de consumo teria apenas a função de entretenimento, ocultando a realidade opressora do sistema. A linguagem artística da arte-mercadoria não pode chocar o consumidor, não deve causar estranhamento ou indagação reflexiva, deve ser uniforme, genérica, padroni- zada e amorfa o suficiente para ser aceita pela maioria e consumida sem resistência, sem produzir alterações na rotina. Não há novidade na arte, mas apenas reprodução e a sensação ilusória de bem-estar momentâneo. Copos de souvenirs impressos com retratos de mulheres de Gustav Klimt. Viena, Áustria, 2018. A possibilidade de reprodução de uma obra de arte por meio dos recursos técnicos da sociedade industrial retirou dela sua transcendência e a reduziu à condição de mercadoria. S H A R O N W IL D IE /S H U TT E R S TO C K 83 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Tais características podem ser vistas, por exemplo, nas novelas de televisão, que re- presentam um dos principais produtos da indústria cultural brasileira. O argumento das novelas, suas tramas e dramas internos, o desenvolvimento dos personagens, os conflitos, praticamente tudo é concebido tendo como referência o potencial de audiência, pois o autor sabe que o índice de audiência é que determina se sua obra é um sucesso ou um fracasso, e não a qualidade da obra em si. Uma novela que causasse estranhamento e reflexão profunda dos telespectadores possivelmente seria um grande fracasso de audiência e não atenderia à lógica do mercado, sendo rechaçada pela indústria cultural. Quase todas as produções artísticas e culturais submetem-se à lógica da indústria cultural para não serem marginalizadas e definharem ou mesmo extinguirem-se. Nesse sentido, o desejo de mistura entre arte e vida, que está na origem da arte moderna e das vanguardas artísticas, realizou-se. Mas no lugar de a arte estetizar a vida, ela foi despojada de sua identidade e transcendência para se tornar uma mercadoria entre outras e participar de nosso cotidiano nesse papel. Não há mais espaço para a subversão da arte? O fim dos propósitos da arte moderna é denunciado pela existência da arte pós- -moderna. Ela não tem em vista uma cultura ou uma manifestação elevada nem um conhecimento acadêmico ou uma interpretação profunda. Busca a apresentação da realidade como esta aparece, o jogo com o público e com a própria arte, a ironia, o humor, a paródia, o pastiche. Ela não quer a contemplação das pessoas, mas a sua par- ticipação. Não vislumbra uma utopia ou uma transformação mais geral da sociedade, mas pretende que o espectador se envolva de modo pontual e ativo. A arte pós-moderna relaciona-se com as novas tecnologias e está profundamente inserida na sociedade de consumo. Suas obras são compostas da mescla de linguagens e materiais, a fusão de meios expressa o caos e a fragmentação da sociedade. Com o fim das vanguardas artísticas e a banalização comercial das obras de arte, o que resta para a arte? A arte só será uma manifestação de perpetuação do sistema e de sua lógica racionalista e consumista? Não há mais possibilidade de a arte ser subversão e buscar uma utopia, isto é, a transformação da realidade e da ordem social? O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? (1956), de Richard Hamilton, considerado o primeiro quadro pop. A obra é composta de figuras retiradas de revistas estadunidenses, evidenciando a relação entre arte e cotidiano. © H A M IL TO N , R IC H A R D © R . H A M IL TO N /A U TV IS , B R A S IL , 2 02 0 - K U N S TH A LL E , T U B IN G E N Para navegar Museu de Inhotim Disponível em <https:// artsandculture. google.com/partner/ inhotim?hl=pt-br>. Acesso em 17 jul. 2020. Exposição virtual do Museu de Inhotim em que é possível observar a grande variedade de propostas artísticas contemporâneas e conhecer obras que foram marcos da resistência cultural e política, como as obras de Cildo Meireles. 84 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . https://artsandculture.google.com/partner/inhotim?hl=pt-br https://artsandculture.google.com/partner/inhotim?hl=pt-br https://artsandculture.google.com/partner/inhotim?hl=pt-br https://artsandculture.google.com/partner/inhotim?hl=pt-br Para assistir O sorriso de Monalisa Direção: Mike Newell Ano: 2003 País: EUA Duração: 117 min. Na década de 1950, uma professora de artes rompe com os padrões estéticos clássicos de suas alunas e com as práticas pedagógicas obsoletas da escola, o que acaba também estimulando as estudantes a questionar os valores conservadores da sociedade. Falácia da falsa dicotomia A falácia da falsa dicotomia, como o nome indica, acontece quando duas possibilidades opostas são consideradas como as únicas, descartando-se alternativas, que deveriam, no entanto, ser consideradas. Veja. Gabriela está atrasada para a escola. Ou o ônibus quebrou ou ela se atrasou. Como rece- bemos a informação de que ela saiu de sua casa no horário, com certeza, o ônibus quebrou. A dicotomia é falsa porque há diversos outros motivos que podem ter provocado o atraso de Gabriela – ela resolveu passar em algum outro lugar antes de ir para escola; ela achou melhor não assistir à primeira aula e estudar na bibliotecapróxima de casa; ela encontrou um amigo querido que há muito não via; ela foi assaltada e está prestando queixa na delegacia etc. Quando duas alternativas anunciadas podem ser falsas, estamos diante de uma dicotomia falsa. Exercitar a argumentação 1. Analise os argumentos a seguir. a) Quem não está a meu favor, está contra mim. Você não está a meu favor. Então, você está contra mim. b) Ou o Brasil muda agora ou não muda nunca mais. Para mudar, deve-se votar a favor do parlamentarismo. O Brasil votou a favor do presidencialismo. Logo, o Brasil não muda nunca mais. 2. Crie uma falácia da falsa dicotomia com o seguinte slogan utilizado pela ditadura civil-militar brasileira: “Brasil: ame-o ou deixe-o.”. Registre em seu caderno Aprender a argumentar A utopia é imanente à arte A reflexão sobre a falência das vanguardas artísticas e seu ideal emancipatório, bem como o entendimento da arte pós-moderna como denúncia e, ao mesmo tempo, expressão desse fracasso, são o primeiro passo para uma reformulação ou redefini- ção da arte, tanto do ponto de vista de sua identidade quanto de seus objetivos no âmbito da sociedade. Há ainda um aspecto imanente à arte, que foi lembrado pelo filósofo Herbert Marcuse, no qual se pode encontrar chão firme para se dar passos não no sentido de resgatar os restos mortais da arte de vanguarda ou de sentir uma nostalgia de seu programa, mas de construir novos significados e formas próprias da arte futura. Para esse filósofo alemão, toda arte verdadeira tem um potencial político que protesta contra as relações sociais vigentes, porque as transcende, porque busca uma utopia, algo que não está lá, rompendo com a consciência dominante. Nesse sentido, a arte visa desmistificar a realidade, olhando para o horizonte da transformação. “[...] a arte apresenta o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo.” MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 2018. p. 64. Assim, o potencial contestatório da arte não está apenas nas vanguardas artísticas. O que morreu com elas foi um tipo artístico de contestação. Mas a arte permanece com sua índole subversiva e utópica; isso pode ser observado inclusive nas manifestações contraditórias da arte contemporânea. Nela, não há apenas adaptação ao mercado e reprodução de seu ideário; há também crítica, como na obra de Hélio Oiticica que abriu este capítulo. Nesse aspecto, estaríamos em um momento transitório no qual o utópico prepara-se para assumir outra vestimenta artística. 85 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 .